IGOS A ética na prática médica Fernando Q. Monte Na prática médica,a ética podeser analisadasobtrês aspectos:a relaçãomédico-paciente.o relacionamentodos médicosentre si e com a sociedade.Sobtal estratificação,objetivandoexaminar a dinâmicade sua aplicaçãoduranteo exercícioda medicina,este artigo discute,de maneirasucinta, a relaçãomédico-paciente,o princípiode não prejudicar.a eqüidade.a autonomiado paciente, o sigilo, o respeitoà vida -sobretudo a postura diante do aborto e da eutanásia-e o relacionamento entre os profissionaismédicose entre estese a sociedade. O estudo da ética tem sua importânciasobreo aspectofuncionalda sociedade.Além de permitir o estabelecimentode normaspara a convivênciapacíficaentre as pessoas.ela orienta os profissionaisparao respeitoaos interessesdos indivíduos.No casoespecíficoda profissãomédica,primordialmenteparaos interessesdos pacientes.que devemsobrepujaros dos médicos.A título de lembrança,um velho aforismajá dizia: "A medicinaexiste porque existemhomensdoentes". Por outro lado, os interessesda categoriadevemsobrepor-seaos individuais-fato que fez com que os Códigosque regemo exercícioprofissionalabordassemo assunto. A relação médico-paciente A imensa maioria dos problemaséticos pertencema esta categoria,como é natural. Neste artigo, nos limitaremos a tocar superficialmente nos problemas mais gerais,não enfocando os pequenose específicos,como a pertinência de dizer ao paciente grave o seuverdadeiro diagnóstico, a questãodos honorários, do corporativismo, dos atestados médicos, etc. Não prejudicar N o princípio bioético de não prejudicar (primum, non nocere)entrecruzam-seos conceitos de utilidade, benefício, risco e dispêndio. _1__- A utilidade de certos atos médicosé questioná- cosméticas-embelezar os olhos, modelar uma vel, tais como a remoçãode amígdalase adenói- mama, retirar gorduras inestéticas -ou des,entre asindicaçõesantigas,e a dascirurgias de ponte de safena,entre as mais recentes(1). refrativas -para deixar de usar óculos, etc. Essascirurgias, não raro, provocamresultados Algumas vezes,o princípio de não prejudicar desagradáveis e inesperados,como morte após servede pretexto para a adoçãode uma atitude tímida diante de certos casos -o que, muitas vezes,não impede que sejamtomadas medidas lipoaspiração, complicaçõesgravespelo deslocamento de silicone (ou outro líquido injetado como modelador), cegueira conseqüente a muito drásticas quando, infelizmente, já é cirurgia de miopia, e assim por diante. tarde. Tal fato explica porque os erros de omissãosãomais difíceis de detectare mais fáceisde Antigo caso traz em sua conclusão uma lição racionalizare perdoardo que os de atuação(2). atualizada. Em 1929, Dejardiere, cirurgião Na prática médica,portanto, não sedevedeixar de beneficiar pelo risco de vir a prejudicar,mas francêsfamoso em sua época, foi condenadoa pagar indenização por uma amputação que sim evitar tomar como absoluta!a predominância do prejudicarsobreo beneficiar.Ante deter- realizou numa costureira que, precedentemente, havia sido operadapara retirar gordura da minadascircunstâncias,deve-setomar uma atitude drástica, com prejuízo a curto mas benefí- perna e teve grave complicação: gangrena do pé. No tribunal, a defesaargüiu que a pacien- cio a longo prazo. Outras vezes,ao se adotar te havia exigido a cirurgia, ameaçandosuici- uma atitude para beneficiar determinada contingência o resultadopode ser consideradopre- dar-se caso não fosse feita. Entretanto, a Promotoria pediu a condenaçãoe a obteve, por judic~l se comparado à situação anterior. Por ter o cirurgião agido num casoque não era de exemplo: um paciente com melanoma no pé podeperdera perna para salvara vida; um doen- sua competência, pois era um caso psiquiátrico e não cirúrgico (4). as te com Hodgkin pode sofrer riscos desagradáveis, inclusive de esterilidade,para ter razoável Neste subitem cabeainda falarmos das despepossibilidade de sobreviver (3); um paciente sas médicasaumentadaspelos pedidos de exacom catarata pode vir a ter no pós-operatório mes complementares, nem sempre isentos de uma infecção que o fará perdera visão,quando risco e, com freqüência, nada esclarecedores, o resultado esperadoera a recuperaçãode sua não beneficiando, portanto, ao paciente. capacidadevisual. Thurowacha que houve rápido avanço no Existem atos médicos que podem ser úteis, aumento dos gastoscom a tecnologia médica, mas apresentam benefício questionável, e outros, de baixo risco, que consideramoscomo infratores do princípio de não prejudicar. ao lado de princípios éticos inconsistentes que sustentamtal prática. O desenvolvimentodessas técnicas, que apenasdão indícios de que Podemos tomar como paradigma as cirurgias podem melhorar levementea acurácia do diag- I IGOS nóstico ou marginalmente prolongar a vida, O problema da eqüidadeno tratamento médi- está a cada dia mais caro (5). Ressalte-seque co toma-se mais delicado nos paísesque apre- tal "progresso" representou nos Estados Unidos da América um aumento dos gastos com a saúde, no Produto Nacional Bruto, de sentam grandes diferenças sociais, para os quais há necessidadede uma conduta ética mais elevada(8). Podemosincluir como falta 5% para 11% no período compreendidoentre 1963 e 1983 -e que continua a crescer(5, 6), de eqüidade o fato de pesquisadoresmédicos manipularem enormessomaspara o estudo de com gravesconseqüênciasno acessoaos servi- doenças raras, o que é menos produtivo que ços de saúdepelos indivíduos de menor poder aquisitivo, devido aos cortes orçamentários medidas preventivasdirecionadaspara assegurar melhor saúde materna e/ou a adoção de realizadospelo governo. cuidados com a nutrição e a criança (9) -ressalte-seque essaafirmação deixa muita gente desconfortável, não convencida e até mesmo Eqüidade ultrajada. Este é um problema que não será resolvido com medidas parciais ou belos discursosemocionados. Só deixará de ser problema ético O princípio aristotélico de justiça distingue como "completa virtude" a igualdadede tratamento às pessoas(10). Esperarque a eqüidade insolúvel quando houver apenasuma forma de de tratamento por todos os médicossejaobtidai assistênciamédica, e numa sociedadede abundância e sem desigualdadessociais. O proble- com códigos,juramentos e leis é pura ingenui-I: dade. O realismo nos faz transferir a solução ma é tão antigo'tJuanto a existência de classes para a sociedade, isto é, paraas suastransformasociais que possibilitam que as forças de traba- ções,no sentidode removeros desníveissociais. lho de muitos produzam a riqueza de poucos. Platão já dava conta das desigualdadesde atendimento médico há milênios -em um dos seus A autonomia do paciente diálogos denuncia a existência do médico dos senhorese dos escravos(7). A autonomia é uma extensãoda eqüidadena qu41seassociao respeito às pessoas.Tratando- A modernidadedo texto residena diferença do se o paciente com o devido respeito à sua con- atendimento, que pode ser transposto para a época atual e para o Brasil em particular, no qual se pode separaros pacientes entre os do dição humana pode-se obter o seu consentimento para atos médicos que incorram sérios riscos, compreenderas razõesde sua não-acei- SUS (Sistema Único de Saúde)e os privados. Tal desigualdade,vista por um escritor não- tação de certas terapêuticas, encontrar outras alternativas para curá-Io ou amenizar o seu médico e de talento, teria descrição bastante sofrimento e atender a certas reivindicações parecida. válidas por ele formuladas. 33 Para alguns, a interpretação do que é o respei- testadapor uma pessoasemo seunível de qua- to à pessoahumana é o de não prejudicá-Ia; lificação. Faltando-lhe, algumas vezes, uma outros, considerama sua autonomia pessoal,a autodeterminação, a liberdade, etc.(9). Nós visão geralda realidadedo doente -e observando-o apenasatravés do restrito campo da sua achamosque o respeito à pessoaquasesempre coincide com o reconhecimento de sua auto- técnica -, torna-se incapazde condescenderque a melhor soluçãopara o paciente não é neces- 'nomia. Em outras palavras, quem tem respei- sariamentea melhor soluçãotécnica (13). to a uma pessoaaceita a sua autonomia. Uma das manifestaçõesde respeito à autonomia do paciente é a obtençãodo consentimen- A transmissão, pelos meios de comunicação, das "maravilhas" realizadaspela ciência cria no paciente, sobretudo nos casos mais graves, a to informado para a realizaçãode qualquerato expectativade que algo pode ser feito. Infeliz- médico. Paratanto, deve-seexplicarao paciente -atento, lúcido -a natureza de sua doença mente, em inúmeros casos tais expectativas são irreais, gerandodecepçõesou mesmo con- ou incapacidadee o balanço dos riscos e bene- flitos na relação médico-paciente(14). Hcios dos procedimentos e tratamentos recomendados. A aprovaçãodo paciente, expressa A autonomia do paciente é muitas vezes mal pelo consentimento informado, é absolutamente indispensável(11). entendida. Em várias circunstâncias, o médico, por tratar o paciente com gentileza, confunde a urbanidade com o respeito à pessoae O paciente, como vimos, deve sercorretamen- por isso se permite tomar medidas que confli- te info~ado sobre a sua doença, mediante uma linguagem adequadaa seuentendimento, tam com a autonomia do mesmo. Mas devemos ressaltarque o respeito não é um ato de de modo que lhe permita ter um mínimo de etiqueta, como a gentileza, mas sim uma pos- controle estratégicosobreo curso da açãoa ser seguida. No ponto da decisão diagnóstica ou tura ética na qual o indivíduo é considerado como um fim de toda a atividade benéfica, e início do procedimento terapêutico pode haver não como um meio. a recusado paciente. Caso isto ocorra, deve-se tentar compreender as razões da rejeição do procedimento, na busca da melhor opção que o satisfaça (12) -esta conduta, no entanto, nem sempreé tomada pelo médico. " . Sigilo O exercícioda profissão médica permite que o Tendo recebidouma formação profissional bio- profissional tenha acessoa informações cuja revelaçãopode provocar constrangimento ou logizante e excessivamentetecnicista, o médico, por possuir uma competênciatécnica, não prejuízo a quem as concedeu.O sigilo, que já era imposição moral, passoua ser resguardado consegueadmitir que sua proposiçãoseja con- como um direito. Em 1791, após estabelece- ! TIGOS rem no preâmbulo de sua Constituição os Princípios de sua Revolução, os revolucionários franceseselaboraramuma Declaraçãodos Direitos Humanos cujo artigo 20 inseria a noção de inviolabilidade das pessoas,englo- tidade do paciente; o segundo modo, porém, exigemuito cuidado por parte do médico, pois como o paciente não está preso a nenhum compromisso ético deve-setomar toda a atenção para excluir qualquer dado que possafaci-I bando, entre outros, o direito ao sigilo. Em litar a identificação do casorelatado. termos comparativos, o segredo médico só encontra rival no exercíciodo sacerdócioou no Há circunstâncias em que o médico pode dos membros de seitas ou sociedadessecretas. estendero seusigilo ao próprio diagnóstico do O sigilo, tanto para o médico como para o paciente. Ele pode evitar dizer o real diagnós- sacerdote, é uma exigência corporativa, sem tico e prognóstico de gravidadeda doença,caso ele cairia o prestígio profissional, por não obter julgue que o paciente não está emocionalmen- confiança nem merecer o respeito. O segredo te preparado para receber tal informação. médico recebe tratamento direto em, pelo Ressalte-seque a revelação ou não desses menos, nove artigos do Código de Ética informes não está regulamentada nos artigos Médica de 1988. Com base em aspectos referentes ao sigilo médico constantes no morais, éticos e sociais poderemos extrair o Código de Ética Médica, mas faz parte da rela- caráter substantivo das restrições do sigilo médico. O lado moral, pelo direito à privacida- ção médico-paciente.A revelaçãodo diagnóstico, portanto, dependerá da avaliação do de ou inviolabilidade do paciente; o ético, pela médico sobreos benefíciose danos que poderá sustentaçãode informações de foro íntimo das causarao paciente. pessoas;o socia'i,para que uma profissão seja respeitadafaz-se necessárioque os que a praticam sejam ética e moralmente confiáveis, e o sigilo profissional é uma das formas mais evi- Finalizando estetópico, reafirmamos a grande importância do segredo médico para o bom! exercício da profissão, pois representa um[ dentes de como aquilatá-Ia. compromisso moral com a sociedadee com os indivíduos que transcende os benefícios de Entretanto, existem dois modos de um fato ordem corporativa., i. f sigiloso ser passadodo âmbito privado para o público: o relato de casos clínicos -uma das formas de se transmitir experiênciae ampliar o Respeito à vida sabermédico -ou, visando oferecer conforto ou encorajamento aos pacientes, o relato de O respeito à vida é um princípio absoluto da evolução favorável de casos semelhantes.No primeiro, configurado na publicaçãode artigos científicos, os rígidos critérios adotados pelos ética, entretanto não inflexível, haja vista que se ajusta às condições sociais e aos novos rumos dos desenvolvimentoscientífico e cul- periódicos mantêm o necessáriosigilo da iden- tural. 3;$ Neste ponto cabe entrarmos na discussãodo necessidades que não podem sersupridase que aborto, problema que dá margem à relativização do princípio absoluto e cuja discussãopro- são mantidas pela coerção e persuasãosocial. Num dado momento, ocorre contingencial- picia abordar princípios que podem ser esten- mente uma gravidez,quando as condiçõespara didos a outros atos..O aborto é um desrespei- o auto-sustento são precárias; a famdia ou a to a uma vida que está sendogerada.A procu- sociedade,se não hostilizam, nada fazem para ra de determinar em qual momento pode-se ajudar; há o risco de perderas atuais condições 3 considerar que há vida é fútil; pois havendo a união dos gametasa possibilidadede viabiliza- de sobrevivência;o companheiro, co-responsável pela gravidez, abandona a relação ou ção do seuproduto é tão elevadaque qualquer demonstra que não tem condições para auxi- desvio inviabilizador deve ser tomado como liar; além de outros problemas psicológicos contillgencial. Por esse motivo, voltamos ao ponto inicial: qualquer meio usado para inviabilizar o embrião ou o feto é um desrespeitoà causadospela educaçãoe um sem-número de outras influências determinadaspela convivência familiar. Neste complexo emocional deve vida. Dentro do estritamente biológico, ou sertomada a opção: a gravidezdeve ser levada considerando-seos indivíduos num plano abstrato de isolamento do mundo e de seuspro- a termo ou não? Julgar a mulher por sua decisão a partir desteponto é, ainda, uma simpli- blemas pessoais,o aborto é um ato criminoso ficação. Vemos que o problema é criado quan- e imperdoável. do se passado fato biológico para o social. O problema, no entanto, não pode ser encara- Descrevemosa situação em que deve sertoma- do de m\neira tão simplista. Devemos levar em conta, para sua análise, todo o contexto de da a decisão, mas é preciso analisá-Ia. Numa análise superficial, vemos que, mantendo-se vida da pessoaque a ele se submete. Vivemos num mundo de necessidades,isto é, o que a no plano biológico, há dois dilemas: o primeiro, saberse a gravidezé viável; o segundo, se sociedadeproduz é insuficiente para satisfazer a necessidadede todos os seus componentes. se deixa que viabilize, ou não. A complicação inicia-se quando se atravessa o umbral do Uns possuemo suficiente; outros, não. A pos- social. Neste, vemos que se o indivíduo não se dos que possuemo suficiente, ou mais do que o suficiente, é mantida não somente pela vivesseem sociedadenão haveria dificuldades, a decisão seria puramente individual ou do coerçãosocial, atravésdo Estado, mas também por elementos persuasivoscomo a ideologia, a casal.Vivendo em sociedade,verificamos que a solução será tomada pelo indivíduo-social, manipulação cultural, o conservadorismoimplícito nos costumes, a religião, etc. portanto forçado pelas condiçõesque a sociedade lhe impõe e, podemos dizer, o indivíduo Transportando o problema para o âmbito indi- divide as responsabilidadesde sua decisãocom a sociedade.Cobrar do indivíduo? Por que não vidual, vemos a pessoa humana cercada de cobrar também da sociedade?Não tem ela i IGOS uma parcela de culpa quando distribui inadequadamenteas suasriquezas? Por que a socie- é uma gravidez indesejada como qualquer outra? O que a diferencia das outras contin- dade apenas cobra dos indivíduos, quando a cobrança deve ser feita a ela também? O fato gências;por que seabre somenteessaexceção? Será que apenaso embrião deve ser punido e é simples, ao cobrar da sociedadeestá-sequestionando a distribuição dos seusbens, a manu- os demais defendidos?O irracionalismo desse posicionamentoé mostrado pela citação de um tenção dos privilégios e a manutenção dos valores que dominam o Estado. Para não ser trecho da aula inaugural do prof. Érico Coelho, ministrada para os alunos do curso de questionada,a sociedadetransfere para o indi- Clínica Obstétrica da Faculdadede Medicina víduo a sua organização.No entanto, faz concessõespara dar a impressãode que zela pelos do Rio de Janeiro, em 1915 (quando se discutia na Câmara Federalo Código Civil e estava seuscomponentes.A esserespeito, vejamosas leis do Estado brasileiro. O artigo 128 do em curso a Ia Guerra Mundial): "Agora campeia a hipocrisia de profissionais, a provocar o Código Penal diz: "Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessárioI -se não abortamento em mulheres inermes estupradas acintosamente por soldados estrangeiros, na há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no casode gravidezresultantede estupro ebriedadeda vitória. Nos orfanatos da Bélgica heróica e nos hospitais de enjeitadosna França li -se a gravidezresulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestanteou, valorosa, não teriam cabimento os nascidosda gravidezexecrada...Como médico cristão, não quando incapaz, de seu representantelegal". hesito em socorrera vítima do estupro irreparável, ansiosade abortar" (15). O Estado, que ~ maneira tão absoluta diz que respeita a vida, passa,assim, a relativizar. Na A contingência de uma gravideznão desejada, primeira circunstância, estamosdiante do caso de risco de vida da mãe e do feto. Se excluída qualquer que seja, as nivela. Sendo permitido o aborto para uma delas,não se compreendea a possibilidade de respeitar a vida dos dois, restrição para as outras. O aborto, sendopuni- opta-se pela manutenção da vida da mãe e a inviabilização da vida do feto. Entre perder do, favorece que seja exercitado clandestinamente, com elevadonúmero de óbitos de ges- duas vidas ou uma, procura-se minimizar as perdas. Os que absolutizam o respeito à vida tantes. Este seria um sério argumento, desde: que o item I do artigo 128 do Código Penal poderiam objetar: por que matar o embrião ou visa evitar óbitos evitáveis.A mortalidade e a o feto e não entregar às mãos de Deus (ou da morbidade pelo aborto é bem maior em natureza) a sobrevivência dos dois? Se não fizeram essapergunta deveriam fazer, pois de qualquer maneira o aborto elimina uma vida mulheres de menor poder aquisitivo. Então, por que, em nome da defesada gestante', o Estado não oferece todo um aparato técnico indefesa. Com relaçãoao estupro, onde não há sem punir a mulher que deseja inviabilizar risco para a mãe, por que praticar o aborto, se uma gravidezindesejada? 37 I ! '" Em nossa opinião, o respeito à vida deve ser ca em tais pacientes por meios heróicos ou absoluto, mas, para minorar a morte de mulheres pelo aborto clandestino e a não-dis- não-rotineiros (13). Quando encontrar-se ante uma situação em que seja tentada a res- criminação do tipo de gravidez, aceitamos a suscitação, estará também diante de diversos participação do Estado na proteção da mulher problemas: tanto clínicos e éticos como legais com gravidezindesejadae que desejaabortar. Em resumo, achamosque o aborto é um des- e de ordem religiosa. A tentativa será válida casohaja razoávelrecuperaçãofuncional, obti- respeito à vida, bem como o é a sua criminali- da com razoávelcondição de conforto (13). zação, que condena à morte um expressivo número de mulheres, apesarde considerarmos É evidente que há casosfora dos que destacaque, nas condiçõesatuais da sociedade,deveria mos, isto é, nos quais a dor toma-se incontroser tomado legal ainda que consideradocomo lável, as condiçõesfuncionais do paciente são grande infração ética, exceto quando for necessáriopara salvar a vida da mãe. Como respeitamosa vida de maneira absoluta, defen- precárias e há um desconforto irremovível. Nestas circunstâncias, surgeo dilema da eutanásia. Na falta de consenso,as leis da maioria demos alterações sociais que propiciem uma dos paísespenaliza aqueleque a executa. É, de distribuição de riquezasque permita a todas as fato, enorme risco que um Estado a permita. mulheres que engravidaremcondiçõesde levar A avaliaçãosobre a dor, que tem forte compoo parto a termo e criar condignamenteos seus nente subjetivo, apresenta grande risco de filhos -nesta altura, o aborto poderá ser con- supra-avaliaçãoe a incapacidadede precisar o sideradocrime. , quanto perdurará. O julgamento da capacidade futura de uma função é um tanto temerá- As discussõessobre a eutanásia vêm perdendo muito do seu caráter emocional. Os avanços ria. Pelo exposto, vimos que há probabilidade não muito pequenade erro -que acarretaria a do tratamento da dor e os estudossobrea con- condenaçãode um inocente à morte. ceituação da morte dão margem para discussões mais técnicas. Hoje, procura-se situar o problema na morte com dignidade. O relacionamento entre os profissionais médicos 38 O paciente é consideradomorto quando apresenta cessaçãoirreversíveldas funções circulatórias ou de todas as funções cerebrais. Essa determinação deve ser feita com os padrões Entre profissionais da mesma categoria existe, além da natural afinidade, uma solidariedade que se manifesta por relaçõescordiais, identi- médicos ora aceitos (16). O médico pode eleger a manutenção do corpo quando ocorrer a dadede interessese respeito aos mesmosprincípios éticos. Com o desenvolvimentodo capi- morte clínica do cérebro, mas não há padrão ético que o dite de prolongar a viabilidade físi- talismo houve, em muitas profissões,desgaste desta solidariedade com o aparecimento da IGOS concorrência. A partir do século XIX, a Medicina passou ao exercício da chamada 'medicina liberal'. O que redundou numa, por complementares e da realização de cirurgias desnecessárias ou dispensáveis,além de outras práticas distorcidas. A irreversível perda de assim dizer, disputa de mercado para a qual a expressãoda medicina liberal trouxe como concorrência se estabeleceu. A busca por maior remuneração e a procura de afirmação pessoalestabeleceramuma luta surda tanto na prática privada da Medicina como nas publica- conseqüênciaa ascensãodasentidadesmédicas reivindicativasi como defensorasdos direitos da categoria hente aos empresáriosda área da saúdee ao Estado. Houve uma delimitação do çõescientíficas. Este espírito de concorrência, que não comprometeu exclusivamente a Medicina, trouxe abusos suficientes para a campo de atuação entre os médicos-empresários e os médicos-trabalhadores.O Estado, ao manter a assistência médica através de um aplicação do contido nos códigos éticos e plano nacional de saúde, se propõe a oferecer penais, visando ao seucontrole. assistênciaaosque não podem pagaras empresas ou cooperativasde assistênciasmédicas e O aumento dos custos da atividade médica, pela introdução de métodos de exames cada arca com tratamentos recusadospelos planos de saúde. Ressalte-seque esta apresentaçãoé vez mais diversificadose caros, e as exigências um tanto esquemática,porque apenasquerede uma universalizaçãodo acessoao direito à mos tirar inferências ou deduçõeséticas, sem saúde, por uma classetrabalhadora gradativa- descerao mérito das diversasformas de assismente mais consciente, propiciaram o surgi- tência. mento dos seguros de saúde e da medicina assistencial do ~stado. Em alguns países, Algumas vezes,vemos os médicos-empresários como no caso do Brasil, a evoluçãodessepro- e os médicos-trabalhadoresunidos contra o cesso levou a prática médica a três níveis: a uma medicina liberal definhante; à ascensão das empresasde assistênciamédica; à medicina oferecida pelo Estado -tentando atingir Estado; outras, o Estado unido aos empresários contra os trabalhadores.Paraa compreensão de todas estas nuances seria preciso uma análiseprofunda de diversosfatores, o que não todas as camadasque não têm acessoaos dois primeiros níveis. Nesta fasede desenvolvimen- é nossaproposta neste artigo. Desejamosapenas ressaltara compreensãode que não existe to, existem médicos-empresários,médicos-trabalhadorese médicos funcionários do Estado. A antiga forma de concorrência (com punições previstasna nossalegislaçãopara a sua exorbi- solidariedadegeral entre os médicos, mas sim entre setoresda economia médica. A concorrência, nos velhos termos (como uma feira de vaidades),tende a desaparecere um estado de tância) não tem maior significado e pareceaté ridícula diante da séria problemática da explo- conhontação poderá crescerprogressivamente entre os médicos-empresáriosna conquista de ração do médico-trabalhador pelo médico- mercados,enquanto a medicina não for socia- empresário, dos pedidos exageradosde exames lizada. 30 I~~t~ o relacionamento do médico com paramédicas,que algumasvezesqueremultra- a sociedade passaros limites estritamente médicos. A Medicina Coletiva presta uma assistência Há uma controvérsia sobre se, na prática 40 \ \ médica à sociedade,procurando controlar as doençaspotencialmente epidêmicase manten- médica, o interesse particular prepondera sobre o geral. A primeira posição se contrapõe do vigilância para evitar a eclosão de epidemias. Ela é assumida pelo Estado através de um corpo médico homogêneo,que executaum à atitude de planejadores de saúde e líderes governamentaisque achamque a quantidade e o tipo de atendimento médico deve serfeito de trabalho relevante e sem conflito social. O acordo com as necessidadessociais. Os que a relacionamento do médico que pratica uma defendem, idealizando e dando uma versão medicina de assistência individual apresenta relaçõesmais complexase menos definidas que irreal -que não correspondeao pragmatismo dos que pensam no equilíbrio financeiro do a do sanitarista. A graduaçãode médico e a instituição de sua prática preocupa menos do que antes. A Estado -, acham que os médicos devemfazer tudo o que crêem para beneficiar os seus pacientes (19,20). Gillon, defendendo a preponderância do social sobre o individual, acha ampliação da possibilidadede obter a gradua- que as afirmações piedosas nas discussões ção e sua inserçãonuma sociedademuito especializada, hierarquizada, burocratizada e tec- médicas não são verdadeiras nem desejáveis como imperativo moral, tais como: "Os inte- nologizada toma muito restrito o espaçopara o curan~eirismo e para o exercício ilegal da ressesdos seus pacientes estão sempre acima de tudo!". Os médicos devem aceitar, como profissão, num país progressivamente mais urbanizado. No passado,os falsos médicos e parte do seupropósito moral, não exatamente a saúde dos "seus pacientes", mas a saúde de curandeiros mereciam vigilância, para a qual dois artigos do Código Penal (os de número todos os doentes, inclusive os futuros -e das pessoaspotencialmente doentes no presente e 282 e 284) estavamengatilhados para coroar futuro (21). Concordamos com essaposição, a repressão.Hoje, o problema é minimizado, tanto assimque a DeclaraçãodeAlma-Ata, de pois vivemos numa sociedadeonde os recursos financeiros destinados à saúde da população 1978 (consenso de uma reunião promovida pela Organização Mundial da Saúde), reco- são extremamente limitados, o que usarmos para atender a exigências menores de certos nhecia as medicinas alternativas praticadaspor casospode ser crucial para a soluçãode outros. pessoassem formação médica nas regiões subdesenvolvidas(17). É possível, ainda, encontrar artigos irados contra a sua prática, refe- Sendo o médico um trabalhador, com heqüência depara-secom condições de trabalho e de rendada por escolasmédicas (18). As discus- remuneraçãoque o põem diante da decisãode sõesse situam sobre a extensãodas atividades fazer greveou não. A greveé justificável quan- ;f1 cido em qualquer tempo, recente ou remoto, numa era tecnicista como a atual, serve de desdeCondorcet e Cláudio Manoel da Costa" (25) -e poderíamos acrescentar, Vladimir freio, dando limites à aplicaçãoda tecnologia, alerta para às valoreshumanos e conduzindo o Herzog. Exercendo uma atividade social que, bom relacionamento com o paciente, outros por conseqüência,tem implicaçõespolíticas, é colegase, mesmo, a sociedade. muito comum a participação dos médicos na política. A esse respeito podemos distinguir A intervenção de códigose leis atua como bali- duas formas de participação: uma, a de políti- zas em pontos que o senso comum não ofere- co-médico; outra, a do médico-político. A pri- ce respostaclara. Os códigos têm maior sensi- meira, seria a-de um político, formado em bilidade, por seremmais específicos,podendo Medicina, que a exerce sem visar vantagens flagrilr deslizes morais de menor prejuízo pessoais ou a arrebanhamento de votos. A social. O maior acessodaspessoasàs informaoutra, a do médico que exercea profissão e a utiliza para arranjar vantagens, para apoiar ções pode tomar alguns pontos dos códigos metamodoseadosem lei. O sentido da lei para candidatos usando a sua prática profissional ou, sendocandidato, utilizar a suaprestaçãode o código é praticamente fechado. Os códigos médicos surgiram para disciplinar ou punir o serviçospara ganhar eleitores. Se a primeira é ética, sob esseaspecto,a segundaé duplamen- que o conjunto da categoria consideravaerrôneo e que não chegavaao alcanceda Justiça. A te aética: como político, não procura convencer existênciade classessociais,que terminam por com suas propostas, mas sim utilizando-se de uma profissãoque cria muitas vezesum YÍncu10 de ~pendência psicológica; como médico, se disporem em grupos -os que possuemos meios de produção e os que detêm a força de trabalho -, faz com que, após milênios, ainda não tem ética porque está exercendoa profis- permaneçaa situação descrita por Platão: são não para defenderos interessesdo paciente, mas sim os seus,além do mais, pressionado "(...) Podem ser sempre observadasduas claspela necessidadede ter muitos votos, presta sesde pacientes,escravose homens livres; e os atençãomédica a elevadonúmero de pacientes, doutores dos escravos circulam e curam os geralmentede má qualidade,negligente e malintencionada (26). escravos ou os esperam nos dispensários. Praticantes desta espécienunca falam individualmente (...), prescrevemo que a mera expe- Conclusão riência pessoalsugere(...) e quando dão ordens são iguais a um tirano (...) porém o outro médico acompanha e pratica nos homens A ética complementa, e algumas vezesdirige, a atividade médica. Faz parte do raciocínio e, livres, leva as suasperguntas aos antecedentes e vai até à natureza da perturbação; entra em I 42 IGOS conversa com os pacientes e seus amigos e presta informações sobre o doente, o instrui o que a liberdade seja prioritária é preciso um certo desenvolvimento material" (8). Diante tanto quanto é capaze não prescreveráaté que d~stedesenvolvimentomaterial, persisteainda não o tenha convencido; por último (...) o põe no caminho da saúde e tenta efetuar a cura pragmaticamente a medicina do médico dos escravos,que pode ser eufemisticamente cha- (...)" (7). mada de Assistência Primária de Saúde desde que a Declaraçãode Alma-Ata a priorizou nas Verificamos que persistem, com modificações na forma e não no conteúdo, essesdois tipos regiões subdesenvolvidas.Ao término, vemos que somenteuma mudança profunda nas con- de medicina. A antiga aspiraçãode um nivel~mento por cima, isto é, a universalização da cepçõesuniversais de sociedade,que passaria pela mudança de sua estrutura, permitiria efe- medicina dos homens livres, ainda está bem tivamente uma medicina de homens livres distante. Tomando-se a frase de Rawls, "para para todos. RESUMEN La ética en Ia práctica médica En Ia práctica médica, Ia ética puede ser analizàda bajo tres aspectos: Ia relación médicopaciente, eI relacionamiento de Ios médicos entre si y con Ia sociedad. Bajo tal estratificación, con eI objetivo de examinar Ia dinámica de su aplicación durante eI ejercicio de Ia medicina, este ~rtículo discute, de manera breve, Ia relación médico-paciente, eI principio de no perjudicar, Ia equidad, Ia autonomía deI paciente, eI sigilo, el respeto a Ia vida -sobre todo Ia postura delante deI aborto y de Ia eutanasia -y el relacionamiento entre los médicos profesionales y, de ellos, con Ia sociedad. EI estudio de Ia ética tiene su importancia sobre eI aspecto funcional de Ia sociedad. Además de permitir el establecimiento de normas para Ia convivencia pacífica entre Ias personas, orienta aIos profesionales en el respeto aIos intereses de los individuos. En el caso específico de Ia profesión médica, primordialmente para los intereses de Ios pacientes, que deben superar los intereses de los médicos. Como recordato rio, un viejo aforisma decía: "La medicina existe porque existen hombres enfermos". Por otro lado, Ios intereses de Ia categoría deben sobreponerse aIos individuales -hecho que hizo que los Códigos que rigen el ejercicio profesional abordasen el asunto. Unitermos:ética,prácticamédica,relaciónmédico-paciente ..,." ,.~ I 1II...ri' Y! k ,.kk,i ,: ", ABSTRACT Ethics in the medical practice There are three possible approaches to ethics in the medical practice: the doctor-patient relationship, the relationship of doctors among themselves, and their stance before society. Building from such stratification, with the aim of examining the dynamics of its application to the exerci se of medicine, this paper concisely explores issues such as doctor-patient relationship, no-harm principIe, equity, patient autonomy, secrecy and the respect to life -with particular empnasis on one's views on aspects such as abortion and euthanasia -, as welI as the relationship among doctors, and their dealings with society. The subject of ethics is relevant when one analyzes the functional role of societies. In addition to alIowing the establishment of norms for harmonious co-existence, it provides guidance to healthcare professionals with regard to the interest of individuaIs. In the specific case of medical professionals, stress is put on the interest of patients, which should take precedence over that of doctors. The old-age maxim is worth repeating: "Medicine exists only because there are people who are ilI". On the other hand, the interests of the medical professionals as a group should overtake those of individuaIs -for which reason the Codes of professional conduct alI entertain this issue. Uniterms:ethics,medicalpractice,doctor-patientrelationship REFE't:tÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Weinstein MC.Allocationof subjects in medicalexpe- 6. KorcokM. Futureamericanmedicalpractice:less riments.NewEngIJMed1974;291:1278-85. respect,lessfreedom.?Can Med AssocJ 1984; 131:926-93. 2. 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