O Abecedário de Gilles Deleuze

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O ABECEDÁRIO DE GILLES DELEUZE
Part I - A a F
[A de Animal] [B de Boire-Beber] [C de Cultura]
[D de Desejo] [E de Enfance-Infância] [F de Fidelidade]
EINÍCIOSPAÇOA de Animal ESPAALFABETOÇO
Parnet começa lendo uma citação de W. C. Fields que ela aplica a Deleuze: “Um homem
que não gosta de animais ou crianças não pode ser de todo mau”. Ela deixa as crianças de
lado para perguntar sobre a relação de Deleuze com os animais. Ela sabe que ele não é
muito amigo de animais domésticos, mas observa que ele tem um bestiário considerável,
bastante repugnante, na verdade – de piolhos, de pulgas – em seus escritos, e que ele e
Guattari desenvolveram o animal em seu conceito de “devir-animal”. Assim, ela se
pergunta qual é a relação de Deleuze com os animais.
Deleuze é bastante lento na resposta a essa pergunta, dizendo que não se trata tanto de gatos
e cachorros, ou de animais desse tipo. Ele indica que ele é sensível a algo nos animais, mas
o que o incomoda são animais domésticos, familiais e familiares. E lembra o “momento
fatal” em que uma criança traz um gato perdido para casa com o resultado de que há
sempre um animal em sua casa. O que acha desagradável é que ele não gosta de “coisas que
esfregam” (les frotteurs); e ele particularmente reprova cachorros por latir, o que ele chama
de “o grito mais estúpido”, a vergonha do reino animal. Ele diz que ele suporta melhor
(embora não por muito tempo) o lobo uivando para a lua do que latindo.
Além disso, ele observa que as pessoas que realmente gostam de gatos e cachorros não têm
com eles uma relação humana, por exemplo, crianças que têm uma relação infantil com
animais. O que é essencial, argumenta D, é ter uma relação animal com animais. Deleuze
tira suas conclusões ao observar pessoas passeando com seus cachorros ao longo de sua rua
isolada, observando-as falar com seus cachorros de uma forma que ele considera
“amedrontadora” (effarant). Ele reprova a psicanálise por transformar as imagens de
animais em simples símbolos de membros da família, como na interpretação dos sonhos.
Deleuze conclui perguntando que relação se deveria ou se poderia ter com um animal e
especula que seria melhor ter uma relação animal (não uma relação humana) com um
animal. Mesmo caçadores têm esse tipo de relação com sua presa.
Sobre seu bestiário, Deleuze admite sua fascinação por aranhas, piolhos e pulgas, indicando
que mesmo sua raiva por certos animais é alimentada por sua fascinação. A primeira coisa
que o fascina, e distingue o que faz um “animal”, é que toda animal tem um mundo
limitado, extraordinário, reagindo a bem poucos estímulos (ele discute o restrito mundo dos
piolhos com algum detalhe), e ele é fascinado pelo poder desses mundos. Depois, uma
segunda coisa que distingue um animal é que ele também tem um território (Deleuze indica
que, com Guattari, ele desenvolveu um conceito quase filosófico sobre territórios).
1
Constituir um território é quase como o nascimento de uma arte: fazer um território não é
simplesmente uma questão de marcas defecatórias e urinárias, mas também de uma série de
posturas (ficar ereto/sentar para um animal), uma série de cores (que um animal assume),
uma canção (un chant). Três dos determinantes da arte são: cores, linhas, canção – diz D,
arte em seu estado puro. Além disso, deve-se considerar o comportamento no território
como o domínio de propriedade e posse, o território como “minhas propriedades” à maneira
de Beckett ou Michaux. Deleuze faz, aqui, uma breve digressão, para discutir a necessidade
ocasional, em filosofia, de criar mots barbares, palavras bárbaras, mesmo que a palavra
exista em outras linguagens, alguns termos que ele e Guattari criaram juntos. A fim de
refletir sobre o território, ele e Guattar criaram “desterritorialização” (Deleuze diz que ele
encontrou um equivalente inglês de “o desterritorializado” em Melville, com outlandish.
Em filosofia, ele diz, a invenção de um mundo bárbaro é algumas vezes, necessária para dar
conta de uma nova noção: assim, não haveria qualquer territorialização sem um vetor de
deixar o território, desterritorialização, e não há qualquer deixar o território, nenhuma
desterritorialização, sem um vetor de re-territorialização em algum lugar. Em animais, esses
territórios são expressos e delimitados por uma infindável emissão de sinais, reagir a sinais
(p. ex., uma aranha em sua teia) e produzir sinais (p. ex., a trilha de um lobo ou algo mais),
reconhecidos por caçadores e rastreadores em uma espécie de relação animal.
Aqui, Parnet pergunta-se se existe uma conexão entre essa emissão de sinais, território e
escrita. Deleuze diz que eles estão conectados ao se viver uma existência aux aguets, être
aux aguets, estar sempre à espreita, como um animal, como um escritor, um filósofo, nunca
tranqüilo, sempre olhando por sobre os ombros. Escreve-se para leitores, “para”
significando “à l’attention de”, “para com”, “à sua atenção”. Mas também escreve-se por
não-leitores, isto é, “por” significando “no lugar de”, como fazia Artaud ao dizer que ele
escrevia para analfabetos, para idiotas, em seu lugar. Deleuze argumenta que pensar que
escrever é alguma pequena tarefa privada é vergonhoso; em vez disso, escrever significa
jogar-se em uma tarefa universal, seja ela um romance ou filosofia. Parnet refere-se, em um
parênteses, à discussão que Deleuze e Guattari fazem de Lord Chandos por Hoffmmanstahl
em Mil platôs. Deleuze diz que escrever significa empurrar a linguagem, a sintaxe, até o
fim, a um limite particular, um limite que pode ser uma linguagem de silêncio, ou uma
linguagem de música, ou uma linguagem que é, por exemplo, um doloroso lamento (cf. A
metamorfose de Kafka). Deleuze argumenta que não são os homens, mas os animais que
sabem como morrer, e ele volta aos gatos, à forma como um gato busca um canto para
morrer, um território para a morte. Assim, o escritor empurra a linguagem ao limite, do
canto, e um escritor é responsável por escrever “por”, no lugar de, animais que morrem,
mesmo fazendo filosofia. Aqui, ele diz, está-se na fronteira que separa o pensamento do
não-pensamento.
EINÍCIOSPAÇOB de Boire-BeberESPAÇOALFABETO
Parnet pergunta o que significava para Deleuze beber quando ele bebia. Deleuze brinca que
ele costumava beber bastante, mas teve que parar por razões de saúde. Beber, ele diz, é uma
questão de quantidade. As pessoas zombam de viciados e alcoólatras que fazem de conta
que são capazes de deixar a droga ou o álcool. Mas o que eles querem, diz D, é chegar à
última bebida/ao último copo. Um alcoólatra nunca pára de parar de beber, nunca pára de
chegar à última bebida. “Última”, aqui, significa que ele não consegue suportar beber mais
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um copo naquele dia particular. É o último ao seu alcance, em contraste com o último além
de seu alcance que o faria cair. Assim, a busca é pelo penúltimo gole, pelo último gole...
antes de começar o dia seguinte.
Parnet pergunta como se pára de beber, e Deleuze diz que Michaux disse tudo que tinha a
se dizer sobre o assunto. Beber está ligado com trabalhar; bebida e drogas podem
representar um perigo absoluto que nos impede de trabalhar. A bebida e as drogas não são
necessárias para se trabalhar, mas sua única justificativa seria se elas nos ajudassem a
trabalhar, mesmo ao risco de prejudicar a saúde. Deleuze refere-se aos escritores
americanos, cita Thomas Wolfe, Fitzgerald, como uma série d’alcoolique (série alcoólica).
Beber os ajudava a perceber aquele algo que é demasiado forte na vida. Deleuze diz que ele
pensava que beber o ajudava a criar conceitos filosóficos, mas ele se deu conta então de que
não ajudava em absolutamente nada. À observação sobre escritores franceses alcoólatras,
Deleuze responde, claro, há muitos, mas há uma diferença de visão entre os escritores
franceses e os americanos. Ele termina por se referir a Verlaine, “um dos maiores poetas
franceses”, o qual costumava passar, a caminho para o seu copo de absinto, pela rua onde
Deleuze mora.
EINÍCIOSPAÇOC de CulturaESPAÇOALFABETOESPAÇO
[Quando Parnet lê este título, Deleuze responde laconicamente, “oui, pourquoi pas?” (“sim,
por que não?”].
Parnet pergunta o que significa, para D, “être cultivé” (ser culto). Ela fá-lo lembrar que ele
disse que não é “cultivé”, que ele em geral lê, vê filmes, observa coisas apenas em função
de algum projeto em andamento. Entretanto, observa ela, ele sempre fez um esforço visível
para sair de casa, para ir ao cinema, a exposições de arte, como se houvesse alguma espécie
de prática nesse esforço de cultura, como se ele tivesse alguma espécie de prática cultural
sistemática. Assim, ela se pergunta o que entende por esse paradoxo e, de forma mais geral,
por “cultura”.
Deleuze diz que não vive como um “intelectual” ou que não vê a si próprio como “cultivé”
porque quando vê algum “cultivé”, ele fica simplesmente “effaré”, tomado de espanto e não
necessariamente com admiração. Ele vê as “pessoas cultas” (gens de culture) como
possuindo um “savoir effarant”, um corpo assustador de conhecimento, que conhece tudo,
que é capaz de falar sobre tudo. Assim, ao dizer que ele não é nem um intelectual, nem
“cultivé”, Deleuze entende isso no sentido de que ele afirma que não tem nenhum
“conhecimento de reserva” (aucun savoir de réserve), nenhum conhecimento em estoque.
Tudo que ele aprende, ele o faz para uma tarefa particular, e uma vez que ela tarefa foi
completada, ele então esquece tudo e tem que começar do zero, exceto em certos casos
raros (p. ex., Spinoza, que está no seu coração e na sua mente).
Assim, por que, ele pergunta, ele não admira “este conhecimento assustador”? Parnet
pergunta se ele pensa que esse tipo de conhecimento é erudição, ou apenas uma opinião, e
Deleuze diz, não, não é erudição. Ele diz que ele pode nomear alguém que é assim porque
ele tem toda a admiração por ele: Umberto Eco, que é espantador, é como apertar um botão,
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ele pode falar sobre qualquer coisa, e ele inclusive sabe que é assim. Deleuze diz que isso o
assusta e que ele não inveja isso de forma alguma.
Ele continua, brincando a respeito de algo que ele fez desde que se aposentou, desde que
deixou de ensinar. Falar é um pouco sujo, ele diz, enquanto escrever é mais limpo. Falar é
fazer charme (faire du charme), e Deleuze liga isso a assistir conferências, algo que ele não
pode suportar. Ele não viaja mais por razões de saúde, mas para ele, intelectuais que viajam
é uma coisa sem sentido, seus deslocamentos para dar palestras, mesmo durante as
refeições ele falam com intelectuais locais. “Não suporto falar, falar, falar”, e é nesse
sentido, vendo a cultura ligada à palavra falada que faz com que ele odeie a cultura
[Deleuze utiliza o verbo francês bastante forte haïr para expressar esse sentimento].
Parnet acrescenta, em um parênteses, que será exatamente essa separação entre a palavra
escrita e a palavra falada que retornará na letra “P”, quando eles falarem sobre a sedução da
palavra na docência de D. Depois, ela retorna ao esforço, à disciplina mesmo, que Deleuze
impõe a si mesmo, apesar disso, para sair de casa, para ver exposições ou filmes. Ela
pergunta o que essa prática significa para ele, se é uma forma de prazer para ele.
Deleuze responde “sim”, certamente é prazer, embora nem sempre. Ele diz que ele vê isso
como parte de seu investimento em estar “alerta” (être aux aguets; cf. “A como em
Animal”). Ele acrescenta que ele não acredita em cultura; ele acredita, antes, em encontros
(rencontres), mas esses encontros não ocorrem com pessoas. As pessoas pensam que é entre
pessoas que os encontros se dão, como entre intelectuais em um colóquios. Os encontros
ocorrem, antes, com coisas, com uma pintura, uma peça musical. Com as pessoas,
entretanto, essas reuniões não são, de forma alguma, encontros; esses tipos de encontros são
geralmente decepcionantes, catastróficos. Aos sábados ou domingos, quando ele sai de
casa, ele está certo de que vai ter um encontro; ele simplesmente sai de casa, em estado de
alerta para possíveis encontros, para ver se ele pode encontrar algum material de encontro,
em um filme, em uma pintura.
Ele insiste que sempre que se faz algo, é também uma questão de se afastar daquilo, de sair
ou ir além daquilo (d’en sortir). Quando se faz filosofia, por exemplo, permanecer
“na”filosofia é também sair da filosofia. Isso não significa fazer algo diferente, mas sair
dela ao mesmo tempo que permanecer nela, não necessariamente escrevendo um romance.
Deleuze diz que ele seria incapaz disso, de qualquer maneira, mas que mesmo que ele fosse
capaz, seria completamente inútil. Deleuze diz que ele sai ou vai além da filosofia por meio
da filosofia. Parnet pergunta o que ele quer dizer e Deleuze diz que uma vez que isso será
ouvido após sua morte, ele pode falar sem modéstia. E refere-se ao seu (na época) recente
livro sobre Leibniz, no qual ele insistia na noção de “dobra”, um livro de filosofia sobre
essa estranha e pequena noção de dobra. Como conseqüência, ele recebeu uma quantidade
de cartas, algumas de intelectuais, e duas outras cartas que eram bem diferentes. Uma era
de uma associação de dobradores de papel que diziam que eles estavam completamente de
acordo; o que Deleuze estava fazendo, elas também faziam! Depois ele recebeu uma outra
carta na qual o escritor dizia exatamente a mesma coisa: a dobra somos nós!
Deleuze achou isso maravilhoso, ainda mais que lhe fazia lembrar uma história em Platão,
uma vez que para D, os grandes filósofos não escrevem sobre abstrações, mas são grandes
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escritores de coisas bem concretas. Assim, Deleuze sugere que Platão sugerirá uma
definição, por ex., o que é um político? Um político é im pastor de homens (pasteur des
hommes). E com essa definição, muitas pessoas acabam por dizer: nós somos políticos! O
pastor de ovelhas que fornece roupas para a humanidade; o açougueiro que alimenta a
humanidade. Assim chegam esses rivais, e Deleuze sente que ele passou por isso muitas
vezes: aqui vêm os dobradores de papel que dizem: nós somos a dobra! E os outros que
escreveram vão na onda, nós compreendemos, nós concordamos inteiramente. Nunca
paramos de nos inserir nas dobras da natureza. Para eles, a natura é uma espécie de dobra
móvel, e eles pensam que é sua missão viver nas dobras das ondas.
Assim, com esses encontros, pode-se ir além da filosofia por meio da filosofia, e Deleuze
teve esses encontros com os dobradores de papel, com pessoas que embarcaram nessa onda
sem que ter que sair para vê-los: literalmente, com esses encontros com onda, com os
dobradores de papel, ele saiu da filosofia por meio da filosofia. Assim, quando Deleuze vai
a uma exposição, ele está em estado de alerta para uma pintura que pode tocá-lo, que pode
afetá-lo. O teatro não apresenta essa oportunidade para encontros, ele diz, uma vez que ele
tem dificuldade em permanecer sentado por um tempo tão longo, com certas exceções
(como Bob Wilson, Carmelo Bene). Parnet pergunta se ir ao cinema é sempre trabalho, se
não existe, para ele, nenhum filme como mera diversão. Deleuze diz que não é cultura, e
Parnet pergunta se tudo que ele faz inscreve-se em seu trabalho. Deleuze diz que não é
trabalho, que ele está simplesmente alerta, à espreita para algo que “passa”, algo que é
problemático, que é divertido. [Aqui Parnet diz que Deleuze só vê Benny Hill, e Deleuze
concorda, dizendo que há razões pelas quais Benny Hill interessa a ele.] O que Deleuze
busca ao sair de casa é ver se existe uma idéia que ele pode extrair de seus encontros, em
filmes, por exemplo. Ele refere-se a Minelli, a Joseph Losey, e indica que ele descobre o
que existe em suas obras que afetam a ele: que esses artistas são avassalados por uma idéia,
é isso que Deleuze considera como um encontro. Parnet interrompe D, dizendo que ele já
está entrando na letra “I”, e por isso ele deve parar. Deleuze diz que ele só queria indicar o
que era um encontro para ele, e não encontros com intelectuais. Ele diz que mesmo quando
ele tem um encontro com um intelectual, é com o charme de uma pessoa, com o trabalho
que ele está fazendo, que ele tem um encontro, mas com as pessoas em si. “Je n’ai rien à
foutre avec les gens, rien du tout” (“Não tenho nada a ver com as pessoas, de forma
alguma”). Parnet diz que eles talvez se esfregam nele, como os gatos, e Deleuze ri,
concordando que pode ser o fato de que eles se esfregam ou o fato de que eles latem!
Parnet pergunta sobre o fato de Deleuze ter vivido em períodos culturalmente ricos e em
períodos culturalmente pobres, e pergunta sobre o momento de agora: é rico ou pobre?
Deleuze começa a rir; na sua idade, ele diz, depois de tudo o que ele viveu, não é a primeira
vez que ele vê um período pobre. A Liberação e o período posterior estavam entre os mais
ricos que se pode imaginar, quando ele e outros estavam descobrindo coisas o tempo todo,
Kafka, os americanos, Sartre, na pintura, todo o tipo de polêmicas que podem parecer
infantis hoje, mas era uma atmosfera muito estimulante, muito criativa. E o período antes
de maio de 68 também, muito rico. E depois há períodos empobrecidos, mas não é a
pobreza que Deleuze acha perturbadora, mas, antes, a insolência e a arrogância das pessoas
que ocupam os períodos empobrecidos. Quanto mais estúpidos, diz ele, mais felizes, como
dizer que a literatura é agora um pequeníssimo negócio privado.
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Entretanto, ele se volta para algo que ele considera mais sério a esse respeito. Ele viu
recentemente um filme russo, Le Commisaire, que ele achou admirável, perfeito. Mas isso
o fez lembrar de um filme como os que os russos costumavam fazer antes da guerra, na
época de Eisenstein, como se nada tivesse acontecido desde a guerra, como se o diretor
fosse alguém que tinha estado tão isolado em seu trabalho que ele havia criado um filme
daquela maneira, como os filmes que eram feitos há 20 anos, desde que ele tinha sido
criado em um deserto. O que é horrível, diz D, é ter nascido nesse deserto, e ter sido criado
nele, especialmente para aqueles que têm 18 anos agora.
Além disso, quando algo desaparece, ninguém nota porque ninguém sente falta quando
desaparece. Por exemplo, sob o regime de Stálin, a literatura russa ao estilo do século XIX
simplesmente desaparecera, e ninguém havia notado. Hoje, há pessoas engenhosas, novos
Beckett talvez, mas se eles não conseguem ser publicados, nada parecerá estar faltando,
ninguém sentira falta dessa criação nova. Deleuze diz a afirmação mais impudente que ele
jamais é: Hoje nós não corremos o risco de nos enganar quando o editor Gallimard fez ao
se recusar inicialmente a publicar Proust uma vez que temos hoje os meios para localizar e
reconhecer novos Proust e novos Beckett. Deleuze diz que é como dizer que ele têm
alguma espécie de contador Geiger que os ajuda a identificar um novo Beckett por meio da
emissão de algum som ou de alguma luz!
Deleuze diz que ele atribui a atual crise, o período do deserto, a três coisas: 1) ao fato de
que os jornalistas conquistaram a forma-livro, de que os jornalistas acham agora bastante
normal escrever um livro que dificilmente exigiria um artigo de jornal. 2) Difundiu-se a
idéia geral de que qualquer um pode escrever uma vez que a escrita tornou-se o
pequeníssimo negócio do indivíduo, de arquivos de família, dos arquivos em nossa cabeça.
As pessoas têm todo o tipo de experiências pessoais e por isso decidem escrever um
romance. 3) Os clientes reais mudaram: os clientes da televisão não são os espectadores,
mas, antes, os anunciantes, os publicitários; no campo do livro, os clientes não são os
leitores potenciais, mas, antes, os distribuidores. O resultado é uma rotação rápida, o regime
do best-seller. Toda literatura à la Beckett, a literatura criativa, é arrasada por esse regime.
É que isso que define um período de seca, o perído de Bernard Pivot [apresentador dos
programas literários televisivos, Apostrophes e Bouillon de culture, ambos agora extintos],
nulidade, o desaparecimento de toda crítica literária fora da promoção comercial.
Entretanto, Deleuze conclui que não é assim tão sério, uma vez que sempre haverá um
circuito paralelo para a expressão, ou algum tipo de mercado negro. Os russos perderam sua
literatura, mas conseguiram de alguma forma reconquistá-la. Parnet diz que, durante alguns
anos, parecia que nada realmente novo havia se desenvolvido, de forma que ela pergunta de
que forma algo novo emerge, e se Deleuze passou por isso. Deleuze responde, sim, como
ele sempre disse, o período entre a Liberação e a Nouvelle Vague, a primeira parte dos anos
60, foi extremamente rico. É um pouco como Nietzsche disse, Deleuze conclui, uma flecha
é lançada no espaço: assim um período ou um grupo lança uma flecha, e ela acaba por cair
[Deleuze refere-se provavelmente à frase de Nietzsche na 3ª Consideração extemporânea,
"Schopenhauer como educador": "Die Natur schiesst den Philosophen wie einen Pfeil in die
Menschen hinein, sie zielt nicht, aber sie hofft, dass der Pfeil irgendwo hängen bleiben
wird"; "A natureza atira o filósofo como uma flecha em direção aos homens; não acerta o
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alvo, mas espera que a flecha fique pendurada em algum lugar", TTS]. Dessa forma, a
criação literária passa por seus períodos de deserto.
INÍCIOSPAÇOD de DesejoESPAÇOALFABETOESPAÇO
Parnet começa citando o verbete biográfico sobre Deleuze no dicionário Petit Larousse
(edição de 1988) que se refere ao seu trabalho com Guattari sobre, entre outros temas, o
desejo, citando o Anti-Édipo (1972). Uma vez que Deleuze é considerado, diz Parnet, como
um filósofo do desejo, então o que é o desejo?
Deleuze começa dizendo que “não é aquilo que as pessoas pensavam que fosse, mesmo
naquela época. Trata-se de uma grande ambigüidade e de um grande mal-entendido ou,
antes, de um pequeno mal-entendido”. Entretanto, ele então aborda a questão com grande
detalhe e às vezes de uma forma comovente. Primeiramente, como a maioria das pessoas ao
escrever um livro, eles pensavam que iam dizer algo novo, especificamente que as pessoas
que escreveram antes deles não entenderam o que o desejo significa. Assim, como
filósofos, Deleuze, com Guattari, viram sua tarefa como sendo a de propor um novo
conceito de desejo. E conceitos, apesar do que algumas pessoas pensam, referem-se a
coisas que são extremamente simples e concretas.
O que eles queriam dizer era a coisa mais simples na palavra: até agora, fala-se
abstratamente sobre desejo porque se extrai um objeto que se supõe ser o objeto do desejo.
Deleuze enfatiza que nunca se deseja algo ou alguém, mas, antes, sempre se deseja um
agregado (ensemble). Assim, elas se perguntaram qual era a natureza das relações entre
elementos a fim de que houvesse desejo, para que esses elementos se tornassem desejáveis.
Deleuze refere-se a Proust quando ele diz que o desejo por uma mulher não é tanto desejo
pela mulher quanto por uma paysage, uma paisagem, que está envelopada nesta mulher.
Ou, ao desejar um objeto, um vestido, por exemplo, o desejo não é pelo objeto, mas pelo
contexto global, pelo agregado, “eu desejo em um agregado”. Deleuze menciona ao que foi
dito na letra B, sobre beber, sobre álcool, e o desejo não apenas pela bebida, mas por seja lá
qual for agregado em que situamos o desejo pela bebida (com pessoas, em um café, etc.).
Assim, não existem nenhum desejo, diz Deleuze, que não flua em um agenciamento e, para
ele, o desejo sempre foi um construtivismo, construir um agenciamento, um agregdo: o
agregado da saia, de um raio de sol, de uma rua, de uma mulher, de uma vista, de uma cor...
construir um agenciamento, construir uma região, juntar. Deleuze enfatiza que o desejo é
construtivismo. Parnet pergunta se é porque o desejo é um agenciamento que Deleuze
precisou ser dois, com Guattari, a fim de criar. Deleuze concorda que com Guattari, eles
criaram um agenciamento, mas que pode existir agenciamentos de uma pessoa só bem
como de duas pessoas, ou de algo que passa entre dois. Tudo isso, ele continua, diz respeito
a fenômenos físicos, e para que um evento ocorra, algumas diferenças de potencial devem
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surgir, como um clarão ou uma corrente, de forma que o domínio do desejo é construído.
Assim, toda vez que alguém diz, eu desejo isto ou aquilo, aquela pessoa está no processo de
construir um agenciamento, nada mais do que isso, o desejo não é nada mais do que isso.
Parnet liga isso ao Anti-Édipo, ao afirmar que foi o primeiro livro em que ele discutiu o
desejo, assim como foi o primeiro que ele escreveu com outra pessoa. Deleuze concorda;
eles tiveram que entrar naquilo que era um novo agenciamento para eles, escrevendo à
deux, de forma que algo pudesse “passar”. E esse algo era uma hostilidade fundamental
para com as concepções dominantes de delírio (délire), particularmente contra a
psicanálise. Uma vez que Guattari tinha passado pela psicanálise e Deleuze estava
interessado nela, eles encontraram um terreno comum para desenvolver uma concepção
construtivistas do desejo. Assim, Parnet pede-lhe para definir melhor como ele vê a
diferença entre esse construtivismo e a interpretação analítica. Deleuze a vê como bastante
simples, com a psicanálise falando do desejo exatamente da forma que fazem os padres, sob
o disfarce da grande lamúria sobre a castração que, para Deleuze, é uma espécie de uma
enorme e assustadora maldição contra o desejo.
No Anti-Édipo, eles tentaram se opor à psicanálise em três pontos principais, nenhum dos
quais ele, de forma alguma, mudaria:
1) Opor-se ao conceito psicanalítico do insconsciente como um teatro, com sua constante
representação de Hamlet e Édipo. Eles vêem o inconsciente como uma fábrica, como
produção. O inconsciente produz, como uma fábrica, exatamente o oposto da visão
psicanalítica.
2) O delírio, ligado do desejo, é o contrário do delírio ligado apenas ao pai ou à mãe; em
vez disso, nós “deliramos” sobre quase tudo, o mundo inteiro, a história, a geografia, tribos,
desejos, povos, raças, climas, aquilo que Rimbaud referiu como (em “Mauvais Sang”, Une
saison en enfer) “eu sou um animal, um Negro”: onde estão minhas tribos, como minhas
tribos estão organizadas, sobrevivendo no deserto? O delírio, diz Deleuze, é políticogeográfico, enquanto a psicanálise o liga sempre a determinantes familiares. A psicanálise
nunca entendeu absolutamente nada, diz Deleuze, sobre os fenômenos do delírio. Nós
“desejamos” o mundo e não a nossa pequena família. E tudo isso se intersecciona, ele
continua: quando ele se referiu à literatura como não sendo o negócio privado de alguém,
não se trata de um delírio focalizado no pai e na mãe.
3) O desejo é estabelecido e construído em um agenciamento que sempre coloca diversos
fatores em jogo, enquanto a psicanálise o reduz a um único fator (pai, mãe, phallus),
completamente ignorante do múltiplo, do construtivismo, dos agenciamentos. Deleuze
refere-se ao animal, à imagem do pai, e depois ao exemplo do pequeno Hans que ele e
Guattari utilizaram, mas também a um segundo exemplo, como o animal (o cavalo, no
Pequeno Hans) nunca pode ser a imagem do pai, uma vez que os animais em geral vêm em
matilhas. Deleuze refere-se à redução que Freud faz de um sonho que Jung lhe contou,
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Freud insistindo no “osso”, singular, que ele acreditava ter ouvido Jung dizer, quando Jung
realmente tinha dito que ele havia sonhado sobre um ossuário, uma multiplicidade de ossos.
Assim, o desejo se constroi no coletivo, no múltiplo, na matilha, e nós nos perguntamos
qual é nosssa posição em relação à matilha, fora, junto, dentro, no centro? Todos
fenômenos de desejo.
Parnet resume tudo perguntando se Anti-Édipo, como um texto pós-maio de 1968, era um
reflexo dos agenciamentos daquele período. Exatamente, responde Deleuze, o ataque contra
a psicanálise e o conceito de delírio das raças, de tribos, de povos, de história, de geografia
– tudo se conforma a 68, tentando criar um “air sain”, uma região de sanidade, dentro de
tudo que estava bloqueado e era fétido. Um delírio que era cósmico, delírio sobre o fim do
mundo e sobre partículas e elétrons.
Parnet continua com uma referência a “esses agenciamentos coletivos”, perguntando se
Deleuze poderia contar outra vez algumas das tão divertidas (ou nem tanto) anedotas sobre
mal-entendidos que haviam ocorrido, por exemplo em Vincennes, sobre colocar esses
conceitos em prática. Ela lembra que quando eles assumiram sua esquizo-análise, contra a
psicanálise, um monte de estudantes pensaram que era legal ser louco. Em vez de contar
histórias engraçadas, Deleuze liga os mal-entendidos, em geral, a dois pontos, que são mais
ou menos uma coisa só: algumas pessoas pensavam que o desejo era uma forma de
espontaneidade, outros pensavam que era um pretexto para fazer festa (la fête). Para
Deleuze e Guattari, não era nenhuma dessas coisas, mas isso pouco importava uma vez que
agenciamentos acabavam por ser criados, até mesmo aqueles que Parnet (e Deleuze)
chamam de “os loucos” (les fous), que tinham seu próprio discurso e construíam seus
próprios agenciamentos.
Assim, continua Deleuze, no nível da teoria, esses mal-entendidos – a espontaneidade ou la
fête – não eram a assim chamada filosofia do desejo, a qual era, em vez disso: não se deixa
psicanalizar, pare de interpretar, vai construir e viver/experimentar com agenciamentos,
busca os agenciamentos que servem para você. O que é um agenciamento, pergunta ele?
Não é o que eles pensavem que fosse, mas para Deleuze, um agenciamento tem quatro
componentes ou dimensões:
1) Agenciamentos referem-se a “estados de coisas”, de forma que cada um de nós pode
encontrar o “estado de coisas” que lhe serve (ele dá o exemplo do beber, até mesmo de
apenas beber café, e que nós encontremos aquele “beber café” que se ajuste a nós como um
“estado de coisa”).
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2) “Les énoncés”, pequenos enunciados, como tipos de estilo, cada um de nós encontrando
um tipo de estilo de enunciação (ele refere-se outra vez ao período logo após à Revolução
Russa, que encontrou, outra vez, um estilo de cinema; ou os novos tipos ou estilos de
enunciação que se seguiram ao maio de 1968).
3) Um agenciamento implica territórios, cada um de nós escolhe ou cria um território,
mesmo que seja apenas andando em um quarto.
4) Um agenciamento também implica processos de desterritorialização, movimentos de
desterritorialização.
É no interior desses componentes que o desejo flui, diz Deleuze.
Parnet pergunta se Deleuze sente-se de alguma forma responsável por pessoas que ingerem
drogas, que podem ter lido o Anti-Édipo um pouco literalmente demais, como se pudesse
ter incitado os jovens a cometer atos estúpidos (conneries), e a resposta de Deleuze é
bastante comovente. Ele diz que eles sempre se sentiram responsáveis por qualquer pessoa
para a qual as coisas deram errado, e ele pessoalmente tentou fazer o que era possível para
que as coisas dessem certo. Ele diz que ele nunca brincou com coisas como essas; sua única
questão de honra é que ele nunca disse pra ninguém pra ir adiante, está ok, fica chapado,
mas sempre tentando ajudar as pessoas a sair dessa. Ele continua, dizendo que é muito
sensível ao menor detalhe que possa fazer com que alguém de repente caia num estado de
branco total (état de blanc). Ele nunca culpou ninguém, nunca disse a alguém que estava
fazendo algo errado, mas ele sentiu o enorme peso das direções que algumas vidas podiam
tomar, pessoas e especialmente pessoas jovens que podiam ingerir drogas até chegar ao
ponto do colapso, ou beber até chegar ao ponto de cair em algum estado “selvagem” (état
sauvage). Ele não está aí pra impedir ninguém de fazer algo, não faz o papel de polícia ou
pai/mãe, mas tentou, mesmo assim, impedir que eles se reduzissem ao estado de trapo (état
de loque). Não posso suportar, “je ne le supporte pas”, o momento em que haja um risco de
que alguém pire. Um velho que pira, Deleuze diz, que comete suicídio, ele ao menos viveu
sua vida, mas um jovem que pira, diz Deleuze, é insupportable. Ele sempre se dividiu, ele
conclui, entre a impossibilidade de colocar a culpa em alguém e a recusa absoluta de que
qualquer pessoa possa ser reduzido ao estado de trapo. Ele admite que é difícil calcular que
princípios podem ser aplicados, só podemos lidar caso a caso, e o mínimo que podemos
fazer é impedi-los de se reduzirem a trapo.
Parnet pressiona nessa direção, perguntando sobre os efeitos do Anti-Édipo, e Deleuze
continua dizendo que o propósito de Anti-Édipo era o de impedir que as pessoas caíssem
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nesse estado de trapo, o estado clínico de esquizo. Parnet observa que os inimigos do livro
criticaram-no por ele aparentemente ser uma apologia da permissividade. Deleuze diz que
se ele for lido de perto, se verá que ele sempre assinala uma extrema prudência. A lição do
livro: não se torne um trapo; oponha-se a processos de esquizofrenização do tipo “hospital
repressivo”. Para Deleuze e Guattari, seu terror consistia em produzir uma “criatura de
hospital”. O valor daquilo que os anti-psiquiatras chamavam de “a viagem” do processo
esquizofrênico estava precisamente em tentar conjurar a produção de “loques d’hôpital”,
criaturas de hospital que se assemelhavam a trapos.
Parnet pergunta se o Anti-Édipo ainda tem seus efeitos hoje, e Deleuze diz, sim, é um belo
livro, o único livro no qual aquele conceito de inconsciente foi colocado, com os três
pontos sobre as multiplicidades do inconsciente e do delírio, o delírio mundo/cósmico e não
o delírio da família, e o inconsciente como uma máquina/fábrica, não um teatro. Ele diz que
não tem a mudar nesses pontos, e ele espera que ainda seja um livro a ser descoberto.
EINÍCIOSPAÇOE de Enfance-Infância ESPAALFABETOÇO
Parnet lembra que Deleuze passou toda sua vida no 17º arrondissement de Paris, então ela
pergunta se ele foi criado em um família burguesa com tendências politicamente
conservadoras (de direita).
Deleuze fala com um certo ar divertido de sua infância, dizendo que sua vida no 17º
arrondissement foi como uma “chute”, uma queda do quartier bastante chique perto do
Arco do Triunfo, onde ele nasceu, para vários apartamentos durante a guerra, para a rua
d’Aubigny por vários anos com sua mãe e, depois, como adulto, para seu quartier, mais
precisamente na rue de Bizerte, um bairro de classe média. Deleuze diz que não tem
certeza, se esse ritmo continuar, de onde ele acabará nos próximos anos.
Quanto à sua família, sim, eles eram burgueses “de direita”, mas ele diz que ele tem poucas
memórias de sua infancia (ele observa que parece que suas memórias mais longínquas
desapareceram, e que ele não é um arquivo). Ele se lembra de certas crises, da falta de
dinheiro que o salvou de ir estudar “chez les Jesuites” (com os padres jesuítas), uma vez
que ele teve que ir para a escola secundária pública e não para uma escola privada, católica,
devido às dificuldades de dinheiro de sua família; além disso, o período antes da guerra e o
medo que a burguesia conservadora tinha da Frente Popular [Socialista], que para eles
representava a chegada do caos total. Eles eram anti-semitas, e particularmente contra Leon
Blum [socialista e judeu, líder do governo da Frente Popular], o qual, para eles, era pior que
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o demônio. Deleuze insiste que não se pode compreender como Pétain tomou o poder sem
compreender o ódio devotado no período pré-guerra ao governo de Blum.
Assim, ele lembra que ele vem de uma família burguesa “de droite”, completamente
inculta, com um pai (Deleuze lembra-se dele de forma carinhosa, lembrando-se também da
atmosfera de crise e os sentimentos violentos de seu pai – como um veterano da I Guerra
Mundial – contra a esquerda). Ele era engenheiro, um inventor, cujo primeiro negócio
fracassou pouco antes da guerra, tendo depois trabalhado em um fábrica construindo
dirigíveis – a fábrica foi depois tomada pelos alemães para construr barcos infláveis.
Deleuze lembra que quando os alemães chegaram , invadindo a partir da Bélgica, ele estava
em Deauville (na Normandia, onde sua família passava os verões), assim ele foi colocado
na escola secundária de lá por um ano. Ele lembra como uma imagem de Deauville ilustra a
enorme mudança social da Frente Popular. Com a introdução das “férias remuneradas”,
pessoas que nunca viajavam podia agora ir à praia e ver o mar pela primeira vez. Deleuze
lembra a visão de um jovem de Limousin que ficara parada por cinco horas, fascinada
diante do extraordinário espetáculo do mar. E esta tinha sido uma praia particular, para
proprietários burgueses. Ele também lembra o ódio de classe traduzido por uma frase
pronunciada por sua mãe – “hélas” ( “infelizmente”), diz Deleuze – sobre a impossibilidade
de freqüentar praias para a qual pessoas “como essas” estariam vindo. Para burgueses como
seus pais, conceder férias aos trabalhadores significa perda de privilégio bem como de
território, pior mesmo do que os alemães ocupando as praias com seus tanques.
Deleuze diz que lá, em Deauville, sem seus pais e com seu irmão mais novo, ele era uma
completa nulidade em seus estudos, até que algo ocorreu que fez com Deleuze deixasse de
ser um idiota. Até a mudança para Deauville e o ano de liceu que ele passara durante a
“estranha guerra”, ele tinha sido uma nulidade na escola, mas em Deauville, ele conheceu
um jovem professor, Pierre Halwachs (filho de um famoso sociológo), de saúde frágil e que
por ter apenas um olho havia sido dispensado do serviço militar. Para Deleuze, esse
encontro foi um despertar, e ele tornou-se algo como o díscipulo do jovem “maître”.
Halwachs levava ele para a praia no inverno, para as dunas, e o introduzia, por exemplo, às
Nourriturs terrestres, de Gide, a Anatole France, a Baudelaire, a outros livros de Gide, e
Deleuze se transformou completamente. Mas o fato de que eles passavam tanto tempo
juntos fez com que as pessoas começassem a comentar, e a senhora em cuja pensão
Deleuze e seu irmão estavam parando preveniu Deleuze sobre Halwachs, e depois escreveu
aos seus pais osbre isso. Os irmãos deveriam voltar a Paris, mas então os alemães
invadiram, e assim eles pegaram suas bicicletas para encontrar seus pais em Rochefort... e
en route eles deram de cara com Halwachs com seu pai! Mais tarde na vida Deleuze
reencontrou Halwachs, sem a mesma admiração, mas com 14 anos Deleuze acha que ele
estava inteiramente correto.
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Parnet pergunta sobre seu retorno a Paris, freqüentando o Liceu Carnot. Deleuze foi
colocado em uma turma com um professor de filosofia chamado Vialle, embora ele pudesse
ter ido para uma turma cujo professor era Merleau-Ponty. Deleuze diz que ele não lembra
exatamente por que, mas Halwachs tinha-o ajudado a sentir algo importante na literatura;
entretanto, desde de sua primeiras aulas de filosofia, ele sabia que isso era algo importante,
que ele faria isso pelo resto de sua vida. (Deleuze lembra que isso ocorreu exatamente
quando o massacre, por parte dos alemães, da localidade francesa de Oradour, havia sido
anunciado, e que havia uma atmosfera bastante politizada). Ele lembra Merleau-Ponty
como sendo um tanto melancólico, enquanto Vialle, que estava no fim de sua carreira, era
alguém de quem Deleuze gostava muito. A oportunidade de aprender conceitos filosóficos
atingiu-o com a mesma força com que algumas pessoas eram atingidas ao encontrar
personagens literários, Vautrin ou Eugenie Grandet; para ele a filosofia era tão animada
quanto qualquer obra literária. A partir daí ele não teve mais nenhum problema escolar,
deu-se muito bem como estudante. Parnet pergunta sobre a atmosfera política, e Deleuze
diz que havia pessoa de todas as correntes políticas, mas não era a mesma consciência ou
atividade política do tempo de paz. Seus colegas de turma tinham uma certa consciência
política devido à presença de Guy Moquet, um estudante que participava da Resistência e
tinha sido morto pelos um ano mais tarde. Mas Deleuze lembra que a política era um tanto
camuflada durante a Ocupação uma vez que havia colegas de todos os matizes políticos,
desde simpatizantes da Resistência até simpatizantes de Vichy.
Parnet diz que parece que, para Deleuze, sua infância teve realmente pouca importância.
Deleuze responde, sim, foi necessariamente assim. Ele considera que a atividade de
escrever não tem nada a ver com as questões individuais, não é algo pessoal ou um pequeno
negócio privado. Escrever é devir, ele diz, devir-animal, devir-criança, e a gente escreve
para a vida, para devir algo, seja lá o que se quer, exceto devir um escritor e exceto devir
um arquivo. Ele respeita, sim, o arquivo, mas isso tem importância para alguma outra coisa.
Ele insiste que falar de sua própria vida pessoal não tem qualquer interesse, como não tem
nenhum interesse um arquivo pessoal. Deleuze pega um livro que ele tem na mão, de um
grande poeta russo, Ossip Mandelstam, e lê uma passagem na qual o autor fala sobre quão
pouca importância tem a memória e especialmente para escrever. Deleuze concorda
plenamente, e toma emprestada de Mandelstam a idéia de que se aprende não a falar, mas a
gaguejar [Deleuze cita Mandelstam em seu ensaio “Begaya-t-il” em Crítica e clínica]. A
escrita é isso, diz Deleuze, gaguejar na linguagem, empurrar a linguagem ao limite,
gaguejar, devir um animal, devir uma criança, não a partir da própria infância, mas, antes,
da “infância do mundo”. Um escritor não apela diretamente a sua vida privada (aquilo que
Deleuze chama de totalmente abominável, uma verdadeira besteira – une dégoutation, la
vraie merde), não escavoca os arquivos de família, mas, antes, permanece uma criança do
mundo. Um escritor devém, mas não um escritor, nem seu próprio memorialista.
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Parnet faz o papel de “advogado do diabo” (“um papel muito perigoso”, Deleuze brinca
com ela), ao perguntar se o livro Enfance, de Nathalie Sarraute constitui uma exceção, se
sua obra indica alguma espécie de fraqueza em seu conceito de infância, e Deleuze
discorda. Ele diz que Enfance não se centra, de forma alguma, na infância dela, mas que ela
inventa uma criança do mundo, extraindo coisas de fórmulas e expressões para inventar
uma linguagem do mundo. [A referência implícita de Deleuze, aqui, é também ao ensaio de
Sarraute “Ich strebe” em L’usage de la parole; obrigado a Veronique Flambard-Weisbart
por essas referências]. Parnet pergunta se ele teve que passar por alguma espécie de
exercício estrito para limitar seu interesse na infância, que de alguma forma ele deve surgir,
e Deleuze sugere que este tipo de coisa acontece por si mesmo. Ele pergunta o que há na
infância que possa interessar. Talvez relações com os pais, irmãos, mas isso é uma coisa
apenas de interesse pessoal, para o indivíduo, mas não para a escrita. Em vez disso, o que é
interessante é encontar a emoção de uma criança, não a criança que uma vez se foi, mas
também o sentimento de ser uma criança, uma criança qualquer (“un enfant quelcoque”).
Deleuze refere-se a alguém que conta ter visto um cavalo morrer na rua antes da era do
automóvel, e ele traduz isso em termos de devir um escritor. Deleuze cita Dostoyevski, o
dançarino Nijinksi, Nietzsche, todos os quais viram um cavalo morrer na rua. Parnet diz, e
Deleuze concorda, que para ele foram as manifestações da Frente Popular, e ver seu pai em
conflito entre sua honestidade e seu anti-semitismo. Mas Deleuze insiste, “eu era uma
criança”, e a importância desse artigo indefinido na multiplicidade de uma criança. “Un
enfant: l’article indefini est d’une richesse extreme” ele conclui. O artigo indefinido é de
uma extrema riqueza.
INÍCIOSPAÇOF de Fidelidade ESPAALFABETO
Fica claro, na introdução de Parnet, que uma vez que a letra “A” estava tomada com
“Animal”, ela não poderia usá-la para “Amizade” e foi por isso que ela escolheu
“fidelidade” para substituí-la. Ela evoca uma série de amigos próximos de Deleuze, com os
quais ele partilhou muitos anos de “fidelidade” em suas amizades. Parnet pergunta se
fidelidade e amizade estão necessariamente ligadas, e Deleuze imediatamente diz que não
se trata de uma questão de fidelidade. Em vez disso, a amizade, para ele, é uma questão de
percepção. O que significa ter algo em comum com alguém? Não idéias em comum, mas
ter uma linguagem e mesmo uma pré-linguagem em comum. Há pessoas que nunca
conseguiremos entender ou falar até mesmo sobre simples assuntos, e outras das quais
podemos discordar completamente, mas que podemos compreender profundamente mesmo
nas coisas mais abstratas, tendo como base essa coisa indeterminada que é tão misteriosa.
A hipótese de Deleuze é que cada um de nós tem a capacidade de apreender um certo tipo
de charme, uma percepção de charme, isto é, um gesto, um pensamento, mesmo antes que o
pensamento efetue uma significação, uma inocência, um charme que vai até às raízes da
percepção, às raízes vitais, e isso constitui uma amizade. Ele dá o exemplo de um frase que
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podemos ouvir de alguém, uma frase vulgar, repulsiva, que deixa uma indelével impressão
sobre uma pessoa, não importa o que ela possa jamais fazer. O mesmo acontece com o
charme, apenas na direção contrária, o efeito indelével do charme como uma questão de
percepção, percebendo alguém com quem nos ajustamos, alguém que nos ensina algo, que
nos abre, nos desperta, que emite sinais, e nós nos tornamos sensíveis a essa emissão de
sinais, nós os recebemos ou não, mas nós nos tornamos abertos a eles. E então podemos
gastar nosso tempo com alguma outra pessoa dizendo coisas que são absolutamente sem
importância.
Deleuze ri quando ele diz que ele acha a amizade extremamente cômica, e Parnet fá-lo
lembrar de como ele vê a amizade em termos de duplas. Deleuze discute um amigo muito
próximo, Jean-Pierre, com o qual ele tem uma longa amizade, e eles constituem uma
espécie de dupla que ele liga a personagens de Mercier and Camier, de Becket, enquanto
com Guattari, trata-se mais de uma dupla tipo Bouvard et Pecuchet [romance de Gustave
Flaubert], tentando criar sua enorme enciclopédia que abarca todos os campos de
conhecimento. Não se trata de uma questão de imitar essas grandes duplas, ele diz, mas a
amizade é feita desse tipo de relação, mesmo quando há discordância.
Mas Deleuze diz, então, que na questão da amizade, há um mistéro que está conectado
diretamente à filosofia. Ele se volta, aqui, para oa conceito de amigo tal como desenvolvido
pelos gregos. A filósofo é um amigo da sabedoria, um conceito que os gregos inventaram:
como alguém que se volta para a sabedoria sem ser sábio, com uma série de pretendentes
atuando em uma rivalidade de homens livres em todos os domínios, com eloqüência,
tentativas que eles perseguem (o pretendente é o que ele chama de “fenômeno grego por
excelência”). A filosofia é um rival por alguma coisa, e ao examinar a história da filosofia,
vemos que para alguns escritores, a filosofia é precisamente essa conexão com a amizade e,
para outros, uma conexão com o noivado (fiançailles), por exemplo, Kierkegaard
(fiançailles rompues, noivado rompido). Parnet cita Blanchot e seu conceito de amizade, e
Deleuze diz que tanto Blanchot quanto Mascolo são dois escritores atuais que dão a maior
importância à amizade como a categoria mesma ou a condição mesma de exercício do
pensamento. Não um amigo real, mas a amizade como uma categoria ou condição do
pensamento [cf. O que é a filosofia?, para o desenvolvimento deste conceito].
Deleuze conclui dizendo que ele adora desconfiar do amigo. Deleuze faz referência a um
poeta alemão, que diz que entre cão e lobo, há uma hora em que devemos desconfiar do
amigo, e ele diz que ele desconfia de seu amigo Jean-Pierre, mas ele o faz com tal graça
que isso não lhe causa nenhum mal. Existe uma grande comunalidade de amizade, de forma
que isso funciona bem. Mas Deleuze insiste que não se trata, de forma alguma, de pequenas
questões pessoais; quando dizemos “amigo” ou “noivado rompido”, devemos saber sob
quais condições o pensamento pode se exercer. Proust disse que a amizade é zero,
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pessoalmente e para o pensamento, não o pensamento na amizade, mas, antes, no amor
ciumento, como a condiçãod e pensamento para Proust.
Parnet faz uma última questão, sobre sua amizade com Foucault, que não era uma amizade
de dupla, era profunda, mas distante. Deleuze diz que Foucault era alguém do maior
mistério para ele, talvez porque eles se conheceram muito tarde na vida. Deleuze diz que
ele sente um grande arrependimento em relação a Foucault, embora o tenha respeitado
enormemente. Ele diz que Foucault era o caso raro de um homem que entrava em uma sala
e tudo mudava. Foucault, como todos nós, não era simplesmente uma pessoa, mas, antes,
era se houvesse uma rajada de ar ou alguma outra coisa atmosférica, uma emanação.
Foucault corresponde, diz Deleuze, ao que ele mencionara antes, sobre não ser preciso falar
para que cada um aprecie e compreenda o outro. Deleuze tem na memória, em particular, os
gestos de Foucault, secos, estranhos, fascinantes, como gestos de metal e madeira.
Finalmente, Deleuze diz que todas as pessoas só tem charme por meio de sua loucura
(folie). O que é charmoso é o lado de uma pessoa que mostra que essa pessoa pirou um
pouco (où ils perdent un peu les pédales). Se você não consegue apreender o traço de
loucura em alguém, você não pode ser seu amigo. Mas se você apreende aquele pequeno
ponto de insanidade, de “démence”, de algu´me, o ponto em que a pessoa está com medo
ou mesmo feliz, aquele ponto de loucura é a própria fonte de seu charme.
Part II - G a M
No final da letra anterior, F de Fidelidade, Deleuze diz que todas as pessoas só têm charme
por meio de sua loucura (folie). O que é charmoso é o lado de alguém que mostra que está
um pouco pirado (où ils perdent un peu les pédales). Se você não apreender o pequeno
traço de loucura em alguém, você não pode ser seu amigo. Mas se você apreende esse
pequeno ponto de insanidade, “démence”, de alguém, o ponto no qual eles estão com medo
ou até mesmo feliz, esse ponto de loucura é a fonte mesma de seu charme. Ele então faz
uma pausa, sorri, e diz: “D’où G” (“O que nos leva ao G”)...
[G de Gauche-Esquerda] [H de História da Filosofia] [I de Idéia]
[J de Joie-Alegria] [K de Kant] [L de Literatura] [M de Maladie-Doença]
EINÍCIOSPAÇOG de Gauche-Esquerda ESPAALFABETOÇO
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Parnet observa que, embora Deleuze venha de uma família burguesa, com suas inclinações
políticas de “direita”, ele tem sido, desde a Liberação de 1945, um “homme de gauche”
(“esquerdista”), e ela também observa que enquanto tantos de seus amigos se juntaram ao
Partido Comunista FrancÊs, ele nunca o fez. Por quê?
Deleuze diz, sim, todos passaram pelo PC, e o que o impediu de fazê-lo foi que sempre foi
tão trabalhador (travailleur) e, além disso, ele simplesmente nunca foi capaz de agüentar ir
a todas aquelas reuniões! Ele lembra a Parnet que era foi o período do “Appel de
Stockholm” (Apelo de Estocolmo) e todos os seus amigos, pessoas de grande talento,
passava todo o seu tempo andando pra lá e pra cá coletando assinaturas para esse
manifesto... Uma geração inteira ficou presa nisso, diz Deleuze, mas isso colocava um
problema para ele. Ele tinha uma porção de amigos que eram historiadores comunistas, e
ele sentia que teria muito mais importante para o PC se esses amigos gastassem sua energia
em terminar suas dissertações do que em coletar assinaturas. Assim, ele não tinha qualquer
interesse nisso, nem tampouco era ele muito falante, assim toda essa atividade de assinatura
de manifestos deixava-o em um estado de completo pânico.
Parnet pergunta se Deleuze, não obstante, sentia-se próximo dos compromissos do Partido,
e ele diz, não, que eles nunca lhe preocuparam, que isso foi uma outra coisa que o salvou de
todas essas discussões sobre Stálin, e sobre a revolução dando errado. Deleuze dá uma
gargalhada rouca nesse momento, diz quem eles estão tentando enganar (de qui on se
moque), todos esses “nouveaux philosophes”, que descobriram que a revolução deu errado,
você realmente tem que ser estúpido (débile), uma vez que era evidente com Stálin.
Deleuze persegue essa linha de raciocínio de forma brutal: quem alguma vez pensou que
uma revolução fosse bem, ele pergunta. Quem? Quem? As pessoas dizem que os ingleses
não podiam ter uma revolução, mas isso é falso: eles a tiveram, eles tiveram Cromwell
como resultado, e todo o Romantismo Inglês, que é uma longa meditação no fracasso da
revolução. Eles não esperaram por André Glucksmann, diz Deleuze, para refletir no
fracasso da revolução. E os americanos nunca são discutidos, eles tiveram sua revolução,
tanto quanto, se não mais, que os bolcheviques. Mesmo antes da Guerra Revolucionária,
eles apresentaram isso como uma nova noção e foram além dessas noções exatamente
como Marx falar mais tarde do proletariado: eles conduziram um novo povo e tiveram uma
verdadeira revolução. Exatamente da forma como os marxistas descobriram a
proletarização universal, os americanos contaram se apoiaram na imigração universal, os
dois meios de luta de classe. Isso é absolutamente revolucionário, diz Deleuze, é a América
de Jefferson, de Melville, uma América absolutamente revolucionária, que anunciou um
“novo homem” exatamente da mesma forma que a revolução bolchevique anunciou o
“novo homem”.
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A revolução fracassou, todas as revoluções fracassam, e agora as pessoas estão pretendendo
“redescobrir” isso. Você tem realmente de ser estúpido, repete Deleuze... Todo mundo está
se perdendo nesse atual revisionismo. Há François Furet que descobriu que a Revolução
Francesa não foi tão fabulosa quanto se pensava, que ela fracassou. Mas todo mundo sabe
que a Revolução Francesa nos deu Napoleão! As pessoas estão fazendo “descobertas” que,
para Deleuze, não são muito comoventes por sua novidade (“on fait des découvertes qui ne
sont pas três émouvantes par leur nouveauté). A Revolução Britânica desembocou em
Cromwell, a Revolução Americana teve resultados piores, os partidos políticos, Reagan,
que não parecem nada melhores.
Deleuze vai adiante nesse raciocínio: as pessoas estão em um estado tal de confusão sobre o
fato de as revoluções fracassarem, darem errado. Entretanto, isso nunca impediu as pessoas
de tornar-se revolucionárias. Deleuze argumenta que as pessoas estão confundindo duas
coisas absolutamente diferentes: a situação na qual o único resultado para o homem é
tornar-se revolucionário, é a confusão entre tornar-se e história, e se as pessoas tornam-se
revolucionárias, isso é uma confusão de historiador. Os historiadores, diz Deleuze, falam do
futuro da revolução, mas essa não é, de forma alguma, a questão.
O problema concreto é a forma como e por que as pessoas tornam-se revolucionárias, e
felizmente os historiadores não podem impedi-las de fazê-lo. É óbvio, diz Deleuze, que os
sul-africanos estão envolvidos em um devir-revolucionário, os palestinos também. Então,
Deleuze diz, se alguém diz a eles, afinal, mesmo que sua revolução tenha sucesso, ela vai
dar errado, Deleuze responde: antes de mais nada, não se tratará dos mesmos tipos de
problemas, mas novas situações existirão, devir-revolucionários serão desencadeados. A
tarefa das pessoas em situações de opressão e tirania, argumenta Deleuze, é entrar em
devir-revolucionários, e quando alguém diz, “oh, não está funcionando”, não estamos
falando da mesma coisa, é como se estivéssemos falando duas linguagens diferentes – o
futuro da história e o futuro de devires não são, de forma alguma, a mesma coisa, conclui
ele.
Parnet focaliza uma outra questão atual (em 1988), o respeito pelos “direitos do homem”
(les droits de l’homme), que está tão na moda, mas não é revolucionário, bem pelo
contrário. Deleuze responde suavemente, até mesmo fatigadamente, que ele pensa que o
respeito pelos “direitos do homem” pertence a esse pensamento fraco (pensée molle) do
período intelectual empobrecido que eles discutiram antes (na letra C de cultura). É
puramente abstrato, diz Deleuze, esse “direitos do homem”, puramente abstrato,
completamente vazio. É como o que ele estava tentando dizer sobre o desejo: o desejo não
consiste em erigir um objeto, de dizer o desejo é isso... não desejamos um objeto, é zero;
em vez disso, nos encontramos em situações.
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Deleuze pega um exemplo do noticiário, a situação armênia: um enclave em outra
República Soviética Armênia, um primeiro passo; depois, há esse massacre por algum tipo
de grupo turco, de forma que os armênios recuam para sua república, e bem nesse
momento, há um terremoto. Você imagina que está em algo escrito pelo Marquês de Sade,
diz Deleuze, esse pobre povo nessas circunstâncias horríveis. (Deleuze dá esse exemplo
com um conjunto de situações).
Ele continua dizendo que quando as pessoas dizem “os direitos do homem”, é apenas um
discurso intelectual, intelectuais odiosos, por sinal, que não têm idéia nenhuma. Deleuze
insiste em dizer que essas declarações não são nunca feitas em função das pessoas que
estão diretamente envolvidas, os armênios, por exemplo. Seu problema não é os “direitos
do homem”. Isso é o que Deleuze chama de um “agenciamento” (agencement): o que se
deve fazer para suprimir esse enclave ou para fazer com que se torne possível que esse
enclave sobreviva? É uma questão de território, não de “direitos do homem”, não uma
questão de justiça, mas uma questão de jurisprudência.
Todas as abominações que os humanos sofrem, diz Deleuze, são casos não elementos de lei
abstrata. Esses são casos abomináveis, exatamente da mesma forma que o problema
armênio é um problema extremamente complexo de jurisprudência, salvar os armênios ou
ajudá-los a que eles se salvem. Então, um terremoto ocorre para confundir tudo. Agir pela
liberdade, devir revolucionário, é operar em jurisprudência quando nos voltamos para o
sistema de justiça. Assim, não é uma questão de aplicar os “direitos do homem”, mas, antes
de inventar formas de jurisprudência, de forma que, para cada caso, isso não seja mais
possível.
Deleuze dá um exemplo para ajudar a explicar o que é jurisprudência: ele se lembra de
quando fumar em táxis era proibido. No começo, alguns se recusaram a obedecer a lei, e
toda a questão tornou-se bastante pública por causa dos fumantes. Em uma nota paralela,
Deleuze menciona que se ele não tivesse estudado filosofia, ele teria estudado Direito, mas
não os “direitos do homem”. Antes, ele teria estudado jurisprudência, sua vida; não existem
quaisquer “direitos do homem”, diz Deleuze, apenas direitos da vida, caso por caso. Ele
retorna ao exemplo do táxi: um dia, um cara não quer parar de fumar, assim ele processa o
taxista, o taxista perde o caso com o argumento de que quando alguém pega um táxi, ele o
está alugando, e o locatário tem o direito de fumar no lugar em que ele alugou. O táxi é
então comparado a um apartamento móvel, e o cliente a um locatário. Dez anos mais tarde,
o táxi não é mais visto dessa maneira, é visto, em vez disso, como uma forma e serviço
público, e ninguém tem mais o direito de fumar dentro dele.
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Assim, trata-se de uma questão de situações que evoluem, e a luta pela liberdade consiste
em envolver-se na jurisprudência. Na Armênia, quais são os “direitos do homem”? Os
turcos não têm o direito de massacrar os armênios: aonde isso nos leva? São os estúpidos
ou hipócritas realmente, Deleuze argumenta, que têm essa ideia dos “direitos do homem”.
A criação de direitos é a criação de jurisprudência e da luta por eles. É nisso em que
consiste a esquerda, em criar direitos.
[Aqui Charles Stivale insere um link que remete para uma lista de discussão na qual um
participante, Bram Dov Abramson, transcreveu, em francês, e traduziu, para o inglês,
integralmente essa parte da intervenção de Deleuze sobre os “direitos do homem].
Parnet afirma que essa demanda pelos “direitos do homem” é como uma negação do maio
de 68 e também uma negação do marxismo. Entretanto, Deleuze nunca foi um comunista, e
contudo ele faz uso de Marx, que continua a ser uma referência para ele. E Deleuze, diz
Parnet, é uma das poucas pessoas que não disse que maio de 68 foi nada, uma brincadeira
de escolares; e todo mundo muda. Ele pede a ele para falar um pouco sobre maio de 68.
Deleuze a desaprova, diz que ela é demasiado dura, ele não é uma das poucas pessoas, há
muitas pessoas que pensam bem de maio de 68. Parnet contrapõe que essas pessoas são
seus amigos. Deleuze diz, mesmo assim, muitas pessoas não renegaram ou abjuraram maio
de 68.
Para Deleuze, maio de 68 foi uma coisa simples: tratou-se de uma intrusão do real. As
pessoas quiseram vê-lo como o reino do imaginário, mas foi realmente, diz Deleuze, um
sopro do real em seu estado puro (une bouffée du réel dans l’état pur). É o real, ele repete, e
as pessoas compreendem que foi prodigioso! As pessoas na realidade é isso que é o devir.
Pode haver devires ruins, e é quase obrigatório que os historiadores não tenham entendido
isso, Deleuze crê, porque nesses momentos, a diferença entre história e devires revela-se, e
maio de 68 foi um devir-revolucionário sem um futuro revolucionário. As pessoas podem
sempre zombar dele pós-fato, mas os devires tomaram conta das pessoas, até mesmo deviranimal, até mesmo devir-criança, devir-mulher para os homens, devir-homem para as
mulheres. Todos esses aspectos estão nesse domínio muito especial que Deleuze e Parnet
vem distilando desde o início das questões feitas por ela.
Parnet pergunta a Deleuze se ele próprio teve o seu devir-revolucionário naquele momento,
e ele diz que o sorriso dela indica a ele que a pergunta não está isenta de zombaria. Assim,
ela refaz a questão: entre o cinismo de Deleuze como um homme de gauche e seu devirrevolucionário como um esquerdista, como ele desenleia, como ele explica todo aquele se
débrouiller [se virar], e que significa para Deleuze, ser “de gauche”, de esquerda? Deleuze
faz uma pausa antes de responder. Então, ele diz que ele não acredita que exista um
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governo de esquerda, o que é surpreendente. O melhor que se pode esperar, ele acredita, é
um governo favorável a certas demandas da esquerda. Mas não existe um governo de
esquerda uma vez que estar na esquerda não tem nada a ver com governos (“n’est pas une
affaire de gouvernement”).
Assim, como definir “estar na esquerda”?, ele continua. De duas formas: primeiro, é uma
questão de percepção, que significa isso: o que não estar na esquerda significa? É como um
endereço, saindo para fora de uma pessoa: a rua em que você está, a cidade, o país, outros
países distantes e ainda mais distantes [Deleuze faz um gesto indicando distância]. Isso tem
seu ponto de partida no eu, e na medida em que se é privilegiado, que se vive um país rico,
pode-se perguntar, o que podemos fazer para que essa situação dure? Sente-se que existe
perigo, que pode não durar, é tudo tão louco, assim o que se pode fazer para que a Europa
dure? Estar na esquerda é o oposto: é perceber... E as pessoas dizem, os japoneses
percebem assim, não como nós... eles percebem primeiro a periferia [Deleuze faz um gesto
de fora para dentro], eles diriam o mundo, o continente – digamos, a Europa –, a França,
etc., rua Bizerte, eu: é um fenômeno de percepção, perceber o horizonte, perceber no
horizonte.
Parnet, compreensivelmente, objeta que os japoneses não são realmente tão esquerdistas, e
Deleuze faz um gesto de reprovação, sua objeção não é adequada (c´est pas une raison), na
base de que, na sua percepção, eles são esquerdistas, na base de seu senso de endereço, de
endereço postal. Primeiro, você vê o horizonte, Deleuze diz. E você sabe que esses milhões
de pessoas famintas não podem durar, ele continua, não tem sentido brincar sobre isso, é
um sistema de justiça absolutamente desgastado, não é uma questão de moralidade, mas de
percepção em si. Não é dizendo que a taxa de natalidade tem que ser reduzida, que é apenas
uma outra forma de manter os privilégios da Europa. “Estar na esquerda” é realmente
encontrar agenciamentos, encontrar agenciamentos de dimensão mundial. Estar na esquerda
é freqüentemente apenas problemas de Terceiro Mundo que estão mais próximos de nós
que problemas em nosso bairro. Assim, estar na esquerda é realmente uma questão de
percepções, diz Deleuze, mais do que uma questão de “belas almas” [belles âmes]. E, em
segundo lugar, ele continua, estar na esquerda é um problema de devires, de nunca deixar
de devir minoritário. Isto é, a esquerda não é nunca da maioria, e por uma razão muito
simples: a maioria é algo que presume que não é a enorme quantidade que vota por algo,
mas presume um padrão (étalon); no Ocidente, o padrão que toda maioria presume é: 1)
homem, 2) adulto, 3) masculino/viril (male), 4) habitante da cidade... Ezra Pound, Joyce,
digamos, coisas como essas, são o padrão. Assim, a maioria, por sua natureza,
acompanhará seja lá que agregado de pessoa ou coisa, em um momento particular, vai bem
com esse padrão, isto é, a suposta imagem do urbano, viril, adulto macho, de forma que
uma maioria, Deleuze insiste, não é nunca ninguém, é um padrão vazio. Simplesmente, um
máximo de pessoas se reconhece nesse padrão vazio.
21
Assim, ele continua, as mulheres deixarão a sua marca seja ao intervir nessa maioria, seja
nas minorias segundo os grupos em que elas são colocadas segundo esse padrão. Deleuze
clarifica isso: ser uma mulher não é um dado da natureza, as mulheres têm seus próprios
devir-mulher; e assim, se as mulheres têm um devir-mulher, os homens também têm um
devir-mulher. Deleuze lembra a Parnet de haver falado anteriormente sobre devir-animal,
sobre as crianças terem seus próprios devires, de não serem crianças naturalmente. Parnet
pergunta se os homens não podem devir homens, e essa é uma pergunta difícil! Deleuze
diz, não, esse é um padrão majoritário, viril, adulto, macho... eles podem se tornar
mulheres, e então eles entram em práticas minoritárias. A esquerda, conclui Deleuze, é o
agregado de processos de devires revolucionários. Assim, diz Deleuze, bastante
literalmente, a maioria não é ninguém, a minoria é todo mundo, e é isso o que significa
estar na esquerda: saber que a minoria é todo mundo e é aí que fenômenos de devir
ocorrem. É por isso que não importa quão grandes eles pensem que são, eles ainda têm
dúvidas sobre o resultado de eleições.
INÍCIOSPAÇOH de História da Filosofia ESPAALFABETO
Parnet lista os primeiros trabalhos de Deleuze, a primeira fase sobre a história da filosofia –
sobre Hume, Nietzsche, Kant, Bergson, Espinosa, e diz, então, que quando se encontra seus
trabalhos posteriores – Diferença e repetição, Lógica do sentido, e os trabalhos com
Guattari – pode-se pensar que ele tem uma personalidade tipo Jekill/Hyde. Então, ela
observa, ele retornou a Leibniz em 1988, assim ela pergunta: de que ele gostava e ainda
gosta na história da filosofia?
Deleuze faz uma pausa e então diz que se trata de uma questão complicada porque essa
história da filosofia abrange a própria filosofia. Ele supõe que muitas pessoas pensam na
filosofia como algo muito abstrato e sobretudo para especialistas, mas em sua opinião, não
tem nada a ver com especialistas, ou tem, mas apenas da forma que a música e a pintura
têm. Assim, ele indica que tenta colocar o problema de forma diferent.
Deleuze diz que, convencionalmente, a história da filosofia é abstrata no segundo grau uma
vez que ela não consiste em falar sobre idéias abstratas, mas em formar idéias sobre idéias
abstratas. Mas ele sempre viu isso de forma diferente, fazendo uma comparação com a
pintura. Ele refere-se a cartas escritas por Van Gogh sobre as distinções entre a pintura de
retratos e a pintura de paisagens [veja Lógica do sentido, XV, para uma discussão mais
extensa da correspondência de Van Gogh]. Para Deleuze, a história da filosofia é, como na
pintura, uma espécie de arte do retrato, criando um retrato do filósofo, mas um retrato
filosófico de um filósofo, um retrato mental ou espiritual de forma tal que se trata de uma
atividade que pertence plenamente à própria filosofia, assim como um retrato pertence à
pintura.
22
Deleuze pergunta, entretanto, se ele não está indo ligeiro demais com essa comparação com
a pintura, e diz que se ele invoca pintores como Van Gogh ou Gauguin, é porque algo em
suas obras tem um enorme efeito sobre ele, o tipo de imenso respeito ou, antes, de medo e
até mesmo de pânico que eles provocam quando confrontados com a abordagem da cor.
Esses pintores, diz Deleuze, são os maiores coloristas que já existiram, mas em suas obras,
eles empregam a cor com grande hesitação [tremblement]. No começo de suas carreiras,
eles usavam cores terrosas [couleurs patate, de terre], nada que chamasse a atenção, porque
ele ainda não ousavam assumir a cor. É uma questão muito comovente, como se,
literalmente, eles se julgassem ainda não dignos da cor, ainda não prontos ou capazes para
assumi-la e realmente pintar. Foram necessários anos e anos antes que eles fossem capazes
de fazê-lo. Quando você vemos os resultados de seu trabalho, diz Deleuze, temos que
refletir sobre essa imensa lentidão para empreender aquele trabalho. A cor, para um pintor é
algo que pode levá-lo à loucura, à insanidade, sendo, assim, algo bastante difícil, levando
anos para que eles ousem chegar perto dela.
Assim, não é que ele seja particularmente modesto, diz Deleuze, mas chama sua atenção
como sendo bastante chocante que haja filósofos que dizem simplesmente, olha, agora vou
para a filosofia, vou fazer minha própria filosofia. Trata-se de afirmações frágeis,
argumenta Deleuze, porque a filosofia é como pintar com cores, antes de chegar a ela,
temos que tomar tantas precauções, antes de conquistar a “cor filosófica” [la couleuer
philosophique] – e a cor filosófica é o conceito. É necessária uma enorme quantidade de
trabalho antes que se possa ser bem sucedido em inventar conceitos. Deleuze vê a história
da filosofia como esta modéstia vagarosa, gastando um enorme tempo em fazer retratos. É
como um romancista, sugere Deleuze, que pode dizer, estou escrevendo romances, mas não
posso ler nenhum, porque eu correria o risco de comprometer minha inspiração. Deleuze
diz que ele tem ouvido alguns escritores jovens fazer essa apavorante afirmação, a qual,
para ele, significa que eles simplesmente não precisam trabalhar. Além disso, Deleuze vê a
história da filosofia não apenas como tendo um papel preparatório, mas que ela é
razoavelmente bem sucedida por si mesma. Trata-se de uma arte do retrato na medida em
que permite que se chegue a alguma coisa. Nesse ponto, torna-se um pouco misterioso, diz
Deleuze, e ele pergunta a Parnet se ela pode, talvez, dar a ele uma outra questão, de forma
que ele possa definir isto.
Parnet diz que a utilidade da história da filosofia para Deleuze está clara nessa explicação.
Mas a utilidade da história da filosofia para as pessoas em geral, o que é isso, ela pergunta,
uma vez que Deleuze diz que ele não quer vê-la como uma espécie de especialização?
Para Deleuze, é muito simples. Pode-se compreender o que é a filosofia, ele diz – isto é, a
extensão na qual é ela não é uma coisa mais abstrata do que uma pintura ou uma obra
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musical – apenas por meio da história da filosofia, desde que se a conceba da maneira
adequada [comme il faut]. O que pode isso ser? Uma coisa é certa: um filósofo não é
alguém que contempla ou mesmo reflete, mas é alguém que cria um tipo muito especial de
coisa, conceitos, não estrelas para as quais se olha no céu. Deleuze argumenta [com ele e
Guattari fazem em O que é filosofia?] que temos que criar conceitos, fabricar conceitos.
Assim, muitas questões surgem aqui: para quê? Por que criar conceitos, e o que é isso?
Deleuze deixa essas questões de lado para dar um exemplo: sabemos que Platão criou um
conceito que não existia antes dele, que em geral se traduz como “a Idéia”. O que ele
chama de Idéia é verdadeiramente um conceito platônico. Concretamente, pergunta
Deleuze, de que se trata? É isso que temos que perguntar. Uma Idéia é uma coisa que não
seria uma outra coisa, isto, seria apenas o que é... Deleuze faz uma para perguntar: isso é
abstrato? Não, ele responde, e dá o exemplo que não se encontra em Platão: uma mãe não é
apenas uma mãe, mas também uma esposa, uma filha. Imaginemos, continua ele, que uma
mãe fosse apenas uma mãe, por exemplo, a Virgem Maria. Mesmo que isso não exista, uma
mãe que não fosse uma outra coisa seria uma Idéia de mãe, isto é, uma coisa que seria
apenas o que é. Isso, afirma Deleuze, é o que Platão quis dizer quando ele afirmou que
apenas a justiça é justa, que apenas a justiça não é alguma outra coisa senão justa. Platão
não pára aí, mas ele criou um verdadeiro concito da Idéia de algo como puro.
Deleuze admite que isso ainda continua abstrato, e pergunta por quê. Se vamos ler Platão,
tudo se torna concreto, Deleuze insiste. Platão não criou esse conceito de Idéia por acaso;
ele disse que não importa o que aconteça nessa situação concreta, não importa o que seja
um dado nesse caso, existem pretendentes, isto é, pessoas que dizem: para esta coisa, eu
sou o melhor exemplo. Platão deu o exemplo de um político com uma definição inicial
como o pastor de homens, o qual cuida das pessoas. Como conseqüência, as pessoas
apareceram para dizer: eu sou o verdadeiro pastor de homens (o comerciante, o condutor de
ovelhas, o médico), isto é, diferentes níveis. Em outras palavras, há pretendentes, e com
isso as coisas começar a ficar um pouco mais concretas.
Deleuze insiste que um filósofo cria conceitos, isto é, a Idéia, a coisa na medida em que ela
é pura [la chose en tant que pure]. O leitor não compreende imediatamente de que se trata,
ou por que precisaríamos criar um tal conceito. Se ele ou ela continua a refletir sobre isso,
verá a razão: há todo tipo de pretendentes que se apresentam como reivindicando as coisas.
Assim, o problema, para Platão, não é, de forma alguma: “o que é a Idéia”? Dessa forma as
coisas continuariam abstratas. Em vez disso, trata-se de como selecionar os pretendentes,
como descobrir entre eles qual é genuíno (le bon). É a Idéia, isto é, a coisa em estado puro,
que permitirá essa seleção, que selecionará o pretendente que se aproxima dela.
Deleuze entende que isso permite que a discussão avance um pouco, uma vez que todo
conceito, por exemplo, a Idéia, refere-se a um problema, neste caso o problema de como
selecionar o pretendente. Se fazemos filosofia abstratamente, ele insiste, não chegamos
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sequer a ver o problema, mas se chegamos a esse problema... Perguntamo-nos por que o
problema não é claramente apresentado pelo filósofo, uma vez que ele certamente existe em
seu trabalho, e Deleuze sustenta que é porque não podemos fazer tudo de uma vez só. A
tarefa do filósofo é já a de expor os conceitos que ele está em vias de criar, assim ele não
pode, além disso, expor os problemas, ou ao menos podemos descobrir esses problemas
apenas por meio dos conceitos que estão sendo criados. Deleuze insiste: se não tivermos
encontrado o problema ao qual um conceito corresponde, tudo permanece abstrato. Se
tivermos encontrado o problema, tudo se torna concreto. É por isso que em Platão, há
constantemente esses pretendentes, esses rivais.
Deleuze vai adiante para perguntar, por que isso ocorre na cidade grega, e em Platão? O
conceito é a Idéia como meio de selecionar os pretendentes, mas por que esse conceito e
esse problema tomam forma no milieu grego? Porque trata-se tipicamente de um problema
grego, da cidade grega, democrática, mesmo que Platão não aceite o caráter democrático da
cidade. Pois é na cidade grega que, por exemplo, a magistratura é um objeto de pretensão,
pois alguém pode se candidatar para uma função particular. Em uma formação imperial, os
funcionários são nomeados pelo imperador, enquanto que a cidade ateniense é uma
competição de pretendentes, todo um milieu de problemas gregos, uma civilização na qual
a confrontação de rivais constantemente aparece: é por isso que eles inventaram a ginástica,
os jogos olímpicos, e também os procedimentos legais. E também na filosofia existem
pretendentes, por exemplo, a luta de Platão contra os sofistas. Ele acreditava que os sofistas
eram pretendentes em relação a algo ao qual eles não tinham direito. O que definiria o
direito ou não de um pretendente?, pergunta Deleuze. Tudo isso é tão interessante quanto
um grande romance ou uma grande pintura, mas em filosofia, existem dois coisas ao
mesmo tempo: a criação de um conceito sempre ocorre como função de um problema. Se
não encontramos o problema, a filosofia permanece abstrata.
Ele dá outro exemplo: as pessoas em geral não vêem os problemas, eles em geral
permanecem ocultos, mas envolver-se na história da filosofia significa restaurar esses
problemas e, por esse meio, descobrir o que há de inovativo nesses conceitos. A história da
filosofia conecta conceitos como se eles parecessem óbvios, como se eles não fossem
criados, de forma que há uma tendência a ignorar os problemas.
Deleuze dá um último exemplo: muito mais tarde, Leibniz chegou e inventou um conceito
extraordinário ao qual ele deu o nome de “mônada”. Existe sempre algo um pouco louco
em um conceito. A mônada de Leibniz, Deleuze continua, designa um sujeito, alguém, você
ou eu, na medida em que expressa a totalidade do mundo e ao expressar a totalidade do
mundo, expressa claramente apenas uma pequenina região do mundo, de seu território, ou
aquilo que Leibniz chama de seu “departamento”. Assim, uma unidade subjetiva que
expressa o mundo inteiro, mas que expressa apenas uma região do mundo – é isso que se
chama “mônada”. É um conceito que Leibniz criou, mas por que dizê-lo dessa forma?
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Temos que encontrar o problema, é aí que está o charme de se ler filosofia, uma coisa tão
charmosa quanto ler um bom livro. Leibniz coloca um problema, especificamente que tudo
existe apenas como dobrado... Ele viu o mundo como um agregado de coisas dobradas
umas sobre as outras. Deleuze sugere aqui voltar um pouquinho atrás: por que ele vê o
mundo dessa forma? O que está acontecendo então? O que conta, Deleuze argumenta, é a
idéia da dobra, tudo é dobrado, e tudo é uma dobra de uma dobra, não se pode nunca atingir
nada que seja completamente sem dobras. A matéria é constituída de dobras que se rebatem
sobre ela, e as coisas da mente, as percepções, os sentimentos, se dobram sobre a alma. É
precisamente pelo fato de que as percepções, o sentimento, as idéias são dobradas sobre a
alma que Leibniz construiu esse conceito de uma alma que expressa o mundo inteiro, isto é,
no qual ele descobre que o mundo inteiro é dobrado.
Deleuze pergunta repentinamente, o que é um mau filósofo, ou um grande filósofo? O mau
filósofo, ele responde, não cria conceito nenhum, ele utiliza idéias prontas, assim ele
expressa opiniões, e não faz filosofia, e não coloca problema nenhum. Assim, fazer história
da filosofia é esse longo aprendizado no qual aprendemos ou no qual somos
verdadeiramente um aprendiz nesse domínio, a constituição de problemas e a criação de
conceitos. E de que forma esse pensamento pode ser estúpido, idiota? Algumas pessoas
falam, não criam conceitos, expressam opiniões, mas, além disso, nós não sabemos de que
problemas elas falam. No máximo, sabemos as questões, mas os problemas por detrás
dessas questões (por exemplo, “Deus existe?” não coloca problema nenhum, o que poderia
estar por detrás...). Se não temos nem um conceito nem um problema, diz Deleuze, não
estamos fazendo filosofia. Tudo isso para dizer, insiste Deleuze, quanto a filosofia é
divertida. Assim, fazer história da filosofia significa não descobrir nada diferente daquilo
que se descobre quando olhamos para uma pintura ou escutamos uma obra musical.
Parnet pergunta, uma vez que Deleuze evocou o tremor e a hesitação de Gauguin e de Van
Gogh diante da decisão de utilizar a cor, o que aconteceu com ele, Deleuze, quando ele
deixou a história da filosofia para fazer sua própria filosofia? Deleuze responde
rapidamente, foi isso o que aconteceu: a história da filosofia deu-lhe a oportunidade de
aprender coisas, tornou-o mais capaz de chegar à cor em filosofia. E, ele pergunta, por que
a filosofia não deixa de existir, por que ainda fazemos filosofia hoje? Porque existe sempre
uma ocasião de criar conceitos. Mas hoje, ele continua, essa noção de criação de conceitos
foi tomada pela mídia, pela publicidade; com os computadores, eles dizem que podemos
criar conceitos, toda uma linguagem roubada da filosofia, para a “comunicação”. Mas
aquilo que eles chama de conceitos, de criar, diz Deleuze como que encerrando a questão, é
verdadeiramente cômico, não há nenhuma necessidade de insistir nisso. Essa ainda
continua sendo a tarefa da filosofia.
Deleuze diz que ele nunca foi afetado por pessoas que proclamam a morte da filosofia, que
falam em ultrapassar (dépasser) a filosofia, etc., uma vez que ele sempre se perguntou o que
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querem dizer com essa “morte”. Na medida em que houver a necessidade de criar
conceitos, haverá filosofia, uma vez que essa é a definição de filosofia, nós temos que criálos, e nós os criamos como uma função de problemas, e os problemas mudam. Certamente,
podemos ser platônicos, leibnizianos, kantianos, hoje, isto é, julgamos que certos
problemas – não todos – colocados por Platão continuam válidos desque se façamos certas
transformações, e assim somos platônicos uma vez que ainda existe um uso para conceitos
platônicos. Se nós colocamos problemas de natureza completamente diferente, fazer
filosofia é criar novos conceitos como função dos problemas colocados hoje.
O aspecto final, continua Deleuze, é: o que significa a mudança de problemas? Podemos
dizer: forças históricas, sociais, mas existe algo mais profundo. É tudo muito misterioso,
admite Deleuze, talvez não tenhamos tempo na entrevista para aprofundar isto, mas
Deleuze entende que estamos alcançando uma espécie de devir do pensamento, uma
evolução do pensamento que tem como resultado não apenas que não estamos mais
colocando os mesmos problemas, mas que eles não são mais colocados da mesma forma.
Há um apelo urgente, uma necessidade mesmo, para se criar e re-criar novos conceitos.
Assim, a história da filosofia não pode ser reduzida a influências sociológicas, ele
argumenta. Há um devir do pensamento, algo muito misterioso que nos faz talvez não
pensar mais da mesma forma que cem anos atrás, novos processos de pensamento, elipses
de pensamento. Deleuze sustenta que há uma história de puro pensamento, e que é isso que
é a história da filosofia, ela sempre teve apenas uma única função, assim não há
necessidade ir além disso, na medida em que ela tem essa única função.
Parnet pergunta como um problema evolui através do tempo, e Deleuze dá um outro
exemplo: qual era, para a maioria dos grandes filósofos do século XVII, sua maior
preocupação negativa? Era uma questão de afastar os perigos do erro, isto é, o negativo do
pensamento, de impedir que a mente caísse em erro. Houve um longo, gradual
deslizamento no século XVIII, um novo problema emerge, que não era de forma alguma o
mesmo: não mais denunciar o erro, mas denunciar as ilusões, a idéia de que a mente está
não apenas rodeada de ilusões, mas que ela mesma pode até mesmo produzi-las. Assim,
esse é o movimento no século XVIII, a denúncia das superstições, e embora pareça
semelhante ao século XVII, algo completamente novo está nascendo no século XVIII.
Pode-se dizer que se deve a causas sociais, mas Deleuze sustenta que há também uma
história secreta do pensamento que seria um tema apaixonante a ser perseguido.
Então, no século XIX – aqui, Deleuze admite que ele está afirmando coisas de uma forma
extremamente simples e rudimentar – as coisas sofreram um deslizamento. Não se trata
mais de como evitar a ilusão; não, como criaturas espirituais, os homens dizem besteiras
(bêtises) sem parar o que não é a mesma coisa que cair em ilusão: como afastar besteiras?
Isso aparece claramente em pessoas que estão nos limites da filosofia, Flaubert, Baudelaire,
o problema das besteiras. E, então, outra vez, a evolução social, a evolução da burguesia,
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fez do problema das “besteiras” um problema urgente. Mas há também algo mais profundo
nesse tipo de história dos problemas que o pensamento confronta. Toda vez que se coloca
um problema, aparecem novos conceitos, de forma que se compreendemos a história da
filosofia desta forma – criação de conceitos, constituição de problemas, os problemas sendo
mais ou menos escondidos, de forma que temos de descobri-los –, vemos que a filosofia
não tem nada a ver, estritamente, com o verdadeiro ou o falso. Buscar a verdade não
significa nada. Criar conceitos e constituir problemas é uma questão de sentido, não de
verdade ou falsidade... um problema com o sentido, assim fazer filosofia significa constituir
problemas que tenham um sentido e criar problemas que nos levem a nos mover em direção
à compreensão e solução de problemas.
Parnete volta às duas questões especiais para Deleuze: quando ele voltou a faze história da
filosofia com o livro sobre Leibniz (A dobra), no ano anterior, foi da mesma forma que 20
anos ants, isto é, antes de ele ter começado a produzir sua própria filosofia? Deleuze
responde que “certamente não”. Antes, ele utilizou a história da filosofia como essa espécie
de aprendizagem indispensável a fim de examinar os conceitos de outros, de grandes
filósofos, e os problemas para os quais seus conceitos forneciam respostas. Enquanto que
no livro sobre Leibniz – e Deleuze diz que não existe nada em vão no que ele está para
dizer –, ele misturou problemas do século XX, que poderiam ser seus próprios problemas,
com os colocados por Leibniz, uma vez que Deleuze está convencido da atualidade dos
grandes filósofos. Assim, o que significa agir como (faire comme) um grande filósofo o
faria? Não significa necessariamente ser seu discípulo, mas ampliar sua tarefa, criar
conceitos em relação com os conceitos que ele criou e em sintonia com sua evolução. Ao
trabalhar sobre Leibniz, Deleuze estava mais nesse caminho, enquanto que nos primeiros
livros sobre a história da filosofia, ele estava no estágio “pré-cor”.
Na continuação, Parnet pergunta sobre seu trabalho sobre Espinosa e Nietzsche, sobre o
qual Deleuze havia dito que ele havia se centrado aí em uma área um tanto maldita e oculta
da filosofia. O que ele quis dizer com isso? Deleuze diz que, para ele, essa área oculta
refere-se a pensadores que rejeitaram toda transcendência, todos os universais, a noção de
que a idéia ou os conceitos tenham valores universais, qualquer instância que vá além da
terra e dos homens... autores de imanência.
Parnet persegue essa idéia ao observar que seus livros sobre Nietzsche e Espinosa foram
eventos reais, livros pelos quais ele é conhecido, e contudo não se pode dizer que ele seja
um nietzschiano ou um espinosiano. Deleuze passou por tudo isso, mesmo durante seu
aprendizado, e Parnet diz que ele já era deleuziano. Deleuze parece levemente
constrangido, dizendo que ela lhe fez um grande elogio, se é que isso é verdadeiro. O que
ele sempre procurou, diz ele, fosse seu trabalho bom ou ruim, e ele sabia que podia
fracassar, foi tentar colocar problemas para seus próprios objetivos (pour mon compte), e
criar conceitos para seus próprios objetivos. Deleuze então sugere que, no caso extremo, ele
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teria querido uma espécie de quantificação da filosofia, de forma que a cada filósofo fosse
atribuído uma espécie de número mágico que correspondesse ao número de conceitos que
ele realmente criou, referidos a problemas – Descartes, Leibniz, Hegel. Deleuze acha essa
uma idéia interessane, e pensa que talvez ele tivesse um número mágico pequeno, tendo
criado conceitos em função de problemas. Mas Deleuze conclui dizendo que sua questão de
honra é simplesmente que, qualquer que tenha sido o tipo de conceito que ele tenha tentado
criar, ele pode estabelecer a qual problema aquele conceito corresponde. Se não fosse
assim, tudo teria sido uma conversa vazia.
A última questão de Parnet sobre este tema: durante o período em volta de 1968, e antes,
quando todo mundo estava envolvido em ler Marx e Reich, não tinha sido deliberadamente
provocativo ao se voltar para Nietzsche, suspeito de fascismo, e para Espinosa e o corpo,
quando todo mundo estava pregando sobre Reich? Não servia a história da filosofia, para
ele, um pouco como uma ousadia, uma provocação?
Deleuze responde dizendo que isto está ligado ao que eles estiveram o tempo todo
discutindo, a mesma questão. O que ele estava buscando, mesmo com Guattari, era esse
tipo de dimensão verdadeiramente imanente do inconsciente. A psicanálise está
inteiramente plena de elementos transcendentais – a lei, o pai, a mãe – enquanto que um
campo de imanência que lhe permitiria definir o inconsciente como o domínio no qual
Espinosa foi mais longe, e Nietzsche também, mais longe que qualquer outro antes deles.
Assim não havia qualquer provocação, mas Espinosa e Nietzsche formam na Filosofia
talvez a maior liberação do pensamento, de natureza quase explosiva, e os conceitos mais
incomuns, porque seus problemas eram de alguma forma problemas condenados, que as
pessoas não ousavam colocar durante suas épocas.
[Deleuze pára, sorrindo para Parnet, e ela responde de forma bastante estranha, dizendo
(quase no tom de um pai ou uma mãe que repreende seu filho]: “Bem, vamos adiante, já
que você não quer responder”. Deleuze simplesmente faz um leve questionament: “eh?”,
enquanto Parnet anuncia a próxima letra.
INÍCIOSPAÇOI de Idéia ESPAALFABETO
Parnet começa dizendo que esta “idéia” não está mais no domínio platônico. Em vez disso,
ela diz, Deleuze sempre falou apaixonadamente sobre idéias de filósofos, mas também
idéias de pensadores no cinema (diretores), idéias de artistas e de pintores. Ele sempre
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preferiu uma “idéia” às explicações e ao comentário. Por que, então, para Deleze, a “idéia”
ganha precedência sobre todo o resto?
Deleuze admite que isso está bastante correto: a “idéia” tal como ele a utiliza atravessa
todas as atividades criativas, uma vez que criar idéias significa ter uma idéia. Mas há
pessoas – que não devem, de forma alguma, ser desprezadas por causa disso – que passam
pela vida sem jamais ter uma idéia. Deleuze insiste que é, em geral, bastante raro que se
tenha uma idéia, não ocorre todos os dias. E um pintor também pode ter idéias, da mesma
forma que um filósofo, só que não se trata do mesmo tipo de idéias. Assim, pergunta
Deleuze, em que forma uma idéia ocorre em um caso particular? Em filosofia, ao menos, de
duas formas: a idéia ocorre na forma de conceitos e de criação de conceitos.
Deleuze se impressiona com os diretores de cinema: enquanto uns não têm qualquer idéia,
alguns têm uma boa quantidade, uma vez que as idéias são bastante assombradoras, elas
vão e vêm, e assumem diversas formas. Deleuze dá um exemplo do diretor de cinema
Minelli. Em seus trabalhos, vemos que ele se pergunta: o que significa ficar preso no sonho
de uma outra pessoa? Isso vai do cômico ao trágico e até mesmo ao abominável. Assim, do
fato se ficar preso no sonho de uma outra pessoa podem resultar coisas horríveis; trata-se,
possivelmente, de horror em seu estado puro. Assim, na obra de Minelli, podemos ficar
presos no pesadelo da guerra, e isso produz o admirável Quatro cavaleiros do Apocalipse,
não a guerra vista como guerra, mas como pesadelo. O que significaria ficar preso no sonho
de uma garota? Isso dá como resultado comédias musicais, nas quais Fred Astaire e Gene
Kelly – Deleuze indica não estar muito seguro a respeito dos nomes – fogem de tigresas e
de panteras negras. Isso é uma idéia. Deleuze apressa-se em observar que não se trata de
um conceito, entretanto, e Minelli não está fazendo filosofia, mas cinema.
Deleuze vai adiante, sugerindo que nós quase temos que distinguir três dimensões, o que
constitui seu próximo trabalho [que ele e Guattari desenvolveram em O que é a Filosofia?]:
1) na primeira, há conceitos que são inventados na filosofia;
2) na segunda, há perceptos no domínio da arte. Um artista cria perceptos, uma palavra que
é necessária para distingui-los de percepções. O que quer um romancista? Ele quer ser
capaz de construir agregados de percepções e sensações que sobrevivam aqueles que lêem
o romance. Deleuze dá exemplos em Tolstoi e Tchecov, cada qual à sua própria maneira,
que foram capazes de escrever da mesma forma que um pintor faz para pintar. Assim, a fim
de tentar dar a essa complexa rede de sensações uma independência radical em relação a
quem as vive, Tosltoi descreveu atmosferas; Faulkner, e um outro grande romancista,
Thomas Wolfe, que quase afirmou isso em seus contos: alguém sai de casa de manhã, sente
o cheiro de torradas, vê um pássaro voando, e sente uma complexa rede de sensações.
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Assim, o que acontece quando alguém que vive as sensações passa para uma outra coisa?
Isso, diz Deleuze, é um pouco como na arte, onde encontramos uma resposta. É dar uma
duração ou uma eternidade a essa complexa rede de sensações que não são mais
apreendidas como sendo vividas por alguém, ou que, do lado de fora, podem ser
apreendidas como vividas por um personagem de ficção. O que faz um pintor? Ele dá
consistência a perceptos, ele rasga perceptos a partir da percepção.
Deleuze chama a atenção para os impressionistas que distorceram a impressão de uma
forma radical. Um conceito, diz Deleuze, cria uma rachadura no crânio (fend le crâne), é
um hábito de pensamento que é completamente novo, e as pessoas não estão acostumadas a
pensar desse jeito, não estão acostumadas a ter seus crânios rachados, uma vez que um
conceito torce nossos nervos. Deleuze cita Cézanne de memória, que diz algo como “nós
temos que tornar o impressionismo durável”, isto é, novos métodos são necessários a fim
de fazer com que ele tenha uma duração, de forma que o percepto adquire uma autonomia
ainda maior.
3) Uma terceira ordem de coisas, uma espécie de conexão entre todas elas, são afetos.
Deleuze diz que, obviamente, não existe nenhum percepto sem afetos, mas que esses são
igualmente específicos: esses são devires que excede quem os vive, que excede a força de
quem os vive. Não nos leva a música a essas forças (puissances) que excedem nossa
apreensão? É possível, Deleuze responde. Se pegamos um conceito filosófico, ele nos faz
“ver” coisas, uma vez que os grandes filósofos têm esse lado “vidente”, ao menos os
filósofos que Deleuze admira: Espinosa nos faz “ver”, um dos filósofos “videntes” mais
visionários, Nietzsche também. Todos eles lançam afetos fantásticos, há uma música nesses
filósofos, e inversamente, a música faz com que vejamos algumas coisas estranhas, cores e
perceptos. Deleuze diz que ele imagina uma espécie de circulação, entre elas, dessas
dimens~eos, entre conceitos filosóficos, perceptos pictóricos e afetos musicais. Não há
nada surpreendente no fato de que haja essas ressonâncias, sustenta ele, é só otrabalho de
pessoas bastante diferentes, mas isso nunca pára de se interpenetrar.
Parnet observa que Deleuze está sempre muito interessado nas idéias dos pintores, artistas,
filósofos, mas ela pergunta por que ele nunca parece interessado em examinar ou ler algo
que seja simplesmente divertido ou algo meramente diversionista, sem que seja preciso ter
uma idéia. Não é uma possível que haja também aí uma idéia? Deleuze diz que, no sentido
em que ele defini “idéia”, ele tem dificuldade em ver como isso seria possível? Se
mostrarmos para ele uma pintura que não tem nenhum percepto ou tocar para ele alguma
música sem afeto, Deleuze diz que ele praticamente não pode compreender o que isso quer
dizer. E um livro idiota de filosofia, ele diz que ele teria dificuldade em compreende que
tipo de prazer ele tiraria disso, além de um prazer extremamente doentio. Parnet diz que
podemos simplesmente pegar um livro deliberadamente divertido, e Deleuze diz que um
livro desses bem poderia estar cheio de idéias, tudo depende. Ele diz que ninguém o fez rir
31
mais do que Beckett e Kafka, e que ele se considera uma pessoa sensível ao humor, mas
que é verdade que ele não gosta muito de programas cômicos na televisão. Parnet diz que a
exceção para Deleuze é Benny Hill, e Deleuze diz, sim, porque ele [Benny Hill] “tem uma
idéia”, mas mesmo em seu seu campo, os grandes cômicos americanos (burlesques) têm um
monte de idéias.
Parnet pergunta se algum vez ocorre que Deleuze senta em sua escrivaninha sem ter uma
idéia do que ele vai fazer, isto é, sem ter qualquer idéia. Deleuze diz, obviamente não, se
ele não nenhuma idéia, ele não se senta para escrever. Mas o que acontece é que a idéia não
se desenvolveu o suficiente, a idéia lhe escapa, a idéia desaparece, pode haver buracos. Ele
tem essas experiências dolorosas, ele admite, e não é fácil uma vez que as idéias não estão
prontas, há momentos terríveis, até mesmo desesperadores desse tipo. Parnet menciona uma
expressão: a idéia que faz um buraco que está faltando (l’idée qui fait un trou qui manque),
e Deleuze responde dizendo que é impossível fazer uma distinção. Tenho uma idéia que eu
sou apenas incapaz de expressar, ou simplesmente não tenho idéia nenhuma? Para Deleuze,
é exatamente a mesma coisa: se ele não pode expressá-la, ele não tem a idéia, ou está
faltando um pedaço, uma vez que as idéias não chegam em um bloco completamente
formado, há coisas que vêm de horizontes variados, e se está faltando um pedaço, então é
inutilizável.
INÍCIOSPAÇO J de Joie-AlegriaESPAALFABETO
Parnet começa dizendo que este é um conceito ao qual Deleuze está particularmente ligado
uma vez que se trata de um conceio espinosista e Espinosa transformou a alegria em um
conceito de resistência e vida: evitemos paixões tristes, vivamos com alegria para que
possamos estar no máximo de nossa potência; devemos, pois, fugir da resignação, da má fé,
da culpa, dos efeitos tristes que juízes e psicanalistas exploram. Assim, podemos ver
completamente por que, continua Parnet, Deleuze estaria feliz com tudo isso. Ela pede a ele
que, primeiramente, distinga a alegria da tristeza, tanto para Espinosa quanto para ele
mesmo. O conceito de Espinosa é inteiramente um conceito de Deleuze, e o que Deleuze
descobriu quando ele leu o conceito de Espinosa?
Deleuze diz, sim, esses textos estão, da forma mais extraordinária, carregados de afeto. Em
Espinosa isso significa – para simplificar – que a alegria é tudo aquilo que consiste em
preencher uma potência. O que é isso? Deleuze sugere voltar a exemplos anteriores: eu
conquisto, por menor que isso possa ser, eu conquista um pequeno segmento de cor, eu
entro um pouco mais na cor; é aí que a alegria pode ser localizada. A alegria é preencher
uma potência, efetuar uma potência. É a palavra “potência” que é ambígua.
32
Deleuze pergunta, primeiramente, o que se pode dizer sobre o contrário disso, sobre o que é
a tristeza? Ela ocorre quando somos separados de uma potência da qual eu acreditava, certa
ou erradamente, ser capaz: eu poderia ter feito isso, mas as circunstâncias não permitiram,
ou era proibido, etc. Toda tristeza é o efeito do poder sobre mim. Tudo isso coloca
problemas, obviamente, mais detalhes são necessários porque não existem potências más; o
que é mau é o grau mais baixo da potência, e isso é poder. Deleuze insiste que a maldade
consiste em impedir alguém de fazer o que ele/ela quer, de efetivar a própria potência. De
forma que não existe potência má, apenas poderes maus... Talvez todo poder seja mau
necessariamente, mas Deleuze sugere que essa talvez seja uma posição demasiado
simplista.
Deleuze vai adiante, sugerindo que a confusão entre potência e poderes tem bastante custos,
porque o poder sempre separa as pessoas que lhe estão sujeitas daquilo que elas são capazes
de fazer. Espinosa partiu desse ponto, diz Deleuze, e ele volta a algo que Parnet disse ao
fazer aquela pergunta, que a tristeza está ligada aos padres, aos tiranos, aos juízes, e essas
são perpetuamente as pessoas que separam seus sujeitos daquilo que eles são capazes de
fazer, que os proíbem de efetuar suas potências. Deleuze relembra algo que Parnet disse no
verbete “I de Idéia”, ao se referir ao anti-semitismo de Nietzsche. Deleuze vê essa como
uma questão importante, uma vez que há textos de Nietzsche que se pode achar bastante
perturbadores se eles são lidos da maneira antes mencionada, isto é, a de ler os filósofos
muito ligeiramente. O que impressiona Deleuze como curioso é que em todos os textos nos
quais Nietzsche fustiga o povo judeu, o que é que ele reprova neles, e o que contribuiu para
sua fama de anti-semita? Nietzsche reprova-os, sob condições bem específicas, por terem
inventado um personagem que nunca existiu antes deles, o personagem do padre. Deleuze
argumenta que, tanto quanto ele saiba, em nenhum texto de Nietzsche existe a mínima
referência aos judeus em um ataque generalizado, mas, estritamente, um ataque contra o
povo judeu inventor do padre. Deleuze diz que Nietzsche enfatiza que em outras formações
sociais pode haver feiticeiros, escribas, mas não são a mesma coisa que os padres.
Deleuze sustenta que uma das fontes da grandeza de Nietzsche como filósofo é que ele
nunca deixa de admirar aquilo que ele ataca, pois ele vê o padre como uma invenção
verdadeiramente incrível, algo muito impressionante. E isso resulta em uma imediata
conexão com os cristãos, mas não o mesmo tipo de padre. Assim, os cristãos conceberão
um outro tipo de padre e continuarão na mesma trajetória do personagem clerical. Isso
mostra, argumenta Deleuze, a extensão na qual a filosofia é concreta, pois Deleuze insiste
que Nietzsche é, tanto quanto ele saiba, o primeiro filósofo a ter inventado, criado, o
conceito do padre, e desse ponto em diante, de ter colocado problemas fundamentais: em
que consiste um poder sincero, total, etc.; qual é a diferença entre um poder sincero, total e
um poder roial, etc.? Para Deleuze, essas são questões que continuam completamente
atuais. Aqui, Deleuze quer mostrar, como ele começou a fazer antes, como podemos
continuar e ampliar a filosofia. Ele refere-se à maneira como Foucault, utilizando seus
33
próprios meios, enfatizou o poder pastoral, um novo conceito que não é o mesmo de
Nietzsche, mas que se liga diretamente com Nietzsche, e dessa forma, desenvolvemos uma
história do pensamento.
Assim, o que é o conceito de padre e como está ligado à tristeza?, pergunta Deleuze. De
acordo com Nietzsche, esse padre é definido como o que inventou a idéia de que os homens
existem em um estado de dívida infinita. Antes do padre, há a história da dívida, e os
etnólogos fariam bem em ler Nietzsche. Eles fizeram pesquisaram muito isso durante o
nosso século, nas assim chamadas sociedades primitivas, onde as coisas funcionavam por
meio de pedaços de dívida, blocos de dívida finita, eles os recebiam e os davam de volta,
todos ligados ao tempo, pacotes adiados. Esta é uma grande área de estudo, diz Deleuze,
uma vez que sugere que a dívida era fundamental à troca. Esses são problemas
propriamente filosóficos, argumenta Deleuze, mas Nietzsche falou sobre isso muito antes
dos etnólogos. Na medida em que a dívida existe em um regime finito, o homem pode
libertar-se dela. Quando o padre judeu invoca esta idéia em virtude de uma aliança de
dívida infinita entre o povo judeu e Deus, quando os cristãos adotam isso sob uma outra
forma, a idéia de dívida infinita ligada ao pecado original, isso revela o personagem muito
curioso do padre, sendo responsabilidade da filosofia criar o seu conceito. Deleuze toma
cuidado em dizer que ele não afirma que a filosofia é necessariamente atéia, mas no caso de
Espinosa, ele já tinha esboçado uma análise do padre judeu, no Tratado teológico-político.
Ocorre, diz Deleuze, que os conceitos filosóficos são verdadeiros personagens que tornam a
filosofia concreta [Deleuze está obviamente desenvolvendo, aqui, o conceito de “personas
conceituais” que ele e Guattari propuseram em O que é filosofia?]. Criar o conceito do
padre é como um artista criando uma pintura do padre.
Assim, o conceito de padre buscado por Espinosa, e depois por Nietzsche, e depois ainda
por Foucault, forma uma linhagem fascinante. Deleuze diz que ele gostaria, ele próprio, de
fazer uma conexão com esse conceito, para refletir um pouco sobre esse poder pastoral, que
algumas pessoas dizem que não funciona mais. Mas, com Deleuze insiste, teríamos que ver
como ele foi utilizado outra vez, por exemplo, pela psicanálise como o novo avatar do
poder pastoral. E como o definimos? Não é a mesma coisa que tiranos e padres, mas eles ao
menos têm em comum que eles derivam seu podeer das paixões tristes que inspiram nos
homens, do tipo: arrependam-se em nome da dívida infinita, vocês são os objetos de uma
dívida infinita, etc. É por meio disso que eles têm poder, é por meio disso que seu poder é
um obstáculo que bloqueia a efetivação de potências. Embora Deleuze argumente que o
poder é triste, mesmo aqueles que o têm pareçam regojizar-se em tê-lo, mas trata-se de uma
alegria triste.
Por outro lado, Deleuze continua, a alegria é a efetivação de potências. Ele diz que ele não
conhece qualquer potência que seja má. Regozijar-se é alegrar-se em ser o que se é, isto é,
em ter chegado onde se está. Não é auto-satisfação, não é nenhum gozo de estar satisfeito
34
consigo mesmo. Em vez disso, é o prazer na conquista, como disse Nietzsche, mas a
conquista não é a conquista de submeter as pessoas, mas a conquista é quando os pintores
utilizam e então conquistam as cores. É isso que é a alegria, mesmo quando dá errado. Pois,
na história das potências e da conquista das potências, ocorre que se pode efetivar potências
demasiadas para o próprio eu, fazendo com que se entre em surto, como no caso de Van
Gogh.
[Mudança de cenário; a entrevista continua no dia seguinte]
Parnet diz que Deleuze tem tido sorte em escapar da dívida infinita. Assim, como se explica
que ele se queixe da manhã à noite, e que ele seja o grande advogado da queixa e da elegia?
Sorrindo enquanto Parnet diz isso, Deleuze observa que se trata de uma questão pessoal.
Ele então diz que a elegia é uma fonte importante de poesia, uma grande queixa. Dever-seia fazer uma história da elegia, provavelmente já foi feita; a queixa do profeta, ele continua,
é o contrário do padre. O profeta lamenta-se, por que Deus escolheu a mim?, o que está me
acontecendo é demais para mim; se aceitamos que isso seja a queixa, algo que não vemos
todo dia. E não é, ai, ai, ai, estou com dor, embora também possa ser isso, diz Deleuze, mas
a pessoa que está se queixando nem sempre sabe o que ela quer dizer. A senhora de idade
que se queixa sobre seu reumatismo, o que ela quer dizer é, que força está tomando conta
de minha perna e que é demasiado grande para que eu possa suportar?
Se examinamos a história, diz Deleuze, a elegia é uma fonte de poesia, poetas latinos como
Catulo ou Tibério. E o que é a elegia? É a expressão de quem, temporariamente ou não, não
tem mais um status social. Queixar-se – um velhinho, alguém na prisão – não é, de forma
alguma, a tristeza, mas algo bastante diferente, a demanda, algo na queixa que é
impressionante, uma adoração, como uma prece. A queixa dos profetas, ou algo em que
Parnet está particularmente interessada, a queixa dos hipocondríacos. A intensidade de sua
queixa é bela, é sublime, diz Deleuze. Assim, ele continua, é o socialmente excluído que
está em uma situação de queixa. Há um especialista húngaro, Tökei, que estudou a elegia
chinesa, que é revigorada por aqueles que não têm mais um status social, isto é, os escravos
libertados. Um escravo, por mais desafortunado que possa ser, ainda tem um status social.
O escravo libertado, entretanto, está fora de tudo, como na libertação dos negros
americanos, com a abolição da escravidão ou, na Rússia, quando não se previa qualquer
estatuto para os servos libertados. Assim, eles se encontram excluídos de qualquer
comunidade [Deleuze e Guattari referem-se a Tökei neste mesmo contexto em Mil platôs].
Nasce, então, a grande queixa. Entretanto, a grande queixa não expressa a dor que eles têm,
argumenta Deleuze, mas uma espécie de canto. É por isso que a queixa é uma grande fonte
de poesia.
35
Deleuze diz [com uma risada de Parnet, como resposta], que se ele não tivesse sido um
filósofo e se ele tivesse sido uma mulher, ele queria ter sido uma chorona, a queixa surge e
é uma arte. E a queixa tem também este lado perverso, como se dissesse: não assuma minha
queixa, não me toque, não tenha pena de mim, eu estou tomando conta disso. E ao tomar
conta disso, sozinho, a queixa se transforma: o que está acontecendo é demasiadamente
esmagador para mim, porque isto é alegria, alegria em estado puro. Mas tomamos cuidado
em ocultá-la, diz Deleuze, porque há pessoas que não ficam muito contentes com alguém
que esteja alegre, assim, temos que ocultá-la em alguma forma de queixa. Mas a queixa não
é apenas alegria, é também desconforto, porque, na verdade, efetivar uma potência pode ter
um custo: a gente se pergunta, vou arriscar minha pele? Assim que alguém efetiva uma
potência, por exemplo, um pintor chegando a uma cor, não está arriscando sua pele?
Literalmente, devemos pensar na forma como Van Gogh foi em direção à cor, depois viveu
a alegria, e isso está mais ligado à sua loucura que todas essas histórias psicanalíticas. Algo
arrisca ser quebrado, é demasiadamente esmagador para mim, é isso que a queixa é, algo
demasiadamente grande para mim, na infelicidade ou na alegria, mas geralmente na
infelicidade.
INÍCIOSPAÇO K de KantESPAALFABETO
Parnet começa afirmando que, de todos os filósofos sobre os quais Deleuze tem escrito,
Kant parece o mais distante de seu próprio pensamento. Entretanto, Deleuze tem dito que
todos os autores que ele estudou têm algo em comum. Existiria, assim, pergunta ela, algo
em comum entre Kant e Espinosa que não seja de todo óbvio?
Deleuze faz uma pausa e então diz que ele preferiria, se ele puder ter essa ousadia, tratar da
primeira parte da questão, isto é, por que ele tratou de Kant, .............................Assim,
pergunta Deleuze, por que ele se fascinou com Kant? Por duas razões: 1. Kant representou
uma grande virada, e 2. Kant foi tão longe quanto possível, iniciando algo que nunca tinha
sido formulado em filosofia. Especificamente, diz Deleuze, ele erige tribunais, talvez sob a
influência da Revolução Francesa.
Deleuze lembra a Parnet que até agora ele tentou falar sobre os conceitos como
personagens. Assim, antes de Kant, no século XVIII, há um novo tipo de filósofo
apresentado como um investigador (enquêteur), a investigação, aparecem títulos com
“Investigação” sobre isso ou aquilo. O próprio filósofo via-se como um investigador.
Mesmo no século XVII, e Leibniz é o último a representar essa tendência, ele via-se como
um advogado, defendendo uma causa, e a maior coisa é que Leibniz tinha a pretensão de
ser o advogado de Deus. Como deve ter havido, na época, coisas em relação às quais Deus
podia ser reprovado, Leibniz escreve um pequeno e maravilhoso trabalho “A causa de
36
Deus”, no sentido jurídico de causa, a causa de Deus a ser defendida. É como uma
seqüência de personagens: o advogado, o investigador, e então, com Kant, a chegada de um
tribunal, um tribunal da razão, coisas sendo julgadas como função de um tribunal da razão.
E as faculdades, no sentido de compreensão – a imaginação, o conhecimento, a moralidade
– são medidas em função do tribunal da razão. Obviamente, ele utiliza um certo método
que ele inventou, um método prodigioso chamado o método crítico, o método propriamente
kantiano.
Deleuze admite que ele acha todo esse lado de Kant bastante horrível, mas é tanto
fascinação quanto horror, porque é tão engenhoso. E ao interagir com os conceitos que
Kant inventou, Deleuze considera o conceito do tribunal da razão como inseparável do
método crítico. Mas, em última instância, diz Deleuze, trata-se de um tribunal de
julgamento, o sistema de julgamento, apenas que não se precisa mais de Deus, que se
baseia agora na razão, não mais em Deus.
Em uma observação lateral, Deleuze diz que se poderia ficar curioso sobre algo que ele
acha misterioso – por que alguém, você ou eu, acaba se conectando ou se relacionando
especialmente com uma espécie de problema e não com outro? Em que consiste a afinidade
de alguém por um tipo particular de problema? É possível que estejamos destinados a um
certo problema uma vez que nós não simplesmente não pegamos qualquer problema. E isso
é verdadeiro, sente Deleuze, para os pesquisadores nas ciências, uma afinidade por um
problema particular. E a filosofia é um agregado de problemas, com sua própria
consistência, mas, felizmente, ela não tem a pretensão de lidar com todos os problemas,
recita Deleuze. Bem, ele se sente de alguma forma ligado a problemas que tenham como
objetivo buscar os meios para se livrar do sistema de juízes, e substituí-lo por alguma outra
coisa. Trata-se um grande “não”... Deleuze pensa sobre o que Parnet havia dito
anteriormente e diz, de fato, Kant é um outro acréscimo. Deleuze vê Espinosa, vê
Nietzsche, na literatura, D. H. Lawrence e, finalmente, o mais recente e um dos maiores
escritores, Artaud, seu “Pour en finir avec le jugement de dieu”, que tem sentido, não são as
palavras de um louco, temos que tomar isso de forma literal, argumenta Deleuze. [Ver
“Para dar um fim ao juízo”, em Gilles Deleuze. Crítica e clínica, Rio, Editora 34, pp. 143153].
E por baixo, quando Deleuze diz que temos que olhar por baixo dos conceitos, há algumas
afirmações de Kant que são surpreendentes, maravilhosas. Deleuze diz que ele foi o
primeiro a ter criado a surpreendente inversão de conceitos, e é por isso que Deleuze fica
tão triste quando se ensina as pessoas, até mesmo os jovens que estão preparando seu
baccalaureate, de uma forma abstrata, sem nem mesmo tentar fazê-las participar de
problemas que são problemas bem fantásticos. Deleuze insiste na afirmação de que, até
Kant, por exemplo, o tempo era derivado do movimento, era secundário em relação ao
movimento, era tido como um número ou uma medida do movimento. O que faz Kant? Em
37
um parênteses, Deleuze lembra a Parnet que tudo o que ele está fazendo aqui é
constantemente considerar o que significa criar um conceito. Continuando, ele diz que Kant
cria um conceito porque ele inverte a subordinação, de forma que com ele, o movimento
depende do tempo. E repentinamente, o tempo muda sua natureza, deixa de ser circular.
Antes, o tempo era subordinado ao movimento, no qual o movimento era o grande
movimento periódico dos corpos celestiais, de forma que ele é circular. Ao contrário,
quando o tempo se liberta do movimento e o movimento passa a depender do tempo, o
tempo torna-se uma linha reta. Deleuze lembra algo que Borges disse – embora ele tenha
pouca relação com Kant –, que uma labirinto mais assustador que um labirinto circular é
um labirinto em linha reta, maravilhoso, mas foi Kant que libertou o tempo.
E essa estória do tribunal, sustenta Deleuze, medindo o papel de cada faculdade como uma
função de um objetivo particular, é com isso que Kant colide no final de sua vida, na
medida em que ele é um dos raros filósofos a escrever um livro como um velho que
renovaria tudo, a Crítica do Juízo. Ele chega à idéa de que as faculdades têm que ter
relações desordenadas entre si, que elas colidem entre si, e então reconcilia, mas não mais
sujeito a um tribunal. Ele introduz essa concepção do “Sublime”, na qual as faculdades
entram em conflitos, de forma que haveria acordos discordantes. O labirinto e sua inversão
das relações agradam-no muitíssimo, diz ele: toda a filosofia moderna sai desse ponto, o
tempo e sua inversão em relação ao movimento, e a concepção kantiana de Sublime, com
os acordos discordantes. Deleuze é imensamente tocado por essas coisas. Kant é claramente
um grande filósofo, sustenta Deleuze, e há toda uma sustentação em seus trabalhos que faz
Deleuze se entusiasmar muito. E tudo que está construído em cima disso não tem nenhum
interesse para ele, mas ele diz que não julga isso, simplesmente trata-se de um sistema do
qual ele gostaria de se ver livre, mas sem nenhum julgamento de sua parte.
Parnet tenta perguntar a Deleuze (enquanto a fita acaba) sobre a vida de Kant, e Deleuze
exclama: “nós não discutimos isto antecipadamente!”. Assim, Parnet faz uma outra
pergunta: existe um aspecto no trabalho de Kant que também pode agradar muito a
Deleuze, o aspecto que Thomas de Quincey discutiu [em The Last Days of Immanuel
Kant], essa vida fantasticamente regulada, cheia de hábitos, sua caminhada diária, a
imagem quase mística de um filósofo. Parnet diz que essa imagem também se aplica a
Deleuze, isto é, algo bastante regulado, com um enorme número de hábitos...
Deleuze sorri outra vez, diz que ele percebe o que ela quer dizer, e o texto de De Quincey é
um texto que ele acha interessantíssimo, um verdadeira obra de arte. Mas ele vê esse
aspecto como pertencendo a todos os filósofos, não os mesmos hábitos, mas dizer que eles
são criaturas de hábitos parece sugerir que eles não têm qualquer familiaridade com...
[Deleuze não completa o pensamento]. Sendo criaturas de hábito é quase algo que se exige
deles... Espinosa também... Deleuze diz que sua impressão de Espinosa é que não existe
muita coisa de surpreendente em sua vida, ele polia lentes, recebia visitas, não era uma vida
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muito agitada, exceto por algumas perturbações políticas da época. Kant também viveu
algumas em meio a algumas perturbações políticas muito intensas. Assim, tudo o que as
pessoas dizem sobre os aparatos de vestir de Kant (os aparatos para puxar suas meias, etc.),
Deleuze vê como uma espécie de charme, na medida em que se precisa desse tipo de coisa.
Mas, é um pouco como Nietzsche disse, os filósofos são em geral castos, pobres, e
Nietzsche acrescenta, que uso faz o filósofo disso tudo, dessa castidade, dessa pobreza,
etc.? Kant tinha sua pequena caminhada, mas isso não é nada em si, é o que Deleuze sente:
o que acontecia durante sua pequena caminhada, para que ele estava olhando? No longo
prazo, diz Deleuze, o fato de que os filósofos sejam criaturas de hábito corresponde a uma
espécie de contemplação, contemplar algo. Quanto aos seus próprios hábitos, sim, ele tem
uns tantos, mas são uma espécie de contemplação, e de coisas que só ele vê.
INÍCIOSPAÇOL de Literatura ESPAALFABETO
Parnet inicia observando que a literatura e a filosofia constituem a vida de Deleuze, que ele
lê e relê a “grande literatura”, e trata os escritores da grande literatura como pensadores.
Entre seus livros sobre Kant e Nietzsche, ele escreveu Proust e os signos e
subseqüentemente publicou três versões aumentadas do livro. Ele escreveu sobre Carrol e
Zola em Lógica do sentido, sobre Masoch, Kafka, sobre as literaturas ingelsa e americana.
Tem-se a impressão, diz ela, de que é mais por meio da literatura que por meio da história
do pensamento que ele inaugura um novo tipo de pensamento. Assim, pergunta ela,
Deleuze foi sempre um leitor?
Deleuze diz, sim, embora em determinado momento ele tivesse sido muito mais um leitor
ativo de filosofia uma vez que isso era parte de seu aprendizado, e ele não tinha tempo para
romances. Mas ao longo de sua vida, ele leu, e mais e mais. Ele mesmo pergunta: ele faz
uso disso para a filosofia? Sim, certamente, por exemplo, ele indica que ele deve muito a
Fitzgerald, e a Faulkner também, e embora em geral não considerado um escritor filosófico.
[Deleuze indica aqui que ele não lembra quais escritores são importantes para ele.]
Deleuze continua, dizendo que sua leitura literária pode ser explicada em função do que
eles discutiram antes, a história do conceito nunca está sozinha: ao mesmo tempo que
persegue sua tarefa, ele nos faz ver coisas, isto é, há uma interconexão entre perceptos.
Sempre que encontramos perceptos em um romance, há uma comunicação perpétua entre
conceitos e perceptos. Há também problemas estilísticos que são os mesmos em filosofia e
literatura. Deleuze sugere colocar a questão em termos bastante simples: os grandes
personagens literários são grandes pensadores. Ele relê muito Melville, e acha que o
Capitão Ahab é um grande pensador, Bartleby também, à sua própria maneira. Eles o fazem
pensar de uma forma que uma obra literária traça uma trilha de conceitos intermitentes (en
pointillé) da mesma forma que o faz com perceptos. De forma bastante simples, argumenta
ele, não é a tarefa do escritor literário, que não pode fazer tudo ao mesmo tempo, ele/ela
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está preso nos problemas de perceptos e de criar visões (faire voir), causando percepções
(faire percevoir), e criando personagens, uma tarefa assustadora. E um filósofo cria
conceitos, mas ocorre que eles se comunicam muito, uma vez que, sob certos aspectos, o
conceito é um personagem, e o personagem assume dimensões do conceito.
O que Deleuze encontra de comum entre a “grande literatura” e a “grande filosofia” é que
ambas testemunham em favor da vida, aquilo que ele chamou de “força” anteriormente
testemunha em favor da vida. É por isso que grandes autores nem sempre tem boa saúde.
Algumas vezes, há casos como o de Victor Hugo, em que eles têm boa saude, assim não se
deve dizer que nenhum escritor goza de boa saúde uma vez que muitos gozam. Mas por
que, pergunta Deleuze, há tantos escritores literários que não gozam de boa saúde? É
porque ele/ela vive um torrente de vida (flot de vie), seja a saúde fraca de Espinosa ou de
Lawrence. Isso corresponde ao que Deleuze disse anteriormente sobre a queixa: esses
escritores viram algo demasiado grande para eles, eles são visionários, incapazes de lidar
com isso, então isso os arrasa. Por que Checkov se torna tão arrasado? Ele “viu” algo. Os
filósofos e os escritores literários estão na mesma situação, argumenta Deleuze. Há coisas
que conseguimos ver e, de alguma forma, nunca nos recuperamos, nunca retornamos. Isso
ocorre freqüentemente com autores, mas em geral, trata-se de perceptos à beira de serem
inapreensíveis, de serem pensáveis. Assim, entre a criação de um grande personagem e um
grande conceito, existem tantas ligações que podemos considerá-los como constituindo, de
alguma forma, o mesmo empreendimento.
Parnet pergunta se Deleuze se considera um escritor de filosofia, como se diria de um
escritor no sentido literário. Deleuze responde que ele não sabe se ele é um escritor de
filosofia, mas que ele sabe que todo grande filósofo é um grande escritor. Parnet observa
que parece haver uma nostalgia por criar uma obra de ficção quando se é um grande
filósofo, mas Deleuze diz, não, que isso nem sequer surge como questão, que é como se
perguntássemos a um pintor por que ele não faz música. Deleuze admite que se pode pensar
em um filósofo que tivesse escrito novelas, é óbvio, por que não? Deleuze diz que ele não
acha que Sartre tenha sido um romancista, embora ele tivesse tentado sê-lo e, em geral,
Deleuze realmente não vê grandes filósofos que tivessem sido também importante
romancistas. Mas por outro lado, Deleuze sente que os filósofos criaram personagens,
notavel e eminentemente Platão, e certamente Nietzsche, com Zaratustra. Assim, essas são
intersecções que são discutidas constantemente, e Deleuze considera a criação de Zaratustra
um grande êxito, política e literariamente, assim o foram os personagens de Platão. Esses
são momentos sobre os quais não se pode estar completamente seguro se se trata de
conceitos ou de personagens, e são talvez os mais momentos mais belos.
Parnet refere-se ao amor de Deleuze por autores literários secundários, como Villiers de
l’Isle-Adam, Restif de la Bretonne, perguntando se ele sempre cultivou essa afeição. Aqui,
Deleuze cobre seu rosto com uma mão enquanto responde que acha verdadeiramente
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estranho ouvir Villiers ser mencionado como autor secundário [Deleuze dá uma risada]. Se
você considera esta questão... [ele faz uma pausa, balançando os ombros]. Ele diz que há
algo realmente vergonhoso, totalmente vergonhoso... Ele lembra que quando ele era muito
jovem, ele gostava da idéia de ler o trabalho de um autor em sua totalidade, as obras
completas. Como conseqüência, ele tinha grande afeição não por autores secundários,
embora sua afeição às vezes coincidisse com eles, mas por autores que tinham escrito
pouco. Algumas obras eram enormes, avassaladoras para le, como a de Victor Hugo, de
forma que Deleuze estava prestes a dizer que Hugo não era um escritor muito bom. Por
outro lado, Deleuze conhecia as obras de Paul-Louis Courrier quase de cor, muito
profundamente. Assim, Deleuze admite ter uma queda pelos assim chamados autores
secundários, embora Villiers não seja um autor secundário. Joubert era também um autor
que ele conhecia profundamente, e uma razão pela qual ele conhecia esses autores era por
uma razão bastante vergonhosa, ele admite: dava-lhe um certo prestígio estar familiarizado
com autores que eram pouco conhecidos... Mas era uma espécie de mania, conclui Deleuze,
e custou-lhe um certo tempo aprender quão grande era Victor Hugo, e o tamanho de sua
obra não constituía nenhuma medida.
Deleuze continua de seu jeito, concordando que nas assim chamadas literaturas
secundárias... Ele insiste no fato de que a literatura russa, por exemplo, não está limitada a
Dostoieveski e a Tolstoi, mas não se pode chamar [Nikolai] Leskov de secundário na
medida em que há tanta coisa de admirável em Leskov. Assim, trata-se de grandes gênios.
Deleuze diz então que ele sente que tem pouco a dizer sobre isso, sobre autores
secundários, mas sobre o que ele está feliz é em ter tentado encontrar em qualquer autor
desconhecido algo que poderia lhe mostrar um conceito ou um personagem extraordinário.
Mas, sim, diz Deleuze, ele não se envolveu em nenhuma pesquisa sistemática [nesse
domínio].
Parnet persegue essa questão, ao se referir outra vez ao trabalho de Deleuze sobre Proust
como o único trabalho considerável que ele jamais dedicou a um único autor, embora a
literatura seja uma grande referência em sua filosofia. Assim, ele pergunta sobre o fato de
ele nunca ter devotada um livro inteiro à literatura, um livro de pensamento sobre a
literatura. Deleuze diz que ele simplesmente não teve tempo, mas que ele planeja fazê-lo.
Parnet diz que isso o tem assombrado e ele responde que ele planeja fazê-lo porque ele o
quer. Parnet pergunta se será um livro de crítica, e Deleuze diz que em vez disso, será sobre
o problema do que, para ele, significa escrever em literatura. Ele diz que Parnet está
familiarizada com todo o seu programa de pesquisa, assim ele verá se tem tempo.
A última questão na letra L refere-se ao fato de que embora Deleuze leia muitos e grandes
(canônicos) autores, tem-se a impressão de que ele lê muitos autores contemporâneos.
Deleuze diz que compreende o que ela quer dizer, e pode responder rapidamente: não é que
não goste de lê-los, é que a literatura é uma atividade verdadeiramente especializada na
41
qual se tem de ter uma formação, algo difícil na produção contemporânea. É uma questão
de gosto, exatamente da forma como as pessoas encontram novos pintores; tem-se que
aprender como [pintar]. Deleuze diz que ele admira muito pessoas que vão às galerias e
sentem que existe alguém que é verdadeiramente um pintor, mas ele não pode fazer isso e
ele explica por que: custou-lhe cinco anos, ele diz, para entender – não Beckett, que
aconteceu imediatamente – mas que tipo de inovação a escrita de Robbe-Grillet
representou. Deleuze afirma ter sido uma das coisas mais estúpidas quando falou sobre
Robbe-Grillet no início. Deleuze não se considera um descobridor nessa área, enquanto que
em filosofia, ele se sente mais confiante porque ele é sensível a um novo tom e, por outro
lado, àquilo que é completamente nulo ou redundante. No domínio do romance, Deleuze
diz que é bastante sensível, o suficiente para saber o que já foi dito e que não tem interesse
algum. Ele fez, de fato, uma descoberta, do seu próprio jeito, alguém que ele julgava ser um
grande romancista, Armand Farachi. [Em “Introdução: Rizoma”, em Mil Platôs, Deleuze e
Guattari referem-se ao livro de Farachi, La dislocation, com um exemplo, entre vários
outros, de um modelo de escrita nomádica e rizomática].
Assim, a questão que Parnet levanta, diz Deleuze, é bastante razoável, mas ele argumenta
que não se deve crer que, sem experiência, se pode julgar o que está sendo criado. O que
Deleuze prefere e o que lhe traz grande alegria é quando algo que ele mesmo está criando
tem um eco em um jovem pintor ou no trabalho de um jovem escritor. Dessa forma,
Deleuze sente que ele pode ter um tipo de encontro com o que está acontecendo atualmente,
com outro modo de criação. Deleuze diz que sua insuficiência quanto a julgamentos é
compensada por esses encontros com pessoas que estão em ressonância com o que ele está
fazendo, e vice-versa.
Parnet diz que a pintura e o cinema, por exemplo, são favoráveis a esses encontros, uma
vez que ele vai a galerias e a cinemas, mas que ela tem dificuldade em imaginá-lo vagando
em uma livraria e examinando livros que saíram nos últimos meses. Deleuze diz que ela
está certa, mas que isso está ligado á idéia de que a literatura não muito forte neste
momento, uma idéia que é uma idéia preconcebida em sua mente, que a literatura está tão
corrompida pelo sistema de distribuição, de prêmios literários, que nem vale mesmo a pena.
L de Literatura
Parnet inicia observando que a literatura e a filosofia constituem a vida de Deleuze, que ele
lê e relê a “grande literatura”, e trata os escritores da grande literatura como pensadores.
Entre seus livros sobre Kant e Nietzsche, ele escreveu Proust e os signos e
subseqüentemente publicou três versões aumentadas do livro. Ele escreveu sobre Carrol e
Zola em Lógica do sentido, sobre Masoch, Kafka, sobre as literaturas ingelsa e americana.
Tem-se a impressão, diz ela, de que é mais por meio da literatura que por meio da história
42
do pensamento que ele inaugura um novo tipo de pensamento. Assim, pergunta ela,
Deleuze foi sempre um leitor?
Deleuze diz, sim, embora em determinado momento ele tivesse sido muito mais um leitor
ativo de filosofia uma vez que isso era parte de seu aprendizado, e ele não tinha tempo para
romances. Mas ao longo de sua vida, ele leu, e mais e mais. Ele mesmo pergunta: ele faz
uso disso para a filosofia? Sim, certamente, por exemplo, ele indica que ele deve muito a
Fitzgerald, e a Faulkner também, e embora em geral não considerado um escritor filosófico.
[Deleuze indica aqui que ele não lembra quais escritores são importantes para ele.]
Deleuze continua, dizendo que sua leitura literária pode ser explicada em função do que
eles discutiram antes, a história do conceito nunca está sozinha: ao mesmo tempo que
persegue sua tarefa, ele nos faz ver coisas, isto é, há uma interconexão entre perceptos.
Sempre que encontramos perceptos em um romance, há uma comunicação perpétua entre
conceitos e perceptos. Há também problemas estilísticos que são os mesmos em filosofia e
literatura. Deleuze sugere colocar a questão em termos bastante simples: os grandes
personagens literários são grandes pensadores. Ele relê muito Melville, e acha que o
Capitão Ahab é um grande pensador, Bartleby também, à sua própria maneira. Eles o fazem
pensar de uma forma que uma obra literária traça uma trilha de conceitos intermitentes (en
pointillé) da mesma forma que o faz com perceptos. De forma bastante simples, argumenta
ele, não é a tarefa do escritor literário, que não pode fazer tudo ao mesmo tempo, ele/ela
está preso nos problemas de perceptos e de criar visões (faire voir), causando percepções
(faire percevoir), e criando personagens, uma tarefa assustadora. E um filósofo cria
conceitos, mas ocorre que eles se comunicam muito, uma vez que, sob certos aspectos, o
conceito é um personagem, e o personagem assume dimensões do conceito.
O que Deleuze encontra de comum entre a “grande literatura” e a “grande filosofia” é que
ambas testemunham em favor da vida, aquilo que ele chamou de “força” anteriormente
testemunha em favor da vida. É por isso que grandes autores nem sempre tem boa saúde.
Algumas vezes, há casos como o de Victor Hugo, em que eles têm boa saude, assim não se
deve dizer que nenhum escritor goza de boa saúde uma vez que muitos gozam. Mas por
que, pergunta Deleuze, há tantos escritores literários que não gozam de boa saúde? É
porque ele/ela vive um torrente de vida (flot de vie), seja a saúde fraca de Espinosa ou de
Lawrence. Isso corresponde ao que Deleuze disse anteriormente sobre a queixa: esses
escritores viram algo demasiado grande para eles, eles são visionários, incapazes de lidar
com isso, então isso os arrasa. Por que Checkov se torna tão arrasado? Ele “viu” algo. Os
filósofos e os escritores literários estão na mesma situação, argumenta Deleuze. Há coisas
que conseguimos ver e, de alguma forma, nunca nos recuperamos, nunca retornamos. Isso
ocorre freqüentemente com autores, mas em geral, trata-se de perceptos à beira de serem
inapreensíveis, de serem pensáveis. Assim, entre a criação de um grande personagem e um
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grande conceito, existem tantas ligações que podemos considerá-los como constituindo, de
alguma forma, o mesmo empreendimento.
Parnet pergunta se Deleuze se considera um escritor de filosofia, como se diria de um
escritor no sentido literário. Deleuze responde que ele não sabe se ele é um escritor de
filosofia, mas que ele sabe que todo grande filósofo é um grande escritor. Parnet observa
que parece haver uma nostalgia por criar uma obra de ficção quando se é um grande
filósofo, mas Deleuze diz, não, que isso nem sequer surge como questão, que é como se
perguntássemos a um pintor por que ele não faz música. Deleuze admite que se pode pensar
em um filósofo que tivesse escrito novelas, é óbvio, por que não? Deleuze diz que ele não
acha que Sartre tenha sido um romancista, embora ele tivesse tentado sê-lo e, em geral,
Deleuze realmente não vê grandes filósofos que tivessem sido também importante
romancistas. Mas por outro lado, Deleuze sente que os filósofos criaram personagens,
notavel e eminentemente Platão, e certamente Nietzsche, com Zaratustra. Assim, essas são
intersecções que são discutidas constantemente, e Deleuze considera a criação de Zaratustra
um grande êxito, política e literariamente, assim o foram os personagens de Platão. Esses
são momentos sobre os quais não se pode estar completamente seguro se se trata de
conceitos ou de personagens, e são talvez os mais momentos mais belos.
Parnet refere-se ao amor de Deleuze por autores literários secundários, como Villiers de
l’Isle-Adam, Restif de la Bretonne, perguntando se ele sempre cultivou essa afeição. Aqui,
Deleuze cobre seu rosto com uma mão enquanto responde que acha verdadeiramente
estranho ouvir Villiers ser mencionado como autor secundário [Deleuze dá uma risada]. Se
você considera esta questão... [ele faz uma pausa, balançando os ombros]. Ele diz que há
algo realmente vergonhoso, totalmente vergonhoso... Ele lembra que quando ele era muito
jovem, ele gostava da idéia de ler o trabalho de um autor em sua totalidade, as obras
completas. Como conseqüência, ele tinha grande afeição não por autores secundários,
embora sua afeição às vezes coincidisse com eles, mas por autores que tinham escrito
pouco. Algumas obras eram enormes, avassaladoras para le, como a de Victor Hugo, de
forma que Deleuze estava prestes a dizer que Hugo não era um escritor muito bom. Por
outro lado, Deleuze conhecia as obras de Paul-Louis Courrier quase de cor, muito
profundamente. Assim, Deleuze admite ter uma queda pelos assim chamados autores
secundários, embora Villiers não seja um autor secundário. Joubert era também um autor
que ele conhecia profundamente, e uma razão pela qual ele conhecia esses autores era por
uma razão bastante vergonhosa, ele admite: dava-lhe um certo prestígio estar familiarizado
com autores que eram pouco conhecidos... Mas era uma espécie de mania, conclui Deleuze,
e custou-lhe um certo tempo aprender quão grande era Victor Hugo, e o tamanho de sua
obra não constituía nenhuma medida.
Deleuze continua de seu jeito, concordando que nas assim chamadas literaturas
secundárias... Ele insiste no fato de que a literatura russa, por exemplo, não está limitada a
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Dostoieveski e a Tolstoi, mas não se pode chamar [Nikolai] Leskov de secundário na
medida em que há tanta coisa de admirável em Leskov. Assim, trata-se de grandes gênios.
Deleuze diz então que ele sente que tem pouco a dizer sobre isso, sobre autores
secundários, mas sobre o que ele está feliz é em ter tentado encontrar em qualquer autor
desconhecido algo que poderia lhe mostrar um conceito ou um personagem extraordinário.
Mas, sim, diz Deleuze, ele não se envolveu em nenhuma pesquisa sistemática [nesse
domínio].
Parnet persegue essa questão, ao se referir outra vez ao trabalho de Deleuze sobre Proust
como o único trabalho considerável que ele jamais dedicou a um único autor, embora a
literatura seja uma grande referência em sua filosofia. Assim, ele pergunta sobre o fato de
ele nunca ter devotada um livro inteiro à literatura, um livro de pensamento sobre a
literatura. Deleuze diz que ele simplesmente não teve tempo, mas que ele planeja fazê-lo.
Parnet diz que isso o tem assombrado e ele responde que ele planeja fazê-lo porque ele o
quer. Parnet pergunta se será um livro de crítica, e Deleuze diz que em vez disso, será sobre
o problema do que, para ele, significa escrever em literatura. Ele diz que Parnet está
familiarizada com todo o seu programa de pesquisa, assim ele verá se tem tempo.
A última questão na letra L refere-se ao fato de que embora Deleuze leia muitos e grandes
(canônicos) autores, tem-se a impressão de que ele lê muitos autores contemporâneos.
Deleuze diz que compreende o que ela quer dizer, e pode responder rapidamente: não é que
não goste de lê-los, é que a literatura é uma atividade verdadeiramente especializada na
qual se tem de ter uma formação, algo difícil na produção contemporânea. É uma questão
de gosto, exatamente da forma como as pessoas encontram novos pintores; tem-se que
aprender como [pintar]. Deleuze diz que ele admira muito pessoas que vão às galerias e
sentem que existe alguém que é verdadeiramente um pintor, mas ele não pode fazer isso e
ele explica por que: custou-lhe cinco anos, ele diz, para entender – não Beckett, que
aconteceu imediatamente – mas que tipo de inovação a escrita de Robbe-Grillet
representou. Deleuze afirma ter sido uma das coisas mais estúpidas quando falou sobre
Robbe-Grillet no início. Deleuze não se considera um descobridor nessa área, enquanto que
em filosofia, ele se sente mais confiante porque ele é sensível a um novo tom e, por outro
lado, àquilo que é completamente nulo ou redundante. No domínio do romance, Deleuze
diz que é bastante sensível, o suficiente para saber o que já foi dito e que não tem interesse
algum. Ele fez, de fato, uma descoberta, do seu próprio jeito, alguém que ele julgava ser um
grande romancista, Armand Farachi. [Em “Introdução: Rizoma”, em Mil Platôs, Deleuze e
Guattari referem-se ao livro de Farachi, La dislocation, com um exemplo, entre vários
outros, de um modelo de escrita nomádica e rizomática].
Assim, a questão que Parnet levanta, diz Deleuze, é bastante razoável, mas ele argumenta
que não se deve crer que, sem experiência, se pode julgar o que está sendo criado. O que
Deleuze prefere e o que lhe traz grande alegria é quando algo que ele mesmo está criando
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tem um eco em um jovem pintor ou no trabalho de um jovem escritor. Dessa forma,
Deleuze sente que ele pode ter um tipo de encontro com o que está acontecendo atualmente,
com outro modo de criação. Deleuze diz que sua insuficiência quanto a julgamentos é
compensada por esses encontros com pessoas que estão em ressonância com o que ele está
fazendo, e vice-versa.
Parnet diz que a pintura e o cinema, por exemplo, são favoráveis a esses encontros, uma
vez que ele vai a galerias e a cinemas, mas que ela tem dificuldade em imaginá-lo vagando
em uma livraria e examinando livros que saíram nos últimos meses. Deleuze diz que ela
está certa, mas que isso está ligado á idéia de que a literatura não muito forte neste
momento, uma idéia que é uma idéia preconcebida em sua mente, que a literatura está tão
corrompida pelo sistema de distribuição, de prêmios literários, que nem vale mesmo a pena.
INÍCIOSPAÇOM de Maladie-Doença ESPAALFABETO
Enquanto Parnet anuncia este título, Deleuze repete suavemente a palavra maladie. Parnet
conta que imediamente depois de haver terminado de escrever Diferença e repetição, em
1968, Deleuze foi hospitalizado por causa de um caso sério de tuberculose. Assim,
precisamente no período, de 1968 em diante, em que estava se referindo ao fraco estado de
saúde de Espinosa e Nietzsche, Deleuze foi forçado a conviver com a doença. Ela pergunta
se ele sabia, antes, que ele tinha tuberculose.
Deleuze diz que ele sabia que tinha algo, mas tal como muitas pessoas, não tinha qualquer
desejo de descobrir, e também ele simplesmente supôs que fosse câncer, e ele não estava
com muita pressa de descobrir. Assim, ele não sabia que era tuberculose, não até que ele
tivesse começado a cuspir sangue. Ele diz que ele era filho de alguém com tuberculose, mas
que no momento de seu diagnóstico, não havia nenhum perigo real, graças aos antibióticos.
Era um caso sério e há alguns anos atrás ele não teria sobrevivido, enquanto que em 1968,
não era mais um problema. Trata-se de uma doença sem muita dor, e assim ele podia dizer
que estava doente, mas ele sustenta que era um grande privilégio, uma doença sem dor e
curável, quase que se podia dizer que não era uma doença. Antes disso, ele diz, sua saúde
não era assim tão boa, ele tornava-se facilmente cansado.
A questão, diz Deleuze, é a de saber se a doença tornou algo mais fácil, não
necessariamente mais bem sucedido, entretanto, especificamente um empreendimento de
pensamento, e Deleuze pensa que um estado de doença muito enfraquecido favorece isso.
Não é o caso de que se está sintonizado com sua própria vida, mas para ele, parecia que ele
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estava sintonizado com a vida. Sintonizar com a vida é diferente de pensar sobre a própria
saúde. Ele repete que ele acha que um estado frágil de saúde favorece esse tipo de
sintonização. Quando ele falava anteriormente sobre autores como Lawrence ou Espinosa,
em alguma medida eles viram algo imenso, tão avassalador que era demais para eles. Isso
realmente significa, diz Deleuze, que não podemos pensar se não estamos já em um
domínio que excede, em alguma medida, a nossa força, que nos torna frágeis. Ele repete
que ele sempre teve um estado frágil de saúde, e isso foi reforçado quando ele foi
diagnosticado como tendo tuberculose, momento no qual ele adquiriu todos os direitos
concedidos a um estado frágil de saúde.
Parnet observa que as relações de Deleuze com os médicos e com os remédios mudaram
desse momento em diante: ele teve que visitar médicos, tomar remédios regularmente, e
tratava-se de uma restrição imposta sobre ele, ainda mais que ele não gosta de médicos.
Deleuze diz, sim, embora não se trate de algo pessoal entre ele e os médicos; ele observa
que ele tem sido tratado por médicos muito charmasos, “deliciosos”. O que ele não gosta é
de um tipo de poder, ou uma forma pela qual eles manipulam o poder – aqui Deleuze
observa que, uma vez mais, eles voltam a questões discutidas anteriormente, como se
metade das letras já discutidas fossem englobadas e dobradas sobre a totalidade.
Deleuze afirma que ele acha odioso a forma como os médicos manipulam o opoder, e que
ele tem um grande ódio não por indivíduos, mas pelo poder médico e pela forma como os
médicos o utilizam. Há apenas uma coisa que o faz feliz, diz ele, por mais que o tenha
desagradado. Isso ocorre quando eles utilizam suas máquinas e o examinam. Ele considera
essas coisas como muito desagradáveis para um paciente uma vez que se trata de exames
que realmente parecem não ter qualquer utilidade a não ser a de fazer os médicos se
sentirem melhor sobre diagnósticos que eles já fizeram. Se eles têm tanto talento, diz
Deleuze, então esses médicos parecem fazer esses exames cruéis apenas se sentirem melhor
ao jogar com esses inadmissíveis exames. Assim, o que fazia Deleuze feliz era cada vez
que ele tinha ser testado por uma dessas máquinas – sua respiração era demasiadamente
inaudível para ser registrada por suas máquinas, ou eles incapazes de submetê-lo a um
exame cardíaco – eles ficavam furiosos com ele, eles odiavam esse pobre paciente, porque
eles podiam aceitar tão facilmente o fato de que seu diagnóstico podia estar errado, mas não
o fato de que suas máquinas não funcionassem com ele.
Além disso, Deleuze julga-os muito pouco cultivados, ou quando eles tentam ser
cultivados, os resultados são catastróficos. Eles são uma gente muito estranha, diz Deleuze,
mas seu consolo é que se eles ganham um monte de dinheiro, eles não têm tempo para
gastá-lo e se aproveitar disso porque eles têm uma vida muito dura. Assim, é verdade,
repete Deleuze, ele não acha os médicos muito atraentes, mas os indivíduos podem ser
muito bons e no entanto eles tratam as pessoas como cachorros em suas funções oficiais.
Assim, isso realmente revela a luta de classes porque uma pessoa um pouquinho rica é ao
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menos um pouco polida, menos quando fazendo cirurgia. Os cirurgiões são um caso
completamente à parte. Deleuze diz que é necessário algum tipo de reforma dos médicos.
Parnet pergunta se Deleuze toma remédios o tempo todo, e Deleuze diz, sim, ele gosta de
fazê-lo, não o incomoda exceto pelo fato de que eles tem a fatigá-lo. Parnet está surpresa
pelo fato de que Deleuze realmente gosta de tomar remédios, e Deleuze diz, sim, quando há
um monte! Em seu estado atual (em 1988), sua pequena pílula toda manhã é uma
verdadeira piada (bouffonnerie)! Mas ele também acha bastante útil. Deleuze diz que ele
sempre foi a favor dos remédios, mesmo no domínio da psiquiatria. [Deleuze esfrega seu
rosto e olhos com freqüência enquanto responde e escuta].
Parnet diz que com essa fadiga ligada à doença, pensamos em Blanchot escrevendo sobre a
fadiga e a amizade. Ela diz que a fadiga exerce um grande papel em sua vida, e algumas
vezes se tem a impressão que se trata de uma excusa para evitar um monte de coisas que o
chateiam/incomodam, e que a fadiga tem sempre sido útil. Deleuze diz que o fato de ser
afetado dessa forma, esse pensamento, remete ao tema da potência, isto é, o que significa
realizar, efetivar, uma potência, o que significa fazer o que se pode. Deleuzediz que se trata
de uma noção extremamente complicada, ligado àquilo que constitui nossa impotência, por
exemplo, nossa saúde frágil ou nossa doença. Deleuze sustenta que trata-se de uma questão
de saber que uso fazer dela de forma que, por meio dela, possamos recuperar uma pequena
potência. Assim, Deleuze está seguro de que a doença poderia ser utilizada para algo, e não
meramente em relação à vida para a qual ela deveria dar algum sentimento.
Para Deleuze, a doença não é um inimigo, não é algo que dá um sentimento de morte, mas,
antes, algo que da um sentimento de vida, mas não no sentido de que “eu ainda quero viver,
e assim que estiver curado, eu começarei a viver”. Deleuze diz que não pode pensar em
nada mais abjeto no mundo do que aquilo que as pessoas chamam de bon vivant. Pelo
contrário, os bon vivants são homens com uma saúde muito fraca. Assim, para Deleuze, a
questão é clara: a doença agudiza um tipo de visão da vida ou de sentio da vida. Ele
enfatiza que quando ele diz visão, visão da vida, é no sentido de dizer “ver a vida”, essas
dificuldades que agudizam , que dão vida à visão da vida, a vida em toda a sua potência, em
toda a sua beleza. Ele está bastante seguro a esse respeito.
Parnet pergunta se Deleuze vê a fadiga como uma doença e Deleuze diz que é uma outra
coisa. Para ele, significa: fiz o que pude hoje, isto é, o dia terminou. E vê a fadiga
biologicamente como o dia estando terminado. É possível que pudesse durar por outras
razões, razões sociais, mas a fadiga é a formulação biológica do dia terminado, de não ser
capaz de extrair nada mais de si mesmo. Assim, se você considera-a dessa forma, diz
Deleuze, não se trata de um sentimento incômodo, mas, antes, agradável, a menos que não
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se tenha feito nada, então, de fato, é angustiante. É a esses estados de fadiga, esses estados
frágeis, algodoados que Deleuze sempre foi sensível. Ele gosta desse estado, o fim de algo,
e provavelmente tem um nome em música, uma coda, a fadiga como uma coda. Parnet diz
que antes de discutir a idade avançada, eles podem discuti sua relação com a comida.
Deleuze diz baixinho “ah! a velhice”. Parnet diz que ele gosta de comidas que parecem lhe
trazer força e vitalidade, como tutano e lagosta. Ela observa que tem uma relação especial
com a comida já que ele não gosta de comer. Deleuze diz que é verdade. Para ele, comer é a
coisa mais chata do mundo. Beber é algo extraordinariamente interessane, mas comer o
chateia mortalmente. Ele detesta beber sozinho, mas com com alguém que ele gosta muda
tudo, mas isso não transforma a comida, apenas ajuda-o a suportar comer, tornando-o
menos chato mesmo se acontece que ele não tenha nada para dizer. Todas as pessoas dizem
isso a respeito de comer sozinho, sustenta Deleuze, e isso prova como comer é chato já que
a maioria das pessoas admite que comer sozinho é uma tarefa abominável.
Tendo dito isso, continua Deleuze, há certamente coisas das quais ele gosta muitíssimo
[mes fêtes], que são muito especial, apesar do desprazer geral que ele tem. Ele diz que pode
agüentar quando outros comem queijo – Parnet diz que Deleuze não gosta de queijo – e
para alguém que gosta de queijo, ele diz que é uma das poucas pessoas tolerantes em
relação a isso, que não se levanta e sai ou expulsa a pessoa que está comendo queijo. Para
Deleuze, o gosto por queijo é um pouco como uma espécie de canibalismo [neste ponto
Parnet dá uma risada estridente], um horror total.
Continuando, Deleuze imagina que alguém pode lhe perguntar qual poderia sua comida
favorita, um empreendimento extremamente maluco, diz ele, mas ele sempre volta a três
coisas que acha sublimes, mas que são, muito apropriadamente, repugnantes: língua,
cérebro e tutano. Trata-se de alimentos bastante nutritivos. Há uns poucos restaurantes em
Paris, diz Deleuze, que servem tutano e depois disso ele não pode comer nada mais. Eles
preparam esse pequenos quadrados de tutano, realmente extramemamente fascinantes, diz
ele, cérebro, língua...
Depois, Deleuze tenta situar esse gosto de forma diferente, em relação com coisas que eles
já discutiram: essas coisas constituem uma espécie de trindade já que se pode dizer –
Deleuze admite que isso é um tanto demasiado anedótico – que o cérebro é Deus, o pai, o
tutatno, o filho já que são vertebrados que são um pouco lagostas. Assim Deus é o cérebro,
os vertebrados o filho, Jesus, e a língua o Espírito Santo, que é a força da língua. Ou, e aqui
Deleuze hesita um pouquinho, é o cérebro que é o conceito, o tutano é o afeto, e a língua, o
precepto... Deleuze pede a Parnet que não lhe pergunte por quê, é que ele simplesmente vê
essas trindades como muito... [ele não completa a sentença].
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Assim, ele conclui, isso compõe uma refeição fantástica. Ele pergunta se ele alguma vez
comeu os três juntos. Talvez em um aniversário com amigos [Parnet dá uma risada aqui],
eles podem fazer para ele uma real refeição, não?, diz ele, uma festa. [Ele ri, muito
satisfeito]. Parnet diz que além de comer essas três coisas, ela quer discutir a velhice.
Deleuze diz, sim, comer todas as três coisas seria um pouco demais, e Parnet diz, rindo,
sim, repugnante! Deleuze retoma a questão da velhice, outra vez dizendo baixinho: “ah! a
velhice!”.
Deleuze diz que há alguém que falou sobre a velhice muito bem, um romance de Raymond
Devos que, para Deleuze, é a melhor declaração sobre a velhice. Deleuze a vê como uma
idade esplêndida. Obviamente, há problemas, por exemplo, a gente é dominado por uma
certa lentidão. Mas o pior é quando alguém diz “não, você não é tão velho”, porque ao dizer
isso, ele não compreende qual é a queixa. Deleuze diz, eu me queixo, eu digo, oh, estou
velho, isto é, invoco as forças da velhice, mas então alguém tenta me animar, dizendo “não,
você não está tão velho”. Assim, diz Deleuze, eu lhe dou uma bengalada [alors je vais lui
foutre un coup de canne] [Parnet dá uma risada], porque ele ............. Deleuze diz que seria
melhor dizer: “sim, na verdade, você está certo!”, mas trata-se de pura alegria, diz Deleuze,
alegria em toda parte exceto nesse tantinho de lentidão.
O que é horrível na velhice, continua Deleuze, é a dor e a tristeza, mas essas coisas não são
a velhice. Deleuze diz que ele quer dizer que o que torna a velhice patética, algo triste, é as
pessoas velhas e pobres que não têm dinheiro suficiente para viver, nem um mínimo de
saúde, apenas essa saúde muito fraca, e muito sofrimento. É isso que é abominável, mas
não a velhice. Deleuze argumenta que não se trata absolutamente de um mal. Com dinheiro
suficiente e um pouco de saúde restante, é ótimo porque é apenas na velhice que se chegou.
Não é um sentimento de triunfo, apenas o fato de tê-la alcançado: afinal, em um mundo que
inclui guerras e vírus horríveis, se passou ileso por tudo isso.
E trata-se de uma idade, continua ele, na qual se trata apenas de uma questão de uma única
coisa, de ser. Não mais de ser isso ou aquilo, mas ser velho é apenas ser, ponto, nada mais.
Ele é, muito simplesmente. Quem tem o direito de simplesmente ser? Pois uma pessoa
velha pode dizer que tem planos, mas ele espera terminar dois livros nos quais ele está
realmente empenhado, um sobre literatura, outro sobre filosofia, mas isso não muda o fato
de que está livre de todos os planos. Quando se é vleho, diz Deleuze, não se é mais
suscetível/sensível, não se tem mais qualquer decepção fundamental, tende-se a ser muito
mais desinteressado, e gosta-se realmente das pessoas por elas mesmas. Para Deleuze,
parece que a velhice afia sua percepção de coisas que ele nunca tinha visto antes, elegâncias
em relação às quais ele nunca tinha sido sensível. Ele vê melhor, ele sustenta, porque ele
olha para uma pessoa por si mesma, como se fosse uma questão de transportar uma
imagem, um percepto da pessoa.
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Deleuze admite que há dias que passam com sua quota de fadiga, mas para ele, a fadiga não
é uma doença, mas algo mais, não a morte, apenas o sinal do final de um dia. Obviamente,
há angústias na velhice, diz ele, mas a gente tem que afastá-las, e é fácil afastá-las, um
pouco como se faz com lobisomens ou vampiros, não se pode estar sozinho quando se
começa a envelhecer porque se está muito lento para sobreviver. Assim, temos que evitar
algumas coisas, mas o que é maravilhoso, diz ele, é que as pessoas liberam a gente, a
sociedade deixa você em paz. Ser liberado pela sociedade, diz ele, é tão maravilhoso, não
que a sociedade realmente tivesse Deleuze em suas amarras, mas alguém que não tenha a
idade de Deleuze, não aposentado, não pode ter nenhuma idéia de quanto alegria se pode
ter em ser liberado pela sociedade. Obviamente, ele continua, quando ele ouve os velhos se
queixarem, trata-se de velhos que não querem ser velhos ou que não querem ser tão velhos
quanto são. Ele não podem suportar estar aposentados, e Deleuze não sabe por que, já que
eles poderiam descobrir algo, e ele não acredita que as pessoas aposentadas não possam
descobrir algo para fazer.
Deleuze diz que é preciso que a gente se dê uma sacudida, de forma que todos parasitas que
a gente teve nas costas toda a vida caiam no chão, e o que resta ao nosso redor? Nada além
das pessoas que a gente ama e que nos apóiam e que nos amam, se eles sentem a
necessidade disso. O resto deixa você em paz. E o que é realmente duro é quando algo pega
a gente outra vez. Deleuze diz que não pode suportar a sociedade, e ele só sabe disso agora
por causa de sua vida de aposentado. Ele se vê como completamente desconhecido da
sociedade. O que é catastrófico, ele declara, é quando alguém que pensa que ele ainda
pertence à sociedade pede que ele dê uma entrevista. Deleuze faz uma pausa para dizer que
a filmagem do Abecedário é diferente já que o que eles estão fazendo pertence inteiramente
ao seu sonho de velhice. Mas quando alguém pede uma entrevista, ele gostaria de perguntar
se a pessoa está bem da cabeça. Essa pessoa não está sabendo que Deleuze é um velho e
que a sociedade o liberou? [Deleuze dá uma risada]. Mas Deleuze pensa que as pessoas
confudem duas coisas: não se deve falar sobre os velhos, mas sobre a pobreza e o
sofrimente, pois quando se é velho, pobre e se está sofrendo, não existe uma palavra para
descrever isso. Uma pessoa puramente velha, que não é nada mais que velha, significa que
ela simplesmente é. Parnet diz que o fato de Deleuze estar doente, cansado, e velho,
[Deleuze dá uma risada], é às vezes difícil para as pessoas ao seu redor, menos velhas que
ele, seus filhos, sua esposa. Deleuze responde que não é um grande problema para seus
filhos. Poderia haver se eles fossem mais jovens, mas agora eles estão grandes o suficiente
para ter sua própria vida, e Deleuze não é um fardo para eles, não é um problema exceto
talvez em termos de afeição, quando eles dizem, oh, ele parece realmente muito cansado.
Quanto à Fanny, sua esposa, Deleuze não pensa que seja um problema, embora possa ser,
ele não sabe. É muito difícl, ele diz, perguntar a alguém que se ama o que ele/ela poderia
fazer em uma outra vida. Deleuze imagina que Fanny gostaria de ter viajado mais, mas ele
pergunta o que ela teria descoberto de tão diferente se ela tivesse viajado. Ela (e Parnet, diz
ele) tem uma formação literária forte, assim ela foi capaz de encontrar coisas esplêndidas
por meio da leitura de romances e isso, diz Deleuze, é como viajar. Certamente há
problemas, mas eles estão para além de sua compreensão, ele admite.
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Parnet diz que, para terminar, ela quer perguntar sobre seus projetos, como o projeto sobre
a literatura ou O que é Filosofia? Quando ele empreende um projeto como esses, o que ele
encontra de prazeroso como um velho que se envolve neles? Ele lembra-o que
anteriormente ele disse que talvez ele não os terminasse, mas que existe algo de divertido
neles. Deleuze diz que é algo realmente maravilhoso, toda uma evolução, e quando se é
velho tem-se uma certa idéia do que se espera fazer que se torna cada vez mais puro, cada
vez mais purificado. Deleuze diz que ele pensa nas famosas linhas japonesas de desenho,
linhas que são tão puras e então não há nada mais, nada mais senão pequenas linhas. É
assim que ele concebe o projeto de um velho, algo que seria tão puro, tão nada, e ao mesmo
tempo, tudo, maravilhoso. Com isso ele quer dizer chegar a uma sobriedade, algo que só
pode acontecer tarde na vida.
Ele menciona seu O que é a Filosofia?, sua pesquisa sobre isso: em primeiro lugar, é
bastante agradável, em sua idade, sentir que ele sabe a resposta, e que ele é o único a saber,
como se ele entrasse em um ônibus, e ninguém mais soubesse. [Parnet dá uma risada].
Tudo isso, para Deleuze, é muito prazeroso. Talvez ele pudesse ter criado um livro sobre O
que é a Filosofia? trinta anos atrás, um livro que seria um livro muito, muito, diferente da
forma pela qual ele o concebe agora. Há uma espécie de sobriedade tal que... – quer ele seja
bem sucedido ou não – ele sabe que é agora que ele pode conceber isso, de qualquer modo,
que não se assemelha... ok. [Deleuze não termina a frase, o quadro se congela e os créditos
entram no fim da fita].
Part III - N a Z
[N de Neurologia] [O de Ópera] [P de Professor]
[Q de Questão] [R de Resistência] [S de Style-Estilo ]
[T de Tênis] [U de Uno] [V de Viagens] [W de Wittgenstein]
[X de Desconhecido, Y de Indizível] [Z de Zig-Zag]
E
INÍCIOSPAÇON de Neurologia ESPAALFABETOÇO
Parnet apresenta este título como ligando a neurologia e o cérebro. Deleuze diz que a
neurologia é muito difícil para ele, mas que ela sempre o fascinou. Para responder por quê,
ele considera a questão do acontece na cabeça de alguém quando tem uma idéia. Quando
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não há nenhuma idéia, ele diz, é como uma máquina de pin-ball. Como isso se comunica
dentro da cabeça? Elas não funcionam de acordo com trajetos pré-formados e com
associações prontas, de forma que alguma coisa aconteça – se soubéssemos do que se trata!
Isso interessa muito Deleuze, uma vez que ele sente que se compreendêssemos isso,
poderíamos compreender tudo, e as soluções devem ser extremamente variadas. Ele
clarifica isso: duas extremidades no cérebro podem muito bem estabelecer contato, isto é,
por meio de processos elétricos de sinapse. E, então, há outros casos que são talvez muito
mais complexos, por meio da descontinuidade na qual há um fosse que deve ser
preenchido. Deleuze diz que o cérebro é cheio de fissuras (fentes), que o preenchimento
ocorre apenas em um regime probabilístico. Ele acredita que existem relações de
probabilidade entre dois vínculos, e que essas comunicações dentro de um cérebro são
fundamentalmente incertas, estando fundamentadas em leis de probabilidade. Deleuze vê
isso como uma questão do que nos faz pensar, e ele admite que alguém pode objetar que ele
não está inventado nada, que se trata da velha questão de associação de idéias. Pode-se
quase perguntar-se, ele diz, por exemplo, quando um conceito é dado ou uma obra de arte é
olhada, pode quase tentar esboçar um mapa do cérebro, suas correspondências, quais são as
comunicações contínuas e quais seriam as comunicações descontínuas de um ponto ao
outro.
Algo impressionou Deleuze, ele admite, uma história que os físicos usam, a transformação
do padeiro: pegue um pedaço de massa para sová-la, estique até formar um retângulo, dobre
sobre ela mesma, estique outra vez, etc., você faz uma série de transformações e após “x”
transformações, dois pontos completamente contíguos acabam por necessariamente se
transformar no oposto, muito distantes entre si. E existem pontos distantes que, como
resultado de “x” transformações, acabam por ficar bastante próximos. Assim, Deleuze se
pergunta se, quando buscamos por algo na nossa cabeça, não pode haver esse tipo de
combinações (brassages), por exemplo, dois pontos que ele não pode ver como associar, e
como resultado de numerosas transformações, ele acaba por vê-las lado a lado. Ele sugere
que entre um conceito e uma obra de arte, isto é, entre um produto mental e um mecanismo
cerebral, existem semelhanças muito, muito estimulantes e que, para ele, as questões, como
se pensa?, e, o que significa pensar?, sugerem que com o pensamento e o cérebro, as
questões estão entrelaçadas. Deleuze diz que ele acredita mais no futuro da biologia
molecular do cérebro que no futuro da ciência da informação ou de qualquer teoria da
comunicação.
Parnet observa que Deleuze sempre concedeu um lugar especial à psiquiatria do século
XIX, que, de forma ampla, abordou a neurologia e a ciência do cérebro, que ele deu uma
prioridade à psiquiatria em detrimento da psicanálise precisamente por causa das relações
da psiquiatria com a neurologia. Assim, pergunta ela, isso ainda ocorre? Deleuze diz, sim,
completamente. Como ele disse antes, há também uma relação com a farmácia, a possível
ação das drogas sobre o cérebro e as estruturas cerebrais que pode ser localizada em um
nível molecular, em casos de esquizofrênia. Para Deleuze, esses aspectos parecem ser um
futuro mais certo do que a psiquiatria mentalista (psychiatrie spiritualiste).
Parnet faz uma pergunta metodológica: não é nenhum segredo que Deleuze mais um
autodidata quando ele lê uma revista de neurologia ou outra revista científica. Além disso,
ele não é muito bom e Matemática, em contraste com alguns filósofos que ele estudou,
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como Bergson (que era formado em Matemática), Espinosa (forte em Matemática), Leibniz
(não é preciso dizer que era forte em Matemática). Assim, pergunta ela, como faz Deleuze
para ler sobre esses temas? Quando ele tem uma idéia e precisa de algo que lhe interessa,
mas não compreende nada, como ele se vira?
Deleuze diz que existe algo que lhe consola muito, especificamente que ele está firmemente
persuadido da possibilidade de leituras variadas de uma mesma coisa. Já em Filosofia, ele
acreditava fortemente que não é preciso ser um filósofo para ler filosofia. Não se trata
apenas do fato de que a Filosofia está aberta a duas leituras: a filosofia precisa de duas
leituras ao mesmo tempo. Uma leitura não-filosófica da Filosofia é absolutamente
necessária, sem a qual não haveria qualquer beleza na Filosofia. Isto é, com nãoespecialistas lendo Filosofia, essa leitura não-filosófica da Filosofia não carece de nada e é
inteiramente adequada. Deleuze qualifica essa afirmação, dizendo que duas leituras podem
não funcionar para toda filosofia. Ele tem dificuldade em ver uma leitura não-filosófica de
Kant. Mas em Espinosa, ele diz que não é absolutamente nada impossível que um agricultor
ou um vendedor de loja possa ler Espinosa e, no caso de Nietzsche, mais ainda, com todos
os filósofos que Deleuze admira acontece isso. Assim, continua ele, não existe qualquer
necessidade de compreender, uma vez que a compreensão significa um certo nível de
leitura. Se alguém fosse objetar que para apreciar uma pintura de Gauguin seria necessário
ter algum conhecimento especializado sobre ela, Deleuze responde que, naturalmente,
algum conhecimento especializado é necessário, mas há também emoções extraordinárias,
autênticas, extraordinariamente puras, extraordinariamente violentas, em uma total
ignorância da pintura. Para ele, é completamente óbvio que alguém pode receber uma
pintura como um raio e não saber nada sobre a pintura. De forma similar, alguém pode ser
inteiramente tomado de emoção por uma obra musical sem saber uma palavra. Deleuze diz
que ele, por exemplo, emociona-se muito com as óperas [de Alban Berg] Lulu e Wozzeck,
e que o concerto To the Memory of an Angel [também de Berg] o emocionou acima de
qualquer outra coisa.
Assim, ele sabe que é melhor ter uma percepção competente, mas ele ainda assim sustenta
que tudo o que conta no mundo, no domínio da mente, está aberto a uma dupla leitura,
desde que não seja algo feito aleatoriamente como alguém que é autodidata faria. Antes, é
algo que empreendemos começando de nossos problemas tomados de algum outro lugar.
Deleuze quer dizer que é com base no fato de ele ser um filósofo que ele tem uma
percepção não-musical da música, o que faz com que a música seja extraordinariamente
tocante para ele. De forma similar, é com base no fato de ser um músico, um pintor, isso ou
aquilo, que se pode empreender uma leitura não-filosófica da Filosofia. Se essa segunda
leitura (que não é segunda) não ocorresse, se não houvesse essas duas e simultâneas
leituras, seria como ambas as asas num pássaro, a necessidade de duas leituras juntas. Além
disso, Deleuze argumenta que mesmo um filósofo deve aprender a ler uma grande filósofo
não-filosoficamente. O típico exemplo, para ele, é ainda, outra vez, Espinosa: ler Espinosa
em uma brochura, em qualquer momento e lugar que se possa, para Deleuze, cria tanta
emoção quanto uma grande obra musical. E, em alguma medida, ele diz, a questão não é
compreender, uma vez que nos cursos que Deleuze costumava dar, estava tão claro que
algumas vezes os estudantes compreendiam, algumas vez não, e todos somos assim,
algumas vezes compreendemos, outras não.
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Deleuze volta à questão de Parnet sobre a ciência, que ele vê da mesma forma: em alguma
medida, estamos sempre no extremo (pointe) de nossa ignorância, que é exatamente onde
devemos nos instalar, no extremo de nosso conhecimento ou de nossa ignorância, o que é a
mesma coisa, a fim de ter alguma coisa a dizer. Se ele esperasse para saber o que ele ia
escrever, diz Deleuze, literalmente, se ele esperasse para saber o que ele ia falar, então ele
sempre teria que esperar porque o que ele iria dizer não teria nenhum interesse. Se ele não
corre um risco, se ele se instala e falar com um ar acadêmico sobre algo que ele não sabe,
então isso é um outro exemplo sem interesse. Mas se ele fala desse limite mesmo, entre
saber e não-saber, é ali que devemos nos instalar para ter alguma coisa para dizer.
Em ciência, é a mesma coisa, sustenta Deleuze, e a confirmação que ele encontrou é que ele
sempre teve grandes relações com cientistas. Eles nunca o tomaram por um cientista, eles
não pensam que ele compreenda grande coisa, mas alguns deles lhe dizem que isso
funciona. Ele atribui isso ao fato de que permanece aberto aos ecos, por falta de uma
palavra melhor. Ele dá o exemplo de um pintor que ele gosta muito, Delaunay, e pergunta,
o que ele faz? Ele observou algo bastante surpreendente, e isso faz a discussão voltar à
questão do que significa ter uma idéia. A idéia de Delaunay é que a própria luz forma
figuras, figuras formadas pela luz, e ele pinta figuras de luz, não aspectos que a luz assume
quando encontra um objeto. É assim que Delaunay se desliga de todos os objetos,
conseqüentemente não mais criando pinturas com objetos. Deleuze diz que leu algumas
coisas muito bonitas de Delaunay, nas quais ele julga o cubismo muito severamente.
Delaunay diz que Cézanne conseguiu quebrar o objeto, quebrar a compoteira, e que os
cubistas gastaram seu tempo buscando colá-la. Assim, em vez da eliminação de objetos em
favor de figuras rígidas e geométricas, Delaunay prefere figuras de pura luz. Isso é algo, um
evento pictorial, um evento-Delaunay. Deleuze sugere que existe uma forma pela qual isto
está ligado à relatividade, à teoria da relatividade, e ele argumenta que não é preciso saber
muito, é apenas ser autodidata que é perigoso. Deleuze diz que se ele sabe um pouquinho
sobre relatividade, é isso: em vez de ter sujeitado linhas de luz, as linhas seguidas pela luz
(lignes suivies par lumière), a linhas geométricas, pertencentes ao experimento de
Michaelson, há uma inversão total. Agora, as linhas de luz condicionam as linhas
geométricas, da perspectiva científica trata-se de uma inversão considerável, que mudará
tudo uma vez que a linha de luz não tem mais a constância da linha geométrica e tudo
mudou. É esse aspecto da relatividade, diz ele, que mais corresponde aos experimentos de
Michaelson. Deleuze não quer dizer que Delaunay aplica a relatividade; Deleuze celebra o
encontro entre um empreendimento pictorial e um empreendimento científico que
normalmente não teriam relação entre si. Outra exemplo é o dos espaços riemannianos,
sobre os quais Deleuze diz que ele sabe pouco em termos de detalhas, mas o suficiente para
saber que se trata de um espaço construído peça por peça e no qual as conexões entre peças
não são pré-determinadas. Mas por razões completamente diferentes, Deleuze precisava de
um conceito espacial para as partes nas quais não há conexões perfeitas e que não são prédeterminadas. “Eu preciso disso”, diz ele, “j’en ai besoin, moi!”, e ele não podia gastar
cinco anos de sua vida tentando compreender Riemann, porque ao final dos cinco anos ele
não teria feito nenhum progresso com seu conceito filosófico. E ao ir ao cinema, ele vê um
espécie estranha de espaço que todo mundo conhece como sendo o uso do espaço nos
filmes de Bresson, nos quais o espaço é raramente global, mas construído peça por peça
Vemos pequenos pedaços de espaço que se juntam, por exemplo, em uma seção de uma
cela, em Condamé à mort, a ligação não sendo pré-determinada. Perguntando por que é
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assim, Deleuze diz que é porque eles são manuais, a prtir dos quais podemos compreender
a importância das mãos para Bresson. Na verdade, em The Pickpocket, é a velocidade com
o qual o objeto roubado é passado de uma mão para a outra que determinará as conexões
entre os pequenos espaços. Deleuze tampouc quer dizer que Bresson está aplicando espaços
riemannianos, mas, antes, que um encontro ocorre entre um conceito filosófico,uma noção
científica, e um percepto estético. Perfeito! (Deleuze discute esse efeito espacial em The
Pickpocket, no início do livro A imagem-tempo.
Na ciência, diz Deleuze, ele sabe apenas o suficiente para avaliar encontros; se ele soubesse
mais, ele estaria fazendo ciência e não filosofia. Assim, em um grande medida, ele fala bem
sobre algo que ele não sabe, mas ele fala do que ele não sabe como uma função do que ele
sabe. Ele argumenta que tudo isso é uma questão de tato, não existe nenhum sentido em
brincar sobre isso, nenhum sentido em adotar um ar de quem sabe quando não se sabe, mas
ainda assim, Deleuze diz que ele teve encontros com pintores que foram os mais belos dias
de sua vida. Não encontros físicos, mas naquilo que Deleuze escreve – o maior deles sendo
[Simon] Hantaï [pintor húngaro; obrigado a Tim Adams pela grafia e pelas seguintes
referências: A dobra, p. 33, e O que é filosofia, p. 195, CS], com quem algo se passou entre
eles. Deleuze diz o que foi seu encontro com Carmelo Bene [em Superposições]. Deleuze
nunca fez teatro, não compreende nada sobre teatro, mas ele tem que admitir que algo
importante aconteceu aí também. Há cientistas com os quais essas coisas também
funcionam. Deleuze diz que ele conhece alguns matemáticos que tiveram a gentileza de ler
o que Deleuze tem escrito, e disseram que funciona bastante bem.
Deleuze admite que seus comentários aqui estão indo mal uma vez que ele sente que ele
está tomando os ares de uma auto-satisfação completamente desprezível. Para ele,
entretanto, a questão não é se ele sabe ou não bastante coisa de ciência, nem se ele é capaz
de aprender alguma coisa sobre ciência, a coisa importante, ele admite, é não dizer
besteiras, e estabelecer ecos, fenômenos de ecos entre um conceito, um percepto e uma
função (uma vez que, para Deleuze, a ciência não funciona por conceitos, mas por funções).
Dessa perspectiva, Deleuze precisava dos espaços riemannianos, ele sabia que eles
existiam, não sabia exatamente o que eles eram, mas isso era o que bastava.
INÍCIOSPAÇOO de Ópera ESPAALFABETO
Parnet começa admitindo que este título é uma pequena brincadeira, já que, exceto por
causa de Wozzeck e Lulu, de Berg, certamente pode-se dizer que a ópera não é uma das
atividades ou um dos interesses de Deleuze. Em comparação com Foucault ou com
François Châtelet, que gostavam de ópera italiana, Deleuze nunca escutou realmente ópera.
O que mais lhe interessava era a canção popular, particularmente Edith Piaf, pela qual ele
tem uma grande paixão. Assim, ela pergunta se ele pode falar um pouco sobre isso.
Deleuze responde que ele está sendo um pouco severa ao dizer isso. Em primeiro lugar, ele
escutava bastante música, só que isso faz muito tempo; desde então, ele parou porque ele
concluiu que se tratava de uma ....., tomando muito tempo, e uma vez que ele tem muitas
coisas a fazer – não tarefas sociais, mas seu desejo de escrever coisas – ele simplesmente
não tem tempo para ouvir música, ou para ouvi-la o suficiente.
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Parnet observa que Châtelet trabalhava escutando ópera, e Deleuze diz que, primeiro, ele
não poderia fazer isso, e ele não está certo de que Châtelet o fazia enquanto trabalhava e
sim, obviamente, quando ele recebia pessoas em sua casa. A ópera algumas vezes se
sobrepunha ao que as pessoas estavam dizendo quando ele estava cheio delas, mas por
Deleuze não é assim que funciona. Mas, ele diz que preferiria distorcer a questão a seu
favor, transformando-a em: o que é que cria uma comunidade entre uma canção popular e
uma obra de arte musical? Esse é um assunto que ele acha fascinante. O caso de Edith Piaf,
por exemplo: Deleuze considera-a uma grande chanteuse, com uma voz extraordinária;
além disso, ele tem esse jeito de cantar fora do tom e, então, constante perseguindo a nota
falsa e corrigindo-a, essa espécie de sistema em desiquilíbrio que constantemente está
pegando o errado e corrigindo-o. Para Deleuze, isso parece acontecer em qualquer estilo.
Isso é algo que Deleuze gosta muito porque trata-se da mesma questão, no nível da canção
popular, que ele faz sobre tudo: ele se pergunta, o que isso me traz de novo? Especialmente
nas produções, elas trazem algo de novo. Se for feito 10, 100, 1000 vezes, talvez até mesmo
muito bem feito, Deleuze compreende então o que Robbe-Grillet disse: Balzac era
obviamente um grande escritor, mas que interesse há em criar romances hoje como Balzac
os criava? Além disso, essa prática macula os romances de Balzac, e assim ocorre com
tudo.
O que Deleuze acha particularmente comovente em Piaf é que ela introduziu algo inovativo
em relação à geração precedente, Frehel e Adabia, mesmo em sua auto-apresentação, e em
sua voz. Em cantores mais modernos, temos que pensar que Charles Trenet. Bastante
literalmente, Deleuze diz, nunca ouvimos ninguém como ele. Deleuze insiste nesse ponto:
para a filosofia, para a música, para a pintura, para a arte, seja a canção popular ou o resto,
até mesmo o esporte, a questão é exatamente a mesma: o que há ai de novo? Isso não deve
ser interpretado no sentido de moda, mas exatamente no sentido oposto: o que é inovativo é
algo que não é da moda, talvez se torne da moda, mas não é da moda uma vez que não é
esperado pelas pessoas. Quando Trenet estava cantando bem, as pessoas diziam que ele
estava louco; as pessoas não dizem mais isso, mas pode-se dizer eternamente que ele estava
louco; e ele assim permaneceu. Piaf parecia grandiosa a todos nós.
Parnet pergunta sobre a admiração de Deleuze por Claude François, e Deleuze diz que,
certo ou errado, ele achava que ele tinha encontrado algo fresco em Claude François, que
tentou descobrir algo diferente, enquanto existem muitos que não tentam absolutamente
nada. Para Deleuze, é a mesma coisa, trazer algo fresco e tentar encontrar algo diferente.
Para Piaf, o que ela estava buscando? Deleuze relembra o que ele disse anteriormente sobre
a saúde fraca e a vida forte. Piaf é o próprio exemplo de alguém que viu coisas na vida, a
força da vida, que a quebrou. Deleuze era receptivo a Claude François porque ele buscou
um tipo novo de show, um show-canção, inventendo uma espécie de canção dançada, que
obviamente implicava usar playback. Assim, tanto melhor ou tanto pior, diz Deleuze, que
também permitiu que ele empreendesse essa pesquisa sobre o som. Até o final, François
estava insatisfeito com uma coisa, os textos de suas canções que eram bastante fracos e
estúpidos. Ele tentou arranjar seus textos de forma que ele obtivesse qualidades textuais
melhores, como “Alexandrie, Alexandra”, uma boa canção.
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Deleuze diz que hoje ele não está ao par da música, mas quando ele liga a tevê – agora que
ele está aposentado ele tem o direito de ligar a tevê – ele nota que quanto mais canais há
mais eles se parecem, e mais nulos eles se tornam, uma nulidade radical. O regime de
competição, competindo entre si, produz o mesmo, a nulidade eterna, e o esforço para saber
o que faz o ouvinte ver este canal em vez daquele, é amedrontador. O que ele ouve aí
dificilmente pode ser chamado de canção, já que não há nem mesmo a voz, ninguém tem a
mínima voz.
Mas, então, diz Deleuze, não vamos nos queixar. O que todos querem, sustenta ele, é essa
espécie de domínio que seria tratada duplamente pela canção popular e pela música.
Deleuze volta-se para algo que ele e Félix Guattari desenvolveram, algo que ele considera
um conceito filosófico muito importante, o ritornello: trata-se do ponto em comum entre a
canção popular e a música. Para Deleuze, o ritornello é o ponto comum. Deleuze sugere
que se defina o ritornello como uma pequena canção, “tra-la-la-la”. “Quando digo “tra-lala”?, pergunta Deleuze. Ele insiste que ele está fazendo filosofia ao perguntar quando ele
canta para si mesmo. Em três ocasiões: ele canta essa toada quando ele está se movendo em
seu território, secando seus móveis, o rádio tocando ao fundo. Assim, ele canta quando ele
está em casa. Depois, ele canta para si próprio quando não está em casa, ao cair da noite, na
hora da angústia, quando ele está indo pra casa, e precisa encorajar-se, cantando “tra-la-la”.
Ele está se dirigindo para casa. E ele canta para si mesmo quando ele diz “adeus, estou
saindo, e levarei você comigo em meu coração”, é uma canção popular, e eu canto para
mim mesmo quando estou saindo de casa para ir para algum outro lugar. Em outras
palavras, continua Deleuze, o ritornello está absolutamente ligado – o que leva a discussão
de volta ao “A de Animal” – ao problema do território e de sair ou entrar no território, isto
é, o problema da desterritorialização. Eu volto para meu território ou tento voltar, diz
Deleuze, ou eu desterritorializo a mim mesmo, isto é, eu saio, eu deixo meu território.
Qual é a relação com a música?, pergunta ele, e insiste que temos que avançar ao criar um
conceito. É por isso que Deleuze invoca a imagem do cérebro. Tomando seu próprio
cérebro neste momento como exemplo, ele repentinamente diz a si próprio: “o lied. O que é
o lied?”. Tem sido sempre a voz, como uma canção elevando seu canto como uma função
de sua posição em relação ao território. Meu território, o território que eu não tenho mais, o
território ao qual estou tentando chegar outra vez, é isso que o lied é. Seja Schumann ou
Schubert, é isso que ele fundamentalmente é. É isso que Deleuze considera ser o afeto.
Quando ele estava dizendo anteriormente que a música é a história do devir e as forças de
devires, era algo desse tipo que ele queria dizer, grande ou medíocre.
Deleuze pergunta: “o que verdadeiramente a grande música?”. Para Deleuze, isso aparece
com uma operação artística de música. Elas começam a partir dos ritornellos, e Deleuze
inclui mesmo os músicos mais abstratos. Ele acredita que cada músico tem seus tipos de
ritornellos, falando de pequenas toadas, de pequenos ritornellos. Ele menciona Vinteuil e
Proust [em A busca do tempo perdido], três notas, depois duas, um pequeno ritornello, que
passa a partir de Vinteuil, depois passa a partir do septeto. Para Deleuze, é o ritornello que
se deve encontrar na música e mesmo sob a música, algo prodigioso que um grande músico
cria: não ritornellos que ele ou ela coloca um depois do outro, mas ritornellos que se
dissolvem em um ritornello ainda mais profundo. Trata-se de todos os ritornellos de
territórios, de uma território particular e um outro que se tornará organizado no centro de
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um imenso ritornello, um ritornello cósmico, na verdade! Tudo que Stockhausen diz sobre
a música e o cosmos, toda essa forma de voltar a temas que eram comuns na Idade Média e
na Renascença – Deleuze diz que ele é completamente a favor desse tipo de idéia que a
música teria uma relação com o cosmos.
Ele volta a um músico que ele admira e que o tem afetado muito, Mahler, sua Canção da
terra – para Deleuze, não se poderia dizer de forma melhor. Isso é perpetuamente como
elementos em gênese, na qual há perpetuamente pequenos ritornellos algumas vezes
baseados em dois sininhos de vaca. Deleuze acha que é extraordinariamente comoventem
nas obras de Mahler a forma pela todos os pequenos ritornellos, que são já obras músicas
de gênio – ritornellos de taverna, ritornellos de pastores, etc. – a forma pela qual eles
realizam uma composição em uma espécie de grande ritornello que se tornará a canção da
terra. Deleuze sugere ainda outro exemplo em Bartok, um grande gênio. Deleuze admira a
forma como ele conecta e reconecta ritornellos locais, ritornellos de minorias nacionais,
etc., e os reúne em uma obra que ainda não foi plenamente examinada.
Deleuze vai adiante, unindo a música e a pintura exatamente da mesma forma. Ele
menciona Klee que disse: o pintor não “mostra o visível, mas torna visível”; estão
implícitas aqui forças que não estão visíveis e, para um músico, é a mesma coisa: o músico
não mostra o audível, ele ou ela torna audíveis forças que não são audíveis, tornando
audível a música da terra, música na qual ele ou ela inventa, exatamente como o filósofo. O
filósofo torna pensável forças que não pensáveis, que são de uma natureza bastante bruta,
bastante brutal. É a comunhão de pequenos ritornellos com o grande ritornello que, para
Deleuze, define a música, algo que ele acha muito simples. É a força da música, uma força
para fornecer um nível realmente cósmico, como se as estrelas começassem a cantar uma
pequena toada de um sino de vaca, uma pequena toada de pastor. Ou, ele sugere, poderia
ser o inverso, os sinos de vaca que são subitamente elevados ao estado de sons celestiais ou
infernais.
Parnet objeta que ela não pode explicar exatamente por que, mas ela tem a impressão, a
partir da explicação de Deleuze, plena de erudição musical, que ele busca o visual por meio
da música, por meio do ritornello. Ela o vê implicando o visual. Ela diz que compreende a
extensão na qual o audível é ligado às forças cósmicas, tal como o visual, mas ela observa
que Deleuze não freqüenta concertos, algo o incomoda ali, ela não ouve música, e tem
como hábito ir a exposições de arte ao menos uma vez por semana.
Deleuze diz que se trata de uma questão de possibilidade e de tempo, porque, para responde
a essa questão, o que o interessa, acima de tudo, na literatura, é o estilo. O estilo, para ele, é
o auditivo puro. Ele diz que ele não faria a distinção que ela faz entre o visual e o audível.
Ele admite que ele raramente vai a concertos porque é agora mais complicado fazer
reservas antecipadas. Tudo isso são detalhes práticos da vida, enquanto que quando há uma
exposição de arte não é preciso fazer nenhuma reserva. Mas, ele diz que cada vez que ele
foi a um concerto, ele o achou demasiado longo uma vez que ele tem uma receptividade
muito baixa, embora ele sempre tenha sentido emoções profundas. Depois, ele diz que não
está certo que Parnet esteja completamente errada, mas pensa que ela poderia estar
enganada, porque sua impressão não é completamente verdadeira. Em todo caso, isso é
ainda mais difícil que falar de pintura. É o ponto mais alto, falar sobre música.
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Parnet diz que há muitos filósofos que falaram sobre música. Deleuze a interrompe para
dizer que o estilo é sonoro, não visual, e ele está só está interessado na sonoridade nesse
nível. Parnet continua: a música está imediatamente ligada à filosofia, assim uma porção de
filósofos falou sobre música, por exemplo, Jankelevitch – Deleuze concorda – mas exceto
Merleau-Ponty, há poucos filósofos que falaram sobre pintura. Deleuze diz: “realmente?”.
Ele não está seguro, nem Parnet, ela admite, mas Barthes, Jankelevitch, mesmo Foucault,
falaram sobre música. Deleuze faz um gesto como que descartando isso, quando ela diz
“Foucault”, já que Foucault não falou sobre música, diz Deleuze, era um segredo para ele,
sua relação com a música era um completo segredo. Parnet diz, sim, que ele estava muito
próximo de certos músicos. Deleuze não quer discutir isso, ele diz que são segredos que
Foucault não discutia. Parnet persegue isso, dizendo que Foucault estava muito próximo do
mundo musical, mesmo que fosse um segredo – Deleuze diz, sim, sim, sim...
Parnet, então, observa que há exceção de [Alban] Berg, para Deleuze... E ele engata a partir
daí: sim, e para explicar sua admiração, ele diz que isso está ligado à questão de por que
alguém é devotado a alguma coisa. Deleuze admite que ele não sabe por que, mas ele
descobriu ao mesmo tempo aquelas peças musicais para orquestra... [como ele havia feito
às vezes durante a entrevista, Deleuze aqui mostra uma dificuldade em respirar, para e diz:]
Você percebe o que é ser velho [faz movimentos com sua garganta], você não pode
encontrar nomes... as peças orquestrais desse mestre [Parnet fornece-lhe o nome:]
Schoenberg. Há não muito tempo, Deleuze relembra ter tocado essas peças orquestrais
quinze vezes seguidas, vindo a reconhecer alguns momentos completamente avassaladores.
Ao mesmo tempo, Deleuze encontrou Berg, alguém que ele podia ouvir o dia toda. Mas
Deleuze diz que isso é também uma questão de uma relação com a terra. Mahler, diz
Deleuze, era alguém que ele veio a conhecer muito mais tarde, mas trata-se de música e
terra. Deleuze diz que no caso de músicos muito velhos, há, plenamente, uma relação entre
a música e a terra, mas a extensão desse tipo de relação nas obras de Berg e de Mahler,
Deleuze achou isso extremamente avassalador. Para ele, isso significa tornar sonoras as
forças da terra, por exemplo, no Wozzeck [de Berg], que Deleuze considera um grande
texto já que se trata da música da terra.
Parnet observa que há uma porção de gritos nessa obra e que Deleuze gosta muito de gritar.
Deleuze concorda: para ele, há uma relação entre o canto e os gritos, de fato, que essa
escola [de música] foi capaz de reintroduzi-la como um problema. Os dois gritos, Deleuze
diz, nunca o cansam, o grito horizontal que flutua ao longo da terra em Wozzeck, e o grito
completamente ertical da condessa em Lulu [outra obra de Berg] – eles são como duas
densas culminâncias de gritos. Tudo isso interessa Deleuze também porque, em filosofia,
existem canções e gritos, verdadeiras canções na filosofia, os conceitos são verdadeiras
canções e verdadeiros gritos em filosofia. De repente, Aristóteles diz: você tem que parar!
Ou um outro diz, não, nunca vou parar! Espinoza: o que pode um corpo? Nós nem sequer
sabemos o que um corpo pode! Assim, a relação grito-canção ou conceito-afeto é
praticamente a mesma, é algo que Deleuze aceita completamente e que o afeta
imensamente.
INÍCIOSPAÇOP de ProfessorESPAALFABETO
60
[Outro dia; Deleuze está com uma camisa de colarinho aberto; outros óculos]
Parnet lembra a Deleuze que aos 64 anos de idade, ele passou quase 40 como professor,
primeiro em escolas secundárias francesas (lycées), depois na universidade. Em 1988,
Deleuze não queria mais dar aulas, assim ela, primeiramente, pergunta se ele senta falta
delas, já que ele disse que dava suas aulas com paixão, assim ela pergunta se ele sente falta
de não estar mais dando aulas. Deleuze diz, não, de forma alguma. Ele concorda que as
aulas foram uma parte importante de sua vida, mas quando ele se aposentou ele ficou
bastante feliz já que ele estava menos inclinado a dar aulas. Essa questão, para ele, é
bastante simples: as aulas têm equivalentes em outros domínios, mas lhe exigiam um
tempop enorme de preparação. De novo, como tantas outras atividades, para 5 ou 10
minutos, no máximo, de inspiração, é preciso muita preparação. Deleuze diz que sempre
gostou muito de fazer isso, preparar bastante para chegar a esses momentos de inspiração,
mas quanto mais o tempo avançava mais ele tinha que preparar apenas para ter sua
inspiração progressivamente reduzida. Assim já era tempo de se aposentar, e isso não o fez,
de forma alguma, feliz, já que as aulas era algo que ele gostava imensamente, mas então se
tornara algo que ele necessitava menos. Agora, ele tem sua escrita que coloca outros tipos
de problemas, mas ele gostava imensamente de ensinar. Parnet pergunta-lhe o que significa
preparar bastante, quanto tempo ele levava preparando. Deleuze diz que ensaiar (des
répétitions) para uma aula é como qualquer outra coisa. Ele compara isso com o teatro ou
do canto, há ensaios, e se não ensaiamos o suficiente não há qualquer inspiração. Em uma
aula, significa ter momentos de inspiração, sem os quais a aula nada significa. Parnet diz
que isso não pode significar que ele ensaiasse na própria sala de aula, e Deleuze diz,
obviamente não, cada atividade tem seus modos de inspiração. Ele a descreve como enfiála na cabeça. Enfiá-la na cabeça e achar que aquilo que estamos dizendo é interessante. É
óbvio, diz Deleuze, que se o orador nem sequer acha que o que ele está dizendo tem
interesse... e isso não é evidente, ele insiste, achar que aquilo que estamos dizendo é
interessante, apaixonante. Deleuze diz que não se trata de uma forma de vaidade, de nos
considerarmos apaixonantes e interessantes, é o assunto do qual estamos tratando que
temos que achar apaixonante. E para fazer isso, Deleuze admite, às vezes temos
verdadeiramente que nos aguilhoar. A questão, diz ele, não é a de saber se é interessante,
mas de nos estimular ao ponto de sermos capazes de falar sobre algo com entusiasmo: é
isso que é ensaiar.
Assim, Deleuze diz que ele precisava menos disso, especialmente desde que as aulas eram
algo muito especial, aquilo que ele chama de cubo, um espaço-tempo particular no qual
muitas coisas acontecem. Deleuze dia que ele gosta muito menos de dar conferências,
nunca gostou de confer~encias já que elas tendem a ser um espaço-tempo demasiado
pequeno, enquanto uma aula é algo que se estende uma semana à outra. Trata-se de um
espaço e de uma temporalidade muito, muito especial, algo que tem constitui uma
seqü~encia. Ele esclarece que não é que se pode refazer ou recuperar quando algo não vai
bem, mas há um desenvolvimento interno em uma aula. Além disso, as pessoas mudam de
uma semana para a outra, e a audiência de uma aula, diz Deleuze, é muito estimulante.
Parnet volta ao começo da carreira de Deleuze, como professor de liceu. Deleuze diz que
isso não significa muita coisa já que aconteceu em uma época na qual o liceu não era, de
forma alguma, o que se tornou. Deleuze diz que ele pensa nos jovens professores que hoje
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são agredidocs nos liceus. Deleuze diz que foi professor de liceu logo depois da Liberação,
quando era completamente diferente. À pergunta de Parnet, ele responde que ele lecionou
em duas cidades do interior, uma que ele gostava, outra que ele gostava menos. Amiens era
a que ele gostava porque era uma vidade muito livre, muita aberta, enquanto Orleans era
muito mais séria. Tratava-se de um período no qual, diz ele, um professor de filosofia era
tratado com muita generosidade, ele podia fazer o que ele quisesse. Deleuze diz que ele
ensinava seus alunos a usar um serrote musical, uma vez que ele tinha aprendido isso na
época, e todo mundo achava isso bastante normal. Hoje, Deleuze acha que isso não seria
mais possível nos liceus. Parner pergunta o que ele pensava ensinar com o serrote musical
[risos], e Deleuze diz que lhes ensinava curvas, porque temos que curvar o serrote para
obter o som a partir de uma curva, e essas eram curvas bastante comoventes, algo que lhes
interessava [Deleuze devolve o sorriso a Parnet]. Ele diz que se trata já de uma variação
infinita, e rindo, Deleuze diz, sim, mas que ele não fazia só isso, ele preparava para o
baccalauréat, ele era um professor muito consciente [Deleuze dá uma risada]. Foi aí, diz
Parnet, que ele conheceu [Jean] Poperen, e Deleuze diz, sim, mas ele viajava mais que
Deleuze, e ficou muito pouco tempo em Amiens. Deleuze relembra que ele tinha uma
pequena mala e um grande despertador porque ele não gostava de relógios, e todo dia ele
saía e levava o despertador para a sala de aula. Deleuze o achava muito charmoso. Parnet
pergunta com quem Deleuze se juntava, como professor de liceu, e Deleuze relembra os
professores de ginástica, mas ele diz que não se lembra de muita coisa. Ele diz que a sala
dos professores no liceu também deve ter mudado muito hoje. Parnet diz que, como aluno,
a gente imagina a sala dos professores como um lugar muito opressivo, mas Deleuze diz,
sim, não, há todo o tipo de pessoas lá, sérios ou brincalhões, mas que, na verdade, ele não ia
muito lá.
Parnet continua, depois de Amiens e Orleans, Deleuze foi para Paris, para o Liceu Louis-leGrand, no curso preparatório [Deleuze diz, sim, sim, sim, enquanto Parnet revisa sua
carreira], assim ela pergunta se ele pode se lembrar de algum aluno que tenha sido notável
ou nem tanto. Deleuze repete essa pergunta, refletindo, dizendo que ele não pode lembrar,
talvez alguns tenham se tornado professores, mas nenhum que ele conheça se tornou
ministro do governo. Ele dá uma risada ao lembrar de alguém que se tornou delegado de
polícia, mas diz que realmente não havia ninguém de especial, todos seguiram seu próprio
caminho.
Parnet continua, referindo-se agora aos anos da Sorbonne, dos quais se têm a impressão, diz
elea, que correspondem aos tempos de sua história da filosofia. Depois, ele foi para
Vincennes que foi uma experiência totalmente crucial e determinante depois da Sorbonne
(Parnet indica que ela está pulado Lyon que veio depois da Sorbonne). Ela pergunta se
ficou feliz em se tornar um professor universitário depois de ter dado aula no liceu. Deleuze
diz que “feliz” não é realmente uma palavra apropriada nesse caso, tratava-se simplesmente
de uma carreira normal, e se ele tivesse que voltar ao liceu, não teria sido dramático, apenas
anormal e um fracasso, assim do jeito que as coisas aconteceram era normal, e ele não tem
nada a dizer sobre isso. Parnet pergunta se preparava suas aulas na universidade de forma
diferente das aulas no liceu, e ele diz, não, de forma alguma, exatamente a mesma coisa, ele
sempre deu suas aulas da mesma forma. Parnet parece surpresa, perguntando outra vez se
suas preparações para as aulas do liceu eram tão intensas quanto suas preparações para as
aulas na universidade, e ele repete, “obviamente”, três vezes. Em todo caso, diz Deleuze,
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temos que estar totalmente imbuídos do material, temos que gostar daquilo sobre o qual
estamos falando, e isso não acontece sozinho, nós temos que ensaiar, preparar, percorrer as
coisas mentalmente, temos que encontrar um jeito, um truque. À medida que a fita corre,
ele diz que é bastante divertido que temos que encontrar algo como uma porta que temos
que passar apenas a partir de uma posição particular. Depois que a fita muda, Parnet faz a
mesma pergunta (sobre as preparações de aula) uma terceira vez, e Deleuze diz
simplesmente que não havia nenhuma diferença para ele, de forma algua, entre os dois tipos
de aula.
Parnet diz que já que eles estão discutindo o trabalho universitário, talvez ele pudesse falar
sobre sua tese de doutorado. Ela pergunta quando ele a defendeu. Deleuze lembra a ela que
ela já havia escrito vários livros antes de sua defesa e, em alguma medida, isso aconteceu
porque ele não queria terminar a tese, uma reação freqüente. Ele lembra que trabalhava
muito e, em algum momento, ele se deu conta de que ele tinha que ter a tese, que se tratava
de algo urgente. Assim, ele fez um esforço máximo, e finalmente ele a apresentou como
uma das primeiras defesas depois do Maio de 1968, no começo de 1969. Isso criou uma
situação bastante privilegiada para ele, porque a banca estava intensamente preocupada
com uma única coisa, em como organizar a defesa de modo a evitar os grupos que
invadiam as salas de aula da Sorbonne. Eles estavam com bastante medo, já que foi
imediatamente após a volta às aulas depois dos eventos de Maio de 1968, assim eles não
sabiam o que podia acontecer. Deleuze lembra o presidente da banca dizendo que havia
duas possibilidades: ou eles faziam a sessão de defesa no térreo, onde havia uma vantagem,
a existência de duas saídas [Deleuze dá uma risada], de forma que eles pudessem sair
rapidamente, mas a desvantagem era que os grupos invadiam principalmente as salas do
térreo; ou eles poderiam ir para o segundo andar, com a vantagem de haver menos grupos
naquele andar, mas a desvantagem de apenas uma saída, assim se algo acontecesse, eles
poderiam ficar impossibilitados de sair. Assim, quando Deleuze defendeu sua tese, não foi
nunca possível encarar de frente os membros da banca, uma vez que todos estavam
vigiando a porta [Deleuze dá uma risada] para ver se alguém ia entrar de repente. Parnet
pergunta quem era o presidente da banca, mas Deleuze diz que é um segredo. Parnet diz
que ela poderia fazê-lo confessar, mas Deleuze insiste, não, especialmente dada a angústia
do presidente naquele momento, e também que ele era muito encantador. Curiosamente, o
presidente estava mais perturbado do que Deleuze, e é raro que uma banca esteja mais
perturbada que o candidato. Parnet sugere que ele era provavelmente mais conhecido
naquela altura do que qualquer outra pessoa da banca, mas Deleuze diz que ele não era
absolutamente bem conhecido. Parnet diz que a defesa se centrava no que depois foi
publicado como o livro Diferença e repetição, e Deleuze diz, sim, então Parnet relembra
que ele era bem conhecido por seus trabalhos sobre Proust e Nietzsche [aqui Deleuze faz
uma espécie de resmungo como único resposta, visivelmente constrangido e depois balança
seus ombros para Parnet].
Parnet volta a Vincennes, e Deleuze diz que quanto a Vincennes, Parnet está certa, de que
houve uma mudança, não na forma como ele preparava suas aulas (o que ele chama de
ensaios), nem no estilo de uma aula, mas a partir de Vincennes, Deleuze diz que não tinha
mais uma audiência de alunos. Era isso que era tão esplêndido sobre Vincennes e que não
valia, em geral, para todas as universidades que estavam voltando ao normal. Ao menos em
filosofia – Deleuze não sabe se isso é verdade para toda a universidade de Vincennes –,
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havia um tipo completamente novo de público, não mais feito de estudantes, mas uma
mistura de todas as idades, todos os tipos de atividades profissionais, incluindo pacientes de
hospitais psiquiátricos. Tratava-se talvez de um dos públicos mais multicoloridos, o qual
encontrava uma misteriosa unidade em Vincennes. Isto é, era ao mesmo tempo o mais
diverso e o mais coerrente, em função de Vincennes, que dava a essa multidão díspar uma
espécie de unidade. Deleuze diz que passou toda sua carreira em Vincennes, mas que se ele
tivesse sido forçado posteriormente a ir para outra faculdade, ele teria se sentido
completamente perdido. Quando ele visitiva outras faculdades depois disso, era como viajar
de volta no tempo, era como aterrisar no século XIX.
Assim, em Vincennes, ele falava para um público misto, jovens pintores, pessoas do campo
do tratamente psiquiátrico, músicos, drogados, jovens arquitetos, pessoas de países muito
diferentes. Havia ondas de visitantes que mudavam a cada ano. Ele lembra da chegada
repentina de 5 ou 6 australianos. Deleuze não sabia por quê, e no ano seguinte eles tinham
ido embora. Os japoneses estavam constantemente lá, a cada ano, e havia sul-americanos,
negros... Deleuze diz que era um público inestimável e fantástico. Parnet diz que era
porque, pela primeira vez, Deleuze estava falando para não-filósofos, sua prática que ele
havia mencionado antes, e Deleuze concorda: tratava-se plenamente de filosofia que era
dirigida igualmente a filósofos e a não-filósofos, exatamente como a pintura é dirigida a
pintores e a não-pintores, ou como a música não está limitada a especialistas em música,
mas trata-se da mesma música, do mesmo Berg ou do mesmo Beethoven, dirigidos a
pessoas que não são especialistas em música e que não são músicos. Para a filosofia, deve
ser estritamente o mesmo, diz Deleuze, ser dirigida a não-filósofos e a filósofos, sem
nenhuma mudança. A filosofia dirigida aos não-filósofos não deveria ser simplificada, da
mesma forma que em música não se simplifica Beethoven para não-especialistas. É a
mesma coisa em filosofia, diz Deleuze, a filosofia tem sempre seu público duplo, um
público não-filosófico assim como um público filosófico. E se eles não estão juntos, então
não há nada.
Parnet pede a Deleuze para explicar um sutil distinção: nas conferências há não-filósofos,
mas ele odeia conferências. Deleuze diz, sim, ele odeia conferências porque elas são
artificiais e também por causa do antes e do depois das conferências. Ele diz que gosta
tanto de dar aulas, que é uma maneira de falar diferentemente das conferências. Nas
conferências, falamos antes, e então falamos depois, e não tem a pureza de uma aula. E
depois há a característica de um circo nas conferências – embora Deleuze admita que as
aulas também têm suas características de circo, mas ao menos elas o divertem e tendem a
ser mais profundas. Em uma conferência, há um lado falso, e Deleuze diz que ele não gosta
das pessoas que as freqüentam, ou até mesmo simplesmente falar com elas: ele as acha
muito tensas, muita venais [trop putain], muita estressadas... não muito interessante, de
forma alguma. Parnet faz com que ele volte ao que ela chama de seu “querido público” em
Vincennes que era tão mixto na época, com loucos, drogados, como disse Deleuze, que
faziam intervenções malucas, pegavam a palavra e, apesar disso, nada disso parece jamais
ter incomodado Deleuze. Apesar de todas essas intervenções no meio de suas aulas, elas
continuavam completamente magistrais, e nenhum intervenção feita durante a aula parecia
jamais ter algum caráter objetável, isto é, o aspecto magistral da aula era sempre mantido.
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Deleuze emite seu constrangido “oui, oui, oui”, enquanto ela completa sua pergunta, depois
diz que precisa encontrar outra palavra, uma vez que esta expressão – aula magistral – é
imposta pela universidade, mas que é preciso uma outra. Deleuze vê duas concepções de
uma aula: a primeira é aquela na qual o objetivo é incitar reações bastante imediatas por
parte do público por meio de questões e interrupções. Trata-se de toda uma tendência, diz
Deleuze, uma concepção particular de aula. Por outro lado, há a assim chamada concepção
“magistral”, com uma pessoa (le monsieur) que fala. Não é que ele prefira um ou outra, diz
Deleuze, ele simplesmente não tinha escolha, ele só tinha praticado a segunda forma, a
concepção magistral. Assim é preciso uma palavra diferente.
É mais como uma concepção musical, sugere Deleuze. Para ele, nós não interrompemos a
música, seja ela bou ou ruim, ou apenas se ela é realmente ruim, mas, em geral, não
interrompemos a música enquanto podemos facilmente interromper palavras faladas. Ele
pergunta o que significa essa concepção musical de uma aula. Ele fala a partir de sua
experi~encia, embora ele não queira dizer que essa seja a melhor concepção, é apenas a
maneira como ele vê as coisas. Tal como ele vivenciou os públicos, seus públicos, ocorre
freqüentemente que alguém não compreende em um momento particular, e então há algo
como um efeito retardado, um pouco como na música. Em um dado momento, não
entendemos um movimento, diz Deleuze, e então três ou dez minutos mais tarde, torna-se
claro: algo aconteceu nesse meio-tempo. O mesmo ocorre com esses efeitos retardados, de
repente uma pessoa escutando [na aula] pode certamente não entender algo em um dado
momento, e dez minutos mais tarde, torna-se claro, há uma espécie de efeito retroativo.
Assim, se ele tivesse já interrompido – é por isso que Deleuze acha as interrupções tão
estúpidas, ou até mesmo certas perguntas que as pessoas fazem. Em vez de fazer uma
pergunta, porque se está no meio de uma não-compreensão, a pessoa faria melhor em
esperar. Esse é um primeiro aspecto da questão, e Deleuze diz que os melhos alunos são
aqueles que fazem as perguntas na semana seguinte. Ele não insistiu nisso, mas no fim, eles
lhe passavam uma mensagem de uma semana para a outra – uma prática que ele gostava –
dizendo que ele tinha que voltar a um determinado ponto. Assim, ao esperar dessa forma,
havia uma espécie de comunicação.
Deleuze traz à tona um segundo e importante ponto em sua concepção de uma aula: uma
vez que em um curso que ele deu as aulas tinham a duração de 2 horas e meia e ninguém
podia escutar por tanto tempo, para ele, uma aula não é algo destinado a ser entendido em
sua totalidade. Uma aula, diz Deleuze, é uma espécie de matéria em movimento, realmente
matéria em movimento, que é assim que é musical. Assim, devemos deixar que cada grupo
ou cada pessoa extraia dela o que lhe convém. Uma aula ruim é uma aula que literalmente
não convém a ninguém, mas, obviamente, não se pode esperar que convenha simplesmente
a todo mundo. As pessoas têm que esperar, argumenta Deleuze, e é óbvio que algumas
pessoas quase caem no sono, e então, por efeito de algum mistério, elas acordam nos
momentos que lhes interessam. Não existe qualquer lei que preveja que isto ou aquilo vá
interessar uma pessoa ou outra. Não são nem mesmo os assuntos que são interessantes, diz
Deleuze, mas algo mais. Em uma aula, ele vê esta emoção, uma quantidade igual de
emoção e inteligência, e se não há emoção, então não há nada na aula, não tem nenhum
interesse. Assim, não se trata de uma questão de seguir tudo ou escutar a tudo, mas de ficar
atento de forma que a pessoa apreenda o que lhe convém no momento certo. Isso será algo
pessoal, e é por isso que para Deleuze uma audiência variada é tão crucialmente importante,
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porque ele sente claramente que os centros de interesse mudam e saltam de um ponto a
outro, formando uma espécie de uma textura esplêndida.
Parnet observa que isso corresponde a seu público, mas para o “concerto” Deleuze inventou
a expressão “filosofia pop” e “filósofo pop”. Deleuze balança a cabeça, sim, é isso o que
ele queria dizer. Parnet continua, dizendo que sua aparência [allure], como a de Foucault,
era algo muito especial, seu chapéu, suas unhas [extremamente longas, o que é bastante
visível no vídeo], sua voz. Assim, ela pergunta se Deleuze estava consciente desse tipo de
mistificação por parte de seus alunos, em torno de sua aparência, como eles tinham
mitificado Foucault. Primeiramente, estava ele consciente de ter essa aparência e depois de
ter essa voz especial? Deleuze diz, certamente, já que a voz em uma aula – Deleuze
relembra o que ele disse antes: se a filosofia mobiliza e trata de conceitos, que é a
vocalização de conceitos em uma aula, então isto é normal, exatamente da mesma maneira
que existe um estilo escrito de conceitos. Os filósofos não são pessoas que escrevem sem a
pesquisa ou a elaboração de um estilo, é como os artistas, e eles são artistas. Assim, uma
aula implica que vocalizemos, até mesmo [Deleuze diz que ele fala mal o alemão] uma
espécie de Sprechgesang [estilo de canto declamado e modulado de acordo com as
intonações da palavra, utilizado pelos compositores da escola dodecafônica de Viena –
Schonberg, TTS], claramente. Assim, para além do fato de que há mitificações – você viu
suas unhas?, etc. – esse tipo de coisas acontece com todos os professores, já na escola
primária. O que é mais importante é a relação entre a voz e o conceito. Parnet diz que para
fazê-lo feliz, seu chapéu era como o vestido negro de Piaf, com um estilo (allure) muito
preciso. Deleuze responde que sua questão de honra era nunca usá-lo simplesmente por
essa razão, assim se produzia esse efeito, tanto melhor, muito bem. Parnet pergunta se isso
faz parte de seu papel de professor, e Deleuze repete sua pergunta em voz alta antes de
dizer, não, trata-se de um complemento dele. O que faz parte do papel de um professor é o
que ele disse antes: ensaio prévio e inspiração no momento, esse é o papel do professor.
Parnet diz que ele nunca quis nem uma “escola” [baseada em suas obras] nem discípulos, e
essa recusa de discípulos corresponde a algo muito profundo nele. Deleuze rompe em uma
risada quando ela diz isso, afirmando que ele não recusa, de forma alguma, geralmente
funciona em ambos os sentidos: ninguém quer ser seu discípulo tanto quanto ele não quer
nenhum. Uma “escola” é uma coisa horrível, por uma razão muito simples: toma muito
tempo, nós nos transformamos em um administrador. Consideremos os filósofos que
tiveram sua própria “escola”, como os witgensteinianos: não formam um grupo muito
divertido. Os heideggerianos formam uma escola: em primeiro lugar, isso implica que
algumas terríveis contas sejam ajustadas, implica exclusividades, implica um calendário,
toda uma administração. Deleuze diz que ele observou essas rivalidades entre os
heideggerianos franceses, liderados por Beaufret, e os heideggerianos belas, liderados por
Develin, um verdadeira luta de facão, abominável para Deleuze, sem nenhum interesse.
Deleuze claramente pensa em outras razões, dizeno que mesmo no nível da ambição, ser o
líder uma “escola” [ela dá um suspiro], diz ele, “olhe para Lacan, Lacan”... Lacan também
foi o líder de uma “escola” [Deleuze dá uma risada]. É horrível, diz ele, cria tantas
preocupações. Temos que nos tornar maquiavélicos para assumir uma tal liderança, e então
ele despreza isso. Para ele, a “escola” é o oposto de um movimento. Ele dá um exemplo: o
Surrealismo era uma “escola”, com contas ajustadas, tribunais, exclusões, etc., tendo
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Breton como líder; enquanto Dada era um movimento. Deleuze diz que se ele tivesse um
ideal – e ele afirma que ele não pretende ter sido bem sucedido nisso –, seria o de participar
de um movimento, mas ser o líder de uma “escola” não parece, para Deleuze, ser um
destino invejável [ele dá uma risada]. O ideal é o movimento, não, de forma alguma, ter
garantias e ter assinado idéias e fazer com os discípulos as repitam. Para Deleuze, há duas
coisas importantes: relaçõs que podemos ter com os estudantes, significa que ensinar-lhes
que eles devem estar felizes na solidão. Eles continuam dizendo: um pouco de comunicação
sem estar sozinho, nós estamos tão sós, etc., e é por isso que eles querem “escolas”. Eles
não podem fazer nada a não ser em função de sua solidão, assim devemos ensinar-lhes as
vantagens de sua solidão, reconciliá-los com sua solidão. Esse, diz Deleuze, era seu papel
como professor.
O segundo aspecto é um pouco a mesma coisa: em vez de introduzir noções que
constituíriam uma “escola”, ele queria noções ou conceitos que circulassem na aula. Não
essas se tornassem algo comum, mas de uso comu, que pudessem ser manipuladas de várias
formas. Isso só podia ocorrer, diz Deleuze, se ele endereçasse isso a outras pessoas
solitárias que torceriam essas noções de acordo com seu próprio jeito, que as utilizassem na
medida de suas necessidades. Assim, todas essas noções relacionam-se a movimentos e não
a “escolas”.
Parnet pergunta se hoje a era dos grandes professores já passou, uma vez que as coisas não
parecem ir muito bem. Deleuze diz que ele não tem muitas idéias sobre isso já que ele não
pertence mais a esse mundo. Ele diz que saiu em uma época que era assustadora, e ele não
podia mais compreender como os professores podiam continuar a dar aulas, já que se
haviam tornado administradores. Deleuze argumenta que a atual tendência da política é
clara: a universidade deixará de ser um lugar de pesquisa, em completa consonância com a
entrada forçada de disciplinas que não têm nada a ver om as disciplinas universitárias.
Deleuze diz que seu sonho seria que as universidades continuassem como locais de
pesquisa e que, juntamente com as universidades, as escolas técnicas se multiplicariam, nas
quais eles podiam ensinar contabilidade, informática, mas com as universidades intervindo
na contabilidade e na informática apenas no nível da pesquisa. E poderia haver todos os
acordos que se quisesse entre uma escola técnica e a universidade, com um escola enviando
seus alunos para continuar cursos de pesquisa na universidade. Mas desde que eles
introduziram matérias do domínio dessas escolas na universidade a coisa se deteriorou. Não
é mais um local de pesquisa, e nós nos tornamos crescentemente engolidos por essas
chateações administrativas, todas essas reuniões na universidade. É por isso que, diz
Deleuze, ele disse que não vê mais como os professores podem preparar uma aula, e ele
imagina que alguns fazem a mesma coisa ano após ano. Ele admite que pode estar errado,
que talvez eles ainda preparem novas aulas: tanto melhor. A tendência parece ser, para
Deleuze, o desaparecimento da pesquisa na universidade, a ascenção de disciplinas nãocriativas, e o que ele chama de adaptação da universidade ao mercado de trabalho. Deleuze
argumenta que não é o papel da universidade se adapatar ao mercado de trabalho, mas o
papel das escolas técnicas.
INÍCIOSPAÇOQ de Questão ESPAALFABETOÇ
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Parnet diz que a filosofia serviu, para Deleuze, para colocar questões e problemas, e que as
questões são construídas com o propósito não de respondê-las, mas de deixar essas questões
para trás. Assim, por exemplo, deixando a história da filosofia para trás significou criar
novas questões. Em uma entrevista, não se faz realmente questões a Deleuze, assim ela
pergunta como Deleuze deixa isso para trás. Parnet vê isso como uma espécie de escolha
forçada, e assim pergunta qual é a diferença, para Deleuze, entre uma questão no contexto
da mídia e uma questão na história da filosofia. Deleuze faz uma pausa, dizendo que é
difícil. Na mídia, há conversas a maior parte do tempo, não questões, não problemas,
apenas perguntas. Se dizemos, como você está?, isso não constitui um problema. “Que
horas são?” não é um problema, mas uma pergunta. Se vemos o nível geral na televisão,
mesmo em programas supostamente sérios, está cheio de perguntas, “o que você acha
disso?” não constitui um problema, mas um pedido de opinião, uma pergunta. É por isso
que a TV não é muito interessante. Deleuze não tem um interesse muito grande nas
opiniões das pessoas.
Ele dá o exemplo da questão: você acredita em Deus? Ele pergunta onde está o problema,
onde está questão. Não há nenhum problema, nenhuma questão. Assim, se colocassem
questões ou problemas num programa de TV, Deleuze diz que o número de programas é
enorme, mas raramente ocorre que um programa de TV abranja qualquer problema.
Deleuze sente que eles poderiam, por exemplo, pergunta sobre a questão chinesa. Mas o
que ocorre em geral é que eles convidam especialistas em China [Deleuze dá uma risada]
que dizem coisas sobre a China que poderíamos nós mesmos deduzir, sem saber qualquer
coisa sobre a China [risos]. Voltando à questão mais ampla sobre Deus, qual é o problema
ou a questão sobre Deus? Não é se acreditamos em Deus ou não, coisa que não interessa a
muita gente, mas o que quer dizer quando se pronuncia a palavra “Deus”? Deleuze sugere
que isso pode significar: somos julgados após a morte? Assim, de que forma isso constitui
um problema? Deleuze vê isso como estabelecendo uma relação problemátic entre Deus e a
instância do julgamento. Assim, é Deus um juiz? Isso é uma questão.
Outro exemplo é Pascal; alguém sugere seu texto sobre a aposta: Deus existe ou não?
Apostamos nisso, lemos o texto de Pascal e vemos que não se trata de uma questão de
aposta porque, argumenta Deleuze, Pascal coloca uma outra questão: não é se Deus existe
ou não, o que não seria uma coisa muito interessante, mas é: qual é melhor modo de
existência, o modo de alguém que acredita que Deus existe, ou o modo de alguém que
acredita que Deus não existe? Assim, a questão de Pascal não diz respeito à existência (ou
não) de Deus, mas, antes, à existência de quem quer que seja que acredita na existência de
Deus ou não. Por várias razões, diz Deleuze, Pascal desenvolve suas próprias questões, mas
elas podem ser articuladas: Pascal pensa que alguém que acredita que Deus existe tem uma
existência melhor que alguém que não acredita. Esse é o interesse de Pascal, há um
problema, uma questão, e já é mais a questão de Deus. Há um tema subjacente, uma
transformação de questões uma dentro da outra.
Deleuze sugere que é o mesmo quando Nietzsche diz “Deus está morto”, não é a mesma
coisa que dizer que Deus não existe. Deleuze pergunta: se dizemos que Deus está morto, à
que questão isso se refere, a uma questão que não é a mesma que quando perguntamos se
Deus existe? Ao ler Nietzsche, diz Deleuze, observamos que não poderia se importar
menos com a morte de Deus, e que está colocando uma outra questão por meio daquela,
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especificamente, que se Deus está morto, não há nenhuma razão para que o homem também
não esteja, temos que encontrar algo mais no homem, etc. O que interessava Nietzsche não
era, de forma alguma, se Deus estava morto, mas toda uma outra coisa.
Esses, diz Deleuze, são questões e problemas, e eles poderiam certamente ser apresentados
na TV ou na mídia, mas criariam uma espécie muito estranha de programa, sobre essa
história subjacente de problemas e questões. Enquanto nas conversas diárias bem como na
mídia, as pessoas permanecem no nível das perguntas. Deleuze menciona um programa
particular [uma vez que esse programa é póstumo, ele diz], “A hora da verdade” [Deleuze
dá uma risada], todo feito de perguntas do tipo “Madame Veil, você acredita na Europa?”.
Seria interessante, argumenta Deleuze, se se perguntasse sobre o problema da Europa. É a
mesma coisa que com a questão da China. Eles constantemente perguntam sobre preparar a
uniformização da Europa, eles se perguntam uns aos outros sobre isso, sobre como tornar o
seguro uniforme, etc. E então, eles encontram um milhão de pessoas na Place de la
Concorde, de todos os lugares, da Holanda, da Alemanha, etc., e os entrevistadores não
podem, de forma alguma, controlar isso, eles convocam especialistas para lhes dizer por
que há tantas pessoas holandesas na Place de la Concorde. Eles simplesmente rodeiam em
torno das verdadeiras questões quando elas precisariam ser feitas. Deleuze admite que o
que está dizendo é um pouco confuso [ele dá uma risada].
Parnet dá o exemplo de Deleuze que costumava ler os jornais diários, mas não lê mais Le
Monde ou Libération. Ela pergunta se há algo no fato de imprensa ou a mídia não colocar
questões que o desgosta, e Deleuze responde, sim! Ele tem a sensação de aprender cada vez
menos. Ele diz que ele está bastante disposto a aprender coisas, já que ele não sabe nada,
mas uma vez que os jornais tampouco dizem qualquer coisa, o que se pode fazer? Parnet
diz que ele sempre vê as notícias vespertinas, é o único programa que ele nunca perde, e
pergunta se Deleuze tem uma questão para formular cada vez que ele vê esse noticiário que
não é nunca formulada na mídia. Deleuze diz que ele não sabe e Parnet diz que ele parece
pensar que nunca se colocam questões. Deleuze diz que ele pensa que, em grande medida,
as questões não podem ser feitas. Aqui Deleuze escolhe um exemplo específico, um recente
escândalo francês que remonta à era de Vichy, a prisão de Paul Touvier [Paul Touvier,
preso em 1989, por crimes contra a humanidade, por enviar 7 judeus a serem executados,
em 29 de junho de 1944, em Rillieux-la-Pape, perto de Lyon, é o primeiro francês a ser
considerado culpado de crimes de guerra e sentenciado à prisão perpétua, em 20 de abril de
1994. Ele morreu de câncer em julho de 1996. Touvier tinha sido condenado à morte, in
absenctia, em 1946, e passou a maior parte dos próximos 40 anos como fugitivo, vivendo
em monastérios católicos]. Deleuze sugere que as questões são evitadas e deliberadamente
não colocadas. Aparentemente, evitou-se colocar questões a Touvier sobre sua conduta
durante a guerra, uma vez que ele devia ter informações que poderiam implicar algumas
autoridades católicas. Assim, diz Deleuze, todo mundo sabe o que Touvier sabe, mas há um
acordo em não colocar questões, e assim elas não são colocadas. Isso é conhecido como
consenso, diz Deleuze, isto é, um acordo segundo o qual perguntas simples como “Como
você está?” tomam o lugar de problemas e questões, isto é, perguntas que evitam qualquer
questão real.
Parnet parece querer fazer objeções ao que Deleuze está dizendo, assim ele diz, vamos
tentar um outro exemplo, sobre os reformadores do partido conservador francês e o aparato
69
político da Direita. Deleuze diz que todo mundo sabre de que se trata, mas os jornais não
dizem uma palavra ao público. Para Deleuze, esses reformadores colocam uma questão
bastante interessante: é uma tentatia de abalar elementos do aparato do Partido que estão
sempre centralizados em torno de Paris. Especificamente, os reformadores querem
independência regional, algo muito interessante e sobre o qual ninguém está insistindo. A
conexão com questões européias, diz Deleuze, é que eles querem criar uma Europa não de
nações, mas de regiões, isto é, uma verdadeira unidad regional e inter-regional, em vez de
uma unidade nacional e internacional. Isso é um problema, diz Deleuze, um problema que
os socialistas terão que enfrentar em algum momento, entre tendências regionalistas e
tendências internacionalistas. Mas os aparatos do Partido, isto é, as federações provinciais,
ainda correspondem à estrutura antiga, centrada em torno de Paris, que conserva um papel
extremamente importante.
Assim, Deleuze conclui que os reformadores conservadores constituem um movimento
anti-jacobino, que a Esquerda também terá um. Deleuze sente que as negociações
[pourpalers] deveriam ocorrer em torno disso, mas ninguém faz isso, eles se recusam até
mesmo a fazê-lo porque, quando eles o fazem, eles se revelam. Portanto, eles apenas
respondem a perguntas, que não são nada mais que conversas sem qualquer interesse. A
não ser por raras exceções, a televisão está condenada a discussões, a perguntas. Para
Deleuze, não se trata nem mesmo de uma questão de enganos deliberados, mas
simplesmente de falta de importância, sem nenhum interesse.
Parnet traz o exemplo de uma jornalista, Anne Saint-Claire, que tenta colocar boas
questões, não perguntas, e Deleuze responde, ótimo, esse é sua tarefa, ele está seguro de
que está muito feliz com ela mesma. À questão de Parnet sobre por que Deleuze nunca
aceitou participar de uma entrevista de televisão, enquanto Foucault e Serres o fizeram, e se
ele está se retirando da vida como o fez Beckett, Deleuze diz, aqui está a prova, esta
entrevista, ele estará na TV! Mas suas razões para não aceitar está relacionadas a algo que
ele já disse: ele não tem qualquer desejo de ter conversas e interrogatórios com pessoas,
algo que ele não pode suportar particularmente quando ninguém sabe que problema está
sendo levantado. Ele volta ao exemplo de Deus: é uma questão da não-existência de Deus,
da morte de Deus, da morte do homem, da existência de Deus, da existência de quem quer
que seja que acredita em Deus, etc. É uma confusão, muito cansativo, diz Deleuze. Assim,
quando todo mundo tem sua vez de falar, trata-se da domesticidade em puro estado, com
algum apresentador idiota [présentateur à la con]... Deleuze conclui isso resmungando
“pitié, pitié”, “piedade”, “piedade”...
Parnet diz que a coisa mais importante é que Deleuze está aqui hoje respondendo suas
pequenas perguntas. Deleuze responde: “sob a condição de que seja póstumo”.
INÍCIOSPAÇOR de Resistência ESPAALFABETO
Parnet lembra a Deleuze sobre algo que ele disse em uma conferência recente: a filosofia
cria conceitos, e sempre que criamos nós resistimos. Artistas, diretores de cinema, músicos,
matemáticos, filósofos, todos resistem, mas Parnet pergunta, ao quê exatamente eles
resistem? Ela sugere considerar caso por caso: os filósofos criam conceitos, mas os
cientistas criam conceitos?
70
Deleuze diz, não, trata-se de uma questão de fins, já que, se concordamos em reservar a
palavra “conceito” para a filosofia, será necessário, então, ter uma outra palavra para
noções científicas. Não dizemos de um ou uma artista que ele ou ela cria conceitos, um
músico ou um pintor não cria conceitos. Assim, para a ciência, precisamos de uma outra
palavra. Digamos que um cientista é alguém que cria funções, não é a melhor palavra: criar
novas funções, por exemplo, Einstein, mas também os grandes matemáticos, físicos,
biólogos, todos criam funções.
Assim, Deleuze pergunta de novo, em que sentido isso é resistência? É mais claro no caso
das artes, ele diz, porque a ciência está em uma posição mais ambígua, um pouco como o
cinema: ela está presa em tantos problemas de organização, de financiamento, etc., que a
porção de resistência [Deleuze não completa o pensamento]. Mas os grandes cientistas, ele
continua, também colocam uma resistência considerável, se pensamos em Einstein, em
muitos físicos e biólogos, é óbvio. Eles resistem, primeiramente, contra serem forçados a
tomarem certas direções tentadoras e contra as demandas da opinião popular, isto é, contra
todo o domínio da pergunta imbecil. Eles realmente têm a força para impor seu próprio
caminho, seu próprio ritmo, e não podem ser forçados a fazerem qualquer coisa que se
queira que eles façam, exatamente da mesma forma que não se pode forçar um artista.
Deleuze aborda a questão da criação como resistência com referência a um escritor que ele
leu recentemente e que o afetou muito relativamente a essa temática. Deleuze diz que um
dos grandes motivos na arte e no pensamento é uma certa “vergonha de ser um home”.
Deleuze ente que Primo Levi é o artista e escritos que formulou isso mais profundamente.
[Sobre Primo Levi, veja O que é a filosofia?, e Negociações. Em O que é filosofia?,
Deleuze e Guattari referem-se ao livro de Primo Levi, O afogado e o salvado (?)]. Ele foi
capaz, diz Deleuze, de falar dessa vergonha, em um livro extremamente profundo que ele
escreveu após ter estado nos campos de concentração nazistas. Levi diz que quando ele foi
libertado, o sentimento dominante era de vergonha de ser um homem. Deleuze considera
isso como uma bela expressão e, ao mesmo tempo, como não sendo absolutamente abstrata,
mas bem concreta, essa vergonha de ser um homem. Mas Deleuze insiste que essa frase não
significa certas idiotices que algumas pessoas gostariam de atribuir a ela. Não significa que
somos todos assassinos, que somos todos culpados do nazismo. Levi diz que não significa
que os carrascos e as vítimas são iguais, e Deleuze sente que não deveríamos ser obrigados
a acreditar nisso, não deveria haver nenhuma equação entre os carrascos e as vítimas.
Assim, a vergonha de ser um homem, continua Deleuze, não significa que somos todos
iguais, ou que estamos todos comprometidos. Significa diversas coisas, um sentimento
muito complexo, não unificado. Significa como puderam alguns humanos, alguns humanos,
Deleuze insiste, isto é, outros que não eu, terem feito isso? E, em segundo lugar, como eu,
entretanto, tomei partido? Deleuze diz que isso não significa que cada um de nós se tornou
um carrasco, mas que ainda assim nós tomamos partido para poder sobreviver, e há uma
vergonha e ter sobrevivido no lugar de amigos que não sobreviveram. Assim, a vergonha de
ser um homem é um sentimento complexo, e Deleuze sente que na base de toda arte, há
esse sentimento muito forte da vergonha de ser um homem que tem como resultado o fato
de que arte consiste em libertar a vida que os homens aprisionaram. Deleuze diz que os
homens nunca cessaram de aprisionar a vida, de matar a vida – “a vergonha de ser um
71
homem”. Assim, o artista é aquele que liberta uma vida poderosa, uma vida que é mais que
vida pessoa, não a vida dele ou dela.
Depois que uma nova fita tem início, Parnet traz Deleuze de volta a essa idéia do artista e
da resistência, o papel da vergonha de ser um homem, da arte libertando a vida dessa prisão
de vergonha, mas algo muito diferente da sublimação. Deleuze insiste que isso significa
extrair a vida, a libertação da vida e, de forma alguma, algo abstrato. Deleuze pergunta o
que é um grande personagem de romance. Não é um personagem tomado de empréstimo ao
real e até mesmo exagerado: ele mencionar o Charlus, da Remembrance, de Proust, que não
é Mostesquiou [amigo de Proust] da vida real, nem mesmo uma reprodução exagerada,
feita pela imaginação brilhante de Proust. Deleuze diz que se trata de forças de vida
fantásticas, por mais que dêem errado. Um personagem de ficção integrou a vida em si
mesmo... Deleuze diz que se trata de uma espécie de gigante, um exagero em relação à
vida, mas não um exagero em relação à arte, já que a arte é a produção desses exageros, e é
apenas por seu único existir que ela é resistência. Ou, em outra direção, ligando com o tema
desenvolvido em “A de Animal”, escrever é sempre escrever por animais, isto é, não para
eles, mas em seu lugar, fazendo o que os animais não podem, escrever, libertar a vida das
prisões que os humanos criaram e é isso que é resistência. Isso é, obviamente, o que os
artistas fazem, diz Deleuze, e ele acrescenta: não existe arte que não seja também uma
libertação das forças da vida, não existe uma arte da morte.
Parnet observa, entretanto, que a arte não é suficiente. Primo Levi acabou por cometer
suicídio muito mais tarde. Deleuze responde, sim, mas ele cometeu suicídio pessoalmente,
ele não agüentava mais, assim ele cometeu suicídio relativamente à sua vida pessoa. Mas,
continua ele, há quatro ou doze ou cem páginas de Primo Levi que permanecerão
resistências eternas. Assim, é dessa forma que acontece.
Deleuze persegue o tema da vergonha de ser um homem, não no sentido grandioso de
Primo Levi. Se é que ousamos dizer algo desse tipo, para cada um de nós, na vida
cotidiana, há acontecimentos minúsulos que nos inspiram essa vergonha de ser um homem.
Testemunhamos uma cena em que alguém foi realmente extremamente vulgar, nós não
fazemos um drama disso, mas nós ficamos incomodados, incomodados pelo outro, e por
nós mesmos porque não podemos suportar isso, quase como uma espécie de
comprometimento. Mas se protestamos, dizendo que o que você está dizendo é baixo,
vergonhoso, nós fazemos um grande drama disso, e ficamos envolvidos. Embora não se
compare, de forma forma, com Auschwitz, sentimos, mesmo nessa escala minúscula, uma
pequena vergonha de ser um homem. Se não sentimos essa vergonha, não há qualquer
razão para fazer arte.
Parnet pergunta se quando se cria, precisamente quando se é um artista, sente-se os
perigos que nos rodeiam em toda parte? Deleuze diz, sim, obviamente, mesmo em filosofia
– como Nietzsche disse, uma filosofia que danifique e resista à estupidez. [Sobre resistência
e estupidez, veja Deleuze, Nietzsche e a filosofia, pp. ]. Mas se a filosofia não existisse, não
poderíamos adivinhar o nível de estupidez que haveria, já que a filosofia impede que a
estupidez seja tão grande quanto seria se não houvesse filosofia. Esse é o esplendor da
filosofia, não temos nenhuma idéia de como as coisas seriam, repete Deleuze, exatamente
da mesma forma que se não houvesse nenhuma arte, não poderíamos imaginar como seria a
72
vulgaridade das pessoas... Quando dizemos que “criar é resistir”, trata-se de uma afirmação
de fato; o mundo não seria o que se não fosse pela arte, diz Deleuze, as pessoas não
agüentariam mais. Não é que elas leiam filosofia, é a própria existência da filosofia que
impede que as pessoas sejam estúpidas e bestas como seriam se não houvesse filosofia.
Parnet pergunta o que Deleuze pensa quando as pessoas anunciam a morte do pensamento,
a morte do cinema, a morte da literatura, [Deleuze desata em uma risada quando ela
pergunta:] não parece uma piada? Sim, diz Deleuze, não existe nenhuma morte, há
assassinatos, muito simplesmente. Ele sugere que talvez o cinema será assassinado, muito
possivelmente, mas não existe nenhuma morte de causas naturais, por uma simples razão:
enquanto não houver nada para absorver e assumir a função da filosofia, a filosofia ainda
terá todo o motivo para continuar vivendo, e se alguma outra coisa assumir a função da
filosofia, então será alguma outra coisa diferente da filosofia. Se dizemos que a filosofia
significa criar conceitos e, por meio disso, prejudicar e impedir a estupidez, o que é, então,
pergunta Deleuze, que morre na filosofia? Ela pode ser bloqueada, censurada, assassinada,
mas ela tem uma função, ela não vai morrer. Deleuze diz que a morte da filosofia sempre
pareceu ser uma idéia imbecil, e não é porque ele esteja ligado à filosofia que ela não
morrerá. Deleuze simplesmente pergunta-se sobre essa gracinha de idéia sobre a morte da
filosofia, que é apenas uma maneira de dizer que as coisas mudam.
Mas, pergunta ele, o que vai substituir a filosofia? Talvez alguém diga: não devemos mais
criar conceitos, e assim, conclui Deleuze, vamos deixar a estupidez dominar, está bem, são
os idiotas que querem matar a filosofia. Quem vai criar conceitos? A ciência da
informação? Os agentes de publicidade que tomaram conta da palavra “conceito”? Está
bem, vamos ter conceitos de publicidade, que é o conceito de uma marca de macarrão, diz
Deleuze. Eles não correm o risco de terem uma grande competição por parte da filosofia
porque a palavra “conceito”, ele acredita, não está mais sendo utilizada da mesma maneira.
Mas é a publicidade que é apresentada como o verdadeiro rival da filosofia uma vez que
eles nos dizem: nós, publicitários, estamos inventando conceitos. Mas, diz Deleuze, o
conceito proposto pela ciência da informação, pelos computadores, é simplesmente ridículo
o que eles chamam de conceito.
Parnet pergunta se podemos dizer que Deleuze, Guattari e Foucault formam redes de
conceitos que funcionam como redes de resistência, como uma máquina de guerra contra os
modos dominantes de pensamento. Deleuze parece visivelmente constrangido e diz, sim,
por que não? Seria muito bom se fosse verdade. Na seqüência, ele reflete sobre as redes: se
não pertencemos a uma “escola” – e, para Deleuze, essas “escolas” de pensamento não
parecem nada boas –, existe apenas o regime de redes, de cumplicidades, algo que existiu
em cada período, por exemplo, o que chamamos de Romantismo – alemão ou em geral –, e
há redes hoje também, suspeita Deleuze. Parnet pergunta se se trata de redes de resistência
e Deleuze diz, sim, na medida em que a função da rede é resistir e criar. Parnet diz que, por
exemplo, Deleuze considera-se ao mesmo tempo famoso e clandestino, como vivendo em
uma espécie de clandestinidade [Deleuze dá uma risada] da qual ele se orgulha. Deleuze diz
que ele não se considera nada famoso, nem clandestino, mas que seria, na verdade,
imperceptível. [Neste ponto, Deleuze parece hesitar, começando frases, mas não concluindo
o pensamento]. Mas se é imperceptível porque se pode... Essas questões são praticamente
pessoais... O que ele quer é fazer seu trabalho, que as pessoas não o incomodem e não o
73
façam perder tempo e, ao mesmo tempo, ele quer ver pessoas, ele precisa disso, como todo
mundo, ele gosta de pessoas, ou de um pequeno grupo de pessoas que ele gosta de ver. Mas
ele insiste que ele não quer que isso constitua nenhum problema, ele só quer ter relações
imperceptíveis com pessoas imperceptíveis, é isso que é a coisa mais bela no mundo.
Deleuze sugere que somos todos moléculas, uma rede molecular.
Parnet pergunta se existe uma estratégia em filosofia, por exemplo, quando ele escreveu
aquele ano em seu livro sobre Leibniz, ele o fez estrategicamente? Deleuze sorri,
perguntando-se em voz alta o que significa a palavra “estratégia”, talvez que não
escrevemos sem uma certa necessidade. Mas ele diz, se não existe nenhuma necessidade de
criar um livro, que isso não é sentido fortemente pelo autor, então ele não deveria fazê-lo.
Assim, quando Deleuze escreveu sobre Leibniz, foi por necessidade, porque para ele havia
chegado o momento – uma coisa muito comprida para explicar em detalhe – de falar sobre
Leibniz e a dobra. E quanto à dobra, acontecia que, para Deleuze, ela estava
fundamentalmente ligada a Leibniz. Ele pode dizer isso para cada livro que ele escreveu:
qual era a necessidade em cada período.
Parnet continua a falar sobre isso: além do impulso da necessidade que leva Deleuze a
escrever, ele pergunta sobre sua movimentação, depois de escrever filosofia e voltar à
história da filosofia, depois dos livros sobre cinema e depois de livros como Anti-Édipo e
Mil platôs. Deleuze diz que não houve nenhuma volta da filosofia, e essa foi a razão pela
qual ele, anteriormente, respondeu às perguntas dela de forma bastante exata. Ele escreveu
um livro sobre Leibniz porque, para ele, tinha chegado o momento de estudar o que era
uma dobra. Ele faz história da filosofia quando ele tem necessidade, isto é, quando ele
encontra e vive uma noção que já está ligada a um filósofo. Quando ele ficou animado
sobre a noção de “expressão”, ele escreveu um livro sobre Espinosa, porque Espinosa é o
filósofo que levou a noção de “expressão” a um nível extraordinário. Assim, parecia-lhe
óbvio que seria por meio de Leibniz, e ocorre que ele também encontra noções que não
estão ainda dedicadas a um filósofo, assim, nesse caso Deleuze não faz história da filosofia.
Mas ele não vê qualquer diferença entre escrever um livro sobre história da filosofia e um
livro sobre filosofia, assim é dessa forma, diz ele, que ele segue seu próprio caminho.
EINÍCIOSPAÇOS de Style-Estilo ESPAALFABETO
Parnet anuncia o título e Deleuze exclama: “ah, bom!”. Parnet pergunta o que é o estilo. Ela
lembra que em Diálogos, Deleuze diz que o estilo é a propriedade daqueles dos quais se diz
que não têm nenhum estilo. Ele diz isso de Balzac. Assim, o que é o estilo? Deleuze diz que
não se trata de um questão trivial, e Parnet responde, não, foi por isso que ela fez a pergunta
de forma tão rápida! [Na verdade, em Diálogos, Deleuze não faz qualquer referência a um
escritor específico. Em vez disso, ele diz: “Gostaria de dizer o que é o estilo. Ele pertence a
pessoas dos quais normalmente dizemos: “Eles não têm nenhum estilo”. Não se trata deum
estrutura de significação, nem de uma organização refletida, nem de uma inspiração
espontânea, nem de uma orquestração, nem de uma pequena peça musical. Trata-se de um
agenciamento, um agenciamento de enunciação. Um estilo significa conseguir gaguejar em
sua própria língua”.]
74
Deleuze ri, depois diz, escuta, isso é o que posso dizer para compreender o que é estilo:
antes de mais nada, é melhor não saber absolutamente nada sobre lingüística. A lingüística
tem causado muito prejuízo, diz ele; por quê? Há uma oposição – Foucault o disse muito
bem – e trata-se mesmo de sua complementaridade, entre lingüística e literatura.
Contrariamente ao que muitos dizem, elas, de forma alguma, encaixam. É porque, para a
lingüística, diz Deleuze, a língua [langue] é sempre um sistema em equilíbrio a partir do
qual pode-se criar uma ciência. E o resto, as variações, são colocadas não mais no lado da
linguagem, mas no lado da fala [parole]. Quando escrevemos, sabemos perfeitamente que a
língua é um sistema sobre o qual os fisicos diriam que é um sistema muito distante do
equilíbrio, um sistema em desiquilíbrio permanente, de forma que não existe qualquer
diferença de nível entre língua e fala, mas a língua é constituída por todo tipo de correntes
heterogêneas em desiquilíbrio mútuo.
Assim, ele continua, o que é o estilo de um grande autor? Deleuze diz que ele pensa que há
duas coisas no estilo – ele observa que ele está respondendo rapidamente e claramente, mas
que ele está envergonhado porque está demasidamente abreviado. O estilo é composto de
duas coisas: submetemos a língua na qual falamos e escrevemos a um certo tratamento, não
um tratamento que seja artificial, voluntário, etc., mas um tratamento que mobiliza tudo, a
vontade do autor, mas também seus desejos e necessidades. Assim, submetemos a língua a
um tratamento sintático e original, que poderia ser... Aqui Deleuze indica que eles estão
voltando ao tema da letra “A de Animal”: um tratamento que poderia fazer a língua
gaguejar e Deleuze diz, não que nós mesmos gaguejemos, mas fazer a língua gaguejar. Ou,
e não se trata da mesma coisa, fazer a língua balbuciar.
Ele toma o exemplo dos grandes estilistas: Gherasim Luca, um poeta. Deleuze sugere que
geralmente ele cria gaguejando, não a sua própria fala, mas faz a língua gaguejar. Outro
exemplo é Charles Péguy, de forma muito estranha, diz Deleuze, porque Péguy é um certo
tipo de personalidade sobre o qual esquecemos que, acima de tudo, está entre os grandes
artistas, e ele é totalmente louco. Deleuze dia que nunca ninguém escreveu como Péguy, e
nunca ninguém escreverá com Péguy, e sua escrita está entre os grandes estilos da língua
francesa, um dos grandes criadores da língua francesa. O que ele fez? Não podemos dizer
que seu estilo é um gaguejar: em vez disso, ele faz a sentença se desenvolver a partir de seu
meio: em vez de fazer com que as sentenças se sigam umas às outras, ele repete a mesma
sentença com acréscimo no seu meio, o qual, por sua vez, gerará um outro acréscimo, etc.
Ele faz a sentença proliferar a partir de seu meio, por inserções. Trata-se de um grande
estilo, conclui Deleuze.
Assim, há o primeiro aspecto: fazer com que a língua seja submetida a um incrível
tratamento. É por isso que um grande estilista não é alguém que conserva a sintaxe, mas é
um criador de sintaxe. Deleuze diz que ele não pode deixar de citar a admirável fórmula de
Proust: obras de arte são sempre escritas em uma espécie de língua estrangeira. Um
estilista, diz Deleuze, é alguém que cria uma língua estrangeira em sua própria língua.
[Deleuze e Parnet fornecem a referência dessa citação na página .... de Diálogos, do livro de
Proust, Contra Sainte-Beuve]. É verdadeiro a respeito de Céline, de Péguy. Ele continua: ao
mesmo tempo que esse primeiro aspecto – fazer com que a sintaxe sofra uma deformação,
um tratamento de contorsão, mas necessário, que constitui algo como uma língua
estrangeira na língua na qual escrevemos, -- o segundo aspecto consiste em, por meio desse
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mesmo processo, levar toda a língua, integralmente, a uma espécie de limite, à fronteira que
a separa da música. Produzimos um tipo de música. Se somos bem sucedidos, é com essas
duas coisas, e é necessário fazê-lo, trata-se de um estilo, ele pertence a todos os grandes
estilistas. Tudo isso acontece de uma vez só: cavar no interior da língua uma língua
estrangeira, levar toda a língua a uma espécie de limite musical: é isso o que significa ter
um estilo.
Parnet pergunta rapidamente se Deleuze acha que ele tem um estilo..., e ele cai numa
gargalhada, dizendo, “Oh! a perfídia!”. Parnet continua, ... porque ela vê uma mudança em
relação a seus primeiros livros. Deleuze diz que a prova do estilo está em sua variabilidade,
e que geralmente caminhamos em direção a um estilo cada vez mais sóbrio. Isso não
significa menos complexo, insiste Deleuze. Ele pensa imediatamente em um dos escritores
que ele admira muito do ponto de vista do estilo, Jack Kerouac. No final de sua carreira, diz
Deleuze, a escrita de Kerouac era como um desenho japonês de linha, uma pura linha,
alcançando uma sobriedade, mas isso realmente implica, então, a criação de uma língua
estrangeira no interior da língu. Deleuze também pensa em Céline, e ele acha estranho
quando as pessoas ainda elogiam Céline por haver introduzido a linguagem falada na
linguagem oral [em Voyage au bout de la nuit]. Deleuze acha isso estúpido porque, na
verdade, é preciso um tratamento escrito completo na língua, devemos criar uma língua
estrangeira no interior da língua a fim de obter, por meio da escrita, o equivalente da língua
falada. Assim, Céline não introduziu o falado na língua, é simplesmente estúpido dizer isso,
exclama Deleuze. Mas quando Céline recebia um elogio, continua Deleuze, ele sabia que
ele estava muito distante do que ele queria criar, assim ele começou seu segundo romance.
Em Mort à crédit, ele chega mais perto, mas quando o livro é publicado e lhe dizem que ele
havia mudado seu estilo, ele sabia outra vez que ele estava distante do que ele queria e
assim o que ele queria ele vai alcançar com Guignhol’s Band, no qual, de fato, a linguagem
é levada a um tal limite que está próxima da música. Não é mais um tratamento da língua
que cria uma língua estrangeira, mas toda uma linguagem levada a seu limite musical.
Assim, por sua própria natureza, o estilo muda, ele tem sua variação.
Parnet menciona que com Péguy, pensamos freqüentemente no estilo musical de Steve
Reich, com o aspecto repetitivo, mas Deleuze diz que Péguy é um estilista muito maior que
Reich. Parnet observa que Deleuze ainda não respondeu à sua “perfídia”: se ele acha que
ele tem um estilo. Deleuze diz que ele gostaria de ter, mas pergunta-lhe o que ela quer que
ele diga. Para ser um estilista, diz ele, temos já que viver o problema do stilo. Ele diz que
ele pode responder mais modestamente dizendo que ele vive o problema. Ele diz que ele
não escreve dizendo para si mesmo que ele vai lidar com a questão do estilo mais tarde.
Deleuze diz que ele está muito consciente que não obterá o movimento dos conceitos que
ele quer se a escrita não passar pelo estilo, e ele diz que ele está pronto para reescrever a
mesma página dez vezes.
Depois que a fita muda, Parnet retoma essa questão outra vez, dizendo que para Deleuze, o
estilo é uma espécie de necessidade para a composição daquilo que ele escreve, que a
composição entra na sua escrita de uma forma bem primordial. Deleuze concorda
completamente, refazendo a questão dessa forma: a composição de um livro é já uma
questão de estilo? E ele responde, sim, inteiramente. A composição de um livro não pode
ocorrer de forma antecipada, mas ao mesmo tempo que o livro é escrito. Naquilo que
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Deleuze escreveu, “se eu puder invocar isso”, ele diz, há dois livros que parecem ter sido
compostos. Deleuze diz que ee sempre atribuiu grande importância à própria composição,
por exemplo, em Lógica do sentido, composto por séries, constituindo para Deleuze
verdadeiramente uma espécie de composição serial. Depois, em Mil platôs, trata-se de uma
composição por platôs, platôs constituídos por coisas. Mas Deleuze vê esses dois livros
quase como duas composições musicais. A composição, diz ele, é um elemento
fundamental do estilo.
Parnet pergunta sobre algo que ele disse anteriormente: se no modo de expressão de
Deleuze ele está agora mais próximo do que ele queria do que vinte anos atrás, ou se se
trata de uma coisa completamente diferente. Deleuze diz que atualmente no que ele está
fazendo, ele sente que, naquilo que ainda não está concluído, ele está chegando mais perto,
que ele está capturando algo que ele estava buscando e que não havia encontrado antes.
Parnet sugere que seu estilo é não apenas literário, que se sente claramente o estilo em
todos os domínios. Por exemplo, diz ela, Deleuze vive com uma família elegante, seu
amigo Jean-Pierre também é bastante elegante, e Deleuze parece ser bastante sensível a
essa elegância.
Deleuze diz, primeiramente, que ele se sente um pouco excedido. Ele diz que ele gostaria
de ser elegante mas sabe muito bem que não o é. Para ele, a elegância consiste já em
perceber o que é a elegância. Tem que ser assim uma vez que há pessoas que não
conseguem perceber isso, de jeito nenhum, e para as quais o que elas chamam elegância
não é, de forma alguma, elegante. Assim, uma certa apreensão do que é a elegância faz
parte da elegância. Essa elegância que impressiona Deleuze é um domínio como qualquer
outro, que exige uma aprendizagem, para o qual se tem um certo dom. Ele, então, pergunta
a Parnet por que ela lhe perguntou isso. Ela diz que a questão do estilo está em todos os
domínios. Ele diz, naturalmente, mas esse aspecto não é parte da grande arte. Deleuze faz
uma pausa, depois diz, o que é importante – além da elegância que ele aprecia muito – são
todas essas coisas no mundo que emitem signos. Assim, uma grande elegância, tanto
quanto a vulgaridade, emite signos, e é algo mais que apenas a elegância que Deleuze
considera importante: é a própria emissão de signos. É por isso que ele sempre gostou e
ainda gosta tanto de Proust, pela mundaneidade, pelas relações mundanas. Aquilo que se
conhece como “gafe”, por exemplo, trata-se de uma fantástica emissão de signos. Trata-se
de uma não-compreensão de um signo, signos que as pessoas não compreendem. A vida de
sociedade existe como um milieu da proliferação de signos vazios, mas é também a
velocidade de sua emissão, a natureza de sua emissão. Isso se liga de novo com o mundo
dos animais porque os mundos dos animais também são emissões de signos. Os animais e
os “animais” mundanos são os mestres dos signos.
Parnet diz que, embora Deleuze não saia muito de casa, ele sempre se mostrou mais
favorável às noites mundanas que às conversas amenas. Deleuze diz, naturalmente, porque
para ele, nos meios mundanos, as pessoas não vão discutir, essa vulgaridade não faz parte
daquele meio. Em vez disso, move-se completamente em uma certa leveza, isto é, em uma
evocação extraordinariamente rápida, em velocidades de conversas. Outra vez, diz Deleuze,
trata-se de emissões de signos muito interessantes.
INÍCIOSPAÇOT de Tênis ESPAALFABETO
77
Parnet começa afirmando que Deleuze sempre gostou do tênis. Há uma conhecida história
sobre Deleuze quando ele era criança: ele correu atrás do autógrafo de um grande tenista
sueco que ele havia avistado e, na verdade, o que ele acabou conseguindo foi o autógrafo
do rei da Suécia. Deleuze diz que não foi nenhum engano, ele sabia de quem se tratava, o
rei já era mais ou menos centenário. Mas Deleuze confirma ter pedido o autógrafo do rei da
Suécia. Há uma foto de Deleuze no Le Figaro, um menino se aproximando do velho rei da
Suécia para pedir um autógrafo. Parnet pergunta se Deleuze não estava atrás do tenista e
Deleuze diz que se tratava de Borotras, não se tratava de um grande tenista, mas um dos
guarda-costas do rei, que jogava tênis com o rei, que lhe dava aulas de tênis. Assim, ele
tentou empurrar Deleuze algumas vezes para impedi-lo de chegar demasiadamente perto do
rei, mas o rei era simpático e Borotras também acabou se tornando simpático.
Parnet pergunta se o tênis é o único esporte que ele vê na televisão e Deleuze diz, não, ele
adora futebol, assim é o futebol e não tênis. Parnet pergunta se ele jogava tênis e Deleuze
diz, sim, bastante até a guerra, de modo que isso faz dele uma vítima da guerra! Parnet
pergunta que efeito isso tem sobre seu corpo, quando se pratica muito um esporte, ou
quando se deixa de praticá-lo, se existem coisas que mudam. Deleuze diz que ele não acha
isso, ao menos não no caso dele. Ele diz que ele não o transformou em um ofício. Em 1939,
ele tinha 14 anos e parou de jogar tênis, assim não se tratava de nada sério. Parnet pergunta
se ele jogava bem e Deleuze diz, sim, para um garoto de 14 anos ele jogava bastante bem,
mas ele um tanto baixo. Parnet diz que ela também ouviu dizer que praticou um pouco de
boxe, e Deleuze diz, um pouco, mas ele acabou se machucando, assim ele parou em
seguida, mas, sim, ele tentou praticar um pouco de boxe.
Parnet pergunta se ele acha que o tênis mudou muito em relação à época de sua juventude
e Deleuze diz, sim, naturalmente, como em todos os esportes, há milieus de variação, e aqui
voltamos à questão do estilo. Deleuze acha muito interessante a questão das atitudes do
corpo. Há uma variação de posições do corpo sobre espaços de maior ou menor extensão e
teríamos que categorizar as variáveis na história dos esportes. Deleuze vê várias. Variáveis
de tática: no futebol, a tática mudou muito desde a época de sua infância. Há posições
variáveis para a postura do corpo: houve um momento, diz Deleuze, em que ele esteve
muito interessado no lançamento de esfera [? shot put], não para que ele próprio praticasse,
mas a conformação do lançador de esferas desenvolveu-se, em determinado momento, com
uma rapidez extrema. Tornou-se uma questão de força: como, com lançadores realmente
fortes, podia-se recuperar a velocidade e como, com malhadores [de corpo] voltados para a
velocidade, podia-se recuperar a força? Deleuze acha essa questão muito interessante. Ele
diz que o sociólogo Marcel Mauss fez uma série de estudos sobre as posições do corpo em
diferentes civilizações, mas o esporte é um domínio da variação de posições, algo muito
fundamental.
No tênis, mesmo antes da guerra, lembra Deleuze, as posições não eram as mesmas, e algo
que o interessa muito, de novo em relação com o estilo, é a questão dos campeões que são
verdadeiros criadores. Deleuze diz que há dois tipos de campeões, que não têm o mesmo
valor para ele, os criadores e os não-criadores. Os não-criadores são aqueles que mantêm o
estilo pre-existente e têm uma força inigualável, por exemplo, Lendl. Deleuze não
considera Lendl como sendo fundamentalmente um criador no tênis. Mas existem, então, os
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grandes criadores, mesmo nos níveis muito simples, aqueles que inventam novos lances e
introduzem novas táticas. E atrás deles vêm uma multidão de toda espécie de seguidores,
mas os grandes estilistas são inventores, algo que certamente encontramos em todos os
esportes.
Deleuze se pergunta qual foi o grande ponto de virada no tênis e ele acha que foi a sua
proletarização, de uma forma relativa, naturalmente. Ele tornou-se um esporte de massa,
uma espécie de executivos jovens com pretensões de classe operária, mas Deleuze sente
que podemos chamar isso de proletarização do tênis. E, naturalmente, continua ele, há
abordagens mais profundas para explicar tudo isso, mas isso não teria ocorrido se não
tivesse havido, ao mesmo tempo, a chegada de um gênio, Bjorn Borg, que tornou isso
possível. Por quê? Porque, de acordo com Deleuze, ele trouxe um estilo particular, e ele
teve que criar um tênis de massa a partir do nada. Então, atrás dele veio uma multidão de
campeões muito bons, mas não criadores, por exemplos, tipo Vilas, etc. Assim, Borg tem
um apelo para Deleuze, sua cabeça como a de Cristo, a postura de Cristo, essa extrema
dignidade, esse aspecto que o tornou tão respeitado entre todos os jogadores.
Depois de uma mudança de fita, Parnet pergunta se Deleuze assistiu muitas partidas de
tênis, e ele começa a responder, mas acaba retornando à questão do Borg como um
personagem como Cristo, que criou o tênis de massa, e com isso, tratou-se de uma criação
total de um novo jogo. Depois, vieram correndo atrás todas as espécies de jogadores do tipo
Vilas, que impuseram um estilo em geral soporífico no jogo, enquanto que com Borg,
sempre redescobrimos o tipo de jogador que ouve os elogios, mas que sente que está longe
de fazer o que ele queria fazer. Deleuze sente que Borg mudava deliberadamente: quando
ele estava seguro de suas jogadas, elas não o interessavem mais, assim seu estilo
desenvolveu-se extraordinariamente, enquanto o jogador comum se apega à mesma e velha
rotina. Deleuze diz que McEnroe deve ser vito como o anti-Borg.
Parnet pergunta qu tipo de estilo Borg impôs e Deleuze descreve-o como: situado no
fundo da quadra, o mais longe possível, rodopiando, a bola colocada bem acima da rede.
Deleuze diz que qualquer “proletário” podia entender esse jogo, não que ele fosse capaz de
sair-se bem [Deleuze e Parnet dão risadas]. Assim, o princípio mesmo – profundidade da
quadra, rodopio, bola alta – é o oposto dos princípios aristocráticos. Trata-se de princípios
populares, mas que gênio era preciso ter para isso!, diz Deleuze, exatamente como Cristo,
um aristocrata que vai ao povo. Deleuze admite que ele provavelmente está dizendo algo
idiota, mas ele achou a jogada Borg impressionante, a obra de um grande jogador.
E com McEnroe, continua ele, era um puro aristocrata, metade egípcio, metade russo,
saque egípcio, alma russa, inventando jogadas que ele sabia que ninguém podia seguir.
Assim, ele era um aristocrata que não podia ser seguido. Ele inventou algumas jogadas
prodigiosas, uma delas consistia em colocar a bola, muito estranha, nem mesmo tocá-la,
apenas colocá-la. E ele desenvolveu um movimento de saque que era desconhecido, tanto o
saque dele quanto o de Borg foram completamente transformados. Outro grande jogador,
mas sem a mesma importância, é o outro americano, Connors, que também tinha um
princípio aristocrático, argumenta Deleuze: a bola mal acima da rede, um princípio
aristocrático muito estranho, e também batendo enquanto estava numa posição de
desiquilíbrio. Deleuze diz que Connors nunca jogou com tanto gênio quanto quando ele
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estava completamente em desiquilíbrio. Deleuze diz que há uma história do esporte, e tem
que ser contada exatamente como na arte, a evolução, os criadores, os seguidores, as
mudnças, os devires do esporte.
Parnet traz Deleuze de volta à sua afirmação sobre ter assistido algo, e ele tenta lembrar a
quê ele se referia. Ele diz que é algo difícil de especificar o quê ou quando algo realmente
teve origem [em um esporte], embora Deleuze lembre algo particular. Antes da guerra,
havia alguns australianos – isto faz com que Deleuze especule sobre as questões das origens
nacionais, por que os australianos introduziram a two-handed back swing, ao menos tanto
quanto ele se lembra. Uma jogada que o impressionou quando ele era criança era algo que
teve um grande impacto, quando eles viam que o oponente não conseguia atingir a bola, e
não podiam compreender por quê. Deleuze diz que se tratava de um golpe bastante suave e
depois de pensar seriamente sobre isso, eles viram que era a réplica do saque. Quando o
oponente dava o saque, o jogador o retornava com uma batida bastante suave, assim ele a
recebia como uma bola a meio-caminho que ele não podia devolver. Assim, tratava-se de
uma estranha resposta, porque Deleuze não podia compreender muito bem por qual motivo
ela funcionava. Na opinião de Deleuze, o primeiro a ter sistematizado isso foi um grande
jogador australiano, que não teve uma grande carreira nas quadras de terra, chamava-se
Bromwich, foi um pouco antes da guerra ou um pouco depois (Deleuze diz que ele não
lembra exatamente). Mas ele lembra, isto sim, que quando ele criança ou jovem, ele se
impressionava com essa jogada que agora se tornou clássica. Tanto quanto ele saiba, foi a
invenção de uma resposta que a geração de Borotras não conhecia ainda, apenas respostas
simples.
Para terminar com o tema do tênis, Parnet pergunta se Deleuze pensa que McEnroe
continuará a fazer o que ele faz, quando ele ofende o juiz, na verdade ofendendo mais a ele
próprio que o juiz, e se isso é uma questão de estilo, e se ele, McEnroe, está descontente
com essa forma de expressão? Deleuze diz, sim, é uma questão de estilo porque faz parte
integral do estilo de McEnroe. Trata-se de uma espécie de recarga nervosa, exatamente da
mesma forma que um orador fica irritado, enquanto há oradores que permanecem calmos e
distantes. Assim, o estilo de McEnroe tem isso como um dos elementos, é a alma, como se
diz em alemão, a Gemut.
INÍCIOSPAÇOU de Uno ESPAALFABETO
Parnet começa dizendo que a filosofia e a ciência supostamente se preocupam com
“universais”. Entretanto, Deleuze sempre diz que a filosofia deve permanecer
constantemente em contato com singularidades. Ela pergunta: não há aí um paradoxo?
Deleuze diz que não existe nenhum paradoxo porque a filosofia, e mesmo a ciência, não
tem estritamente nada a ver com universais. Trata-se de um lugar-comum, que vem da
opinião geral, isto é, a opinião sobre a filosofia que se preocupa com universais, e que a
ciência se preocupa com fenômenos universais que sempre podem ser reproduzidos, etc.
Deleuze sugere que consideremos a afirmação: todos os corpos caem. O que é importante,
insiste Deleuze, não é que todos os corpos caem, mas, antes, a própria queda e as
singularidades da queda. Mesmo que as singularidades científicas sejam reproduzíveis –
por exemplo, singularidades matemáticas em funções, ou singularidades físicas, ou
singularidades químicas, etc. –, está bem, mas e daí? Deleuze argumenta que se trata de
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fenômenos secundários, processos de universalização, mas a ciência trata não de universais,
mas de singularidades: quando um corpo muda seu estado, do estado líquido para o estado
sólido, etc.
Deleuze continua, argumentando que que a filosofia não está preocupada com o uno, com
o ser. Sugerir isso é uma estupidez. Em vez disso, ela está também preocupada com
singularidades. Finalmente, nós quase sempre descobrimos multiplicidades, que são
agregados de singularidades. A fórmula para as multiplicidades e para agregados de
multiplicidades é n-1, isto é, o Uno é aquilo que deve ser sempre subtraído. Assim, Deleuze
sustenta que há dois erros que não se pode fazer: a filosofia não está preocupada com
universais. Existem três tipos de unversais: universais de contemplação – Idéias com I
maiúsculo; universais de revelação; e universais de comunicação, o último refúgio da
filosofia dos universais [Deleuze e Guattari desenvolvem essa noção em O que é a
filosofia?, cap. 1; sobre universais, ver pp........] Habermas gosta desses universais da
comunicação [Deleuze dá uma gargalhada].
Isto significa que a filosofia não é definida nem como contemplação, nem como reflexão,
nem como comunicação. Em todos os três casos, é realmente cômico, realmente burlesco.
A filosofia que contempla, ok, diz Deleuze: ela faz todo mundo rir. A filosofia que reflete
não nos faz rir, mas é ainda mais estúpida porque ninguém precisa da filosofia para refletir.
Os matemáticos não precisam da filosofia para refletir sobre matemática. Um artista não
precisa buscar a filosofia para refletir sobre a pintura ou a música. Boulez não precisa da
filosofia para refletir sobre a música. Acreditar que filosofia seja uma reflexão sobre
qualquer coisa significa desprezar tudo. E, afinal, sobre o quê supõe-se que a filosofia
reflete?, pergunta Deleuze. Quanto à filosofia ser a restauração de um consenso na
comunicação a partir da base dos universais na comunicação, essa é a idéia mais engraçada
que já ouvi desde... Pois a filosofia não tem estritamente nada a ver com comunicação. A
comunicação é perfeitamente auto-suficente e toda essa coisa sobre consenso e opinião é a
arte das perguntas.
Deleuze reitera que a filosofia consiste em criar conceitos, o que não significa comunicar.
A arte não é comunicativa ou reflexiva, argumenta Deleuze, nem a arte nem a ciência nem
a filosofia são contemplativas ou reflexivas ou comunicativas. Elas são criativas,
simplesmente. Assim, conclui ele, a fórmula n-1 suprime a unidade, suprime o universal.
Parnet replica que Deleuze sente, portanto, que os universais não têm nada a ver com a
filosofia e Deleuze sorri, balançando sua cabeça.
INÍCIOSPAÇOV de Viagens ESPAALFABETO
Parnet anuncia esta letra dizendo que é a demonstração de um conceito como um paradoxo
porque Deleuze inventou o conceito de nomadismo, mas ele odeia viajar. Por quê, em
primeiro lugar, ele odeia viajar? Deleuze diz que ele não gosta das condições de viagem
para um intelectual pobre. Talvez se ele viajasse de forma diferente ele adoraria viajar, mas
os intelectuais [Deleuze dá uma risada], o que significa para eles viajar? Significa ir a
conferências, no outro lado do mundo se necessário, e tudo isso inclui um falar-antes e um
falar-depois com pessoas que saudam você muito simpaticamente, uma falar-depois com
pessoas que ouviram você muito educadamente, falar, falar, falar, diz Deleuze. Assim, para
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ele, a viagem de um intelectual é o oposto da viagem. Isto é, ir ao outro lado da terra para
fazer algo que se pode fazer em casa, e ver pessoas e falar antes, falar depois, trata-se de
uma viagem monstruosa.
Tendo dito isso, Deleuze diz que ele sente uma grande simpatia por pessoas que viajam,
não se trata de nenhum princípio para ele, e ele diz que nem sequer pretende estar com a
razão, graças a Deus. Ele pergunta o que significa viajar para ele? Primeiramente, há
sempre um pouquinho de uma falsa ruptura, o primeiro aspecto que faz com que a viajar
para ele seja bastante desagradável. Assim, a primeira razão: trata-se de uma ruptura barata,
e Deleuze sente-se exatamente da forma como foi expressada por Fitzgerald: uma viagem
não é suficiente para criar uma ruptura real. Se se trata de uma questão de rupturas, diz
Deleuze, há outras coisas que não a viagem, porque, afinal, o que a gente vê? Pessoas que
viajam muito, e talvez sejam orgulhosas disso, alguém disse que é para encontrar um pai
[Deleuze dá uma risada]. Eles não deveriam se dar ao trabalho... Viajar pode realmente ser
edipiano em um certo sentido, diz ele, dando risadas. Deleuze conclui: eu digo, não, não dá!
A segunda razão está relacionada com uma frase admirável de Beckett que afetou muito
Deleuze. Beckett faz um de seus personagens dizer, mais ou menos – Deleuze diz que é um
mau citador, e a frase poderia ser dita de uma forma melhor do que a que ele vai dizer: as
pessoas são realmente idiotas, está bem, mas não ao ponto de viajar por prazer. Deleuze
acha esta frase inteiramente satisfatória: sou idiota, diz ele, mas não ao ponto de viajar por
prazer, não, não a esse ponto.
E um terceiro aspecto da viagem: Parnet mencionou o termo “nômade”, e Deleuze admite
que ele é muito fascinado com os nômades, mas trata-se de pessoas que, precisamente, não
viajam. Quem viaja são os emigrantes, e pode haver pessoas perfeitamente respeitáveis que
são forçadas a viajar, pessoas exiladas, emigrantes. Trata-se de um tipo de viagem que não
pode, de forma alguma, ser ridicularizada, porque trata-se de formas sagradas de viagem, a
viagem forçada. Mas os nômades não viajam, diz Deleuze. Literalmente, eles permanecem
completamente imóveis, todos os especialistas em nômades dizem isso. É porque os
nômades não querem partir, porque ele se apegam à terra, à sua terra. Sua terra torna-se
deserta e eles se apegam a ela, eles só podem ser nômades em sua terra, e é por força da
vontade de ficar em sua terra que eles se tornam nômades. Assim, em um certo sentido,
pode-se dizer que nada é mais imóvel que um nômade, que nada viaja menos que um
nômade. É porque eles não querem partir que eles são nômades. E é por isso que eles são
completamente perseguidos.
E, finalmente, diz Deleuze, quase o último aspecto da viagem – há uma frase de Proust
que é muito bonita que diz: afinal, o que a gente sempre faz quando viaja é verificar algo,
verificamos que uma cor sobre a qual sonhamos existe realmente. E ele acrescenta algo
imporante, insiste Deleuze: um mau sonhador é alguém que não vai ver se a cor sobre a
qual ele sonhou está realmente lá, mas um bom sonhador sabe que a gente tem que ir
verificar se a cor está realmentelá. Deleuze acha que essa é uma boa concepção da viagem.
Parnet diz que se trata de um progresso fantástico, e Deleuze continua: há viagens que são
verdadeiras rupturas. Por exemplo, diz Deleuze, a fida de J. M. G. Le Clézio, neste
momento, parece ser uma das formas pelas quais ele faz uma espécie de ruptura. Deleuze
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menciona o nome de Lawrence [T. E.]... e depois diz que há muitos grandes escritores que
ele admira que têm o sentido da viagem. Stevenson é um outro exemplo, as viagens de
Stevenson não são desprezíveis, diz ele. Assim, Deleuze insiste que o que ele está dizendo
não pode ser generalizado, mas em termos de sua própria explicação, alguém que não gosta
de viajar provavelmente tem essas quatro razões.
Parnet pergunta se esse tema da viagem está ligado à lentidão natural de Deleuze e
Deleuze diz, não, que ele não concebe a viagem como sendo lenta, mas que, em todo caso,
ele não sente necessidade de se mover. Todas as intensidades que ele tem são intensidades
imóveis. As intensidades se distribuem, ele diz, no espaço ou em outros sistemas que não
estão necessariamente em espaços exteriores. Deleuze assegura a Parnet que quando ele lê
um livro ou ouve música que ele considera belo, ele realmente tem a sensação de estar
entrando nesses estados e emoções que ele nunca encontraria na viagem. Assim, pergunta
ele, por que ele buscaria essas emoções em lugares que não se quadram muito bem com ele,
enquanto ele tem as mais belas delas só para ele, em sistemas imóveis, como a música,
como a filosofia. Deleuze diz que há uma geo-música, uma geo-filosofia, que ele considera
serem países profundos, e que esses são seus países. Parnet diz: “terras estrangeiras”, e
Deleuze continua dizendo que se trata de suas próprias terras estrangeiras, que ele não
encontra viajando.
Parnet diz que ele é a perfeita ilustração de que o movimento não está localizado no
deslocamento, mas ela observa que viajou um pouco, ao Líbano para uma conferência, ao
Canadá, aos EEUU. Deleuze diz, sim, mas ele tem que dizer que ele sempre foi arrastado e
que ele não faz mais isso porque ele nunca deveria ter feito tudo aquilo, ele sente que ele
fez muito. Ele também diz que na época ele gostava de andar e agora ele anda menos bem,
assim ele não viaja mais. Mas ele lembra andando sozinho nas ruas de Beirute, da manhã
até à noite, não sabendo para onde estava indo. Ele diz que ele gosta de ver uma cidade a
pé, mas que isso acabou. [Deleuze acena com a cabeça].
INÍCIOSPAÇOW de Wittgenstein ESPAALFABETO
Parnet diz, vamos para a letra W e Deleuze diz, não há nada em W. Parnet diz, sim, há
Wittgenstein. Ela sabe que ele não significa nada para Deleuze, que é apenas uma palavra.
Deleuze diz que ele não gosta de falar sobre... Trata-se de uma catástrofe filosófica. É
exatamente o tipo de uma “escola”, uma regressão de toda filosofia, uma imensa regressão.
Deleuze considera o tema Wittgenstein muito triste. Eles impuseram um sistema de terror
no qual, sob o pretexto de fazer algo novo, trata-se da pobreza apresentada como grandeza.
Deleuze diz que não existe nenhuma palavra que possa expressar esse tipo de perigo, mas
esse perigo é um perigo recorrente, que não foi a primeira vez que ocorreu. É uma coisa
séria, uma vez que ele acha que os wittgensteinianos são nocivos e destrutivos. Assim, pode
haver um assassinato da filosofia, eles são assassinos da filosofia, e por causa disso,
devemos continuar vigilantes. [Deleuze dá uma risada].
INÍCIOSPAÇOX de Desconhecido, Y de IndizívelSPAALFABETO
Parnet diz que X é desconhecido e Y é indizível [Deleuze dá uma risada], assim eles
passam diretamente para a letra final do alfabeto.
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INÍCIOSPAÇOZ de ZiguezagueSPAALFABETO
Parnet diz que eles estão na última letra, Z, e Deleuze diz, “já era tempo!”. Parnet diz que
não é o Z de Zorro, o Justiceiro, já que Deleuze deixou claro, ao longo de todo o alfabeto,
que ele não gosta de julgamentos. É o Z de bifurcação, de iluminação, é a letra que
encontramos em nomes de grandes filósofos: Zen, Zaratustra, Leibniz, Nietzsche, Spinoza,
BergZon [Deleuze dá uma risada] e, naturalmente, o próprio Deleuze. Ele acha que o Z é
uma grande letra que estabelece um retorno a A, a mosca, o movimento de ziguezague da
mosca, o Z, a palavra final, nenhuma palavra depois do ziguezague. Deleuze acha bom
terminar com esta palavra.
_________ . Abecedário de Gilles Deleuze. Disponível na internet via URL
http://www.ufrgs.br/faced/tomaz/abc1.htm acesso em 28/03/2003
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