NOTICIAS LUSÓFONAS A expectativa de uma lição de humildade numa «aventura africana» - 14-Jul-2005 - 14:46 Patrícia, estudante de medicina, embarca sexta-feira na sua primeira "aventura africana" para ajudar a tratar crianças moçambicanas, motivada pela paixão do contacto com as pessoas e com a expectativa de trazer na bagagem uma lição de humildade. Por Vera Magarreiro da Agência Lusa Esta estudante de 23 anos integra um grupo de onze futuros médicos que participam no projecto Querer e Fazer, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. "Qualquer pessoa que decida ser médico deve ter paixão em contactar com as pessoas", diz Patrícia. "Neste projecto, não há uma mesa a separar-nos do paciente. Há o tocar, o mexer, uma relação mais pessoal", acrescenta, realçando que muitas pessoas que vai tratar na Beira, província de Sofala, nunca estiveram em contacto com um médico. Da experiência, espera tirar uma lição de humildade, que pretende depois aplicar na relação com os futuros pacientes, para "lutar contra a ideia estabelecida de que os médicos são uma classe à parte", mas também "dar mais valor" aos recursos que existem em Portugal. A estudante diz que tem consciência das condições que vai encontrar no terreno, como ter de percorrer 500 quilómetros para uma missão numa escola no meio do mato. O projecto Querer e Fazer, que começou há cinco anos em São Tomé e Príncipe e há quatro em Moçambique, é virado para a área da saúde pública através da formação de professores do ensino básico ao nível dos cuidados primários, com uma forte aposta na área da prevenção das doenças que mais afectam as crianças. Outro estudante, Hugo Gonçalves, finalista de medicina, diz que parte com "grandes expectativas", porque se trata de um "projecto ambicioso" que pretende "chegar às populações mais distantes, sem recursos". Hugo, 25 anos, quer ainda "desmistificar a ideia entre a população local de que estes projectos são turismo humanitário". "Nós vamos como voluntários e o tempo livre será muito curto", frisa. Deste "contacto com a realidade" em que "o raciocínio clínico é mais importante", espera trazer "alguma prática" para já não ter de se socorrer "apenas de exames de diagnóstico". Hugo atribui ao "Portugal colonizador" alguma responsabilidade pelas actuais más condições no sistema de saúde moçambicano e vê a sua participação neste projecto como uma forma de "mea culpa", de "tentar remediar alguma coisa". Por seu turno, Ana Carina Coelho não é uma novata por terras africanas - viveu um ano na Guiné-Bissau -, mas é a primeira vez que participa num projecto destes, motivada pelo contacto com uma "cultura diferente" e porque quer "tentar fazer alguma coisa útil pelas pessoas". A nível profissional, Ana Carina, 24 anos, fala em "desafio", porque "o tipo de doenças e os recursos disponíveis são diferentes" e afirma que pretende repetir esta experiência noutros países. Sobre a realidade que vai encontrar, diz ter a consciência de que "faltam coisas" que em Portugal são banais, como a utilização de luvas. "Lá, nem sequer se pensa nisso, as prioridades são outras". Quanto às condições de alojamento, refere alguns luxos: "Vamos ter água canalizada, água quente, somos uns privilegiados". Mileta Gomes, 27 anos, também não está preocupada com as condições. "Se for preciso até durmo debaixo de uma árvore", afirma esta "mulher de armas", que já passou pela Marinha. A futura médica, ainda indecisa quanto à especialidade a seguir, abraçou o projecto pelo estímulo de uma experiência pessoal diferente combinada com a formação profissional num misto de "férias" em que pode ser "útil". "É uma realidade bem diferente, ficamos mais susceptíveis, ninguém fica imune a uma experiência destas", refere Mileta, para quem o "grande desafio é conseguir alguma coisa que faça a diferença". É este "fazer a diferença" que motivou João Luís Baptista a coordenar este projecto, nascido de um "certo espírito crítico" da forma como actuam algumas organizações portuguesas ao nível da cooperação. Em declarações à Agência Lusa a partir da Beira, o professor universitário de Saúde Pública na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa explica que o objectivo desta missão de um mês é "dar aos alunos alguma experiência em áreas inacessíveis em Portugal", nomeadamente subdesenvolvimento e saúde pública/higiene, e "aplicar algo no terreno que lhes sirva de modelo em ajuda humanitária". O objectivo do projecto em Moçambique é "avaliar a prevalência de infecção por Bilharziose (urina com sangue) e tentar controlar esta doença em regiões onde não há estruturas de saúde". Os alvos principais das acções de formação são os professores do ensino básico, recém-saídos das escolas, a quem se "ensinam cuidados básicos de higiene, meios simples de diagnóstico como ver se uma criança tem febre, como lavar os alimentos e falar na importância, por exemplo, de ferver a água ou passá-la por areia para a tornar potável", explica o professor. "Nos casos de anemia, dizemos aos professores que peçam aos pais para tentarem dar um ovo de dois em dois dias às crianças para uma ingestão mais elevada de proteínas", exemplifica. Os responsáveis do projecto deixam ainda manuais e "kits" com medicamentos nas escolas. "Numa delas até recorremos a "grafittisÈ nas paredes a explicar as formas de tratamento". João Luís Baptista afirma, no entanto, ter a consciência de que é difícil criar condições mínimas junto de populações afectadas pela fome, citando o caso de uma escola que distribui uma refeição às crianças dia sim, dia não. A missão passa ainda por fornecer medicamentos para tratar as crianças, incluindo desparasitantes, dado que se trata de regiões em que "as pessoas estão no meio do mato e vão ao charco mais próximo, onde apanham facilmente o vírus". As condições de trabalho no terreno são dificultadas pela falta de acessos e de alojamento para os elementos que integram a missão. A dificuldade é agravada muitas vezes por entraves culturais, nomeadamente junto da população do sul, onde o facto de um homem urinar sangue é interpretado como "a menstruação masculina" e "sinal de virilidade". Em termos de resultados do projecto, João Luís Baptista diz que ainda não foi feito um estudo científico e que só dispõe de dados concretos relativos a Inhaminga, um dos dez distritos onde já trabalhou e em que a prevalência das crianças que urinavam sangue desceu de 60 por cento, há três anos, para entre cinco e dez por cento, actualmente. Nos casos em que prevalência é mais baixa, os resultados não estão a ser tão positivos, porque não foi reduzida a percentagem de infectados, lamenta o responsável, que admite rever a estratégia para a erradicação mas cuja solução ainda não foi encontrada. Um estudo mais rigoroso dos resultados será feito em Novembro por três sociólogos portugueses, através de questionários aos cerca de 800 professores que já receberam formação, para avaliar se aplicaram os conceitos que aprenderam. O projecto custa 350 mil euros por ano. Metade é para viagens e ainda há que manter dois carros e uma casa alugada - a "república do Macuti" - grande o suficiente para acolher um máximo de 15 alunos de cada vez, que têm a seu cargo as despesas com alimentação. João Luís Baptista passa sete meses por ano em Moçambique, onde conta com a ajuda "preciosa" de Isabel Gaspar, para a parte de pedagogia, valência importante do projecto e que muitas vezes "os médicos esquecem". Regressa a Portugal na época das chuvas em Moçambique, apenas para "picar o ponto" na faculdade e garantir a sua única fonte de rendimentos, além do "banho de civilização" que o compensa dos meses passados no mato. Com uma experiência de duas décadas em África, integrou missões de emergência da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em países como a Etiópia, Sudão, Ruanda, Camarões, Mauritânia, além de todos os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Apesar de ainda realizar missões de emergência, como as recentes na Indonésia após o tsunami de Dezembro ou em Angola devido ao vírus de Marburg, dedica-se agora aos projectos de desenvolvimento sustentável. Sempre com o espírito de "fazer o mais possível na adversidade".