análise da trajetória musical do grupo quintal de clorofila e do

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ENTRE BRASIL, ARGENTINA E PARAGUAI: ANÁLISE DA TRAJETÓRIA
MUSICAL DO GRUPO QUINTAL DE CLOROFILA E DO MÚSICO NEGENDRE
ARBO E SEUS EXPERIMENTALISMOS ESTÉTICOS/ESTILÍSTICOS NA
TRÍPLICE FRONTEIRA
Geni Rosa Duarte
UNIOESTE
[email protected]
Emilio Gonzalez
PUC/SP/UTFPR
[email protected]
Em 2006, o prestigiado e conhecido blog BrazilianNuggets - fonte inesgotável de
material discográfico para pesquisadores interessados na cena rock/folk/psicodélica brasileira
entre as décadas de 1960, 70 e 80 – dedicou um post ao grupo sul-riograndense Quintal de
Clorofila. Nas descrição oferecida pelo blog,
[O grupo] Quintal de Clorofila foi um duo de folk-psicodélico, formado
pelos irmãos Dimitri e Negrende (sic) Arbo. Eles fizeram parte do cernário
(sic) folk gaúcho que se iniciou no final dos anos 1970, com grupos como Os
Tapes, Almôndegas, Utopia e Grupo Terra Viva (...). Quintal de Clorofila é
um dos poucos que chegaram a gravar um álbum, lançado pelo selo
independente Bobby Som em 1983. Para esse LP, o grupo gravou
composições próprias com letras do irmão deles, o poeta Antônio Calos
(sic) Arbo. Nas palavras do próprio Dimitri Arbo, o som deles misturava
jazz, rock, música medieval e ritmos africanos orientais e latinos, no que ele
chama “Rock Viking”.(BRAZILIANNUGUETS, 2006, grifos no original).
Apesar de algumas imprecisões descritivas (Antônio Carlos Arbo, na verdade, era pai
dos irmãos Negendre e Dimitri), a referência feita pelo BrazilianNuggets evidenciava algo
importante: o grupo Quintal de Clorofila já faz parte da História do Rock nacional brasileiro.
O grupo musical Quintal de Clorofila surgiu entre o final dos anos 1970 e início dos
anos 1980, no interior do Rio Grande do Sul (Santa Maria), com os irmãos Negendre e
1
Dimitri Arbo. Amparando-se numa proposta totalmente inovadora que buscava romper com
formas estéticas pré-concebidas do tradicionalismo gaúcho (nativismo), o grupo buscou unir
psicodelia, música folk, cigana e erudita, além de trazer outras influências claras de bandas
anglo-americanas (como Beatles) e da própria música folclórica feita no Cone Sul. O grupo se
tornaria uma das principais referências do cenário do rock alternativo bastante pujante no
período, especialmente após lançarem seu disco (“O Mistério dos Quintais”) em 1983. Nesse
período, o grupo chegou a tocar em importantes festivais e palcos do País, fazendo carreira
própria, ou acompanhando músicos de renome, como Alceu Valença e Osvaldo Montenegro.1
Hoje, a banda ainda é lembrada e saudada por fãs e amigos que acompanharam de
perto a trajetória do grupo. Um grupo destes chegou a organizar uma apresentação na cidade
de Porto Alegre (RS) em 2008, reunindo novamente os dois irmãos, para uma apresentação
considerada histórica. Numa postagem de divulgação do show, datada de 15/04/2008,
aparecia a seguinte descrição:
O que muitos esperavam, aconteceu! A mítica dupla Quintal De Clorofila
está de volta, duas datas estão confirmadas na casa Alquimia em Capão da
Canoa, Dimitri e Negendre Arbo estão de volta apresentando canções do
sensacional O Mistério Dos Quintais (1983) e do álbum Temporal, inédito
ainda hoje, uma apresentação histórica após vinte anos de hiato.
Quem mora, ou está na região gaúcha não pode perder esta apresentação
em hipótese alguma, torçamos para que as apresentações não sejam as
únicas e que o material até hoje inédito seja lançado, bem como um
relançamento do álbum clássico de 1983 (PROGSHINE, 2008 – grifos no
orginal).
Ou seja: a reunião dos irmãos era considerada uma volta ao passado, ao ano de 1983.
Amigos e admiradores do grupo esperavam escutar os acordes e melodias complexas,
elaboradas e refinadas que marcaram a trajetória dos irmãos no Rio Grande do Sul. A
postagem ainda fazia referência a “material até hoje inédito”, demonstrando seus autores
1
Com Osvaldo Montenegro, o Quintal de Clorofila participou do disco “Aldeia dos Ventos” (1987, selo
Independente). Neste disco, Negendre Arbo assina uma das faixas (“O Travesti”) em co-autoria com o cantor.
2
desconhecerem (ou conhecer pouco) sobre boa parte da música produzida pelo grupo após os anos
1980. Neste período, entre os anos 1990 e 2008, o irmãos foram embora do Rio Grande do Sul e se
instalaram na cidade de Foz do Iguaçu, na tríplice fronteira Brasil-Paraguai-Argentina. Ali,
redefiniram parte importante de sua proposta musical, estabeleceram novos marcos poéticos e líricos,
e passaram a incorporar novas musicalidades e influências em sua música.
O presente artigo buscará refazer parte dessa trajetória traçada pelo grupo Quintal de
Clorofila já na tríplice fronteira Brasil-Paraguai-Argentina, na cidade de Foz do Iguaçu. A
pesquisa tomará por base materiais discográficos produzidos (ou retrabalhados) nesse período,
músicas, shows e projetos assumidos pelo grupo, e também em um depoimento oral
(entrevista) concedido pelo músico Negendre Arbo aos pesquisadores autores deste artigo. O
objetivo é problematizar a maneira como o Quintal de Clorofila – especialmente Negendre
Arbo – pensa, se insere e reelabora musicalmente a tríplice fronteira, contribuindo para pensar
sua(s) identidade(s), suas possibilidades sonoras e estéticas, sua memória e seus discursos
identitários.
Quintal de Clorofila e a Tríplice-Fronteira Brasil-Paraguai-Argentina
No início dos anos 1990, os irmãos Negendre e Dimitri (núcleo central do grupo
Quintal de Clorofila) – se instalaram de forma definitiva na cidade de Foz do Iguaçu, tríplicefronteira entre Brasil-Paraguai-Argentina. Isso representou uma quebra importante numa das
principais características do grupo, que era justamente sua intensa mobilidade, seu
“nomadismo”, haviam viajado pelos mais diversos lugares do Brasil realizando shows e
parcerias por onde passavam. Uma das prováveis razões dessa fixação era ao fato de que a
cidade vivia seu auge no ciclo econômico do turismo. Turistas e viajantes do mundo inteiro
chegavam à cidade para jogar seus dólares nos cassinos de Paraguai e Argentina, realizar
compras no comércio de eletrônicos do Paraguai, e conhecer as Cataratas do Iguaçu. Isso
levou a criação de uma ampla rede de serviços na cidade e região: hotéis, casa de shows,
3
restaurantes, comércio, bares, etc. Escrevendo no final dos anos 1980, Aramis Millarchi,
jornalista residente em Curitiba, pintava um quadro bastante pujante e variado sobre a cidade:
Um aspecto importante em Foz do Iguaçu é o cada vez maior mercado para
artistas populares nos restaurantes e hotéis locais. Só a churrascaria das
Cataratas, do grupo Rafain, emprega nada menos que 45 artistas
profissionais, que, carteira assinada, sobrevivem exclusivamente dos shows
que ali fazem. São grupos de cantores e músicos bolivianos, argentinos,
mexicanos, paraguaios e brasileiros - as vezes se intercambiando entre si que apresentam-se durante os almoços e jantares agradando o público.
Para aumentar o cachê, alguns dos conjuntos vendem diretamente, fitas
cassetes com suas músicas (...). Mesmo com pouca qualidade técnica de
gravação, os conjuntos da casa têm sua fitas, a Cz$ 200,00 a unidade, para
oferecer à clientela.(MILLARCHI, 1988)
Desde a década de 1980, portanto, a região viveu um “boom” turístico e econômico,
impulsionado por inúmeros fatores, como o estreitamento das relações políticas e comerciais
entre Brasil e Paraguai (a partir da construção conjunta da mega-usina hidrelétrica de Itaipu);
pela migração de artistas latino-americanos para o Brasil (muitos dos quais em razão da
perseguição política sofrida em seus países de origem, por regimes ditatoriais, numa época em
que a abertura política já avançava no Brasil); a integração econômica da região com a
construção de obras nacionais e binacionais de infraestrutura (construção de Itaipu, 1973;
construção/pavimentação da BR-277, construção da ponte Tancredo Neves entre Brasil e
Argentina, 1985), entre outras ações.
Historicamente, a região já era destino de variados fluxos migratórios.2 Mas foi a
partir da década de 80, quando a cidade se consolidou como rota turística e econômica, que o
2
Não se trata de advogar qualquer “vocação turística” para a cidade e região, mas notar que desde o início dos
primeiros núcleos urbanos da cidade, já se percebe a presença insistente de uma comunidade de migrantes e
imigrantes não só do Brasil, mas do mundo todo. Hoje, árabes, coreanos, chineses, paraguaios, bolivianos,
argentinos, uruguaios, etc., convivem na cidade. Mesmo nos primeiros relatos históricos feitos por “brasileiros”
sobre a região, a presença “estrangeira” já saltava aos olhos. A expedição militar que partiu de Guarapuava e
chegou ao território em novembro 1889 com o intuito de fundar a Colônia Militar do Iguaçu, assim relatou: “Por
4
horizonte acabou se abrindo também para artistas do Brasil e do mundo inteiro como um
campo de possibilidades. Nessa época, casas de shows, hotéis e restaurantes passaram a se
especializar em oferecer serviços artísticos a seus clientes. Um deles, o restaurante e casa de
shows Rafain, chegou inclusive a montar um alojamento onde mantinha, com salário fixo e
carteira assinada, uma trupe de músicos que pela noite ofereciam espetáculos aos clientes do
restaurante. Logo que chegaram à cidade, os irmãos Negendre e Dimitri foram morar num
destes alojamentos. Conforme relato em entrevista dada aos autores dessa pesquisa:
Tinha gente que morreu ali. A gente presenciou cenas terríveis. Os caras
não cabiam na casa, tiveram que pegar uma outra casa ali. A gente passava
e escutava o cara no banheiro lá, na casa dele. Morreu ali. Aí eu aprendi
uma coisa: não dá pra gente se acomodar, né? Esquentar cadeira, não. O
cara que esquenta cadeira, acaba! (...) Tinha dançarinos de tango... eles
eram muito tristes. Alegres como pessoas, mas eram tristes, sem família,
sabe? Você via o cotidiano, sabe? Era bem pesado assim.. (ARBO, 2008 –
informação oral)
Sobre o ambiente artístico encontrado na cidade, apesar de aparentemente variado do
ponto de vista artístico e étnico, Negendre o considerava relativamente limitado, porque
caricatural, estanque do ponto de vista do experimentalismo artístico, pronto apenas para o
consumo turístico. Trata-se de uma avaliação diferente daquela feita por Aramis Millarchi em
1988, para quem a cidade era uma espécie de Meca cultural latino-americana.3 Para Negendre
ocasião da descoberta da Foz do Iguassú o território já era habitado. Existiam no mesmo 324 almas, assim
descriptas: brasileiros, 9; franceses, 5; hespanhoes, 2; argentinos, 95; paraguaios, 212; inglês, 1”. (BRITO, 1997)
3
Descrevendo esse ambiente de forma bem humorada, Millarchi dava a transparecer uma cidade bastante híbrida
e flexível do ponto de vista artístico-cultural: “(...). Por exemplo, três paraguaios que após oito anos de vivência
no México - Feliciano de Assuncion, Reylando Garcia e Ramon Lara, retornaram com chapelões coloridos e o
nome de ‘El Mariachis Paz Trio’, estão entre os que mais agradam o público e vendem suas fitas, com aquelas
canções repletas de gritos e solos de pistão, como ‘Malaguena’ e ‘Guadalajara’. Os irmãos Chaskis - com idade
variando entre 24 e 40 anos - Adolfo, Apolinário, Francisco, Adriam, mais o Dyone Pacheco, 28 anos, e o
paulista Floriano Salinas, 30 anos, tiveram que adotar novo nome artístico quando chegaram ao Brasil. Conta
Francisco: ‘Na Bolívia, tínhamos o nome de Raízes da América e chegamos a gravar discos. Quando chegamos
em São Paulo, encontramos outro grupo que também se dedicava à música latino-americana que tinha registrado
o mesmo nome. Como éramos estrangeiros e estávamos chegando, preferimos adotar nova razão artística’.
Assim, o Raízes da América boliviano se transformou em Inka Chaskis, que com seus instrumentos típicos,
5
e seu conjunto Quintal de Clorofila, interessados em ampliar seus horizontes temáticos e
estéticos, a dificuldade em romper fronteiras dialógicas era algo presente até mesmo na rotina
dos alojamentos e dos espetáculos. Em suas próprias palavras:
Era aquilo que te falei, tudo distante, tudo distante, todos isolados em suas
casinhas, todos isolados em seus grupos. Foi ai que eu tive uma vontade de
juntar esse pessoal pra tocar junto, né? Era muito difícil você pegar Os
Mariachis [músicos folclóricos mexicanos], por exemplo, ou um dos
Mariachis, e trazer pra fazer uma participação na tua música. Não tinha
jeito. Eles são até hoje muito estanque. Então um grupo de música
paraguaia é um grupo de música paraguaia. Você não vai ver um guitarrista
argentino lá. Um grupo de tango é um grupo de tango. Agora com os hotéis,
as vezes eles estão abrindo um pouquinho mais para certas músicas, como o
tango. De repente tem um pianista brasileiro, vai lá toca e tal. Mas é uma
coisa muito... muito rara de encontro assim. Geralmente... você pode
considerar assim: conjuntos que usam uniformes, são estanques, tá? (risos)
Eles não permitem a entrada de mais ninguém. Os que não usam uniforme
são um pouquinho mais abertos, entendeu? Eles estão de terninho, vão tocar
nos hotéis... (...) Os shows eram tudo separados. Entrava os paraguaios,
entrava a Bolívia, entrava o samba, entrava o tango, os boleadeiros, que era
a música gaúcha, entrava a dança do Paraguai, entendeu? E daí
entravamos nós com as lendas das Cataratas, e depois vinha, os mulatos,
sabe? Mas era tudo separadinho: saía, desmontava o palco, montava de
novo... e, socialmente estanques. Ou seja, se encontravam a noite, nos bares
e tal, mas nada de arte, nada de arte. (ARBO, 2008 – informação oral)
As possibilidades experimentalistas abertas pela tríplice fronteira contrastavam com
uma demanda de arte “estanque”, conforme descrita por Negendre, o que tornava necessário
repensar o roteiro adotado pelo Quintal de Clorofila. Apesar disso, a passagem por essa casa
de espetáculos levou o grupo a se interessar e assumir questões temáticas do folclore local em
sua proposta estética. Nessa linha, montaram o espetáculo “A Lenda das Cataratas”, onde
apresentavam, além das músicas, um espetáculo coreográfico, onde um dançarino vestido de
M’Boicy (o “deus-serpente” da lenda das Cataratas) desfilava entre o público com seus mais
ponchos e muito entusiasmo, desfila um repertório no qual entre as composições próprias e os maiores sucesso
latinos, não falta, é claro, ‘El Condor Passa’ e ‘Carnavalito’. De três discos que trouxeram, montaram uma fita
que também está entre as mais vendidas no roteiro das churrascarias Rafain.”. ( MILLARCHI, 1988).
6
de 5 metros de extensão; e o coreógrafo argentino Cláudio Stazinski, que havia se juntado ao
grupo antes de aportarem em Foz, realizava uma dança vestido de águia, equilibrando-se
sobre uma enorme perna de pau. Seguindo as normas da casa, o show durava cerca de 15
minutos, e após encerrarem, o grupo oferecia materiais discográficos (geralmente, fitas
cassetes) aos clientes.4
Apesar de avaliar essa fase como artisticamente limitada, a passagem pelo Rafain (e
por outras casa de shows da cidade) acabou deixando um legado importante para a trajetória
do Quintal de Clorofila, e também para o próprio Negendre Arbo. A dificuldade em
estabelecer um grupo ensaiado e disciplinado era uma constante numa cidade agitada e
boêmia. Por outro lado, os turistas pagavam em dólares, e a proximidade com o já pujante e
moderno comércio de importados do lado paraguaio acabou redefinindo o perfil artístico e
estético, e as estratégias de trabalho do grupo. Por essa época, o grupo passou a adotar, de
forma pioneira, um tipo de orquestra-midi, onde equipamentos eletrônicos (gravadores
controlados por computador) tocavam uma base pré-gravada das músicas, dispensando a
necessidade de outros músicos:
Essa parte do trabalho é uma questão curiosa. Porque houve um momento
em que entrou o computador na música. Os músicos que trabalhavam
comigo estavam dando muito trabalho. Não ensaiavam, bebiam demais...
aquela coisa (risos). Aí eu resolvi dispensar o pessoal e ficar só nos dois
[Dimitri]. Mas daí faltou base, faltou baixo, bateria, harmonia... e daí ficou
sem sequência. Precisava de um toca-fitas pra guardar a memória. (risos)
Isso foi em 1993, 1992, eu acho. Aí, depois, a sequência já não dava conta
mais. Daí precisava de um outro [gravador] maior. Daí veio um
computadorzinho que usava uma tela de televisão. [apontando para um
computador no estúdio] Esse aí não gravava, só fazia vídeo, ou seja, só
interpretava as partes de teclado. Eu precisava um que gravasse voz. Aí a
gente teve um gravadorzinho também, más não era a mesma coisa. Aí nessa
época, os computadores já estavam melhorando. Então, saí desse pra um
PC, como a gente conhece hoje. E daí, eu não parei mais. (ARBO, 2008 –
informação oral)
4
Por desacertos internos entre o grupo, Cláudio Stazinski acabou deixando o conjunto ainda na época em que
atuavam nessa casa de espetáculos.
7
No início dessa nova fase, o grupo também começou a redefinir sua proposta estética e
estilística. Dialogando com elementos presentes no cotidiano da fronteira, o Quintal de
Clorofila passou a incorporar de forma mais evidente não apenas o folklore latino-americano
(sobretudo argentino e paraguaio), como também lendas indígenas locais (como “A lenda das
Cataratas”, de origem guarani), e discursos sobre meio-ambiente e eco sustentabilidade. Foz
do Iguaçu é uma cidade estratégica do ponto de vista ambiental, pois sedia, em conjunto com
a Argentina e com outras cidades do sudoeste do Estado, o famoso Parque Nacional do
Iguaçu. A água, como fator de identificação (e estranhamento) da sociedade local, passou a
ser um tema central para o grupo. Nessa linha, além de participarem de campanhas
ambientalistas e comporem peças propagandísticas para a Prefeitura Municipal, o grupo
produziu pelo menos duas canções tematizando a questão da água: “Pro Rio” 5, onde
questionam o fato de Foz do Iguaçu ser uma cidade voltada de costas para seu principal
patrimônio ambiental (os rios Iguaçu e Paraná); e “Caminho das Águas”, onde, numa
linguagem bastante simples e direta, chamam a atenção para a necessidade da preservação de
rios e mananciais.6
Algumas músicas dessa época fizeram parte de um trabalho de educação ambiental
que o grupo realizou em escolas da cidade, com patrocínio da Prefeitura Municipal de Foz do
Iguaçu. Posteriormente, o grupo organizou e executou o “Projeto Pólen”, no qual ofereciam
apresentações musicais de seu próprio repertório, e com a presença de músicos convidados.
As apresentações aconteciam aos domingos num palco improvisado montado em frente ao
5
No refrão: “Uma cidade de costas pro rio / uma paisagem que poucos veem/ Um sol que explode o calor no
verão: ‘Ah, como o céu é azul!’”
6
Letra: “O longo caminho das águas começa nas nuvens / a chuva que molha a terra e mata a sede das plantas / e
o rio que percorre montanhas e vales passa pela cidade / Recebe ali a sujeira dos homens, e morre ferido / Morre
ferido / Vamos limpar estes rios/ da sujeira dos homens / vamos cuidar muito bem destes rios / beber água
limpa”
8
Bosque Guarani (uma espécie de horto e zoológico), existente no centro da cidade de Foz do
Iguaçu.7
Por essa época, o grupo também passou a militar pela organização política da classe
artística e pela abertura de espaços de cultura na cidade. Negendre Arbo, como coordenador
da Fundação Cultural do município, chegou a participar da organização e presidiu o “Clube da
Cultura”, instituição constituída espontaneamente por artistas da cidade, que se reuniam em
uma antiga e abandonada edificação situada na região sul da cidade (Marco das Três
Fronteiras). O “clube” estava oficialmente chancelado pela Prefeitura Municipal, viaFundação, mas segundo Negendre, jamais recebeu qualquer apoio efetivo:
O Clube da Cultura era o seguinte: eu estava trabalhando na fundação
[Cultural] e surgiu lá. Eu não tive parte no surgimento. E daí, pelo fato de
estar lá trabalhando, acabei aceitando. Eu estava lá, fechava com tudo o
que eu estava fazendo, tipo viajar pra Curitiba, pegar, convidar a Secretária
do Estado pra vir aqui participar de um evento ou conseguir intercambio,
trazer shows pra cá, etc. (...) A gente fez alguns eventos, mas ai chegou uma
hora que não tinha mais ninguém pra ajudar. Tipo, na hora dos coquetéis e
da televisão, estava todo mundo; mas daí, na hora de arrumar um carro pra
trazer os quadros, pra ajudar montar a exposição, não ajudava. Ai eu tinha
que me virar. Gastei um monte de grana, gastei na reforma da casa. A gente
conseguiu uma casa lá, como usucapião... usucapião não; comodato.
(ARBO, 2008 – informação oral)
Ainda nessa época, envolvido com a Fundação Cultural, e apesar de ter tocado alguns
projetos que alcançaram relativo sucesso, Negendre acabou se decepcionando com os poderes
políticos locais, e logo abandonou a ideia de que seria possível fazer militar pela cultura
amparado no poder público e através de organizações políticas. Em suas próprias palavras:
7
O projeto ocorreu no ano de 1996.
9
Foi ai que eu aprendi que “carta de intenção” só serve pra limpar a bunda.
(risos) É verdade. Minha última reunião como militante foi bem engraçada.
Eu disse pra eles: “olha, você é pintor, pinte, saia daqui, vai pra casa e
pinte! Se não é pintor, vai se foder cara, não te mete com política”, sabe?
Não tem nada a ver: músico, artista, deixa de fazer sua arte pra ir militar...
faça arte, faça arte boa que você exerce também. Faça arte boa que ela já
resolve o problema... da divulgação da cultura etc. Quer dizer, não é se
juntando em grupos culturais que a coisa vai se resolver. (ARBO, 2008 –
informação oral)
Apesar das constantes decepções no campo político, os experimentalismos estéticos
abertos pela fronteira, os projetos realizados e executados via-Fundação Cultural, e a
possibilidade de incorporar elementos tecnológicos à produção do grupo, acabou redefinindo
o perfil e a proposta do Grupo Quintal de Clorofila. Por volta de 1996, em sua última
formação, o grupo ainda contaria com o ingresso de um jovem talento da cidade, o guitarrista
Frank Cimino (atualmente produtor musical).8 Com apenas 17 anos, Cimino, estudioso de
guitarra, trouxe acordes mais pesados e distorcidos ao grupo, misturados e modelados à
proposta ambientalista/erudita/folk/renascentista que o Quintal de Clorofila já desenvolvia
desde sua chegada à cidade.
Após o encerramento do “Projeto Pólen”, o grupo Quintal de Clorofila chegou a
realizar algumas apresentações na cidade e região, onde divulgou o lançamento de seu disco,
“Tempo-Oral”, que infelizmente permaneceria inédito. Neste trabalho, apareciam gravações
do período posterior à chegada dos irmãos Arbo na fronteira, incluindo “Cataratas”, composta
como parte do espetáculo que o grupo apresentava no Rafain. Também apareciam canções
que fizeram parte de projetos ambientalistas realizados em escolas (como “Caminho das
Águas”), e outros trabalhos de estúdio feitos em base midi. Entre elas, as músicas “Baile de
Máscaras” - onde é possível perceber claramente a proposta original do grupo, pinçando
8
Vide vídeo no youtube, gravado pelo próprio Frank Cimino, onde ele executa uma música do guitarrista sueco
Malmsteen (“Far Beyond the Sun”). Apesar de existirem outros materiais melhor produzidos e editados, essa
gravação data da época em que Cimino integrava o conjunto Quintal de Clorofila. IN:
https://www.youtube.com/watch?v=sunzuKkAUOQ Acessado em 12/05/2015.
10
música renascentista e erudita, em contraste com a guitarra distorcida de Frank Cimino9; e
“GreenSong”10, ambas assinadas por Negendre Arbo. Também “Gota de Orvalho” e “Romã”,
assinadas por Dimitri Arbo; e uma faixa composta e arranjada pelo próprio Frank Cimino,
intitulada “Terraço de Orem”11. No total, o trabalho era constituído de 11 faixas, das quais
apenas algumas foram disponibilizadas para download, após a dissolução definitiva do grupo,
em 1998.
Negendre Arbo e o pós-Quintal de Clorofila
Conflitos internos na direção do grupo, mudanças de foco, diferenças de
comportamento e problemas familiares aceleraram o final do grupo, já no ano de 1998. Na
época, Negendre havia se casado e se tornado pai, e adquiriu um terreno, onde construiu uma
casa, num bairro de classe média de Foz do Iguaçu. Desde a época em que passou a adotar
base eletrônica para os arranjos do grupo, e tendo se decepcionado com os poderes públicos
da cidade, decidiu estruturar uma empresa de tecnologia (Workstation) para poder sustentar as
atividades artísticas do grupo. Em sua própria casa, montou um estúdio de gravação,
realizando serviços para artistas da cidade e da tríplice-fronteira. Essa empresa também
oferecia outros serviços, como jingles de campanhas publicitárias e home-pages para
empresas da cidade. No estúdio, compunha peças experimentais, com base em orquestramidi, mas boa parte deste material acabou não sendo divulgado para o grande público. Sobre
esse período, Negendre relatou:
9
Disponível para audição em: http://palcomp3.com/negendre/baile-de-mascaras/ Acessado em 13/05/2015.
Disponível para audição em: http://palcomp3.com/negendre/greensong/ Acessado em 13/05/2015.
11
De caráter mais romântico, esse trabalho foi escrito e arranjado por Frank Cimino, mas a primeira voz foi
cantada por Dimitri Arbo. Na música, além de guitarra e outros instrumentos, Cimino também toca piano em
parte da música. “Terraço de Orem” era uma referência ao edifício onde o guitarrista morava à época (Orem), no
centro da cidade de Foz do Iguaçu.
10
11
(...) a gente chegou aqui como grupo nômade, tocamos durante dois anos
naquela churrascaria, daí começamos a fazer trabalho de educação
ambiental com a instituição. Daí eu tomei contato com a instituição, daí
fiquei trabalhando lá. Daí eu participei nesse clube da cultura, daí eu sai
desse processo. (...) Daí, montei um estúdio de gravação que depois se
transformou numa empresa. Aí nessa época, o meu irmão já estava se
separando e voltou pra Porto Alegre. Daí eu montei uma empresa de áudio
e de trabalho com multimídia, e essa empresa, hoje, ela acabou. Eu
desmanchei ela pra poder atender um ou poucos clientes exclusivos e...
também pra me sobrar mais tempo pro trabalho musical, né? Então, foi
coisas assim, foi isso que aconteceu, foi essas fases, essa parte da
churrascaria, né? Nômade, desempregado, militante, né? Funcionário,
empresário e, hoje, franco atirador... (risos) (ARBO, 2008 – informação
oral)
Com a dissolução oficial do grupo, Negendre passou a se dedicar exclusivamente a
projetos pessoais no campo da música, ampliando seu leque de experimentalismos e diálogos
com a música de origem folklorica argentina e paraguaia; e, posteriormente, também com a
música de raiz indígena guarani.
Dimitri voltou para Porto Alegre, e voltou a tocar em festivais pelo País,
acompanhando outros artistas. Em 2008, conforme já relatamos, um grupo de admiradores do
Quintal de Clorofila organizou aquilo que parecia ser um retorno do grupo aos palcos. Porém,
após realizarem alguns shows em Porto Alegre (RS), o grupo jamais voltou a se reunir.
Negendre continua desenvolvendo um amplo e profundo trabalho de pesquisa musical
na região da tríplice fronteira. Hoje, porém, ele se define mais como um pesquisador, do que
como artista. Isso porque, nos anos seguintes à dissolução do conjunto, intensificou suas
atividades de composição e pesquisa musical, passando a reunir em torno de si músicos
argentinos e paraguaios, estudando e compondo peças e suítes com base em ritmos paraguaios
(como guarânia e polca paraguaia) e argentinos (especialmente zambas, chacareras e
chamamé). Da sua amizade com a comunidade “argentina”, e de suas leituras sobre a História
regional, surgiram canções como “Sereno” (chamamé) e “Serenata de Três Povos” (chamamé
– esta última, gravada pelo cantor argentino Dante Ramón Ledesma, de quem Negendre é
12
amigo pessoal).12 Também passou a compor e trabalhar com músicos argentinos que viviam
na região, como Raul Garnica e Carlos Acuña, além do bandoneonista brasileiro Thiago
Rosseto (com este último, chegou a gravar um disco experimental de chamamé, intitulado
“Piazzolando”, inédito). Participou como jurado em um festival de violão clássico na cidade
de San Juan Bautista, no Paraguai, a convite de seu amigo desde a época de Raffagnin, o
maestro paraguaio Jacinto Matiauda, de outros festivais na cidade e região, como músico
convidado. Também, através do violonista argentino chamamecero Carlos Acuña, conheceu o
compositor argentino Ramón Ayala, de Misiones, criador do ritmo Gualambao, e
personalidade artística regional com reconhecimento nacional na Argentina.13 Essa inclinação
à musica argentina e a influência temática aparentemente despertada após seu contato com
Ramón Ayala aparece, por exemplo, na composição da música Sereno:
Houve um tempo que eu estava bem próximos deles, quando eu tava mais
voltado pra pesquisa do folklore, basicamente o folklore da Argentina, que
eu acho mais interessante que o do Sul, que eu acho muito medíocre
12
Interessante observar que essa música alude a experiência da fronteira enquanto espaço privilegiado para o
encontro entre povos dos três países que a compõem (Brasil, Argentina e Paraguai), que, tendo a música como
identidade em comum, colocaria em segundo plano outros aspectos, como a nacionalidade e língua, dissolvendo
ainda fronteiras nacionais estáticas a favor de uma “integração” musical. Na letra: “Quando o potro do dia
acalma o seu galope/ Candeiros e vagalumes confundem-se pela noite / despertam guitarras na solidão da pampa
/ e um paisano canta, um gaudério canta, um campesino canta / Guitarra de três bandeiras, de três povos e uma
pátria / Seis cordas que se eternizam numa mesma serenata / (recitado) Quando a saudade abre um palo num
abraço dolorido, e a querência vem vindo na cuia de um chimarrão / Nos acordes de um violão estamos de volta
ao pago, em cada verso, um lamento, saudade em cada canção (cantado) Guitarras e cantores desta pátria
americana / Não deixe morrer as vozes ancestrais da Pachamama / A força dos ideais nas mãos e um arado na
garganta / Despertam guitarras na solidão da pampa/ E um paisano canta, um gaudério canta, um campesino
canta”. Note-se que a música refere-se tanto aos argentinos – o termo paisano é equivalente a conterrâneo, e é
muito utilizado entre a população rural da Argentina -, e aos paraguaios (tratados como campesinos). Também
reivindica até mesmo uma identidade musical andina ou, de forma ampla, sul-americana para a fronteira, quando
se refere às “vozes ancestrais da pachamama”, divindade cultuada pelos povos incas. Mas o mais interessante é
que o brasileiro da música aparece referenciado como gaudério. Trata-se de um termo empregado no estado do
Rio Grande do Sul para designar os conterrâneos ali nascidos. Aqui, Negendre assume-se também enquanto
migrante, o que o faz colocar a música como espaço privilegiado na resolução dessa identidade fragmentaria.
Gravação disponível em: Dante Ramón Ledesma, Folklore, USADISCO, Porto Alegre, 2000.
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Muito prestigiado entre os artistas regionais, este autor passou a ser nacionalmente conhecido na Argentina
após um de seus temas, “El Mensu”, ter sido gravado pela cantora Mercedes Sosa, quando esta iniciava sua
carreira nos anos 1960. Recentemente, na cidade de Puerto Yguazu, – fronteira com Foz do Iguaçu - foi
inaugurado uma espécie de “concha acústica” municipal que leva seu nome, localizada próximo ao ponto no qual
os rios Paraná e Iguaçu se encontram.
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musicalmente, o folklore argentino tem vidalas, tem bagualas, sabe? tem
chacareras, tem a zamba, tem possibilidades instrumentais que o folclore
gaucho [não tem]. (ARBO, 2008 – informação oral)
Por fim, Negendre também passou a se interessar pelo trabalho de pesquisa e
composição de músicas ancestrais de base guarani. Essa “música tribal” permitiu ao autor
retomar antigos projetos vivenciados na juventude, aos quais ele intitula “estados mentais
alterados”. O interesse pela música ancestral indígena veio após este ter entrado em contato
com um cacique pertencente a um grupo indígena assentado numa reserva na região de
Laranjeiras do Sul, no Sudeste do Estado do Paraná.14 Inicialmente, tratava-se de um trabalho
de estúdio encomendado por pesquisadores da Universidade das Américas (UNIAMÉRICA)
de Foz do Iguaçu, cujo intuito era gravar um disco com música tradicional guarani cantada
pelas próprias crianças da reserva indígena. O disco faria parte de uma coleção mais ampla,
sobre ervas e conhecimentos medicinais do grupo indígena. Mas para Negendre, esse contato
direto com a música ancestral guarani significou uma possibilidade de conhecer e penetrar no
próprio universo mental e cultural desse grupo:
O Guarani é um povo que ri, mas ele ri um riso autêntico, sabe? é um riso
que vem do fundo e você não sabe do que ele tá rindo... Quando eu cheguei
na aldeia, eu pensei poxa, estão passando necessidades, passando fome, sem
saúde, sem educação... e é um povo que ri, sabe?. Só os pajés ficam sérios
porque acho que é porque eles sabem mais. (...) ... aquele contato com as
coisas antigas, coisas muito antigas assim... (...) ...parece que a tua memória
tem guardado algumas cenas semelhantes, não é? Me lembrou muito as
benzedeiras, mas você sente uma coisa lá dentro, da estrutura social que o
mundo perdeu, que o nosso mundo perdeu, perdeu faz muito, uma pureza,
uma ingenuidade assim... uma coisa que nossas crianças tem até o primeiro
dia de escola. (ARBO, 2008 – informação oral)
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A tribo dirigida por Cacique Lino tem ramificações também no território paraguaio e argentino, na região
definida como Alto Paraná.
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A marcação sempre forte e constante – o tum-tum – teria uma semelhança com o
próprio Techno (música eletrônica) muito utilizado em festas raves, e que, para ele, produz
um efeito semelhante de transe coletivo entre os jovens. Daí a sua teoria de trabalhar com
base em “estados mentais alterados”:
A gente mantém separado a música guarani do coral, a musica do coral
intacta (...) Eu não toco na musica tradicional. Mas, dentro do projeto que
desenvolvemos (...) vale tudo. A gente tá trabalhando, eu, o cacique. Agora
vem esse DJ de Campinas, vou fazer uma coisa bastante interessante (...) a
base de tudo é esse tum-tum... então, a gente vai trabalhar em cima dessa
referência (...) A música pra ser feita com os guaranis... tem uma música que
é pra ouvir e outra pra tocar ao vivo. O material gravado é mais elaborado,
você pode colocar orquestra, você pode colocar mais elementos na música.
Agora, o trabalho ao vivo, ele é basicamente uma cena, um musical só, e
depois, uma cena musical só. Na performace ao vivo, não pode ter uma
musica que caia da parte um para a parte dois. A maneira deles viverem a
musica é diferente, a visão que eles tem da musica é outra, eles não tem essa
noção que nós temos de autoria, eles não dizem eu que fiz. O cara sonha a
musica e canta no outro dia. Quando o cacique vem pra cá, e fica dias aqui
em casa, nesse convívio cotidiano é que se aprende muita coisa. (ARBO,
2008 – informação oral)
Ao contrário daquela perspectiva inicial presente na proposta do grupo que
desembarcou em Foz do Iguaçu no início dos anos 1990, para os quais a música indígena era
explorada no seu sentido “folclórico”, como uma curiosidade, uma novidade a ser elaborada
artisticamente pelo grupo; o guarani, agora como matéria-prima, passa a ser visto como algo
possível de ser recuperado e trazido ao presente, tornado inteligível ao “homem-branco”,
sendo necessário porém, uma convivência efetiva entre os dois universos mentais; tarefa essa
que o próprio Negendre se propõe a fazer, colocando sua técnica musical e sua sensibilidade
artística e criativa a serviço destes grupos.
Porque eles não tem a obrigação de cantar, ele pode não cantar, sabe? É
uma coisa muito natural, eu percebi isso na aldeia, não havia nada
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programado, só que daqui a pouco eu estava tomando um banho na
cachoeira... e a gente via que as coisas fluíam e nós íamos navegando
naquele fluxo, sabe? As direções do pra onde ir, do que fazer, se apontavam
naturalmente, não havia a necessidade de [dizer] “agora vou aqui”,
“depois a gente vai lá”...
(ARBO, 2008 – informação oral)
Considerações Finais
A trajetória de Negendre Arbo e do grupo Quintal de Clorofila, após sua chegada à
tríplice fronteira Brasil-Paraguai-Argentina, permite visualizarmos aspectos de um frutífero
intercâmbio entre artistas e trabalhadores, empresários e outros personagens de uma cidade
culturalmente dinâmica, mas ao mesmo tempo limitada pela força dos produtos “estanques”
exigidos pela indústria turística; limites que, por sua parte, serviram de motivação para que o
Quintal de Clorofila, sem abrir mão de sua proposta experimentalista e eclética, buscasse
redefinir seus discursos e bases musicais e estilística, adotando as possibilidades abertas pelo
folklore latino-americano, pela memória indígena presente na cidade, e pela tecnologia
possibilitada pela proximidade com o mercado de Ciudad del Este.
Isso significa que a fronteira não é apenas uma linha divisória que aparta e limita, mas
também um liame que abre e instiga possibilidades; possibilidades deste ir e vir de
trabalhadores e artistas que, neste fazer, constroem novos processos de identificação entre si,
e entre eles com a cidade, produzindo um constante reelaborar de seus espaços físicos e
simbólicos, construindo novos significados e memórias, novas formas narrativas e novos
discursos.
Aqui, a música, é mais do que uma simples linguagem: ela é um espaço privilegiado
no qual podemos identificar essas novas dinâmicas reelaboradas por seus artistas e criadores.
Não se trata, portanto, de identificar simples modificações técnicas ou estilísticas que essa
produção teria sofrido – o que poderia levar a uma enganosa e reducionista ideia de que
existiria uma música típica da fronteira, ou, num conceito, uma música exótica. Trata-se de
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entender que a própria música expressa visões de mundo e novos valores construídos a partir
dessas experiências migratórias, vividas por músicos das mais diversas regiões da América
Latina e do próprio Brasil, como é o caso dos irmãos Negendre e Dimitri, do grupo Quintal de
Clorofila.
A ideia deste artigo foi pontuar um pouco destas questões a partir da trajetória do
grupo, após 1993-4, quando os irmãos Negendre e Dimitri se se transferiram para Foz do
Iguaçu (PR), na Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. O conjunto, que se
tornou conhecido no Rio Grande do Sul a partir de seus experimentalismos feitos na linha
rock/folk/psicodélica, uma vez estando na fronteira, e sem abrir mão de suas raízes
estilísticas, passariam também a dialogar com sons e discursos próprios da região,
incorporando ao seu trabalho temáticas indígenas, discursos sobre meio ambiente e autosustentabilidade, folklore argentino e paraguaio, etc.
Evidentemente, este pequeno artigo não pretendeu fazer uma “biografia” do grupo
Quintal de Clorofila, mas buscar entender como o espaço geográfico e cultural da fronteira
pôde abrir campos de possibilidades para ele, e como, dentro de suas opções pessoais e
possibilidades, seus integrantes (muito especialmente Negendre Arbo) conseguiram visualizar
e avaliar sua própria trajetória na cidade, atribuindo valor à sua produção artística e a
intervenção social na fronteira realizada a partir dela.
REFERÊNCIAS
ARBO, Negendre [2008] Entrevista concedida a Emilio Gonzalez e Geni Rosa Duarte em
2/05/2008, em Foz do Iguaçu, PR,
BRITO, José Maria de. Descoberta de foz do Iguassú e fundação da colônia militar. In.
Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Paraná – IHGEPR -, vl. 32,
Curitiba, 1977.
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MILLARCH, Aramis. “Foz, o bom mercado para o som da América Latina”. Publicado
originalmente, no jornal Estado do Paraná em 14/01/1988, p. 5 disponível em
http://www.millarch.org/artigo/foz-o-bom-mercado-para-o-som-da-america-latina, consultado
em 12/05/2015
Blogs:
BrazilianNuggets (2006): http://brnuggets.blogspot.com.br/search?q=Quintal+de+Clorofila,
site consultado em 04/05/2015.
Progshine
(2008)
https://progshine.wordpress.com/2008/04/15/quintal-de-clorofila-em-
apresentacao-historica-em-porto-alegre - . Consultado em 08/05/2015
Sobre a obra musical de Negendre Arbo, (disponível para download gratuito):
http://palcomp3.com/plateia/2956371/
http://clubecaiubi.ning.com/profile/NegendreArbo
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