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J Bras Nefrol 2003;25(4):224-7
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Relato de caso: Nefropatia por depósito de cadeia leve de
imunoglobulina secundária ao mieloma
Light-chain deposit disease secondary to myeloma
Luiz Flávio Couto Giordanoa, Euler Pace Lasmara, Eduardo Bambirrab, Jane Correa Fonsecaa,
Valeska Rios de Andrade Sousaa, André Nogueira Duartea e Leonardo Faria Lasmara
a
Clínica Nefrológica do Hospital Mater Dei. Belo Horizonte, MG, Brasil. bDepartamento de Anatomia Patológica da
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil
Mieloma
múltiplo.
Paraproteínas. Síndrome
n e f r ó t i c a .
Glomerulosclerose
nodular.
Multiple
myeloma.
Paraproteins. Nephrotic
syndrome. Nodular
glomerulosclerosis.
Resumo
A nefropatia de cadeia leve é causada pela superprodução de cadeia leve de imunoglobulina
pelos linfócitos B com deposição nas membranas tubulares e no glomérulo. A expressão
clínica habitual é proteinúria, insuficiência renal e hipertensão arterial. A glomerulosclerose
nodular é a alteração histológica mais freqüente. Relatamos um caso de nefropatia por
cadeia leve de imunoglobulina secundário ao mieloma múltiplo, em que suspeitou-se do
diagnóstico pelos achados à microscopia ótica, sendo depois confirmado pela
imunofluorescência. O paciente já iniciou tratamento quimioterápico, sendo proposto a
seguir o autotransplante de medula.
Abstract
Light-chain deposit disease is a B-cell disorder resulting from excessive production of monoclonal
light chains, which deposit in the tubular basement membranes and glomeruli. The usual
manifestations of this disorder are proteinuria, renal failure and hypertension. Nodular
glomerulosclerosis is the most common histologic pattern. A case of light-chain deposit disease
confirmed with immunofluorescence in a multiple myeloma patient is reported. Chemotherapy
treatment has been started and will be followed by autologous bone marrow transplantation.
I n t r o d u ç ã o
A doença pela deposição de cadeia leve de imunoglobulina é um distúrbio sistêmico causado pela superprodução e depósito extracelular da cadeia leve de
imunoglobulina secretada por um clone de células B
diferenciadas.1,2 A maior parte dos pacientes acometidos são portadores de discrasias plasmocitárias, como
o mieloma múltiplo ou doenças linfoproliferativas,
sendo a insuficiência renal e proteinúria a expressão
clínica habitual da doença. O diagnóstico da nefropatia é feito por biópsia renal com uso da imunofluorescência, que revela depósitos lineares de cadeia leve,
geralmente kappa (κ), na membrana basal tubular, glomerular e vascular. O objetivo desse relato é apresentar um caso de nefropatia por cadeia leve κ em paciente portador de mieloma múltiplo, cujos sintomas
iniciais foram hematúria microscópica, proteinúria
Nefropatia do Mieloma - Giordano LFC et al
maciça e hipertensão arterial, sendo o diagnóstico firmado por biópsia renal.
Relato do caso
Paciente W.C.F., do sexo masculino, 49 anos, casado, engenheiro metalúrgico com história de micro-hematúria detectada em exame de urina ocasional em 1999,
evoluindo com hipertensão arterial no ano seguinte.
Estava em uso de ibesartana/hidroclorotiazida, furosemida, nifedipina/atenolol quando, em agosto de 2001,
passou a apresentar edema de membros inferiores, proteinúria maciça (9,7 g/24hs) e elevação de creatinina
(1,7 mg/dL), sendo então encaminhado ao nefrologista. O paciente negava passado de diabetes.
Ao exame físico, apresentava pressão arterial de 170/
100 mmHg e discreto edema dos membros inferiores.
Os exames complementares revelaram depuração
de creatinina: 80 mL/min, colesterol total: 303 mg/dL,
ácido úrico: 8,8 mg/dL, albumina sérica: 3,48 g/dL,
HbsAg, anti-HCV e anti-HIV negativos, e no exame de
urina de rotina, hematúria (10 hemácias por campo) e
proteinúria 3+. As transaminases e o cálcio sérico estavam dentro dos parâmetros de normalidade.
A ultra-sonografia abdominal mostrou rins de tamanho normal, com um aumento da ecogenicidade
cortical, sem alterações nos demais órgãos.
O ecocardiograma mostrou sinais de hipertrofia
concêntrica do ventrículo esquerdo, uma hipocinesia
difusa discreta com fração de ejeção estimada em 61%
e uma função diastólica com padrão restritivo.
Figura 1 - Glomérulo volumoso, lobulado, com expansão mesangial de
padrão nodular, hialina e acelular. Existem alças capilares espessadas e de
contornos irregulares. Coloração: hematoxilina-eosina. Aumento X 260.
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Foi realizada biópsia renal, que mostrou à microscopia ótica glomerulosclerose nodular, sendo que 4
de 34 glomérulos apresentavam esclerose total. Não
foram evidenciados crescentes ou infiltrado túbulo-intersticial. Havia segmentos tubulares hipotróficos ao
lado de túbulos com cilindros hialinos. A imunofluorescência para cadeia pesada foi negativa para depósitos de IgA, IgG, IgM e C3. (Figura 1)
A eletroforese de proteínas na urina revelou um
aumento monoclonal na faixa gama. Foi realizada imunofluorescência com anticorpo anti-κ que mostrou padrão linear corando a membrana basal tubular e glomerular, sendo compatível com doença do depósito
de cadeia leve (Figuras 2 e 3).
O paciente começou a queixar-se de fraqueza e dor
óssea quando foi realizada radiografia de crânio, sendo detectadas lesões osteolíticas.
O estudo da medula óssea mostrou um grande
número de células com padrão plasmocitário e monoclonalidade para cadeia κ (método Labelled-Streptavidin-Biotin-Peroxidase), sendo firmado diagnóstico de
mieloma múltiplo. Foram identificadas translocações
e monossomias variadas durante a análise do cariótipo, envolvendo os cromossomos 11, 14, 18, 20 e 22.
O tratamento foi feito com um primeiro ciclo de
quimioterapia com vincristina, melfalan, ciclofosfamida e prednisona e, nos 5 ciclos subseqüentes, vincristina, adriamicina e dexametasona.
Atualmente, o paciente está sendo preparado para
realização de autotransplante de medula, e apresenta creatinina sérica de 1,3 mg/dL e proteinúria em 24h, 400 mg.
Figura 2 - Imunofluorescência direta com proeminente marcação antikappa, com padrão linear em capilar glomerular.
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Figura 3 - Detalhe da figura 2 mostrando o aspecto linear da
imunofluorescência.
D i s c u s s ã o
As gamopatias monoclonais são doenças hematológicas caracterizadas pela superprodução e depósito tecidual da cadeia leve ou pesada de imunoglobulina, produzida a partir de um clone de plasmócitos
que se prolifera anormalmente. Podem ser classificadas, conforme o aspecto à microscopia eletrônica, em
depósitos organizados ou granulares. No primeiro
grupo, a deposição de imunoglobulina ou de suas
subunidades no rim toma um aspecto fibrilar ou microtubular, como na amiloidose e glomerulonefrite
imunotactóide. Já no segundo grupo, os depósitos
acumulam-se nas membranas basais com padrão granular, sendo denominada doença de depósito monoclonal de imunoglobulina, que pode ser de cadeia
leve, cadeia pesada ou cadeia leve e pesada de imunoglobulina.1 Na nefropatia por depósito de cadeia
leve, ocorre uma superprodução de cadeia leve de
imunoglobulina, geralmente do tipo κ, e que, à microscopia, não se cora pelo vermelho Congo,3 o que
a difere da substância amilóide.
A doença pelo depósito de cadeia leve é um distúrbio sistêmico, podendo acometer qualquer órgão, mas
são as manifestações renais e cardíacas que normalmente
dominam o quadro clínico, sendo mais comum no sexo
masculino e em pacientes acima de 50 anos.
O envolvimento renal é uma constante, com proteinúria e algum grau de insuficiência renal geralmente acompanhada de hipertensão arterial.1,4 Hematúria
microscópica é detectada em aproximadamente 20%
dos casos.4
Até 80% dos pacientes apresentam manifestações
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cardíacas, geralmente com distúrbios de condução,
arritmias e insuficiência cardíaca de padrão diastólico
ao ecocardiograma.1
A imunoeletroforese ou imunofixação de proteínas
séricas e urinárias são exames utilizados na detecção
da proteína monoclonal, com sensibilidade de 78% e
84% respectivamente, segundo Heilman et al.5
A glomerulosclerose nodular tem sido considerada
a lesão histológica mais sugestiva da nefropatia por cadeia leve à microscopia ótica. Os nódulos são compostos de matriz extra-celular (colágeno tipo IV, laminina e
fibronectina), que é produzida em excesso e assemelha-se à glomerulosclerose nodular observada no diabetes. Existe, no entanto, uma variedade de padrões
histológicos descritos,6 como a proliferação mesangial
e um padrão histológico semelhante a glomerulonefrite
membranoproliferativa. As lesões tubulares também
chamam a atenção, caracterizadas por depósitos de
material eosinofílico, corados com periodic acid-Schiff
(PAS) ao longo da membrana basal tubular. Não se
observa habitualmente o depósito de complemento.
A imunofluorescência é essencial para o diagnóstico, com a detecção de cadeias leves com padrão linear
em membrana basal tubular, membrana basal glomerular, nódulos e vasos.
Na microscopia eletrônica, notam-se depósitos de
material granular na membrana basal tubular e glomerular, cápsula de Bowman, mesângio e parede das artérias. No glomérulo, esses depósitos predominam na
lâmina rara interna.
O caso descrito é extremamente interessante, pois
suspeitou-se da doença através das alterações histológicas observadas na biópsia renal, sendo confirmada
com a realização da imunofluorescência. O quadro clínico do paciente enquadra-se nos achados da literatura, ocorrendo manifestações renais e cardíacas.
A patogênese da nefropatia de cadeia leve ainda não
é bem compreendida. A análise estrutural da imunoglobulina produzida em um paciente com mieloma detectou alterações na seqüência do ácido desoxirribonuléico (DNA) no gene que codifica a região variável (VκIV),
resultando na troca de 9 aminoácidos. Essas alterações
favoreceriam a glicosilação da cadeia κ modificando sua
conformação e promovendo sua precipitação tecidual.7
Outro estudo demonstrou que a substituição de determinada seqüência de aminoácidos também na região
VκIV resultou na criação de uma zona hidrofóbica, o que
também levaria à deposição tecidual.8
O acúmulo de cadeias leves no mesângio estimu-
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la, via fator de crescimento transformador - beta (TGFβ), a produção de matriz extracelular, levando a expansão mesangial e esclerose, caracterizando a glomerulosclerose nodular.9
O prognóstico é geralmente desfavorável, mesmo
naqueles pacientes que recebem tratamento quimioterápico.10 Se não tratados, os pacientes evoluem para
insuficiência renal crônica terminal em 2 a 23 meses.11
A quimioterapia, seguida do transplante autólogo de
medula, é hoje uma opção terapêutica para pacientes
com mieloma, apresentando melhores resultados se
comparado à quimioterapia isoladamente.12 O esquema quimioterápico com vincristina, adriamicina e de-
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xametasona é atraente por não danificar as células
hematopoiéticas. O autotransplante apresenta uma
mortalidade durante o primeiro ano de 7%, com índice de remissão completa de 36% e sobrevida média
de 41 meses.13 Níveis elevados de β2-microglobulina
e proteína C-reativa, creatinina sérica >2 mg/dL, albumina <3.5 mg/dL e a presença de anormalidades
nos cromossomos 11 e 13, detectadas no estudo citogenético, correlacionam-se com um pior prognóstico.
Os pacientes que evoluírem com insuficiência renal
podem ser submetidos ao transplante renal após a
quimioterapia, mas se observa geralmente a recorrência da doença.1
R e f e r ê n c i a s
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Endereço para correspondência:
Luiz Flávio Couto Giordano
Rua R
aul PPompéia,
ompéia, 211 apto 202 São PPedro
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Raul
30330-080 Belo Horizonte, MG, Brasil
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