NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2009, vol XVIII, n.º 3 Alimentação – Experiências Precoces, Impacto Futuro Gonçalo Cordeiro Ferreira1 Embora seja frequente dizer-se que somos aquilo que comemos, a realidade é que nós comemos aquilo que somos. Muitos dos nossos comportamentos alimentares resultam de milhões de anos de evolução e programação genética. O Homem foi-se adaptando por mecanismos de selecção natural a ambientes hostis em que a regra era a escassez da alimentação. Foram-se assim seleccionando genes que determinavam comportamentos alimentares específicos, como a preferência pelos doces (maiores fornecedores de calorias), em detrimento dos amargos ou ácidos (associados a toxinas de plantas); bem como a preferência pelos alimentos gordos ou derivados da carne. Com o início da agricultura e da domesticação do gado, há alguns milhares de anos atrás, o nível de aporte alimentar tornou-se progressivamente mais constante, mas também mais restrito. A pressão ambiental para a selecção de genes modificadores do comportamento alimentar baixou drasticamente. Hoje, tal como nesse passado remoto, o bebé humano nasce com um gosto inato para o doce e uma aversão ao amargo. A preferência pelo salgado vai-se desenvolvendo a partir do segundo semestre de vida. Por outro lado a relutância em aceitar novos sabores (neofobias alimentares) ,e que se acentua a partir do 1º ano de vida, é um traço em que a hereditariedade desempenha um papel determinante. Estaremos então condenados pelos nossos genes a uma dieta monótona com os riscos que isso significa para o futuro (excesso de calorias, ingestão de substâncias potencialmente nocivas)? A resposta é não, porque podem contrariar-se os mecanismos inatos de preferência alimentar, através da experiência precoce. Por vezes tão precoce que ainda tem lugar na fase intra-uterina através da passagem transplacentar de sabores voláteis para o líquido amniótico , deglutidos pelo feto, como bem ficou patente em estudos pioneiros de Julie Menella e colaboradores , que demonstraram uma melhor aceitação de sabores pelo bebé na altura da diversificação alimentar quando esses alimentos haviam sido consumidos regularmente pela mãe durante a gravidez. Outros trabalhos põem ainda em evidência a importância da passagem desses mesmos sabores através do leite materno , conferindo ao lactente amamentado uma maior capacidade para se adaptar à diversificação alimentar. A capacidade do bebé aceitar novos sabores , principalmente se amargos ou ácidos (vegetais e frutas) vai aumentando gradualmente à medida que se vai familiarizando com esse sabor e muitas vezes são precisas em média 11 tentativas para finalmente ter sucesso ,pelo que se deve encorajar a persistência na oferta alimentar. Este aspecto é tanto mais importante quanto se sabe que a janela para a habituação aos sabores é estreita , começando a fechar-se pelos 2 anos e encerrando aos 3 anos, ou seja uma criança com um “portfolio” alimentar reduzido pelos 3 anos , vai manter essa monotonia alimentar até à adolescência , consumindo geralmente uma dieta rica em calorias mas pobre em nutrientes, através da selecção de alimentos energeticamente densos em detrimento de frutas e vegetais. Hoje já não é a modificação genética a principal causa da adaptação ás mudanças ambienciaisl. Essa adaptação resulta da modificação de comportamentos aprendidos pela divulgação de informação. O “meme” é então essa unidade auto-replicativa de informação. Para induzir a modificação do comportamento alimentar (geneticamente determinado), os memes são hoje de primordial importância: positivos quando encorajam a variedade; negativos quando, por medos cientificamente pouco explicados (como por exemplo, o receio de alergias , o que aliás motivou já uma clarificação nas ultimas recomendações quanto à diversificação alimentar da A.A.P e da ESPGHAN), afunilam a experiência alimentar e tornam ainda mais desajustado o nosso património genético ao ambiente em que ele se desenvolve. Nascer e Crescer 2009; 18(3): 193 __________ 1 Director da Área de Pediatria Médica do Hospital de Dona Estefânia – CHLC-EPE alimentação – experiências precoces impacto futuro XXI reunião do hospital de crianças maria pia S 193