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Drogas além da biologia: a perspectiva sociológica
Alba Zaluar
Prof. Titular de Antropologia UERJ
Vou falar nesse texto de uma sociologia não apenas do uso de drogas, mas
do uso de drogas no contexto político institucional que proíbe ou criminaliza o
uso e o comércio de algumas substâncias psicoativas, mas não de outras.
Isso quer dizer que não vou abordar questões relativas nem aos efeitos de
cada substância psicoativa sobre o cérebro humano, nem sobre a personalidade
(ou o distúrbio de personalidade) do usuário que são tratados respectivamente
pela neurobiologia e pela psiquiatria. Embora a distinção entre uso e adição,
assim como a diferença entre adição e dependência física sejam fundamentais
para reconstituirmos as relações sociais entre usuários ou entre eles e as
substâncias que usam, também não vou me estender sobre tais distinções.
Vou me deter, isto sim, no contexto social do uso e nas dinâmicas sociais
que podem nos ajudar a entender porque o uso tem aumentado continuamente
na população, apesar de todas as medidas repressivas, sempre na perspectiva de
entender porque uns e não todos se tornam usuários, porque há tantas formas e
graus de se relacionar com a droga, porque há tantas diferenças entre locais e
porque as mudanças vão se espalhando na população, especialmente a jovem.
Para isso, a abordagem não pode ser nem epidemiológica nem a
sindêmica, pois em Sociologia e Antropologia não se trabalha com as conexões
lineares de causa-efeito ou com os fatores de risco, nem muito menos com os
efeitos em termos de doenças físicas, mas com a sinergia entre múltiplas
dimensões, entre múltiplos fatos sociais interconectados para produzir
consequências, na perspectiva da complexidade. Certamente, para a Sociologia
contemporânea, a idéia de uma relação causal linear está em desuso devido à
sinergia entre tantos elementos que vão compondo os contextos sociais que se
pretende entender. Embora a dimensão objetiva esteja sempre presente na
complexidade, os aspectos subjetivos são parte da nossa investigação com os
sujeitos da nossa pesquisa. Interessa-nos, portanto, os múltiplos significados que
os atores sociais emprestam às substâncias que usam, aos riscos que correm e às
relações que estabelecem entre si nas diferenças cenas ou situações de uso. Na
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perspectiva de uma démarche reflexiva ou de um diálogo entre o cientista social
e as pessoas que ele estuda, procura-se entender a dinâmica das situações
sociais, em contínuo processo, com todas as indicações, rastros, contradições e
paradoxos que vão aparecendo ao longo do tempo com o maior número possível
de atores.
As perspectivas antropológica e sociológica qualitativas optam pelo
aprofundamento, mas perdem precisão, considerando que nem tudo pode ser
medido matematicamente, mas quase tudo pode ser entendido nos seus
múltiplos aspectos e dimensões. Apontam os conflitos, a diversidade, as
anomalias, os dilemas, as mudanças e os paradoxos nos contextos
socioeconômicos,
culturais,
político-institucionais.
Não
comprovam
matematicamente, mas sugerem caminhos que desafiam os que tentam medir o
que parece ser incomensurável, como o sofrimento, o medo, o abandono, a
amizade, o rancor, a confiança, a dor.
As questões sempre atendidas nos estudos sociológicos da droga referemse a:
1. Quais são os usos histórico-culturais do uso das substâncias em foco no
local em questão?
2. Quais são os padrões presentes do uso e seus efeitos sobre os
consumidores?
3. Como os consumidores se iniciam no uso dessas substâncias e como se
relacionam entre si?
4. Como os grupos sociais a que pertence o consumidor (família, escola,
vizinhança) reagem diante do uso e como isso o afeta?
5. Quais são os círculos viciosos provocados pela marginalização dos
usuários, pelo aumento da insegurança via aumento da criminalidade,
pelo aumento dos gastos públicos com a repressão que devem ser
superados pelo bem da política pública?
Há um consenso entre os estudiosos do assunto de que as substâncias
psicoativas fazem parte das sociedades humanas desde tempos imemoriais, mas
o lugar que essas substâncias ocupam na vida social, a forma de iniciação e o uso
contínuo delas variam de sociedade para sociedade em diferentes tempos
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históricos. Igualmente variável é o lugar que os usuários de tais substâncias
ocupam na sociedade parcial da qual fazem parte. Exigir ou procurar uma
sociedade livre de drogas é ilusório e inútil. É justamente a comparação entre
sociedades e diferentes tempos históricos que nos permite compreender a
dinâmica que pode ou não criar, que pode ou não aumentar o sofrimento do
usuário, as situações de conflito e incompreensão entre eles e seus familiares,
parentes, vizinhos, professores, cuidadores.
São essas relações variáveis no tempo e no espaço que vão nos fazer
entender porque surgem economias transgressivas que, embora enriqueçam
fornecedores e seus associados, além de alimentar um caríssimo aparato de
repressão, acabam por provocar efeitos desagregadores na sociedade. Tais
efeitos se devem ao impacto na ocupação do espaço público pelo comércio e uso
das drogas ilegais; ao crescimento das atividades criminais que passam a ser
altamente rentáveis em uma atividade econômica permanente; ao aumento
insofismável (seja imaginário, seja real) do sentimento de insegurança da
população; ao acúmulo de problemas na saúde pública pela sinergia do uso de
drogas abusivo com comportamento de risco, tais como sexo sem segurança,
compartilhamento de seringas que facilitam a contaminação de doenças infectocontagiosas; à marginalização do usuário e o abandono progressivo dos demais
laços sociais para se ater apenas na convivência com os outros usuários.
Na literatura internacional há indícios de que, apesar da constante
atração que as experiências com a consciência alterada, a transgressão e a
importância de ser aceito pelo grupo de pares seja uma característica do jovem,
as culturas tratam essas tendências juvenis de diferentes maneiras. As culturas
ditas molhadas, que socializam o jovem no seu uso controlado e não arriscado
dentro do espaço familiar ou ritual, ou aquelas em que o jovem usuário continua
acolhido nas suas redes sociais da qual fazem parte adultos respeitados, podem
vir a evitar a exacerbação dos problemas que advêm quando o uso dessas
substâncias torna-se excessivo, abusivo, aflito, incontrolável. As culturas ditas
secas, isto é, aquelas que não admitem o uso de tais substâncias por razões
morais, ao contrário, são aquelas em que os círculos viciosos da marginalização
dos usuários só fazem piorar os riscos de que o jovem se torne adito, dependente
ou viciado, levando-o a cometer crimes, a se afastar ainda mais dos círculos
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sociais estáveis, a se tornar cada vez mais escravo da droga, dos seus pares e da
sociedade dos marginalizados que se forma nos espaços urbanos para o uso
exclusivo de drogas.
No processo social que não é obrigatoriamente o de todos eles, a
trajetória seguida pelo usuário pode variar segundo as escolhas pessoais dele,
mas também segundo a reação dos seus familiares e membros de outros grupos
sociais, inclusive a escola e a vizinhança, diante dele. Uns continuam lutando
para manter o limite sobre o uso, mesmo de substâncias altamente viciadoras,
para manter as ligações com a família e demais grupos sociais estáveis na escola,
na vizinhança ou no trabalho, enquanto outros desistem de todo controle pessoal
sobre o seu corpo e sua mente, de todo laço social, alienando-se e perdendo
qualquer sinal de independência, como acontece com muitos usuários de crack
que permanecem na rua onde usam descontroladamente esta substância.
Os usuários de drogas, portanto, não formam uma categoria unívoca de
pessoas. Pesquisas feitas mundialmente apontam diferenças em graus de
envolvimento com a droga e com o grupo - se a tomam nas horas de lazer
ocasionais, se ela é central na definição de um estilo de vida alternativo
compartilhado com outros, se o seu uso se dá apenas no lazer ou em alguma
atividade que precisa de estímulo, ou se ela é o eixo na definição da identidade
individual do usuário compulsivo que a usa sempre e em qualquer lugar ou
circunstância. Não é a demanda por drogas, decorrente de mudanças nos estilos
de vida, que merece o qualificativo “destrutivo”, mas o uso incontrolado que
envolve usuários com certas características pessoais e sócio-econômicas. Neste
caso, o consumo obsessivo advém de variados problemas socioeconômicos que
não
conseguem
discriminação,
enfrentar
pobreza,
-
baixo
conflitos
rendimento
familiares
ou
escolar,
abandono
desemprego,
familiar
-
acompanhado pelo aumento impressionante de crimes contra a propriedade e
contra a vida.
As experiências pessoais os levam a se tornar, recorrentemente, de um
usuário funcional para um usuário da rua, de um agente social competente a um
marginal. O abandono é mutuo: do usuário consigo mesmo e dos que o cercam
para com ele. Desistir, abandonar, descuidar, largar, fugir são as palavras mais
usadas por os que terminam na rua, submetidos às regras que ali predominam,
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sendo estigmatizados por agentes da lei, transeuntes ou até mesmo agentes da
saúde quando procuram ajuda. Não há como entender esses processos e
mudanças sem incluir os significados subjetivos que os usuários e as pessoas que
os cercam emprestam à droga, ao contexto do uso e ao lugar do usuário.
Há muitos mal entendidos que precisam ser desfeitos. Supõe-se que, por
exemplo, o uso inicial de uma droga aditiva leva necessariamente à dependência,
seja ela física ou psicológica, confundindo-se iniciação com repetição, ou
permanência do uso. Não se atenta para as diferenças culturais, locais e pessoais
nesse processo cheio de idas e vindas, dependendo da política adotada. Outro
equívoco é achar que os usuários, se soubessem dos efeitos negativos das drogas,
deixariam de usar. Parte-se do pressuposto de que o jovem está mais
preocupado com os riscos à saúde do que com a aceitação social pelos seus
pares. Na verdade, o oposto acontece. Ele tem uma consciência sofrida desses
efeitos, ele sabe que pode morrer por causa deles, mas não sabe como sair da
armadilha em que ele próprio se colocou para seguir a aprovação dos seus pares,
assim como da armadilha em que o estigma e o abandono reforçam ainda mais a
sua desistência de lutar contra a sua dependência. A mesma força do grupo pode
ser usada, entretanto, para fazê-lo mudar de substância, para tomar precauções
no uso, para voltar a ter domínio sobre si.
Sendo assim, é preciso buscar respostas locais e não a aplicação uniforme
de políticas e dispositivos nacionais. Experiências na França, na Índia e outros
países mostram que é preciso não só aumentar o conhecimento dramático já
existente no usuário, mas também informar bem, combatendo o medo e os
preconceitos daqueles que os cercam, começando pelos seus pais, mestres e
cuidadores, estes sendo bem preparados para atuar junto e ajudá-los a
interromper a fuga e assumir sua condição de sujeitos de suas ações. A tendência
a tratá-los como vítimas sempre de uma entidade abstrata chamada sociedade,
não os ajuda nesse processo. Procurar soluções comuns face às crises e
encontrar estratégias comuns em longo prazo, fazer as instituições de
atendimento funcionar para o acompanhamento dos toxicômanos e o processo
de reinserção na família, na escola ou no trabalho não é trabalho para curiosos,
religiosos ou amadores improvisados de curadores.
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Nos planos macro e micro do tráfico de drogas ilegais, passei os últimos
trinta anos estudando os seus efeitos culturais, políticos, econômicos e sociais, o
que significa dizer os efeitos da criminalização do uso e comércio de algumas
substâncias psicoativas que alteram o estado de consciência. Em resumo, afirmei
que:
O comércio e o consumo de drogas ilegais podem ser considerados como
um setor do « consumo massivo de estilo » que é mais caro que o consumo
familiar, isto é, despesas familiares vinculadas aos modelos seguros das famílias
de trabalhadores. A sociedade do pós-guerra sofreu um processo acelerado de
transformações econômicas, políticas e culturais que se traduziram na
fragmentação social e na importância crescente do lazer e consumo como meios
de definir novas identidades sociais, em particular a dos jovens. Tais mudanças
indicam que as restrições morais convencionais, que existem sem a lei,
enfraqueceram e que o controle social vem primordialmente das funções
policiais de vigiar e aplicar a lei.
Não é novidade afirmar que o tráfico de drogas ilegais, tendo sido
instituído como crime, tornou-se atividade econômica transnacional com
conexões nos negócios legais. De fato, seus efeitos só são entendidos quando se
tomam as relações simbióticas entre diferentes atores com interesses comuns
que formam um tecido social, econômico e institucional entrelaçado. Este tecido
compõe o elemento sistêmico que existe, no interior e fora das nações, nas redes
trans-nacionais das atividades econômicas criminosas.
Outra afirmação disseminada é sobre o processo de globalização, nem
sempre esclarecendo a dinâmica que conecta as atividades ilegais ao sistema
financeiro volátil e transnacional. Mas fala-se da predominância do capital
financeiro, com jogos para ganhar dinheiro rapidamente no mercado, em
detrimento da produção, especialmente a industrial. Não só a volatilidade do
mercado financeiro internacional facilita manobras para a lavagem do dinheiro
ganho em atividades ilegais diversas, como a própria cultura empresarial muda.
O objetivo deixa de ser poupar para investir, e sim ganhar dinheiro facilmente
para consumir de modo hedonista. Estimulou-se a nova cultura que afeta desde
os empreendedores até o mais reles consumidor dos novos bens ofertados, legais
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e ilegais. O comércio de drogas faz parte do novo ambiente social, econômico e
cultural.
Valores individualistas e mercantis selvagens se disseminaram durante os
anos 1970 e 1980 no Brasil, traduzidos pelas expressões corriqueiras como
«levar vantagem em tudo», próprios da nova fase do capitalismo selvagem. A
sociedade brasileira sofreu o impacto da colonização pelo mercado e passou a
carecer dos limites morais fornecidos pelo social e pelo institucional preparado
para enfrentar os novos desafios.
Entretanto, há polêmicas. Uma das mais acirradas diz respeito à
organização ou não do crime. Entendo que o crime organizado funciona em redes
de conexões organizacionais e interpessoais, a um só tempo hierárquicas e
horizontais, cujos fluxos operam em relações não corporativas. Rede refere-se a
relações abertas no tempo e no espaço, conectando intermediários ligados por
laços de diversos tipos, ocasionais ou não. Esta perspectiva permite
compreender como padrões macro-sociais estão presentes nas atividades e
relações micro-sociais no varejo do comércio de drogas em territórios
dominados. Permite também entender a persistência de tais arranjos apesar dos
conflitos mortais que resultam da clandestinidade, ceifando vidas de jovens que
operam nas pontas das redes.
Polêmico também é o entendimento do impacto econômico do tráfico de
drogas. Há quem afirme que este atende às exigências para definir um
empreendimento capitalista: envolve capital, trabalho e mercados, sendo hoje
um dos maiores setores econômicos mundiais. Do ponto de vista de uma
economia schumpeteriana, criaria desenvolvimento, isto é, geraria inovações
industriais e retornos crescentes no setor produtivo, pois se baseia em inovações
industriais na produção das drogas. Sendo criador de riquezas e de empregos,
aumentaria a velocidade e o volume na circulação de dinheiro. Porém, muito
pouco se aprofundou na micro-sociologia das relações entre o dinheiro e o
tráfico, entre o comércio que atravessa fronteiras nacionais e os efeitos políticos,
culturais e econômicos dentro de países.
Um dos principais problemas mundiais é a incapacidade demonstrada
pelos estados nacionais de coibir o uso de drogas ilegais, bem como o mundo
criminal sinistro que se desenvolveu para fazê-las circular por toda parte com
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uma logística impressionantemente eficaz. Este mercado é apenas parte do
sistema do crime-negócio que está em diversos setores, utilizando redes e
mecanismos similares com o intuito de aparentar operações limpas e legais. Já
que os setores econômicos, sobretudo os ilegais, misturam os mercados formal e
informal, setores legais e ilegais, ao mesmo tempo em que conectam instituições
governamentais a traficantes, os negócios destes penetram em muitos dos
setores legais da sociedade. Tais setores funcionam freqüentemente na economia
formal, mas obtém parte de seus lucros no tráfico de drogas. Bancos, mercado
imobiliário e companhias de transporte fornecem serviços para os negócios
ilegais e os mecanismos principais da lavagem de dinheiro sujo.
Mas não se trata de mercado aberto, mesmo considerando que mercados
sempre funcionaram de forma imperfeita. Pois só podem ser admitidos nele os
que gozam da confiança e têm a permissão de quem tem um lugar melhor na
rede criminal. Fruto da ambição de atingir amplos e fáceis lucros ilegalmente, o
narcotráfico fomenta a criação de restrições ao livre comércio desde o atacado
até o varejo. Mesmo assim, num contexto de pouco desenvolvimento econômico
e desindustrialização, mais pessoas podem vir a ser atraídas ao arriscado
negócio e organizar suas ações de modo a obstruir a detecção e a acusação
judicial, seguindo o jogo sujo e necessariamente violento dos fora-da-lei.
O primeiro paradoxo do crime-negócio é que, surgido em nome da
liberdade de ação, transcende a lei e nega os princípios mais caros ao liberalismo
econômico. A macroeconomia da droga, embora suscite crescimento econômico
e aumente a circulação de moeda, tem efeitos perversos nos planos político e
cultural que se revelam de maneira dramática nos pontos finais dos seus
arranjos reticulares. O crime organizado aumentou em muito a violência em
alguns setores, especialmente o do tráfico de drogas no varejo. Os que ocupam
posições estratégicas nas redes podem ter rápidos ganhos devido à combinação
de poucos limites institucionais e corrupção, mas fomentam práticas
subterrâneas e violentas de resolução de conflitos na luta perene pelo controle
do comércio e do poder: ameaças, intimidação, chantagem, extorsão, agressões,
assassinatos.
O segundo paradoxo da proibição das drogas começa de uma
demonstração do poder do Estado ao proibir o seu comércio, porte e uso. A
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droga, tornada ilegal pelas leis do estado, passa a ameaçar a organização,
governança e o princípio básico da existência do estado: o monopólio legítimo da
violência. Não surpreende que o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas
tenha concluído que o crime organizado, com a capacidade de expandir suas
atividades a ponto de ameaçar a segurança e a economia dos países,
particularmente os que estão em transição e desenvolvimento, representa o
maior perigo que os governos têm de enfrentar para assegurar a estabilidade,
segurança
e
preservação
da
tessitura
social,
e
a
continuidade
do
desenvolvimento econômico.
Este paradoxo no exercício de poder do Estado, que passa a ameaçar a
capacidade estatal, fica mais claro em países em desenvolvimento, mas com fraco
aparato institucional. Corrupção institucional, irreverência pela lei, ineficácia no
sistema de Justiça, ineficiência das políticas de prevenção e tratamento no uso
abusivo, conspiraram para que a violência urbana aumentasse desastrosamente,
onerando custos do sistema de saúde e impossibilitando a execução de outras
políticas no combate à pobreza. O tiroteio cada vez mais comum nos bairros
populares e favelas, o uso de armas de fogo nas ruas, praças e escolas, a
proibição expressa de traficantes quanto ao ir e vir de favelados e servidores
públicos têm prejudicado os moradores, obrigados a mudar ou a enfrentar a
obstrução das poucas vias existentes nas favelas. Impede a entrada de inimigos,
mas também a de vans, ambulâncias e caminhões de lixo ou de entrega.
O terceiro paradoxo é aquele que se refere à relação entre o consumidor e
a droga que pode acabar por destruí-lo, ameaçando a existência do mercado
consumidor. Este é o de mais fácil solução, pois os contextos de uso, os usuários e
a relação deles com diferentes drogas não são homogêneos.
Neste país, começou-se tardiamente a investigar a provisão de drogas e
armas ilícitas ou o poder das redes de traficantes, principalmente suas conexões
com empresas e instituições legais. Apesar da criação de fundos para o controle
público dessas ações durante os anos 1990, só recentemente deu-se atenção aos
interesses econômicos e políticos conectados à economia da droga,
particularmente as interações tecidas entre o mundo visível e o invisível, o legal
e o ilegal, o formal e o informal. Em outras palavras, se bem que a Policia Federal
tenha começado ainda incompletamente a examinar o crime organizado, as
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Polícias Estaduais intervêm principalmente na repressão violenta e esporádica
de favelas e bairros pobres nas regiões metropolitanas e capitais. Estamos no
pior dos mundos e o debate ainda está nos seus primórdios. A desinformação e
os preconceitos, acumulados durante as décadas de uma política repressiva não
têm ajudado a encontrar soluções inovadoras.
Na Europa, o debate e as políticas públicas estão bem mais avançados em
vários países, tais como Portugal, Espanha, Itália, Holanda, Inglaterra. Mesmo na
França, que não aceitava a separação entre drogas leves e pesadas, discute-se a
legalização de uma droga menos aditiva - a maconha-, mas que sempre foi
considerada como a abertura para drogas mais pesadas. As boas políticas
públicas são aquelas que minimizam o custo social, ou seja, melhoram o bemestar da população, a um menor custo monetário. A repressão é muito mais cara
e não conseguiu diminuir o consumo da maconha na França que aumentou ao
longo dos últimos anos, segundo atestam recentes estudos do Observatoire
Français des Drogues et des Toxicomanies (OFDT) e do Institut National de
Prévention et d’Éducation pour la Santé (INPES). Em 2010, um terço (14
milhões)dos adultos entre 18 e 64 anos declararam ter consumido canabis ao
longo da vida, 8% 4 milhões) nos últimos 12 meses, 4 % (1,5 milhão) no último
mês, sendo principalmente jovens (64% dos homens entre 24 e 36 anos; 40%
das mulheres entre 18 e 34 anos). A conclusão foi de que se tratava de um
fenômeno de grande amplitude e não a diversão ou maluquice de hippies
marginais.
Entre a penalização e a descriminalização, entre a repressão e o
liberalismo existe a terceira via, como a chamam os franceses, da
regulamentação e do controle via legalização. Manter altos preços, controlando a
produção e o local de venda, restringindo esta a adultos identificados, pode
minorar em muito os efeitos negativos do uso das drogas, além de eliminar os
efeitos ainda mais nocivos do tráfico armado.
Segundo Pierre Kopp, economista da droga, a França economizaria 300
milhões de euros gastos com as investigações judiciais, excluindo as prisões e os
júris, o que economizaria cerca de um bilhão de euros. Gasta-se muito menos
com a prevenção e a educação que forneceria também outros meios de obtenção
de prazer e reconhecimento entre os jovens.
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A legalização, entretanto, não deve ser entendida como um direito ao
consumo de toda e qualquer substância, por qualquer pessoa em qualquer lugar.
Pois não se trata de um direito específico ao uso de uma droga que, usada
excessiva ou inadequadamente, pode ter graves conseqüências sobre a saúde
física
e
mental
do usuário.
A
legalização
sob
controle
permite
a
responsabilização de todos os atores envolvidos, inclusive do usuário com a sua
própria saúde, além de libertar agentes e verbas para a repressão dos que só
pensam em aumentar os lucros com a desgraça alheia.
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