TEXTO 9 9. A Inflação e Suas Explicações A economia brasileira atravessou, durante os anos 1980, uma profunda crise caracterizada por estagnação econômica e altas taxas de inflação. A renda per capita, em 1994, encontrava-se no mesmo nível de 1980. A inflação alcançou níveis elevadíssimos nesses quinze anos. Na verdade, foi a pior crise por que passou a economia brasileira desde que o país se tornou independente, sendo muito mais grave que a crise dos anos 1930. Em um primeiro momento – entre 1981 e 1983 –, a diminuição no ritmo de crescimento foi atribuída ao esforço de ajustamento imposto pela crise da dívida. Numa segunda etapa – 1984 a 1986 –, a balança comercial foi reequilibrada devido à desvalorização cambial, e o país voltou a crescer, embora baseado no aumento do consumo. A crise parecia, então, superada; porém, a partir de 1987, com o fracasso do Plano Cruzado e a moratória da dívida externa, ela voltou a se manifestar. Nos anos de 1987 e 1988, houve ajustes moderados. Em 1989, houve um crescimento tipicamente populista que perduraria até o início de 1990. A inflação já se vinha acelerando desde meados da década anterior, mas essa tendência realmente se acentuou a partir do início dos anos 1980. No período da grande crise, a inflação, de caráter essencialmente inercial, aumentou por patamares, ameaçando tornar-se explosiva em determinados momentos. As maxidesvalorizações de 1982 e 1983 foram responsáveis pela elevação do patamar inflacionário de mais ou menos 100% para 200% ao ano. Depois da experiência do Plano Cruzado, a inflação passou a ser medida em termos mensais, não mais anuais. Na segunda metade da década, girou em torno de 20% ao mês (640% ao ano), interrompida por sucessivos e malogrados planos de estabilização. No final da década, entra em rota explosiva, culminando num processo hiperinflacionário ao final de 1989 e início de 1990, quando a inflação chega a ultrapassar a marca de 70% ao mês. Depois do fracasso do Plano Collor, em 1990, a inflação regressaria ao patamar de 20% ao ano até meados de 1993, quando voltaria a crescer. Às vésperas do Plano Real, a taxa de inflação mensal estava próxima dos 50%. Assim, a inflação tem sido um dos temas mais discutidos dentro das análises sobre a economia brasileira. Ao longo das últimas décadas, o Brasil viveu as mais diferentes experiências inflacionárias: desde o programa bem-sucedido de combate à inflação do Governo Castelo Branco (1964-1967) até o Plano Real (1994), o país passou por seis programas fracassados de estabilização (Cruzado I, Cruzado II, Bresser, Verão, Collor I, Collor II), assistiu a um processo crescente de indexação e esteve à beira da hiperinflação, no final do governo Sarney (março/1990). A inflação é entendida como um processo de aumento contínuo e generalizado nos níveis de preços. Dentro desse conceito, é importante destacar que a inflação: (a) é um processo e não um fato isolado; (b) envolve aumentos contínuos e não esporádicos de preços; e (c) aumentos generalizados de preços e não isolados. 135 9.1. Tipos de Inflação A teoria convencional identifica dois tipos básicos de inflação: inflação de demanda, inflação de custos. Mas é possível incluir um novo tipo de inflação, a inflação inercial. Trata-se de um fenômeno que surgiu recentemente e encontrado, principalmente, em economias, ditas emergentes. 9.1.1. Inflação de demanda Como o próprio nome diz, a inflação de demanda é causada por um excesso de procura em relação à oferta disponível. Entre os fatores que podem causar pressão de demanda na economia, cabe destacar: a) aumento da renda disponível, o que pode ocorrer por meio de aumentos reais de salários, efeito-riqueza, ou mesmo redução da carga tributária (como, por exemplo, menor Imposto de Renda na fonte); um exemplo do primeiro caso (aumentos reais de salário) é encontrado no Plano Cruzado, em 1986, quando ficou estabelecido que os salários seriam definidos pela média real dos últimos seis meses, mais um aumento de 8%; o efeitoriqueza esteve presente nos meses que se seguiram à implantação do Plano Verão (1989), pelos significativos rendimentos gerados pelas aplicações financeiras; e, por fim, a elevação da renda disponível por redução do Imposto de Renda na fonte que ocorreu em janeiro de 1986 (véspera do Plano Cruzado) e em janeiro de 1989 (mês de implantação do Plano Verão); b) expansão dos gastos públicos, dado que o governo é um dos agentes que demandam bens e serviços na economia, um aumento dos gastos públicos pressiona o nível de demanda agregada; c) expansão do crédito e redução das taxas de juros interferem na demanda de consumo e de investimentos; quando o crédito é abundante (aumento da liquidez) há uma tendência à elevação do consumo (maior facilidade de obter recursos), bem como do investimento; da mesma forma, reduzidas taxas de juros estimulam o consumo: de um lado, quem não dispõe de recursos para efetivar a compra a vista pode obter os recursos com uma prestação mais baixa; por outro, quem dispõe dos recursos sente-se pouco atraído a poupá-los (como ocorreu no Plano Cruzado); o mesmo verifica-se em relação à demanda de estoques: juros reduzidos podem estimular a aplicação de estoques; d) a expectativa dos agentes econômicos também influencia o nível de demanda da economia; logo após a implantação do Plano Verão, o receio do descongelamento levou muitos agentes a antecipar compras, pressionando o nível de demanda, fato esse que também ocorreu no Plano Cruzado; por outro lado, existem períodos nos quais a incerteza em relação à manutenção do próprio emprego leva os trabalhadores a reduzir seus níveis de consumo (e, portanto, a aumentar a poupança) para fazer frente a um eventual período de dificuldades, como ocorreu na recessão de 19811983 e no Plano Real, em função das mudanças que ocorreram no mercado de trabalho. 136 9.1.2. Inflação de custos A inflação de custos é causada por pressões de custos e conseqüente repasse para os preços. Entre os fatores que podem causar aumentos de custos, cabe destacar: a) taxa de juros, dado que as empresas utilizam capital de terceiros; vale destacar que ao mesmo tempo em que contribui para reduzir a demanda, um aumento das taxas de juros eleva os custos de produção; b) desvalorização cambial, com aumento nos preços dos produtos importados (tanto de bens de consumo final como matérias-primas e equipamentos); c) os preços externos podem subir (em dólares), como ocorreu com o petróleo nas crises de 1974, 1979 e, mais recentemente, no ano 2000; d) o custo da mão-de-obra, que é composto por salários mais encargos; sempre que há aumento de salário nominal, seja por política salarial (no passado), seja por acordos salariais com os sindicatos, os custos elevam-se, a menos que se tenha um ganho proporcional de produtividade; a mesma situação verifica-se com o aumento dos encargos sociais, como ocorreu com a Constituição de 1988; e) aumento de impostos pressionam os preços, como ocorreu em 1999 com a elevação da Cofins (2% para 3%); cabe destacar que os impostos em cascata e os impostos indiretos (ICMS, IPI etc.) impactam diretamente os preços, o que não ocorre com os impostos diretos, como o Imposto de Renda, cuja incidência é sobre o resultado do negócio (o lucro). 9.1.3. Inflação inercial Ocorre independentemente de pressões de demanda ou de custos e está associada aos mecanismos de indexação da economia, isto é, a garantia (legal ou por prática) de reajustar preços, a partir da constatação da existência de inflação. Preços, câmbio, salários, ativos financeiros etc. têm seus valores reajustados porque existe inflação. Se a indexação é plena, a inflação de hoje passa a ser o “piso” para a inflação de amanhã. Se a periodicidade dos reajustes é constante numa economia indexada, a inflação tenderá a se estabilizar numa certa faixa mensal, somente se não ocorrerem pressões da demanda ou de custos. Por outro lado, mesmo na ausência dessas pressões, a inflação muda de patamar se a periodicidade dos reajustes for reduzida. O aspecto mais negativo da indexação é o fato de a mesma tornar a inflação rígida para baixo, isto é, mesmo sem pressões de demanda e de custo a inflação não cede. Entre os aspectos favoráveis da existência de alguma indexação (que poderia ter periodicidade de um ano, por exemplo) é que a mesma reduz o grau de incerteza, permite ampliar os prazos de operações e é um mecanismo de convívio com alguma inflação. Contudo, para que a indexação contribua para os aspectos citados, é fundamental que o indexador utilizado seja de confiança dos agentes econômicos, pois, caso contrário, ter ou não ter indexação não é muito diferente. 9.2. Considerações sobre os tipos de inflação Embora a distinção entre inflação de demanda e custos evidencie a importância do diagnóstico sobre as causas da inflação (para que se possa aplicar a terapia), na prática, os dois tipos normalmente estão interligados. Quando uma economia sofre um choque de custos (via desvalorização cambial, por exemplo), o impacto dessa elevação de custos 137 sobre os preços dependerá das condições de demanda da economia. Quanto mais aquecida estiver a economia, maior será o impacto dos custos nos preços finais dos produtos e, portanto, maior a taxa de inflação (nesse caso, a demanda estaria “sancionando” a inflação de custos). Por outro lado, se a demanda estiver contraída, as empresas tentarão repassar os aumentos de custos para os preços, mas o mercado não aceitará (pelo menos em sua totalidade) tais aumentos, gerando impactos menos significativos sobre a inflação. Em vista desse quadro, verifica-se que, por ocasião de pressões de custos na economia, é comum observar a adoção de uma política de contração de demanda para dificultar o repasse aos preços. Essa situação foi observada em janeiro de 1999, por ocasião da forte desvalorização do real, com o substancial aumento das taxas de juros. Com isso, procurou-se combater uma inflação de custos com redução de demanda. Da mesma forma, em economias indexadas, verifica-se que, quanto menos rígida for a demanda, maior é a facilidade com que se “espalham” os mecanismos de indexação e se reduz a periodicidade dos reajustes. 9.3. Como as Teorias Explicam a Inflação Uma análise das teorias sobre inflação permite identificar várias contribuições importantes sobre o tema, mas deixa claro que nenhuma delas isoladamente é suficiente para explicar o comportamento da inflação no Brasil nas últimas décadas. Na realidade, observa-se algum grau de complementação entre elas. 9.3.1. Teoria monetarista A visão dos monetaristas acerca do processo inflacionário pode ser analisada a partir da Teoria Quantitativa da Moeda. Essa teoria parte da seguinte igualdade: M ⋅V = P ⋅ Q onde: M = o volume de moeda (meios de pagamento) existente na economia num dado momento; V = velocidade de circulação da moeda, isto é, o número de vezes que a moeda “troca de mão” em determinada unidade de tempo; P = o nível de preços da economia; Q = a quantidade produzida pela economia. Admitindo uma situação hipotética em que V = 1 e Q = 100, a teoria diz que se a quantidade de moeda dessa economia for igual a 200 (M =200), o preço médio dessa economia terá que ser necessariamente 2 (200 ⋅ 1 = P ⋅ 100 ⇒ P = 2). Admitindo-se, por outro lado, uma expansão de 100% na quantidade de moeda dessa economia (M passa de 200 para 400), podem-se observar três possíveis resultados: a) a produção não se altera, e os preços sobem na mesma proporção do aumento da moeda, isto é, 100%: 400 = P ⋅ 100 ⇒ P = 4 138 b) a produção aumenta 100% (Q passa para 200) e os preços mantêm-se estáveis: 400 = P ⋅ 200 ⇒ P = 2 c) a produção aumenta parcialmente (Q passa para 150, por exemplo) e os preços sobem num percentual inferior ao registrado pela moeda: 400 = P ⋅ 150 ⇒ P = 2,67 isto é, os preços sobem 33,5% pois, 2,67 dividido por 2 é igual a 0,335% vezes cem é igual a 33,5% A teoria monetarista entende que a causa básica da inflação encontra-se na emissão de moeda em ritmo superior às necessidades da economia (isto é, a situação b ou c). Essa emissão, por sua vez, é provocada pelo déficit do setor público, de acordo com o seguinte mecanismo: Déficit público Expansão de moeda Inflação Para reverter um processo inflacionário, a teoria monetarista propõe o combate ao déficit público e, por conseqüência, o controle sobre a emissão de moeda. Concentrando ainda a discussão nessa teoria, pode-se perceber que, pela teoria quantitativa da moeda, reduções na oferta de moeda deveriam levar a uma redução de preços, ou uma redução do ritmo de crescimento dos preços. Nesse sentido, cabe observar que um eventual choque de contração de moeda deve impactar os preços (P), mas também a quantidade – ou seja, leva inevitavelmente à recessão. Outra questão importante refere-se ao papel da oferta monetária numa economia indexada. Reduzir a inflação numa economia indexada, por meio de contrações na oferta monetária, traz muito mais impactos recessivos do que queda efetiva da inflação, dado que os preços sobem automaticamente. Em outras palavras, o custo social torna inviável a adoção de uma política monetária antiinflacionária numa economia indexada. Por outro lado, se as autoridades monetárias emitirem moeda para manter a indexação, diz-se que a política monetária está “sancionando” a taxa de inflação existente. 9.3.2. Teoria keynesiana. Os keynesianos atribuem um papel crucial aos gastos públicos na busca do equilíbrio macroeconômico. Essa teoria entende que a inflação está associada ao excesso de gastos públicos, mas que esses mesmos gastos devem constituir-se sempre na variável de controle da economia. O excesso de gastos públicos provocará inflação, quando a demanda cresce a ponto de pressionar os mercados de fatores de produção. Com isso, os preços dos fatores de produção (mão-de-obra, equipamentos etc.) elevar-se-ão, pressionando os custos e a inflação. O mecanismo de propagação dar-se-ia da seguinte forma: 139 Excesso de gastos públicos Excesso de demanda agregada Pressão no mercado de fatores de produção Aumento dos preços dos fatores Inflação Na visão keynesiana é o excesso de gasto público que, via aumento de custos, gera inflação e não o aumento de moeda, como dizem os monetaristas. Para os keynesianos, o déficit público não é relevante para explicar a inflação e sim o “tamanho do gasto público”. Na realidade, o gasto do governo deve ser a variável de controle, e, portanto, se está existindo inflação, o gasto não está adequado àquele nível de oferta. Como conseqüência, a proposta de ação para um programa de combate à inflação reside na contração do gasto público, independentemente da existência ou não de déficit público. Ainda em relação à visão keynesiana, choques de oferta, como “quebra” de safra agrícola, e aumento dos preços internacionais do petróleo, entre outros, também são responsáveis pela explicação do processo inflacionário. 9.3.3. Teoria estruturalista Os estruturalistas entendem que os setores da economia crescem a ritmos diferentes, causando excesso de demanda nos mercados em que a oferta não tem capacidade de resposta. As tensões inflacionárias seriam geradas pela falta de dinamismo da agricultura e da capacidade de importar. Particularmente, em relação a essa última questão, os estruturalistas entendiam que os países em desenvolvimento tenderiam a perder nas relações de troca à medida que o mundo vai se desenvolvendo, porque a demanda cresce mais para os bens produzidos nos países desenvolvidos do que para os bens produzidos nos países pobres. Com isso, a capacidade de importar ficaria limitada. Além disso, a teoria levanta também a tese da incompatibilidade distributiva como fenômeno causador da inflação. Os diferentes grupos sociais tentam aumentar as respectivas participações no PIB, fazendo com que a soma dessas tentativas seja superior ao todo (o PIB). A “acomodação” a esses pleitos é feita por meio da inflação. Sob esse enfoque, encontra-se a conhecida discussão sobre salários, lucros e preços. Os sindicatos dos trabalhadores demandam aumentos salariais incompatíveis com os ganhos de produtividade, visando aumentar sua “fatia no bolo”. Os empresários concedem o aumento nominal e para manter sua participação repassam para os preços causando inflação, que “come” o reajuste nominal concedido. O resultado final é a manutenção das participações com mais inflação. É importante destacar que durante toda a década de 80, quando o país era uma economia muito mais fechada, era comum observar-se (principalmente por parte dos setores oligopolizados) a concessão de reajustes nominais de salários, desde que o mercado absorvesse aumentos de preços para compensar os reajustes. Na prática, ocorria uma transferência de renda dos trabalhadores não organizados para os mais organizados. Com o processo de abertura comercial, essa prática ficou inviabilizada nos setores produtores de tradeables, uma vez que aumentos de preços tornam os produtos 140 importados mais competitivos, podendo levar até mesmo à incapacidade de concorrer com os mesmos. Para combater um processo inflacionário crônico, os estruturalistas defendem a adoção de incentivos fiscais e creditícios para aqueles setores que não têm capacidade de maior crescimento, porque são setores que não respondem a estímulos de preços. Além disso, para evitar as pressões inflacionárias derivadas da incompatibilidade distributiva, propõem a adoção de políticas de rendas, com intervenção no processo de formação de preços (mercado de bens) e salários (mercado de trabalho). 9.3.4. Teoria inercialista Quando, no início de 1985, se completou a transição democrática, o Brasil estava imerso em uma crise econômica de grandes proporções, mas não se dava conta de sua gravidade. Sabia-se de sua existência desde o início da década, mas o diagnóstico de causas era impreciso e parcial. Só se percebia seu aspecto mais aparente: a crise da dívida externa. Mesmo esta foi considerada por muitos como superada quando o Brasil, a partir de 1983, ajustou seu balanço de pagamentos e começou a apresentar substanciais superávits comerciais. A crise, na verdade, começara em 1979, com o segundo choque do petróleo, a elevação da taxa de juros nominal e real nos Estados Unidos, e a recessão naquele país. Uma política econômica equivocada elevou então o patamar da inflação de 40% para 100% ao ano. No final de 1980, os bancos internacionais suspenderam a rolagem dos seus empréstimos para o Brasil, obrigando o governo a adotar medidas de ajuste fiscal para estabilizar o balanço de pagamentos. Após dois ajustamentos (1981 e 1983) com efeitos recessivos – o último envolvendo uma maxidesvalorização do cruzeiro (moeda da época) –, o ajuste de fluxo das contas externas foi finalmente alcançado. A inflação, porém, ao invés de cair como esperavam as autoridades econômica, dadas as políticas ortodoxas que estavam sendo postas em prática em 1983 sob a orientação formal do FMI, subiu do patamar de 100% ao ano para 200% naquele ano, não obstante a forte recessão então verificada, estabilizando-se, em seguida, inercialmente nesse novo nível até o final de 1985. O desenvolvimento econômico, entretanto, pareceu ter sido retomado em 1984, quando as exportações brasileiras, favorecidas pela expansão da economia mundial e pela desvalorização da moeda no ano anterior, aumentaram substancialmente e as taxas de crescimento do PIB voltaram a ser positivas. O grande superávit comercial sugeria enganosamente que o problema da dívida externa havia sido contornado. Bastaria, portanto, controlar a inflação, e a retomada do desenvolvimento estaria consolidada. O Brasil voltaria a crescer a taxas de 6 a 7% ao ano, como sempre fizera. O problema fundamental a partir de 1984 passara a ser, portanto, como controlar a inflação. O forte ajuste fiscal de 1983 havia levado o déficit público para perto de zero, mas não havia logrado estabilizar os preços. Os economistas monetaristas que haviam aplicado a terapia convencional, ou ortodoxa, de controle da inflação – ajuste fiscal e política monetária rígida – estavam perplexos. Já os economistas neo-estruturalistas tinham uma nova teoria para explicar a inflação no Brasil. Essa teoria, que surgira na América Latina no início dos anos 1980 – a teoria da inflação autônoma ou inercial –, não apenas decifrava um quebra-cabeça 141 importante, mas, adicionalmente, sugeria que a solução do problema, embora difícil, não era tão custosa quanto a teoria econômica ortodoxa pretendia. O ponto de partida, tinham origem no livro A Inflação Brasileira, de Ignácio Rangel, que representava claramente um avanço em relação às teorias estruturalistas. Rangel aceitava a idéia de que a inflação tivesse origem em pontos de estrangulamento na oferta de certos bens, como queriam os estruturalistas, mas sua ênfase era claramente distinta. Rangel via a inflação como um mecanismo de defesa da economia,como uma forma por meio da qual os ciclos econômicos eram moderados e a taxa de investimento se mantinha elevada. Enquanto a teoria convencional da inflação, monetarista ou keynesiana, supõe que a inflação seja em princípio de demanda, acelerando-se nos momentos de expansão da economia, Rangel dava ênfase ao lado da oferta e considerava a inflação brasileira não como uma conseqüência da demanda em ascensão, mas como resultado dos desequilíbrios da economia, que se manifestavam por meio da recessão, e da própria inflação. Além disso, Rangel acreditava que o poder de monopólio das grandes empresas, e particularmente dos grandes intermediários de bens agrícolas, representava um papel fundamental na explicação do problema. A inflação se acelerava na recessão para acomodar as demandas dos agentes econômicos, principalmente daqueles com poder de oligopólio, que relutavam em aceitar uma diminuição de sua renda. Dessa forma, e ao contrário do que propõe a teoria econômica convencional, a inflação para Rangel acelerava-se nos momentos de crise e reduzia seu ritmo quando a economia voltava a crescer. Essas idéias eram revolucionárias. Explicavam como era possível coexistirem, como já acontecera em 1963, ano de publicação do livro, recessão e inflação. Rangel descobrira uma especificidade das situações de alta inflação que a teoria econômica convencional, fosse ela monetarista ou keynesiana, não explicava. Além disso, Rangel dera um passo decisivo na compreensão das relações entre a inflação e a moeda, ao aprofundar a idéia estruturalista de que a oferta de moeda é endógena, passiva. Não era o aumento da quantidade de moeda que explicava a inflação, mas era o aumento desta, provocada pelo poder de oligopólio e pela necessidade de reduzir as crises cíclicas, que induzia o aumento da oferta monetária. Durante os anos 1970, após a crise do petróleo, surge um fato histórico novo nas economias desenvolvidas: a estagflação. As economias centrais viam suas taxas de inflação aumentarem enquanto entravam ou permaneciam em recessão. O mesmo fenômeno que Rangel estudara e explicara dez anos antes, examinando a economia brasileira, repetia-se agora em âmbito mundial. A estagflação teve nos países centrais a conseqüência perversa de minar as teorias keynesianas de inflação, substituídas por teorias monetaristas baseadas nas expectativas dos agentes econômicos – expectativas que então se transformaram em instrumento mágico que fornecia respostas a todos os problemas mal resolvidos pelos economistas. Havia, entretanto, um fato que nem as teorias convencionais, nem a teoria de Rangel explicavam: a estabilidade da inflação em determinados patamares. Esse fenômeno era universal, embora fosse particularmente visível na economia brasileira. Durante quase todos os anos 1970, por exemplo, a inflação permaneceu relativamente estável, girando em torno de 40% ao ano. Em 1979, mudou de patamar e permaneceu constante, ao redor dos 100% ao ano. Por quê? As teorias monetaristas eram claramente insatisfatórias, e as keynesianas haviam perdido poder explicativo com a estagflação. O estruturalismo era uma explicação limitada, já que os pontos de estrangulamento na 142 oferta de bens agrícolas revelavam-se muito menos importantes do que pareciam. As idéias de Rangel, embora esclarecedoras, explicavam uma dinâmica de aceleração e desaceleração da inflação, mas não as razões pelas quais a inflação mantinha-se estável por vários anos em um mesmo patamar, independentemente da demanda e da oferta, e, portanto, do mercado. Os inercialistas, em 1980, depois de terem visto a inflação dar um salto, passando de 50% para 100% ao ano, e em seguida estabilizar-se nesse nível, em um processo claramente independente da demanda, tiveram uma intuição. O fato de que a inflação administrada ou de custos tendia a generalizar-se nas economias modernas, caracterizadas por um capitalismo oligopolista ou tecnoburocrático, em que o Estado desempenhava um papel econômico fundamental, não era explicação suficiente para o fenômeno. Havia um problema adicional e básico: a defasagem nos aumentos de preços das empresas, que levava ao repasse automático dos aumentos de custos para preços, independentemente da demanda. As elevações de custos e preços não ocorrem todas ao mesmo tempo em todas as empresas. Elas ocorrem alternadamente, em uma e outra empresa. Este fato é decisivo. Suponhamos três empresas, A, B e C, no sistema. Se estas três empresas aplicam rigorosa e alternadamente a política de margem fixa sobre o custo, a taxa de inflação, uma vez iniciada, torna-se permanente. A combinação de margem fixa sobre o custo com reajustamentos alternados de preços não leva necessariamente a um aumento da taxa de inflação, mas à manutenção dos níveis de inflação em um determinado patamar. Os inercialistas objetivavam explicar uma inflação que permanecia estável por vários anos em patamares elevados, independentemente da existência de excesso de demanda. Para isso, a primeira coisa que fizeram foi distinguir os fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação. Essa era uma distinção nova, que não estava presente na literatura internacional sobre a inflação. Todas as teorias sobre a inflação centravam-se nos fatores aceleradores. Quando buscava descobrir a causa da inflação, uma teoria atinha-se a tentar determinar o que acelerava ou desacelerava a taxa de aumento dos preços. Os monetaristas afirmavam que a inflação era causada (acelerada) pelo aumento da quantidade nominal de moeda acima do aumento da renda; os keynesianos atribuíam-na ao excesso de demanda em relação à oferta agregada; os estruturalistas, a estrangulamentos na oferta e aos efeitos propagadores dos aumentos setoriais de preços; os administrativistas, ao poder monopolista de empresas, sindicatos e do próprio governo, que eram capazes de impor choques constantes de preços, os quais, em seguida, se propagavam para o resto da economia. Todos os modelos partiam do pressuposto de que a inflação era zero. A partir desse pressuposto, as teorias procuravam explicar por que, quando deixava de ser zero, a inflação acelerava-se. Não há dúvida de que determinar as causas da aceleração da inflação é importante. O fundamental e inovador, entretanto, era saber por que a inflação se mantinha estável em determinado patamar. Em outras palavras, quais eram os fatores mantenedores da inflação. A manutenção do patamar de inflação decorre do fato de que os agentes econômicos, em seu esforço para manter sua participação na renda, e dado que os aumentos de preços são realizados defasadamente, não têm outra alternativa senão repassar aumentos de custos para preços, repetir no presente a inflação passada, indexando informalmente seus preços. A inflação inercial torna-se assim o resultado do conflito distributivo entre empresas, capitalistas, burocratas e trabalhadores para manter 143 sua participação na renda. Com a indexação informal, realizada por reajustes defasados ou assincrônicos, os preços relativos vão sendo continuamente equilibrados e desequilibrados. Não há nenhum ponto de equilíbrio dos preços relativos, apenas um vetor de equilíbrio. Ao redor desse vetor, os preços nominais fixos temporariamente caem em termos reais durante o período entre reajustes e sobem no momento do reajuste. Um importante pressuposto da teoria, na sua forma pura, é o de que os agentes econômicos estariam satisfeitos com seus preços e, portanto, com sua participação na renda. Se já houver uma indexação formal – como, aliás, era o caso da economia brasileira na época –, a inercialização da inflação será naturalmente facilitada. E se as empresas forem principalmente oligopolistas, usando uma política de preços baseada em margens (mark-ups) relativamente fixas, esse processo será ainda mais vigoroso. Mas não é necessário que haja monopólios para que a inflação se torne independente da demanda e “inercialize-se” em determinado patamar. Basta que os agentes econômicos já estejam acostumados com uma inflação alta. Basta que saibam que podem aumentar seus preços sem prévio acordo, mesmo que a demanda não esteja aquecida, porque os seus concorrentes não terão outra alternativa senão proceder da mesma forma. Além do papel dos mark-ups, um elemento fundamental é a indexação informal da economia, decorrente da expectativa dos agentes econômicos de que os preços continuariam a ser aumentados de acordo com o inchaço passada mesmo em uma situação de recessão, já que esperavam que seus concorrentes também o fizessem. Quanto aos fatores sancionadores da inflação, os inercialistas definem dois: moeda e déficit público. Quanto à moeda, apenas repetiam as idéias de Ignácio Rangel e, mais amplamente, dos estruturalistas latino-americanos. Se, em inflações moderadas, a moeda já é em parte endógena, em inflações altas torna-se estritamente endógena. Nesses casos, a política monetária é, por definição, inócua. O máximo que o governo pode fazer é política de juros. Não pode, porém, determinar a oferta nominal de moeda, que tem de crescer com a inflação, “acomodando-se à inflação”, como dizem os monetaristas, para que a quantidade real de moeda seja minimamente mantida e a recessão não se aprofunde grave e inutilmente. Na verdade, em uma alta inflação inercial ou em uma hiperinflação, a oferta nominal de moeda cresce menos do que a inflação, já que há um inevitável processo de desmonetização, uma vez que os agentes econômicos procuram reter o mínimo de moeda possível. Uma novidade relativa em relação aos fatores sancionadores da inflação era a inclusão do déficit público nessa categoria. De acordo com o efeito Olivera-Tanzi, já se sabia que a elevação da inflação provocava a redução da receita tributária real. Acrescenta-se a este fator técnico um fator político. Já que a inflação elevada exige que a quantidade de moeda seja aumentada, os governantes se apercebem disto e se perguntam: por que não aumentá-la incorrendo em déficit e financiando-o com emissões? É claro que seria possível aumentar a oferta nominal de moeda por meio da realização de superávits públicos e do resgate de títulos do Tesouro, mas a existência da inflação é um incentivo ao déficit público e ao financiamento inflacionário de despesas públicas. Desta forma, os inercialistas atribuem aos mecanismos de indexação uma parcela importante na explicação do processo inflacionário. A correção automática dos principais preços da economia (salários, câmbio, ativos financeiros etc.) pela inflação passada (ou esperada) tende a perpetuar a inflação, tomando-a imune a outros tipos de terapia. Ainda em relação à inflação inercial, é importante notar que, se todos os preços subissem somente em função da inflação passada, o efeito da inflação seria neutro. Não 144 haveria mudanças de preços relativos e a taxa de inflação ficaria estabilizada. Por isso, numa economia com alto grau de indexação, a “inflação de fato” seria, na realidade, a aceleração da taxa da inflação. Entretanto, para ocorrer inflação crescente numa economia indexada, é preciso que existam outros fatores geradores de inflação, além da simples inércia. Para combater a inflação inercial, a teoria sugere o congelamento dos preços e salários e a troca simultânea de moeda, como ocorreu nos Planos Cruzado, Bresser, Verão e Collor. Já no Plano Real, foi criado um mecanismo altamente criativo de desindexação que foi a URV. No período que antecedeu a troca da moeda (de cruzeiros reais para real em 1º/7/1994), o governo induziu a economia a um processo de superindexação, “forçando” a cotação dos preços (salários e câmbio também) em URV, a qual, na prática, era um indexador diário atrelado ao dólar. No momento em que a quase totalidade dos preços estava fixada em URV (o ideal seria que todos os preços estivessem), o governo congelou a URV e trocou a moeda. 9.4. Indicadores de Inflação no Brasil Existem vários indicadores da inflação no Brasil. Enquanto alguns deles medem a evolução dos preços no nível do consumidor, outros medem o comportamento dos preços no atacado. O período de coleta também varia, bem como a região de cobertura do indicador e a abrangência, em termos de orçamento familiar. Uma síntese das informações sobre os principais indicadores de preços utilizados na economia brasileira é apresentada a seguir: 9.4.1. Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA) a) instituição responsável: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); b) universo da pesquisa: renda familiar da 1 a 40 salários mínimos; c) período de coleta: primeiro ao último dia do mês de referência; d) área de cobertura: regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, São Paulo, Belém, Fortaleza, Salvador, Curitiba, Distrito Federal e Goiânia; e) utilização: correção de balanços e demonstrações financeiras trimestrais e semestrais das companhias abertas. 9.4.2. Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) a) instituição responsável: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); b) universo da pesquisa: renda familiar de 1 a 8 salários mínimos; c) período de coleta: primeiro ao último dia do mês de referência; d) área de cobertura: regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, São Paulo, Belém, Fortaleza, Salvador, Curitiba, Distrito Federal e Goiânia; e) utilização: balizador de reajustes salariais. 9.4.3. Índice de Preços ao Consumidor (IPC-Fipe) a) instituição responsável: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (Fipe/USP); 145 b) c) d) e) universo da pesquisa: renda familiar da 2 a 6 salários mínimos; período de coleta: primeiro ao último dia do mês de referência; área de cobertura: cidade de São Paulo; utilização: reajustes de contratos, deflacionamento de salários e utilização generalizada; Observação: a Fipe divulga semanalmente os dados sobre o índice (dados quadrissemanais), comparando as últimas quatro semanas em relação às quatro semanas imediatamente anteriores, auferindo um índice mensalizado para cada semana do mês. 9.4.4. Índice de Custo de Vida (ICV-Dieese) a) instituição responsável: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese); b) universo da pesquisa: renda familiar da 1 a 30 salários mínimos; c) período de coleta: primeiro ao último dia do mês de referência; d) área de cobertura: Município de São Paulo; e) utilização: acordos salariais e deflacionamento de séries salariais. 9.4.5. Índice Geral de Preços (IGP) a) b) c) d) instituição responsável: Fundação Getúlio Vargas (FGV); universo da pesquisa: Rio de Janeiro, São Paulo e 10 regiões; período de coleta: primeiro ao último dia do mês de referência; área de cobertura: de 1 a 33 salários mínimos (incluir preços no atacado e construção civil); e) utilização: contratos; Observações: o IGP é uma composição de três outros índices: Índice de Preços por Atacado (60%), Índice de Preços ao Consumidor (30%) e Índice Nacional da Construção Civil (10%); o IGP é calculado em dois conceitos: no conceito oferta global (OG) são consideradas a produção interna e as importações; no conceito disponibilidade interna (DI), são excluídas as exportações do conceito oferta global. 9.4.6. Índice Geral de Preços no Mercado (IGPM) • • é a mesma metodologia do IGP, mudando apenas o período de coleta de dados, que é do dia 11 do mês anterior ao de referência até o dia 10 do mês de referência; são divulgadas prévias de 10 em 10 dias, que, na realidade, representam uma antecipação do IGP. 9.4.7. Índice de Preços por Atacado (IPA) a) b) c) d) e) instituição responsável: Fundação Getúlio Vargas (FGV); universo da pesquisa: preços no atacado; período de coleta: primeiro ao último dia do mês de referência; área de cobertura: Brasil; utilização: contratos; 146 Observações: o IPA é composto de 18 sub-índices regionais em que o peso de cada mercadoria é determinado pela sua participação no valor adicionado. Em relação a esses índices, vale observar que sua utilização dependerá do objetivo que se está pretendendo atingir com a aplicação do índice. Assim, verifica-se que séries relativas à capacidade de compra dos salários devem ser deflacionadas por índices de preços ao consumidor. Se os dados referem-se a todo o país, devem ser utilizados índices com a maior abrangência possível. Já se as informações referem-se ao Município de São Paulo, pode-se utilizar o IPC-Fipe ou o ICV-Dieese. Além disso, a utilização do indicador de preços depende do período em que o mesmo estará disponível. Para acompanhar mais de perto a evolução da inflação, podese utilizar o IGPM (dados a cada 10 dias) ou o IPC-Fipe (dados quadrissemanais). Por outro lado, os preços por atacado são mais sensíveis a fatores externos, como mudanças de preços no mercado internacional e desvalorizações da taxa de câmbio. 147