Recensões 179 ISABEL MATOS DIAS, Merleau-Ponty. Une Poíétique du Sensible, Toulouse, Presses Uni ver si ta ires du Mirail, 2001. Poiética do sensível é um título feliz, que condensa admiravelmente o modo como a autora exerce a filosofia: um fazer que exprime a reflexividade do sensível no processo inventivo de autofenomenalização. A invenção filosófica não significa partir do zero, qual criação ex nihilo, mas reinvenção do mundo inscrito num texto, alargando o seu horizonte, redefinindo as relações entre visível e invisível. O trabalho de I . M. Dias sobre Merleau-Ponty evidencia a enorme potencialidade da obra do Fenomenólogo francês, que é exposta na sua coerência e dinâmica internas, e também a imensa vitalidade do pensamento fenomenológico em Portugal, de que a obra de I . M . Dias é um exemplo notável, mas não um caso isolado. A criação da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica merece destaque pelo impulso ao exercício da fenomenologia na comunidade filosófica portuguesa. Nas linhas que seguem, proponho-me interrogar o modo de elaboração e a progressão do texto na versão francesa - cuja primeira edição se encontra esgotada - , que é de facto uma reescrita de Uma ontologia do Sensível: a aventura fdosófica de Merleau-Ponty (Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 1999). Na "Introdução", a autora anuncia o intento de transformação da filosofia, no seu estatuto, discursividade e estilo de pensar. Expressão da vida e do mundo envolvente, a filosofia é auscultação do invisível que dá a ver a aparência fenomenal. Com efeito, o fenómeno não é um dado objectivo, que se esgota na sua imediatez, sendo antes vislumbre do obscuro que habita a espessura do meio sensível. A fenomenalidade do sensível apela a uma linguagem metaforizante na qual o jogo de dualidades se não traduz em oposições rígidas mas em variações de um elemento comum que se comunica diferenciando-se. Respondendo a uma exigência de radicalidade, indaga-se a unidade primordial, que não é identidade fixa do ser, fundo uniforme e indiferenciado, mas exercício de diferenciação e intercomunicação. A unidade visada não é, pois, o resultado de um processo de abstracção e depuração das diferenças, mas o solo originário, a condição radical de todo o pensar. No cap. I , "Topologia da Reflexão", esboça-se o desenho do mundo sensível, que incorpora um modo próprio de inteligibilidade e cuja textura é a de uma série de camadas que se ajustam num jogo de afinidades e contrastes que implica a renovação incessante do olhar. A operação que define o estilo próprio do sensível é a percepção, situada aquém da consciência, na camada originária da vida e da experiência corporal. A percepção designa o carácter aberto e relacional da experiência: ela é o "arquétipo do encontro originário", em que o mundo comum recebe uma tonalidade única. De facto, a experiência perceptiva é expressão singular pela qual ganha efectividade uma nova figuração do mundo. Simultaneamente visível e invisível, o corpo é o situs da experiência perceptiva e, correlativamente, o princípio genesíaco do mundo perceptivo. Daí o estatuto primordial do corpo enquanto "arquétipo das coisas" (p. 55). ISO Recensões Em sintonia com Merleau-Ponty, Isabel procede de modo a assumir o corpo como instância original, removendo o pó acumulado pelo dualismo antropológico, assente na dualidade alma/corpo, em que este é invariavelmente desclassificado. "Charneira e mediação entre a consciência e o mundo", o corpo é solidário de uma reformulação do cogito fazendo-o mergulhar as suas raízes no irreflectido e no mundo pré-objectivo e impessoal da experiência perceptiva. A reflexão radical é esse duplo movimento de imersão no irreflectido e emergência a partir dele. O corpo é um "terceiro género de ser", um misto de sujeito e objecto (p. 49), exprimindo a copertença originária e a reversibilidade dos dois termos. Assim, a confluência do par sujeito-objecto leva-nos ao corpo, mas a acentuação da dimensão do corpo-sujeito - acentuação que, de resto, considero discutível na medida em que ela é tributária do activismo moderno, ao sobrelevar por exemplo a mão que toca em detrimento da mão tocada, quando eu julgo que a parte tocada é mais expressiva da qualidade da experiência corporal - evidencia a polaridade da dualidade sujeito-objecto e a dificuldade da primeira filosofia pontiana da corporeidade em a superar. Daí a exigência de passar a um plano mais radical, trans-subjectivo: o da carne, que se revela como um análogo do si (on) primordial, impessoal e trans-individual. Carne é um fundo espesso, qual inconsciente freudiano, ser em estado bruto, com uma estrutura polimorfa, foco irradiador de todas as linhas que atravessam o sensível, o seu estrato mais arcaico. Aquém das bifurcações, a carne é o elemento no qual tudo se combina e metamorfoseia. Daí que seja uma noção ímpar, sem termo correlativo. Carne é o proto-sensível como pura expressividade, jogo inesgotável de reversibilidades, que é a "verdade última" do sensível. Ela dá-se originariamente como experiência estesiológica, pré-sensorial, cujo estilo próprio é a qualidade do sentir, pela qual se opera a singularização da carne do mundo. Cada experiência é única e ao mesmo tempo universal enquanto singularização do comum no seio do qual emerge o sensível. Inassimilável a uma coisa ou a um objecto, a carne transporta uma nova inteligibilidade, ajustada à nova ontologia, eminentemente operatória e expressiva. Retomando uma bela fórmula leibniziana, as múltiplas formas de fenomenalidade são "partes totais" do Sensível, contendo à sua maneira, condensadamente, o mundo inteiro de significações. A inteligibilidade do sensível resiste à fragmentação típica da inteligibilidade disciplinar. O cap. I I , "Topografias da Sensorialidade", apresenta o quadro de uma estesiologia ontológica, pautada pelo "estilo corporal". O corpo forma-se na intimidade da carne: "É no movimento de reversibilidade da Carne do mundo que se inscreve a ontogénese do corpo" (p. 85). Fenomenalização da carne, o corpo fornece o paradigma de toda a experiência sensível, envolvendo uma metamorfose do cogito, expresso na fórmula "eu posso". Sem uma consciência explícita, o corpo exerce o sentido, mobiliza-o por uma operação dupla: realizando um modo peculiar de unidade em que parte e todo se entre-exprimem mutuamente; sobrepondo o trabalho da relação, na e pela qual se geram interior e exterior, aos próprios termos correlacionados. Assim, o corpo é a unidade de um mesmo sentir e uma forma original de ser-no-mundo. Recensões 181 O sentimento interior do corpo estesiológico designa o estilo de relação consigo e igualmente "a relação mais originária com o mundo" (p. 86). Com efeito, a sensação inclui uma dupla dimensão: estesiológica e sensorial. A expressividade estesiológica, na qual radica a verdadeira comunicação, exerce-se através de uma linguagem operante, de tipo gestual, que revela um modo único de experienciar no qual visível e invisível se entrelaçam intimamente. A expressão corporal é o modo de presença da vida sensível no fenómeno perceptivo: uma linguagem-charneira na qual o dizível sinaliza um indizível e espesso silêncio. O corpo estesiológico tem ainda uma função de síntese, reunindo os diferentes órgãos dos sentidos numa unidade intersensorial que confere à experiência o seu carácter integrado. Os sentidos são "relevos expressivos" (p. 97), "variantes e diferenciações de um mesmo elemento, de uma matriz polimorfa que é a Carne no seu movimento de fenomenaüzação" (p. 94). O aspecto decisivo, que importa realçar, é a imanência da carne aos sentidos. No cap. III, "Metamorfoses da Visão", retomando uma longa tradição, que tem no platonismo uma das suas referências basilares, Merleau-Ponty reconhece o primado da visão: "o nosso mundo é principal e essencialmente visual" (p. 99). A abordagem fenomenológica do visível empreendida pelo autor é, no entanto, "indissociável da crítica da objectivação do mundo e do outro" (p. 100). Ver não é dominar, colocar-se na posição de sujeito em face do visível, é um acto de "descentramento" e "abertura ao mundo do outro" (p. 118), um fenómeno do corpo todo. É no interior do visível que eu vejo e sou visto. Vidente e coisa vista são um com e pelo outro, não são entidades fixas e predeterminadas. A visão emerge na reversibilidade ver - ser visto. O visível é um campo móvel onde as posições se modificam, incluindo a posição recíproca do visível e do invisível. Não há pura visibilidade, todo o visível é-o relativamente a um invisível que lhe é constitutivo. O narcisismo é particularmente significativo a este respeito. Muito longe de ser uma "exacerbação do ego", o narcisismo é "reciprocidade constitutiva" (p. 117): o olhar que dirijo a mim mesmo transporta o olhar do outro e toda a ambiência envolvente. A autora conclui este capítulo com uma reflexão sobre a imagem inserida no "dinamismo expressivo do corpo e da carne" (p. 121). A imagem não se esgota na imediatez do visível, é "invisível visível" (p. 127), "presença de uma ausência", expressão de um dinamismo da carne do mundo, latente e invisível, mas que é condição genesíaca da visão. O cap. IV, "A pintura: uma ontogénese figurada", combina admiravelmente os dois traços marcantes do estilo filosófico de I . M . Dias: primado do operatório e expressividade estesiológica, A pintura não é aqui um objecto de reflexão, mas uma fonte de inspiração e uma metáfora do trabalho filosófico. Analogon do corpo, a obra de arte, e muito especialmente a pintura, é "apresentação do originário na sua autofenomenalização", num dinamismo incessantemente renovado que gera um modo específico de temporalidade, distinta do tempo linear e objectivo. Recensões 182 Tendo como referência a pintura de Cézanne, a autora indaga a transformação operada pela arte moderna no que respeita ao acto pictórico e à relação da obra com o mundo. Em síntese, o que está em jogo é a transição da representação à expressão, de um espaço objectivo a um espaço qualitativo. A exemplaridade da obra de Cézanne reside em que ela visa exprimir a experiência originária, a "ordem nascente do mundo" (p. 141). A pintura torna-se manifestação de um mundo permanentemente reinventado, cuja "matriz polimorfa" entronca no "tecido de possibilidades infinitas" que caracteriza o "Ser universal", distinto do ser abstracto e homogéneo da metafísica. Na sua acepção tipicamente moderna, a pintura identifica-se com o gesto de pintar, engendrando uma figuração original do espaço, bem diferente do espaço físico-matemático, objectivo, exterior, homogéneo, no qual se inscreve a representação pictórica clássica, nomeadamente a perspectiva. Ao invés, o endo-espaço da pintura moderna é qualitativo e diferenciado: um espaço primordial, imanente ao processo de fenomenalização sob a forma de um invisível que dá a ver o visível. A exterioridade do espaço objectivo contrapõe-se a interioridade aberta da profundidade, que inspira a pintura moderna. O cap. V, "Ontologia estesiológica ou Estesiologia ontológica?", evidencia a originalidade da filosofia da expressão de Merleau-Ponty, num trabalho em que o grau de expressividade aumenta significativamente. O jogo de reversibilidade ganha um ritmo e amplitude novos, estabelecendo a afinidade entre carne e expressão, ontogénese e fenomenalização, filosofia e fenomenologia, estesiologia e ontologia. Seguindo o movimento de radicalidade inerente ao filosofar, I . M . Dias foca o plano originário da arkê, mostrando a sua fecundidade. Com efeito, o originário não é um fundo homogéneo e indiferenciado, mas a unidade primordial de uma operação inesgotável de proliferação de novas formas. O originário é criação contínua, exercício genesíaco de invenção e reinvenção no qual radicam filosofia e arte. A inteligibilidade expressiva joga com o modo originário de fenomenalização do Sensível, cuja pluridireccionalidade e interpenetração de sentidos apela a um exercício metafórico da linguagem e do pensar, intimamente solidários. A linguagem é a carne do pensamento, o sensível em cuja reflexividade se gera o inteligível, sempre impuro e plurívoco. A conclusão aponta o gesto fundador do modus operandi de Merleau-Ponty: a inscrição do logos no dinamismo expressivo da aisthesis. A escrita de I . M . Dias prolonga esse gesto numa obra onde o sentimento da beleza se exprime na exigência de perfeição. Adelino Cardoso tt