Interacções farmacológicas - Faculdade de Medicina da

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FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO
Instituto de Farmacologia e Terapêutica
FARMACOLOGIA
Interacções farmacológicas
O problema das interacções farmacológicas é, hoje, e será cada vez mais, uma
importante questão para quem, tratando doentes, tem de prescrever medicamentos.
Por interacção farmacológica entende-se a possibilidade de um fármaco
(medicamento) poder alterar a intensidade das acções farmacológicas de outro
ministrado simultaneamente. O resultado dessa interferência pode ser o aumento ou a
diminuição do efeito de um ou de ambos os fármacos ou, até, o aparecimento de um
novo efeito que nenhum dos fármacos sozinho era capaz de produzir.
Há interacções farmacológicas úteis, desejáveis e, por isso, a elas se recorre,
intencionalmente; é o caso das verificadas entre os elementos da associação
trimetoprima+sulfametoxazol (em que há sinergismo na intensidade da acção
terapêutica), da associação de penicilina G e estreptomicina (que alarga o espectro de
acção terapêutica) ou da associação de três sulfonamidas diferentes, entrando cada
uma delas com um terço da dose total (para evitar o risco de cristalúria).
As interacções que constituem o motivo desta aula são as interacções farmacológicas
indesejáveis, as que têm de ser evitadas e que, por isso, têm de ser pré-conhecidas.
Apresentar algumas linhas gerais que ajudem a identificar e prever essas interacções
é o objectivo da presente aula. Essas interacções são hoje mais frequentes e graves
do que nunca, e a tendência garantida pela mais recente evolução da terapêutica é a
de que elas vão aumentar.
Calcula-se que, nos Estados Unidos, a incidência das interacções fármaco – fármaco
se situam à roda dos 4% quando o número de medicamentos tomados é reduzido (23), mas essas percentagens pode atingir os 20% quando o número de medicamentos
tomados é grande (10-20).
As interacções fármaco – fármaco podem verificar-se antes de os fármacos terem sido
ministrados. É o que se passa, por exemplo, com o tiopental que precipita se se juntar
com a succinilcolina numa mesma solução ou quando se introduz no mesmo frasco o
tiopental e a succinilcolina ou o pancurónio e a cetamina.
Tomando, como exemplo o que se passa com a via oral, podemos ter interacções
farmacológicas nos diferentes passos da farmacocinética desses fármacos.
Durante a absorção:
São múltiplos os mecanismos pelos quais a absorção de um fármaco pode ser
modificada pela ministração simultânea de outro. A quelação das tetraciclinas
clássicas pelos catiões bivalentes e trivalentes (Ca++, Fe++, Mg++ e Al+++) é um exemplo
desse tipo de interferência. A ministração de leite juntamente com tetraciclina pode
reduzir a absorção deste antibiótico em mais de 70%. E os antiácidos podem reduzir
essa absorção a quase zero. Outro mecanismo pelo qual a absorção de um
medicamento pode ser reduzida é pela adsorção por resinas troca–iões. A
colestiramina por exemplo, inibe a absorção de tiroxina, de glicosídeos cardiotónicos,
de varfarina, etc. A ministração de um ganglioplégico ou de um parassimpaticolítico
pode aumentar a absorção de outro fármaco dado concomitantemente porque,
reduzindo a contractilidade intestinal, aumenta o tempo de contacto do fármaco com a
superfície absorvente. A ministração de fármacos que precipitem os ácidos biliares vai
diminuir a absorção das gorduras e, assim, impedir a absorção de griseofulvina.
Mas, mais relevantes do que estas interferências são aquelas que se verificam ao
nível dos sistemas de transporte. A glicoproteína P é o sistema deste tipo mais bem
estudado, mas estão a ser descobertos muitos outros como, por exemplo, os que
constituem a família dos transportadores de aniões orgânicos, sediados no intestino,
nas células tubulares renais, nas células dos canalículos biliares e nas células que
constituem a barreira hemato-encefálica.
No intestino, a glicoproteína P bombeia alguns dos fármacos para o lúmen intestinal,
limitando, assim, a sua absorção. Na barreira hemato-encefálica retira-os do sistema
nervoso central, provocando a sua eliminação. No fígado e nos rins faz o mesmo,
promovendo a eliminação. A inibição desta proteína altera, por isso, a absorção, a
distribuição e a eliminação de fármacos em cujo transporte interfere. Esta matéria
constitui hoje não só um interessante capítulo do conhecimento farmacológico, mas
também um campo de investigação activa. A ciclosporina A, a quinidina, o verapamil, o
itraconazol e a claritromicina são exemplos bem conhecidos de fármacos capazes de
inibir a glicoproteína P, enquanto que a rifampicina é exemplo de um fármaco capaz
de a induzir.
É interessante que os inibidores e os indutores do CYP3A4 muitas vezes exercem
sobre esta enzima e sobre a glicoproteína G efeitos semelhantes. As diferentes
estatinas, por exemplo, são absorvidas de forma muito variável, de acordo com a sua
sensibilidade à CYP3A4. Quando se ministram a um doente, 10 mg de sinvastatina,
cerca de 80% dessa quantidade é absorvida para os enterócitos, mas só cerca de 0.5
mg chegam ao sangue. Contudo, se, ao mesmo tempo o doente receber cimetidina, a
quantidade de sinvastatina que passa a atingir o sangue é cerca de 7.5 mg, isto é 15
vezes mais. Mas, se em vez de sinvastatina se ministrar cerivastatina, o aumento da
quantidade dessa estatina que, devido à ministração simultânea de cimetidina, atinge
o sangue, é apenas de 1.6 vezes.
No transporte pelo sangue
São muitos os fármacos que, no sangue se ligam à albumina plasmática (fármacos
acídicos) ou à glicoproteína ácida-α (fármacos básicos). Como se sabe, só a parte livre
é capaz de exercer acções ou de ser distribuída pelos tecidos. São muitos os
fármacos que, como os derivados cumarínicos, as sulfonilureias, os anti-inflamatórios,
as oxazolpenicilinas, etc., se ligam a essas proteínas. Os que possuem maior
afinidade ou que se encontram em maior concentração, deslocam os outros,
aumentando a fracção livre do fármaco deslocado. Se num grande número de
situações essa competição não altera, significativamente, os efeitos dos fármacos nela
envolvidos, em algumas situações e com alguns fármacos, pode haver aumento dos
efeitos com consequências graves. É o caso dos anticoagulantes e das sulfonilureias
(antidiabéticos orais), para os quais o aumento da sua concentração livre no plasma
pode gerar, respectivamente, hemorragias ou hipoglicemias sérias.
Na distribuição
Pode haver, também, interacções importantes nesta fase do percurso de um
medicamento. A quinacrina (um antimalárico), por exemplo, possui uma tal afinidade
para os hepatócitos que chega a atingir nessa células concentrações 22.000 vezes
mais elevadas do que no plasma. Se após a quinacrina for ministrada pamaquina
(outro antimalárico), ainda que meses depois, podem surgir efeitos tóxicos porque a
pamaquina é impedida de se ligar aos receptores dos hepatócitos que estão saturados
e vai ficar livre para produzir efeitos noutros pontos do organismo, onde não chegaria
se se pudesse fixar no fígado.
A guanetidina só produz o seu clássico efeito simpatoplégico depois de ser captada
para os neurónios adrenérgicos. Se essa captação for inibida pela ministração prévia
de desipramina, a guanetidina fica impedida de exercer a sua acção.
No sítio da acção
Os antibióticos bacteriostáticos antagonizam, muitas vezes, os bactericidas, porque
para que a acção bactericida se exerça é muito importante a vitalidade da bactéria.
Ora os antibióticos bacteriostáticos quebram essa vitalidade.
Na metabolização
É ao nível da metabolização que se verificam mais frequentemente interacções
farmacológicas com significado clínico e é a esse nível que elas podem ser mais
imprevisíveis e graves. Estas interacções constituem um dos grandes problemas
terapêuticos do presente, problemas que vão agravar-se com o aparecimento de
novos fármacos, cada vez mais poderosos.
As enzimas do sistema do citocromo P450 são as que mais interferem na
biotransformação dos medicamentos. O fígado é o órgão com o mais elevado teor em
enzimas desse sistema; contém cerca de 90-95% do total do organismo. Os outros
órgãos onde se verifica alguma actividade destas enzimas são o intestino (1-2%) e os
pulmões. As CYPs são as enzimas responsáveis por 60-65% da biotransformação de
todos os medicamentos. Destas, 30% dizem respeito à CYP3A4, que metaboliza cerca
de 60% de todos os medicamentos, enquanto que 20% são metabolizados pela família
CYP2C, 10-12% pela CYP1A2 e 3-6% pela CYP2E1.
É importante saber que algumas isoenzimas do sistema do citocromo P450 podem ser
induzidas por substâncias alimentares, por ervas medicinais, por solventes orgânicos,
pelo fumo do tabaco ou por fármacos enquanto que outras não. Muitos são os
fármacos com esta capacidade de induzir de forma selectiva apenas uma ou algumas,
mas não todas as enzimas do sistema. Exemplos:
O fenobarbital induz as famílias CYP3A e CYP2B.
A rifampicina induz as famílias CYP3A e CYP2B.
O clotrimazol induz a família CYP3A4.
A difenilhidantoína induz a família CYP2C.
O álcool induz a enzima CYP2E1.
O fumo do tabaco induz a CYP1A2 e a família CYP2C, mas não a CYP3A4, enquanto
que a rifampicina induz a CYP3A4, mas não as enzimas da família CYP2C.
Por outro lado há muitos fármacos que são metabolizados por várias enzimas do
sistema, enquanto que outros o são só por uma.
Tabela 1. Inibidores e indutores da CYP3A4 , clinicamente mais relevantes
Inibidores reversíveis
Inibidores irreversíveis
Indutores
Cimetidina
Toranja
Carbamazepina
Claritromicina
Barbitúricos
Ciclosporina
Dexametasona
Danazol
Defenilhidantoína
Diltiazem
Rifampicina
Eritromicina
Hipericão (St. John's wort
ou hiperforina)
Fluoxetina
Itraconazol
Cetoconazol
Indinavir
Ritonavir
Saquinavir
Mibefradil *
Verapamil
* retirado do mercado por causa de interacções graves com as estatinas, etc.
A quinidina é um inibidor da CYP2D6
Influência de factores genéticos na metabolização de medicamentos
É de todos bem conhecida a existência dos inactivadores rápidos e dos inactivadores
lentos da isoniazida. Se não houvesse acertos da dose, os primeiros, não
beneficiariam tanto da acção terapêutica mas estariam mais protegidos contra
fenómenos de toxicidade, os segundos beneficiariam mais da acção terapêutica, mas
estariam mais sujeitos à toxicidade da isoniazida. Este fenómeno depende da
variabilidade da composição genética e verifica-se, não só com a capacidade de
acetilar isoniazida, mas também com a actividade de várias outras enzimas.
Por exemplo, relativamente à CYP2D6 que metaboliza antiarrítmicos da classe I,
neurolépticos, antidepressores, alguns bloqueadores β, antagonistas dos receptores 5HT3, a anfetamina e alguns opióides, na população europeia, cerca de 80% são
metabolizadores normais, 7% metabolizadores muito lentos, 5–10% metabolizadores
lentos e 2–3% metabolizadores ultra-rápidos. A figura mostra as concentrações
plasmáticas obtidas nas diferentes condições e indica as respectivas consequências.
É por isso que, quando se recorre à nortriptilina em doentes com depressão, a dose
média necessária para o tratamento de manutenção varia entre 10 e 500 mg!
Legenda: Polimorfismo genético do gene da CYP2D6 e suas consequências no metabolismo de um fármaco. A mesma
dose de um medicamento que seja predominantemente metabolizado pela CYP2D6 origina, em doentes com genótipo
diferente, enormes variações dos níveis plasmáticos desse medicamento. Em cerca de 7% dos doentes, que são
homozigóticos para dois alelos não funcionais (gráfico de cima), não há praticamente enzima funcionante daí
resultando uma metabolização extremamente lenta, com as consequências indicadas. Cerca de 5-10% dos doentes
são metabolizadores limitados porque são homozigóticos para a mutação que determina uma redução da função
enzimática ou heterozigóticos para essa mutação em combinação com um alelo não funcionante para a CYP2D6
(segunda curva a partir de cima). 80% dos doentes são metabolizadores normais (terceira curva a partir de cima).
Cerca de 2-3% dos doentes possuem uma capacidade de inactivação extremamente rápida em consequência de uma
amplificação genética. Nestas condições não há efeito terapêutico porque os níveis plasmáticos nunca atingem os
mínimos eficazes (curva de baixo).
Outro exemplo das consequências do polimorfismo genético é o que se verifica com a
CYP2C19. Enquanto na população europeia só 2–5% não possui esta enzima (é
incapaz de formar o principal metabolito de mefentoína), nas populações dos países
orientais (japoneses, chineses, coreanos) esta deficiência exprime-se em 19–23% da
população. Como o omeprazol é metabolizado, também, por esta enzima, a sua
eficácia na erradicação do Helicobacter pylori é maior nos orientais do que nos
europeus, porque o omeprazol permanece em maiores concentrações durante mais
tempo.
A nível da excreção
A nível da excreção, renal sobretudo, pode haver, também, importantes interacções
farmacológicas.
Por competição para os sistemas de transporte. É o caso do probenecide que protela
a excreção de penicilina. É, também, o caso da inibição da excreção de procainamida
pela cimetidina e pela amiodarona. E pode haver interferências na excreção de alguns
fármacos pelas alterações do pH urinário. É o caso da facilitação da excreção de
barbitúricos pelo bicarbonato de sódio ou da anfetamina pelo ácido ascórbico.
Ninguém pode ter dúvidas de que esta questão das interacções farmacológicas vai
agravar-se com o progresso terapêutico e isso vai exigir uma atenção crescente por
parte dos médicos prescritores.
S.G. Maio 2003
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