cristologia - Oblatos de São José

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Pe. José Antonio Bertolin, OSJ
Condensação de
Estudos sobre a Cristologia
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Pe. José Antonio Bertolin, OSJ
Jesus, um DEUS
ocultado na pele
de um carpinteiro
Condenação de
Estudos sobre a Cristologia
CONGREGAÇÃO DOS OBLATOS DE SÃO JOSÉ
SEDE DA PROVÍNCIA NOSSA SENHORA DO ROCIO
Rua João Bettega, 796 - Bairro do Portão
CEP 81070-000 - CURITIBA PR
CAIXA POSTAL 8882 CEP 80611-970 - Curitiba Pr
FONE
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Email: [email protected]
Curitiba, janeiro de 2003
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APRESENTAÇÃO
Durante o meu curso de Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, deparei-me com a
Cristologia e por ela me encantei. Queria seguir aprofundado-a depois do bacharelado, porém a urgência dos
trabalhos em minha Província brasileira não permitiume continuar sentando nos bancos da Universidade
Romana. O gosto por esta matéria porém, continuou
perseguindo e a impossibilidade de dedicar-me a ela
também, por isso supri o desejo com leituras relacionadas a Jesus Cristo e até cheguei tornar público um livreto denominado “Jesus, o infinito presente na história
dos homens”.
Dentre as várias anotações que fiz sobre o estudo
cristológico e que consegui recuperar em meus arquivos
já esquecidos, selecionei uma série delas, as quais as
“amarrei” para dar uma seqüência um pouco mais lógica
e coloquei nestas páginas que seguem.
O objetivo deste não é para uma publicação porque tem muito pouco de meu e quase tudo haurido de
diversos autores e de muitos livros, mas sim uma “condensação” de estudos cristológicos para o meu “deleite”.
Para estudos amplos e aprofundados sobre Jesus Cristo
existem os bons teólogos. A diversidade de enfoques e de
opções de estudiosos neste campo é infindável, basta
dizer que dados publicados há não muito tempo, dão
conta de que até o ano de 1997 tinham sido contabilizados 65.571 livros escritos sobre Jesus Cristo e que de
1970 até 1997 tinham sido publicados mais de 25.000
livros sobre Jesus, e a cada quatro dias nestes últimos
tempos têm surgido aproximadamente 4 livros sobre o
nosso Salvador, Jesus Cristo.
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Sendo as páginas que seguem um resumo de livros sobre Jesus Cristo para aprofundamento pessoal,
deixo claro se por acaso estas caírem nas mãos de qualquer afeiçoado em Cristologia, que as mesmas não têm o
aprimoramento de um livro que tomamos e lemos na
sua seqüência e no esquema do escritos porque tratam
justamente de apontamentos pessoal sem qualquer intuito de publicações ou de comercialização, por isso, às
vezes aparecerão idéias repetidas ou assuntos em que
não se nota uma seqüência nas exposições das idéias de
um bloco ou de um número para outro.
Por fim, coloco como importante que a pessoa de
Jesus Cristo é tão ampla, rica e poliédrica que jamais
qualquer abordagem, ou um “pequeno resumo” como
este poderão dar uma idéia completa sobre ele; este, aliás, é apenas um bebericar nas inumeráveis fontes de
abordagem daquele que um dia tornou-se o “Deus conosco” e quis ocultar-se na pele de um carpinteiro.
Curitiba, janeiro de 2003.
Pe. José Antonio Bertolin, OSJ
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INTRODUÇÃO
Jesus galvanizou o mundo com sua vida e sua
história e ninguém como ele conseguiu tamanha proeza,
nem mesmo aqueles que são considerados os suportes
da expansão do mundo das idéias nos mais diversificados campos espiritual, filosófico, psicológico, físico ou
sociológico. Diante dele pensadores como Tomás de Aquino, Agostinho, Kant, Bacon, Hegel, Descartes, homens da ciência, da política, da sociologia, da psicologia
como Newton, Darwin, Einstein, Freud, Jung, Viktor,
Flankl, Voltaire, Gandhi, Max Weber, Galileu, Shakespeare, enfim uma gama incontável de personagens ilustres que semearam idéias inovadoras, romperam conceitos, ampliaram horizontes e influenciaram gerações, não
tiveram tanto ressonância como Jesus Cristo.
Ele dividiu a história em duas partes, com o seu
nascimento, ele arrebanhou ao longo dos vinte séculos
depois do seu nascimento, bilhões de seguidores fazendo
com que incontáveis destes pautassem suas vidas e
comportamentos em seus ensinamentos nutrindo por
Ele não apenas respeito, mas adoração.
A base de sua doutrina fundamentada na sua vida é o amor universal para com todos, inclusive aos inimigos. A base do relacionamento humano ficou solidificada nos seus ensinamentos, dos quais muitos foram
contra a lógica religiosa do seu tempo. A sua personalidade é a mais espetacular de todos os homens que nesta
terra viveram ou vivem. Ele foi um especialista na arte
de relacionar-se com os outros, e de expor suas idéias
deixando a todos atônitos por onde passava, mesmo àqueles que o rejeitavam fazendo com que os seus inimi5
gos ficassem perturbados com suas palavras e com o
seu comportamento.
Ele virou o mundo de cabeça para baixo provocando uma revolução no pensamento humano banindo
a discriminação social dialogando afavelmente com as
prostitutas, comendo com os pecadores, comunicandose com os leprosos, declarando bem aventurados na sociedade não aqueles que possuem riquezas, status social, cultura, voz e vez na sociedade, mas os pobres, os
sofredores, os abandonados, os operadores da paz... Ele
rejeitou a escola dos cultos mudando completamente o
modo de encarar o poder.
Embora taumaturgo que curava leprosos, aleijados, coxos, cegos, surdos, mudos, que expulsava demônios, que ressuscitava gente, na verdade apresentava-se
como o próprio Deus presente na história dos homens e
sendo o próprio “Filho de Deus”, insistia em ser reconhecido como “Filho do Homem”, passando-se por desapercebido, não impondo as suas idéias, tornando-se servo, lavando os pés de seus discípulos, inclusive de quem
depois o trairá.
Por amor aos homens deixou-se ser perseguido,
aprisionado como um malfeitor, interrogado como um
fora da lei, espancado, açoitado, zombado, cuspido, ferido por uma coroa de espinhos cravada em sua cabeça,
esbofeteado, abandonado pelos seus discípulos na Getsêmani, renegado por Pedro. Suou sangue no Jardim
das Oliveiras, e por amor aceitou assumir uma pesada
cruz carregando-a até o calvário entre insultos e blasfemais e por fim deixou-se ser pregado na própria cruz
entre dois ladrões e nela permanecer pendurado por 6
horas suportando a mais terrível das dores até que tudo
estivesse consumado e nas mãos do Pai entregasse o
seu Espírito.
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Mas o Verbo que se fez carne e habitou entre nós,
não terminou sua vida naquela cruz, nem mesmo num
sepulcro de pedra onde depois o puseram, pois ele venceu a morte ressuscitando e dando provas de que é o
senhor da vida. Ele não é fruto de uma invenção literária, é sim o Filho de Deus, nosso Salvador e é por isso
que sua pessoa, sua vida e seus ensinamentos merecem
e precisam ser conhecidos e amados, mas acima de tudo serem seguidos e permeados no coração e na vida de
cada ser humano.
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I. PARTE
1. O QUE É CRISTOLOGIA.
1.1. A Cristologia é o estudo sobre Jesus Cristo, é um
tratado central da teologia sendo que Jesus Cristo é o
revelador do Pai e do Espírito Santo. O conteúdo deste
tratado pode ser dividido em duas parte: O estudo da
pessoa de Cristo como tal, o qual procura-se aprofundar o mistério da encarnação do Verbo, ou seja, a união
Hipostática e suas propriedades (a graça de Jesus Cristo, a ciência e a consciência de Jesus, a sua vontade, a
sua liberdade, as ações Teândricas). O estudo da obra
salvífica de Jesus ou a soteriologia, que compreende
a vida pública a morte, a ressurreição, a ascensão de
Cristo e o Pentecostes como evento salvíficos.
Ao estudar a cristologia podemos seguir dois método: o da Cristologia Ascendente que parte do aspecto humano de Jesus, particularmente da figura do servo
de Javé, obediente até a morte e que recebe o título de
Kýrios após a sua ressurreição. Nesta metodologia não
se nega a divindade de Jesus e o método da Cristologia
Descendente o qual parte da divindade de Jesus considerando-o Deus feito homem. Afirma a sua préexistência, o seu nascimento humano no seio da Virgem
Maria, que viveu neste mundo como homem em tudo
menos no pecado e que por fim voltou ao Pai fazendo
sua humanidade ressuscitada compartilhar com a glória
de Deus.
Na cristologia ascendente (de baixo para cima) temos alguns trechos bíblicos fundamentais como: Fl 2,611 (Jesus feito homem obediente até a morte de cruz,
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morto e ressuscitado e proclamado como o Senhor). Também todos os discursos dos apóstolos no livro Atos de
Apóstolos nos capítulos 1-5.
A cristologia descendente (de cima para baixo) refere-se ao Lógos que no princípio existia voltado para o
Pai, como Deus, e que se fez carne vindo habitar entre
nós. Alguns trechos de São Paulo servem de base para
fundamentar este método, como por exemplo 1Cor 1,30;
2,8; Rm 9,4.
Destas duas metodologias originaram nos séculos
3º e 4º duas escolas diferentes de teologia. A escola Antioquena, a qual acentuava a humanidade de Jesus,
detendo-se mais no sentido histórico da humanidade de
Jesus e a escola Alexandrina, a qual dava preferência
para a divindade de Jesus e para o seu aspecto transcendental.
Ambas com suas próprias metodologias quando
permaneceram apenas na suas visões, deram origens a
algumas heresias a respeito de Jesus Cristo tal como o
Nestorianismo tendo como representante Nestório
(+451) o qual enfatizou tanto a humanidade de Jesus
que passou a ensinar que existiam duas natureza nele;
a natureza humana e a natureza divina. A natureza divina com seu eu divino estaria unida à natureza humana com o seu eu humano. A outra heresia foi chamada
de Monofisismo, esta encabeçada por Dióscoro de Alexandria e por Eutiques de Constantinopla que enfatizaram a divindade de Jesus e só admitiram nele apenas a
natureza divina; esta para eles, teria absorvido a natureza humana de modo que nele estava somente uma aparência de sua divindade.
Ambas heresias foram condenadas sendo que a
primeira pelo Concílio de Éfeso em 431 e a segunda pelo
Concílio de Calcedônia em 451. Naturalmente a Igreja
afirmou que Jesus Cristo é o homem perfeito, nascido
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da Virgem Maria e Filho Divino de Deus que realizou a
salvação da humanidade. Para conhecer melhor esta
doutrina da Igreja, basta conferir o documento conciliar
Gaudium et Spes nos números 22 e 41.
A cristologia parte de uma fundamentação bíblica,
pois é sobretudo a partir dos textos dos evangelhos que
devemos extrair a verdadeira imagem de Jesus Cristo,
mas para isso precisamos buscar a credibilidade dos
evangelhos.
A partir da segunda década do século XIX o método História das Formas surgido com alguns teólogos
protestantes, chamou atenção sobre o ocorrido entre a
pregação de Jesus (anos 27-30) e a fase de redação dos
evangelhos (anos 50-100) tempo em que a Boa Nova foi
transmitida oralmente. Em cada um dos territórios onde
a Palavra foi pregada os evangelizadores estiveram dentro do chamado sitz in leben, ou seja procuraram fazer
com que a mensagem se tornasse resposta adequada ao
povo daquela região. Entre os evangelizadores não houve
uma preocupação histórica e em conseqüência disso a
mensagem de Jesus distanciou-se da sua originalidade.
Isto fez que quando os evangelistas redigiram os evangelhos já não tivessem mais uma figura de Jesus fiel ao
Jesus real do início, ou seja, os primeiros cristãos professavam o Jesus da fé e não o Jesus da história. Para
teólogos protestantes como Bultmann a linguagem dos
evangelhos é mítica, imaginosa e por isso seria necessário fazer a demitização dos evangelhos.
A teologia católica admite que o evangelho antes
de ser escrito foi pregado oralmente no início e que os
pregadores se preocuparam mais em estruturar a fé dos
ouvintes levando a eles a mensagem de salvação. Porém
não admite que tenha havido desvio da realidade histórica ou o desinteresse pela figura real de Jesus, e por
isso, quem crê nos evangelhos não crê naquilo que os
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antigos cristãos imaginavam simploriamente, mas na
autêntica mensagem de Jesus Cristo. A fundamentação
dessa afirmação podemos tê-la na seguintes considerações:
As primeiras comunidades fundadas foram guiadas e também visitadas pelos apóstolos os quais procuraram ser fiéis na transmissão e na conservação da
mensagem (At 1,15-26; 2,14-40; 3,12-26; 5,29-32; 1Cor
15,6). Os apóstolos foram testemunhas do que viram e
ouviram (At 1,8; 2,32; 3,15; 4,20;13,30; 1Cor 15,3-11).
Os pregadores tiveram a preocupação de transmitir fielmente a mensagem, (1Cor 11,2.23; Fl 2,14; 4,9; 1,12s).
A fé cristã é ligada a fatos históricos e objetivos,
de modo que não pode ser negada a sua autenticidade.
São Paulo afirma que se Jesus não tivesse ressuscitado,
seria vazia a pregação e ilusória a fé (1Cor 15,14).
Os apóstolos sempre procuraram distinguir entre
o mito e a Palavra da verdade (1Tm 1,3; 4,7; 2Tm 1,4; Pd
1,16). Além do mais, a transmissão da fé foi acompanhada pelo Espírito Santo prometido por Jesus (Jo
14,22).
Esclarecendo de uma maneira mais concreta afirma-se que a teologia é a ciência que tem por objeto Deus
e a Cristologia tem por objeto Cristo, sua pessoa e sua
obra. A teologia cristã primitiva é quase que exclusivamente uma cristologia. As discussões teológicas se relacionaram todas à pessoa de Cristo, à sua natureza por
um lado, e a sua relação com Deus. Por outro, por isso o
Novo Testamento não fala quase nada da pessoa de
Cristo sem que se trate ao mesmo tempo de sua obra.
Ao se perguntar quem é Cristo? Pergunta-se também;
qual é a sua função? Por isso os títulos Cristológicos referem sempre e ao mesmo tempo, à pessoa e à obra de
Cristo.
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A Cristologia não é uma ciência das “naturezas”
de Jesus Cristo, mas sim de um acontecimento, de uma
história. Não existe história da salvação sem Cristologia,
assim como não existe Cristologia sem uma história da
salvação que se desenvolve no tempo.
Os evangelistas Marcos (8,29) e Mateus (16,15)
mostram que Jesus fez aos seus discípulos uma pergunta decisiva: "E vós quem dizeis que eu sou? ". Na
verdade o povo tinha uma idéia de que Jesus era João
Batista um profeta, mas Pedro em nome dos discípulos
disse-lhe: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo".
A resposta de Pedro pode ser vista como a primeira afirmação cristológica. De fato, ela coincide com o
conteúdo da primeira pregação querigmática da igreja
apostólica. No dia de Pentecostes, como nos relatam Atos dos Apóstolos, Pedro dirigiu-se aos judeus fazendo a
primeira pregação cristã com essas palavras: “Que toda
a casa de Israel saiba com certeza: esse Jesus que vós
crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (At 2,36). O
Cristo, o Senhor, o Filho de Deus, são os três títulos que
constituem o núcleo da fé cristológica primitiva. A fé
cristã deu a Jesus o título de “ungido”, assim como Buda recebeu o título de “O iluminado”, porém há uma diferença: Buda pregou uma mensagem de libertação; Jesus anunciou a Boa-Nova do Reino de Deus. Buda agiu
com a autoridade de uma experiência religiosa (nirvana),
Jesus agiu com a autoridade de sua experiência tendo
Deus como Abba. Buda é para os outros o caminho da
libertação, Jesus ao contrário, é o caminho.
A pessoa, a vida, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo são centrais para o mistério cristão. A pessoa
de Jesus e a sua obra constituem a fonte, o centro e o
fim de tudo que o cristianismo significa e anuncia. Por
isso a teologia cristã é essencialmente cristológica. Jesus
Cristo, o Filho encarnado é o caminho para Deus: “Eu
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sou caminho, a verdade e a vida...” (Jo 14,6). Jesus encarnado é o exegeta e o intérprete do Pai; nele Deus se
revelada e se manifesta.
Jesus nos descortinou o mistério de Deus como
ele o vivenciou em sua consciência humana, embora o
Deus revelado em Jesus Cristo permanece um Deus escondido. Jesus é o caminho para o Pai, o qual em seu
eterno desígnio o colocou no centro de seu plano divino
para toda humanidade.
1.2. Métodos da cristologia - Na cristologia um dos
métodos que permaneceu até tempos atrás foi o chamado "dogmático", que tomava com ponto de partida as
definições do magistério da Igreja, especialmente as do
Concílio de Calcedônia, visando comprovar os elementos
essenciais do mistério de Cristo com as citações bíblicas.
Este método tem algumas limitações e perigos. Nele o
Novo Testamento não aparece como a alma do projeto
cristológico, mas como um apoio para as formulações
dogmáticas. A base definitiva para interpretar essas
formulações é pelo dogma e não pela Palavra de Deus.
Ora, tudo isso ocasionava um perigo de dogmatismo,
procurando absolutizar o modelo cristológico que levava
a uma cristologia abstrata, que perdendo a relação com
a existência concreta de Jesus, arriscava ser irrelevante
para hoje.
Ultimamente tem havido um outro método mais
adequado que pode ser chamado de “histórico- evolutivo”. Seu ponto de partida é a Sagrada Escritura com
especial acento na expectativa messiânica presente no
Antigo Testamento e no seu cumprimento na pessoa de
Jesus. Este método acompanha o desenvolvimento da
reflexão teológica pela tradição pós-bíblica dos Padres da
Igreja chegando assim aos Concílios cristológicos, cujo
propósito era condenar as heresias cristógicas nascidas
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de duas frentes opostas: o Nestorianismo e o Monofisismo. O mérito principal desse método, comparado com o
anterior, é o primado atribuído à teologia “positiva”, ou
seja, ao estudo das fontes distinto da teologia "especulativa". É de se ressaltar que este método implica também
o risco de deixar pouco espaço para o pluralismo teológico.
Podemos dizer que ambos os métodos, o dogmático e o histórico- evolutivo, também chamado de genérico, servem de motivos para tirar conclusões precisas dos
dados cristológicos preestabelecidos. Ambos são especulativos porque partem de uma doutrina para aplicá-la à
realidade, mas nem sempre com uma ligação à existência real e concreta.
1.3 O problema hermenêutico - Toda a cristologia do
Novo Testamento é uma hermenêutica inspirada na experiência pascal dos discípulos, na história de Jesus. As
diferentes cristologias representam as diversas interpretações do evento à luz da páscoa, sendo cada uma delas
condicionadas seja pelo contexto eclesial, seja pela personalidade singular do autor ou do editor do material.
Em outras palavras, deve-se levar em consideração o
texto, o contexto e o intérprete. Não devemos entender por texto somente o dado revelado que está presente
na bíblia, mas tudo aquilo que faz parte da chamada
memória cristã, a saber, a tradição objetiva. Portanto, o
texto contém a Escritura, a Tradição e o Magistério da
igreja. Quanto ao contexto, sua constituição varia conforme os diferentes lugares e períodos da história ,tais
como as condições sociais, políticas, culturais e religiosas. Por fim, quanto ao intérprete, não deve ser levado
tanto em consideração o indivíduo mas a igreja local
como povo de Deus que vive sua experiência de fé em
comunhão com a igreja apostólica. Em outras palavras,
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existe uma interação entre a memória cristã, a realidade cultural e a igreja local. O contexto age no intérprete
por meio da apresentação de problemas específicos e
influi na pré-compreensão da fé com a qual o intérprete
leu texto. Este por sua vez, age no intérprete, cuja leitura do texto oferecerá uma diretriz à prática cristã e assim por diante.
1. 4 As diversas cristologias - Nenhuma teologia particular pode ter validade para todos os tempos e em todos
os lugares. A teologia universal consiste na comunhão
das diferentes teologias locais. Por isso, a diversidade de
contexto elabora tanto a teologia como cristologia. Por
exemplo no ambiente do primeiro mundo onde o progresso tecnológico é bastante presente, assim como a
secularização, o destinatário da teologia é muitas vezes,
o não crente. Já no ambiente do terceiro mundo ou países em via de desenvolvimento marcado pela pobreza e
de subdesenvolvimento, o contexto da teologia não visa o
não crente, mas exatamente a “não - pessoa”; portanto
será um contexto de teologia da libertação, como por exemplo a situação do continente latino-americano. Já no
continente asiático caracterizado por pequeno número
de cristãos e por um tradições religiosas diversificadas, o
acento será sobre o diálogo inter-religioso.
2. ABORDAGENS
CRISTOLOGIA
BÍBLICAS
E
TEOLÓGICAS
DA
a) Abordagem histórico-crítica
Este método tem o propósito de extrair dos evangelhos tudo o que é possível afirmar criticamente a respeito de Jesus. Um dos importantes expoentes deste método foi Rudolf Bultmann o qual demonstrou ceticismo
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quanto à possibilidade de se estabelecer alguma coisa
com certeza sobre o Jesus histórico, pois as fontes cristãs se interessaram de seu aspecto de modo muito fragmentário e com um tom romanceado. Por outro lado,
discípulos de Bultmann como E. Käsemann, demonstrou que existe na tradição sinótica certos elementos
que o historiador deve aceitar como autênticos; por isso
ele afirma que na história de Jesus emergem traços característicos de sua pregação observáveis com precisão e
incorporados à sua própria mensagem pelo cristianismo
primitivo. Afirma ainda que a questão do Jesus histórico
é legitimamente, a questão da continuidade do evangelho.
A Igreja reconheceu a validade do método histórico-crítico desde que seja prudente e equilibradamente
utilizado. Ela distingue três etapas na formação dos evangelhos: o Jesus da história (Formgeschchite), as Tradições orais (Traditiongeschichte) e as Tradições escritas
(Redactiongeschichte).
b) A abordagem existencial
Este método leva em consideração o pensamento
de Bultmann para o qual não interessa o que Jesus poderia ter pensado ou dito, mas sim que pelo anúncio o
homem é levado para uma decisão de fé, mesmo porque
as formulações cristológicas do Novo Testamento estão
cheias de linguagem mitológica típica do tempo e por
isso é necessário desmitolizá-la mediante uma interpretação existêncial. Para Bultmann nenhuma continuidade pode ser estabelecida entre o Kérigma proclamado
por Cristo e o Jesus histórico. Em outras palavras, a
cristologia de Bultmann não tem o seu real fundamento
no Jesus da história, mas pertencendo somente ao Ké16
rigma, ele é convertido num mito sem consistência histórica.
c) Abordagem cristológica pelos títulos
Este método se baseia nos títulos dados a Jesus;
ou seja, nos títulos cristológicos presentes no Novo Testamento. Títulos estes como: Cristo, Servo de Javé, Filho
do homem, Profeta, Salvador, Senhor, Filho de Deus,
Palavra de Deus... podemos dizer que existem vários
pontos críticos suscitados por esses títulos deve-se perguntar se estes foram mesmo usados por Jesus ou foram aplicados a ele por outros? Esses títulos foram empregados no sentido original ou receberam um acréscimo de sentido?
3. PERSPECTIVAS TEOLÓGICAS
a) Abordagem crítico-dogmática
Quando falamos da abordagem dogmática da cristologia devemos levar em consideração o perigo de absolutizar as fórmulas dogmáticas, entendendo a definição
cristológica de Calcedônia como única maneira possível
de anunciar o mistério de Jesus Cristo e como a única
maneira válida. O método crítico-dogmático é uma reação ao dogmatismo cristológico. Na verdade o Magistério
nem sempre reconheceu abertamente o caráter relativo
das fórmulas dogmáticas; basta lembrar Pio XII que
condenou o relativismo dogmático na Encíclica Humani
Generis (1950) e Paulo VI na Encíclica Mysterium Fidei
(1965) defendeu o valor permanente, imutável e universal das formulações dogmáticas. Mas como afirmou a
constituição Gaudium et Spes (62), uma coisa é o próprio depósito da fé com as verdades e outra é o modo de
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enunciá-las, conservando-se contudo o mesmo significado e a mesma sentença. De fato a declaração Mysterium Ecclesiae (1973) da Congregação para a Doutrina
da fé afirmou que o sentido das fórmulas dogmáticas,
que permanece sempre o mesmo, e as próprias fórmulas
que em si mesmas, dependem de condicionamentos históricos, podem e por isso, requererem enunciados mais
profundos e eventualmente, novos.
A abordagem crítico dogmática da cristologia aceita que é possível um pluralismo dogmático e até pode
ser necessário em situações de mudança cultural, o recurso de novas formulações, sem se alterar o seu significado. Nesse sentido , existe uma motivação básica que é
inculturação da fé em Jesus Cristo num contexto de
evolução cultural e de um encontro com outras culturas.
b) Abordagem histórico-salvífica
Este leva em consideração o evento Jesus Cristo
em toda a "economia" das relações de Deus com humanidade na história, por sua auto-revelação e entrega.
Enfatiza o lugar central que o acontecimento Jesus Cristo ocupa no desenvolvimento da história da salvação;
Jesus não é somente o centro da história mas também
o princípio dinâmico da compreensão de toda a história.
Diante deste método os teólogos acentuam atenção entre
o “já” e o “ainda não” e fazem uma distinção entre a “escatologia realizada” (Dodd) que acentua o “já” e a “escatologia conseqüente” (Schweitzer) e que enfatiza o “ainda
não”.
c) Abordagem antropológica
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Afirma que a cristologia começa pela antropologia
onde no mistério de Jesus Cristo foi plenamente revelado o mistério do homem e por ele Deus concretizou a
“troca maravilhosa” com a humanidade. Mostra portanto, o lugar e o papel de Jesus no peregrinar dos homens
para Deus. Nesta linha Jesus é enfocado como o "Motor"
do processo evolutivo como afirmou Teilhard de Chardin. Jesus Cristo é o ponto ômega da evolução do universo, a causa final que põe em movimento todo esse
processo, atraindo-o para si mesmo. É o Cristo evolutivo, ou o Cristo cósmico de Paulo. Como também na outra tendência, vendo o homem filosoficamente como ser
aberto para a auto-transcendência em Deus e capaz de
receber o dom gratuito da auto- comunicação de Deus
com ele. Jesus Cristo, no qual se efetuou de modo sublime a união de Deus com ser humano é o Salvador
absoluto da humanidade, o centro da história da salvação. Em Jesus Cristo , a abertura do homem para Deus
alcançou seu ponto máximo e a sua mais alta realização.
d) Abordagem da cristologia da libertação
Bultmann acha impossível extrair o Jesus histórico da interpretação da fé do Kérigma neotestamentário,
contudo teólogos posteriores a ele acharam impossível
poder recuperar o Jesus da história do ponto de vista
teológico e afirmaram a que a cristologia precisava se
apoiar em Jesus Cristo. Assim, os estudos cristológicos
ultimamente têm tido uma volta ao Jesus da história, à
Jesulogia. Nesse sentido, predominou a necessidade de
munir a fé cristológica com alicerces críticos, afirmando
o que Jesus ensinou e praticou, as suas palavras e ações. Este procedimento marca, de maneira especial, a
chamada “cristologia fundamental”.
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A cristologia da libertação, que defende a volta ao
Jesus histórico, não tem contudo o objetivo de recobrar,
criticamente, os dados históricos para prover a fé cristológica de seu fundamento histórico, mas de redescobrir
na práxis histórica de Jesus, a chave hermenêutica para
a prática da libertação na igreja. O objetivo da cristologia da libertação é servir-se da força intrínseca do Jesus
histórico para tê-lo como critério de discernimento da
prática cristã. Desta forma, a prática histórica de Jesus
torna-se, o tema privilegiado da cristologia da libertação:
suas ações, sua mensagem, suas atitudes, suas escolhas e opções, seu compromisso social, as implicações
políticas e sociais e sua vida e morte. A cristologia da
libertação busca na história humana de Jesus um projeto de uma libertação humana integral realizada por
Deus nele.
e) A cristologia em perspectiva inter-religiosa
Esse tipo de cristologia procura ancorar-se na
prática do diálogo entre as religiões. Tenta situar o mistério de Jesus Cristo no contexto do pluralismo religioso
em geral e supõe um diálogo entre as religiões como vem
acontecendo entre judeus e cristãos onde autores judeus como Lapide, Flusser, Vermes, etc. Evidencia o autêntico ser judeu de Jesus de Nazaré e, ressaltando a
profunda inserção de Jesus na cultura e na prática religiosa de seu povo. Ainda que distante da fé cristã em
Jesus, esses estudos oferecem excelente contribuição
para quem se dedica à cristologia.
Na verdade, o estudo da cristologia deve mostrar a
originalidade de Jesus, sua diferença, seus traços peculiares de sua personalidade em relação ao Jesus no judaísmo. Jesus é mais que um profeta, que um taumaturgo que tem o poder de curar, mais que um simples
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rabi palestino. Não se pode esquecer o que há em comum, mas é preciso realçar as divergências e até as
contradições entre as raízes históricas de Jesus Cristo
no judaísmo e o significado de seu mistério, à luz da fé
cristã. Não se deve também limitar-se simplesmente ao
diálogo judeu- cristão; deverão ser envolvidas outras diferentes tradições religiosas, como o islamismo, o hinduísmo, o budismo e toda tradição religiosa em contato
com a fé cristã nos outros ambientes. Deve-se encontrar
em outras tradições religiosas a ação das “Sementes do
Verbo” e interpretá-las não simplesmente como expressões da aspiração do ser humano para Deus, mas como
sinais de contato inicial de Deus com ele.
4. POR UMA “ABORDAGEM INTEGRAL” DA CRISTOLOGIA
A Pontifícia Comissão Bíblica usa a expressão
“cristologia integral”, referindo-se a uma cristologia que
leva em conta o testemunho bíblico por inteiro. Na verdade, no estudo da cristologia, é preciso levar em consideração toda a tradição bíblica, tanto do Antigo como do
Novo Testamento, porque tudo isto é a norma de fé cristã. É preciso evitar o risco de um reducionismo, ou de
um unilateralismo, pois o mistério cristológico envolve
aspectos complementares, muitas vezes opostos, à primeira vista, entre si, mas que devem ser tomados conjuntamente. É preciso superar todo o falso dualismo e
contradições aparentes entre o Jesus da história e o
Cristo da fé, entra a cristologia implícita do próprio Jesus e a cristologia explícita da igreja, entre a cristologia
funcional e a ontologia, entre a soteriologia e a cristologia, entre a salvação e a libertação humana...
Deve-se levarem consideração a pluralidade de
cristologias dado que essa pluralidade, foi sempre orien21
tada, ao longo da tradição cristã, pelo propósito de inculturar e contextualizar a fé cristológica. É o que a
Constituição Dei Verbum ao se referir ao Sitz in Leben
dos evangelhos, que diz que estes foram escritos “com
vista à situação das Igrejas” (DV 19).
Deve-se levar em consideração que as diferenças
culturais proporcionam, no decorrer dos tempos, diversas expressões de fé cristológica. Apesar disso, ocorrem
vastos espaços de continuidade histórica entre os vários
enfoques cristológicos como também nos diferentes períodos da tradição, entre as múltiplas heresias e reduções
cristológicas.
Deve-se considerar que a estrutura do mistério
cristológico possibilita duas visões cristológicas: a “ascendente” e a “descendente”. As duas são legítimas e se
complementam mas trazem consigo possibilidades de
heresias. A abordagem descendente caracterizada pela
escola alexandrina, desenvolveu uma cristologia do Filho
encarnado com o perigo de tendências monofisistas. Por
outro lado, a abordagem ascendente, caracterizada pela
escola antioquena, gerou a cristologia do homem assumido com o perigo de levar ao nestorianismo. Basta
lembrar que a abordagem descendente tem o perigo de
um reducionismo onde é tirado a realidade e o caráter
autenticamente humano da humanidade de Jesus. Na
tradição antiga, essa tendência provocou o surgimento
de várias heresias cristológicas, como o docetismo, o
gnosticismo, o apolinarismo, o monofisismo... Da mesma
forma a abordagem ascendente, apoiada no homem Jesus corre o perigo do reducionismo consistindo em diminuir a condição divina de Jesus ou ter em menor conta sua identidade pessoal de Filho de Deus. No passado
esse reducionismo teve várias faces, como por exemplo
os abionitas que viram Jesus como um profeta hebreu
igual aos outros. Da mesma forma possibilitou o surgi22
mento de heresias cristológicas como a do adocionismo,
do arianismo e do nestorianismo.
Nesta linha é preciso ter uma cristologia integral,
a qual deve reunir todos os dados complementares, aparentemente contraditórios, do mistério de Jesus Cristo.
Cabe nesse sentido para uma abordagem de cristologia
integral conjugar as abordagens cristológicas ascendente e descendente. Em tudo isto é preciso também considerar que a única cristologia real é a do Filho de Deus
feito homem na história e por isso é preciso mostrar que
as relações pessoais e intratrinitária dão vida a todos os
aspectos do mistério cristológico. Nesse sentido a cristologia deve incluir o aspecto pneumatológico, que acentua a presença operante do Espírito de Deus no acontecimento Jesus Cristo. Por fim, é necessário que a “Jesulogia” e a “Cristologia” andem juntas, porque um Jesus
sem Cristo é vazio, um Cristo sem Jesus é mito. Não se
deve esquecer também que o mistério de Jesus Cristo é
universal, e isto porque ele Filho de Deus, se humanizou
e a sua história humana é história de Deus.
5. A ORIGEM E O DESENVOLVIMENTO DA CRISTOLOGIA.
a) Jesus na origem da cristologia: do Jesus prépascal ao Cristo pascal
Precisamos reconhecer o papel decisivo que a ressurreição de Jesus e a experiência pascal dos discípulos
representam para a fé cristológica. Estas assinalam o
seu ponto de partida, pois os discípulos não alcançaram, antes da páscoa, uma verdadeira fé cristológica, o
que não significa que não tivesse nenhuma fé em Jesus,
mas foi somente depois da ressurreição que eles atingi23
ram a plena fé em Jesus como o Messias e Filho de
Deus. Não é que a experiência pascal deva ser entendida
como uma experiência de conversão dos discípulos, mas
o fato de ver em Jesus ressuscitado, e que se manifestou
eles, certamente foi objeto de suas transformações.
Na verdade, a experiência da ressurreição de Jesus, fez com que os discípulos passassem da “Jesulogia”
para a “cristologia”. Portanto, eles fizeram um itinerário
de baixo para cima, que vai do encontro pessoal com
Jesus à descobertas do Cristo. Assim sendo, na origem
da cristologia, estão as obras e as palavras de Jesus, ou
seja, toda a sua missão e a sua existência humana.
Durante a sua missão, Jesus apresentou uma idéia nova e original do Reino de Deus. Para ele a manifestação do reino era a Boa-Nova e para pertencer a eles
é necessário a conversão: “Cumpriu-se o tempo e o reinado de Deus aproximou-se...” (Mc 1,15). Este Reino cumpre se na sua pessoa: “Hoje, esta escrituras se realizou
para vós...” (Lc 4,21). Este Reino é como uma semente
que precisa se desenvolver. Ele se caracteriza na liberdade, fraternidade, pois a justiça, opondo-se portanto,
ao legalismo opressor dos escribas, da hipocrisia dos
fariseus e da exploração do povo pela classe sacerdotal.
Este é oferecido preferencialmente aos pobres, aos que
são vítimas de estruturas injustas e que sofrem condições desumanas (Lc 6,20). É portanto, de modo surpreendente, a maneira com que Jesus se relaciona com o
Reino de Deus. Ele garante que o Reino, ou seja, o próprio Deus, irrompe no povo, graças a ele, à sua vida e
missão, à sua pregação e a atividade. Neste reino ele ensina com autoridade singular, que supera a de Moisés
(Mt 5,21-22; Mc 10,1-9). Neste reino, Jesus é o filho
predileto e o exemplo mais notável disso é a forma nunca vista de invocar Deus como seu pai, chamando de
"Abba".
24
A instauração do Reino de Deus fez com que Jesus
encontrasse durante o seu ministério inúmeras oposições levando-o a prever a sua morte violenta como um
destino inevitável. Por isso ele se identificou como o
“Servo de Deus” (Mc 10,45). A morte violenta que Jesus
previa, ele a aceitou não como uma simples e inevitável
conseqüência de sua missão profética, mas como uma
derradeira expressão de seu amor, e como o ápice de
sua pró- existência. Para os discípulos, a morte de Jesus
na cruz foi uma experiência terrível, ainda mais porque
eles esperavam que com suas ações libertar dia Israel
(Lc 24,21). O que podiam esperar eles de seu mestre sepultado? Se Jesus não tivesse ressuscitado dos mortos,
o cristianismo seria apenas um grupo de amigos de Jesus, uma recordação de seus ensinamentos e na melhor
reprodução possível de seus exemplos. Desta forma, o
cristianismo não constituiria uma Boa-Nova para a humanidade, mas apenas uma moral elevada. Ser cristão
não consiste em venerar um mestre falecido, nem em
manter sua memória viva, ou ainda em praticar a sua
doutrina; ao contrário, significa crer que Jesus está vivo
porque ele ressuscitou e por isso está no nosso meio agindo pelo seu Espírito. A ressurreição de Jesus é o fundamento da fé cristã e o marco inaugural da cristologia
do Novo Testamento.
b) O desenvolvimento da cristologia do Novo Testamento
Com a ressurreição de Jesus inicia-se a chamada
cristologia explícita, a qual tem início com a pregação
querigmática cristã através do processo de reflexão sobre o mistério de Cristo que, principiando por uma cristologia "de baixo", chega progressivamente a uma cristologia “do alto”, ou seja, partindo dos mistérios da vida de
25
Jesus desde o seu nascimento humano, e chega até a
sua pre-existência. Não possuímos acesso direto aos inícios da cristologia da Igreja apostólica, e isto porque os
escritos mais antigos do Novo Testamento são dos anos
50 dC, ou seja, de aproximadamente vinte anos após a
sua morte e ressurreição.
Nas Cartas de Paulo e também nas Cartas pastorais encontramos o primeiro Kérigma da Igreja (I Cor
15,3-7; Rm 1,3-4; 1 Tm 3,16; Hb 6,1...). Nestes e em outros textos encontramos as características importantes
do Kérigma primitivo, tais como: o mistério pascal da
morte e ressurreição de Jesus que constitui o centro do
Kérigma, a ressurreição de Jesus não separada de sua
morte, assinalando a sua entrada no estado escatológico
e na exaltação como Senhor. Os sermões missionários
de Pedro e de Paulo, em Atos dos Apóstolos (2,14-39;
3,13-26; 4,10-12...), dirigidos sobretudo os judeus, demostram com clareza a cristologia do primeiro Kérigma.
Estes discursos lembram a ação do Espírito Santo, de
que eles são testemunhas, da qual isto aconteceu segundo as Escrituras... Trata-se, portanto de uma cristologia baseada na ressurreição e glorificação de Jesus, a
qual é uma ação de Deus sobre Jesus constituído-o Senhor e Cristo em favor da humanidade. A ressurreição
de Jesus é o acontecimento salvífico e definitivo de
Deus; por ela o pecado e a morte foram vencidos. Com
ela Jesus entra no fim dos tempos, realiza a esperança
escatológica entrando em na glória final. Com ela Jesus
atingiu a própria perfeição (Hb 5,9).
O que Deus fez a Jesus foi em favor dos homens;
para todos os títulos que exprimem a dignidade adquirida por Jesus como ressuscitado estão relacionados a
nós; Ele é o Senhor de todos (At 10,36); Ele é o nosso
Cabeça e Salvador (At 5,31). Com a sua ressurreição foi
inaugurada a chegada definitiva da salvação. É o Senhor
26
ressuscitado que salva. Portanto, com a ressurreição de
Jesus, nasceu a cristologia explícita, porque nela encontramos o estágio inicial de uma reflexão ordenada sobre
o significado de Jesus Cristo para a fé cristã. Foi com a
ressurreição que se deu o ponto de partida de todas as
afirmações sobre Jesus; com isso podemos dizer que a
primeira cristologia nasceu “de baixo”, porque partiu da
realidade humana de Jesus, transformada pela ressurreição, e não da pré-existência do Filho de Deus que se
fez homem. A verdadeira identidade de Jesus para os
primeiros cristãos foi revelada por Deus em sua ressurreição. Afirmamos também que a cristologia do Kérigma
primitivo é, essencialmente soteriológica, ou seja, seu
ponto central reside na salvação dos homens. Ela consistia numa reflexão sobre Jesus, contemplado em suas
funções em nosso favor. Só mais tarde, ela se transformará em cristologia "ontológica", buscando uma reflexão
sobre Jesus como ele é em si mesmo e sua pessoa na
relação com Deus.
A cristologia do Filho de Deus na narrativa da infância (Lc 1,32) diz apenas que menino nascido de Maria
veio de Deus e será chamado "Filho do altíssimo". Não
fala portanto de uma filiação eterna e divina de Jesus
em sua preexistência. Não se toca na questão ulterior da
origem eterna de Jesus como Filho de Deus, como vemos em Paulo (Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef 1,3-13) e sobretudo no Prólogo do evangelho de João (1,1-18).
6. OS TÍTULOS CRISTOLÓGICOS
a) Os títulos de Jesus no Novo Testamento
27
1. “Filho do Homem”: é uma expressão semítica que
significa o homem, geralmente no seu aspecto frágil e
precário (Sl 79; Is 51,12). No livro de Daniel (7,27)
essa expressão é identificada com o povo santo do
Altíssimo, mas a tradição judaica a interpretou no
sentido pessoal chegando a identificá-la como sendo
um título messiânico. De fato esse título ocorre 80
vezes na boca de Jesus e está associado ao poder de
autoridade como de perdoar os pecados (Mc 2,10) e
de ser o Senhor do sábado (Mc 2,28). Indica também
a sujeição aos sofrimentos e à paixão (Mc 9,31;
10,33) a sua precariedade(Mt 8,20). Jesus preferiu
que esse título porque não tinha conotação política e
evitava que ele fosse julgado como um revolucionário
opositor ao poder romano.
2. “Senhor”: o Novo Testamento chama Jesus de Kyrios para exprimir a fé dos primeiros cristãos na sua
divindade e na sua transcendência. Ele é o Senhor de
todos (At 10,36; 1Cor 12,3).
3. “Cristo”: tradução grega do aramaico (Meshiah) que
significa ungido. Esse título era dado ao rei e ao filho
de Davi por excelência, que viria para salvar o povo.
Os discípulos reconhecem Jesus como este rei e por
isso deram-lhe este título o qual Jesus aceitou, mas
que todavia pedia para que não fosse divulgado, pois
o mesmo tinha conotações políticas (Jo 1,41; 4,25;
20,31; Mt 16,16; Mc 8,29s;12,35). Podemos afirmar
que Jesus se considerava o Messias (Mt 11,3); Também se considerou vencedor de todos os males (Mt
11,4).Mas foi sobretudo com a sua ressurreição que
este título ficou evidenciado (At 2,36).
4. “Servo de Javé”: é uma expressão hebraica que indica um personagem misterioso descrito em Is 42,17; 49,1-6; 50, 4-9;52,13-53,12. Este se apresenta
como uma vítima inocente que se oferece em sacrifí28
cios de expiação pelos pecadores. Jesus se identificou com o Servo de Javé afirmando que veio para
dar a vida para a salvação de todos, que o seu sangue derramado era para a salvação de todos e que se
oferecia livremente para cumprir a sua missão salvífica (Mc 14,24; Lc 22,37; Jo 10,10).
5. “Filho de Deus”: nos evangelhos os próprios demônios proclamam Jesus como “Filho de Deus” (Mc
1,34; 3,11). Também o Centurião romano e o próprio
Pedro o proclamaram (Mc 15, Mt 16,16). São Paulo
afirma enfaticamente que Jesus é o filho de Deus (At
9,20); para ele Deus enviou seu Filho à terra para
que fôssemos reconciliado os pela sua morte (Gl 4,4;
Rm 8,3). João professa que Ele é Filho Unigênito enviado pelo Pai para dar a vida eterna (1Jo 4,9; Jo
6,40). Jesus revelou-se como Filho de Deus (Mt
12,27) e chamou a Deus de Paizinho. Tomé o reconheceu como Deus (Jo 20, 28), o qual desde o princípio e estava junto a Deus (Jo 1,1). Ele é o Deus bendito pelos séculos (Rm 9,5), o Grande Deus e Salvador (Tt 2,13 ).
6. “Profeta”: aqueles que chamaram Jesus “Profeta”
queriam indicar sua profissão, assim como o chamavam de mestre. Na verdade Jesus aparece não somente como profeta, mas como o profeta, ou seja aquele que devia cumprir toda a profecia no final dos
tempos. O antigo profetismo israelita esperava por
um profeta escatológico, ele já era anunciado nas palavras dirigidas por Moisés a Israel (Dt 18,15). Na
verdade Israel esperava o retorno de Elias, o qual era
identificado como o mensageiro para preparar o caminho de Javé. Nos evangelhos também João Batista
é chamado “o profeta”, colocado no mesmo plano dos
profetas do Antigo Testamento. Ele foi considerado
como um precursor do Messias e a sua aparição é i29
dentificada com o retorno de Elias (Mt 17,10). No
cântico de Zacarias (Lc 1,76), João Batista é chamado
de Profeta do Altíssimo, com isso os primeiros cristãos viram nele o Precursor do Messias. É certo que
João Batista foi considerado depois de sua morte,
como o profeta, como Precursor de Deus. Os próprios
discípulos de Jesus e o próprio Jesus o consideraram
como o profeta, na qualidade de Precursor do Messias, e o próprio João Batista tinha consciência disso.
Ele se recusava, porém ser considerado como Messias ou como profeta escatológico. No Novo Testamento Jesus é denominado de “um Profeta” e também de
“o Profeta”. No primeiro caso Jesus aparece na categoria dos profetas (Lc 7,16; Mc 6,4; 6,14). Herodes
pensava que Jesus era João Batista ressuscitado; outros pensavam que era Elias. Mas segundo o sinóticos, Jesus não se considerou como profeta esperado
para o fim dos tempos, mas sim foi o povo quem o
considerou como tal (Jo 6,14). Na verdade, o caráter
único da pessoa e da obra de Jesus indica que ele era
um homem que os judeus esperavam como profeta
dos últimos tempos. Ele tem autoridade escatológica,
o seu chamado ao arrependimento é absoluto e exige
uma decisão definitiva, dando assim à sua pregação
um caráter absoluto. A autoridade (exousia) com a
qual Jesus anunciava o seu evangelho, não era de
um profeta qualquer, mas do profeta por excelência;
o caráter escatológico de sua pregação é incontestável. Para a esperança judaica, o Reino de Deus se estabeleceria um dia com poder, a partir do momento
em que o profeta retornado à terra, completasse seu
chamado ao arrependimento. Mas se Jesus era só
profeta, então o Reino de Deus ainda não tinha chegado e não havia portanto, lugar para uma fé no
Cristo-kyrios. Contudo, Jesus afirmou que o Reino de
30
Deus estava presente (Mt 12,28). Podemos então afirmar que nem Jesus, nem seus discípulos imediatos
aplicaram a noção de profeta à sua pessoa e à sua
obra; trata-se portanto de uma opinião popular sobre
Jesus. Assim, a noção de profeta para Jesus é demasiada estreita.
7. “Servo sofredor de Deus”: é um dos títulos mais antigos dados à pessoa e à obra de Jesus. O Servo de
Deus (Ebed Iahweh) é uma figura forte no judaísmo
(Is 42,1-3; 49,1-7; 50.4-11; 52,13-53,12). O Servo do
Senhor podia ser identificado com todo o povo de Israel, ou também como um indivíduo. No livro de Enoque como nos apocalipse de Esdras e de Baruc, o
Messias é identificado como Servo sofredor. Nos documentos Qumran este Servo sofredor é o Mestre de
justiça. Devemos perguntar se Jesus considerou seu
sofrimento e sua morte como parte integrante de sua
missão na execução do plano da salvação. Muitos teólogos afirmam que Jesus não teria atribuído à sua
morte nenhum valor expiatório, e que na realidade,
esta idéia teria sido introduzida pelo apóstolo Paulo.
Entretanto Jesus sentia mais chamado, durante a
sua vida, a viver a obra expiatória que a ensiná-la.
Ele não se limitou a perdoar os pecados, mas a curar
os enfermos, dando-lhes o perdão. Jesus colocou
também o seu sofrimento e a sua morte como parte
integrante da obra da salvação; ele tinha convicção
de que devia morrer (Mc 2,18; Lc 13,31; Mt 12,39; Mc
12,7;14,8; Lc 22,37; Mc 10,45). Os estudiosos estão
de acordo que a designação de Jesus como “Servo sofredor” remonta ao próprio Jesus e de que não foi a
comunidade primitiva a primeira a estabelecer uma
relação da pessoa de Jesus com esse título. Mas, o
que dizia o cristianismo primitivo a respeito de Jesus,
o “Ebed Iahweh”? Sabemos que a Cristologia do Ebed
31
não é propriamente a dos evangelistas. Em Mt
8,16ss, Jesus expulsou os espíritos com uma palavra
e curou os enfermos, a fim de que se cumprisse o que
havia sido anunciado pelo profeta Isaías: “Ele tomou
sobre si as nossas enfermidades e levou nossas doenças”. Aqui o evangelista cita textualmente uma passagem de Isaías 53,4, a qual faz referência ao Servo
sofredor. Em João 10,11 Jesus se coloca como o bom
pastor que dá a vida pelas suas ovelhas. O mesmo
evangelista no capítulo 1, versículos 29 e 36, apresenta Jesus como o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. As mesmas referências são feitas
em Atos, 8,26 e na primeira carta de Pedro 2,21ss...
Na verdade, podemos dizer que o judaísmo na época
do Novo Testamento, pôs o nome Ebed Iahweh em relação com o do Messias, embora no messianismo judaico a idéia do Servo sofredor está ausente. Jesus
não atribuiu a si o título de Servo de Deus, mas foi
uma aplicação dos evangelistas para ressaltar a idéia
do sofrimento e na sua morte. Diante disso o cristianismo primitivo conservou esta lembrança de Jesus,
Mas a noção de Ebed Iahweh caracteriza sem dúvidas
a obra e a pessoa do Jesus histórico de uma maneira
perfeita com a Cristologia do Novo Testamento.
8. “ Sumo Sacerdote”: a noção de Sumo Sacerdote tem
uma estreita relação com aquela de Servo de Deus. A
figura do Sumo Sacerdote é essencialmente judaica,
a qual tinha a idéia de um sacerdote ideal que devia
consumar, no final dos tempos, o sacerdote judaico,
como o único sacerdote verdadeiro. Segundo os estudiosos, parece à primeira vista, impossível que Jesus
tenha atribuído a si mesmo funções sacerdotais, contudo não se descarta a possibilidade de que Jesus
tenha aplicado a si ao menos a idéia de Sumos Sacerdotes “segundo a ordem de Melquisedeque”, con32
forme descreve o livro do Gênesis 14,13 e 24. Em Mc
12,35 temos a referência de Jesus, fundamentandose no Salmo 110 de que Jesus é o sacerdote segundo
a ordem de Melquisedeque. Da mesma maneira a
Carta aos Hebreus no capítulo 7, apoiando-se em
Gênesis 14 e no Salmo 110, dá a designação de Jesus como o verdadeiro Sumo Sacerdote; este não somente pôs fim ao antigo sacerdócio judaico, mas o
consumou em sua pessoa. Jesus é o Sumo Sacerdote
que se oferece como vítima, é portanto também o
Servo Sofredor; idéia esta expressa também nas Cartas de Pedro (1 Pe 1,19; 2,22). Da mesma forma, o
autor da Carta aos Hebreus (4,15) ressalta o sacerdócio de Jesus em toda a sua humanidade, inclusive afirmando que ele foi tentado como nós em todas as
coisas; afirmação esta, talvez a mais ousada de todo
o Novo Testamento sobre o caráter absolutamente
humano de Jesus, conforme afirma Oscar Culmann.
Segundo a doutrina da Carta aos Hebreus, Jesus o
Sumo Sacerdote, graças a sua humanidade, santificou a nossa humanidade e a tornou perfeita (Hb
9,26; 10,10). Em suma, constatamos que a idéia de
Cristo sacerdote embora não sendo exclusiva da Carta aos Hebreus, pois este título está na base das afirmações cristológicas de outras passagens do Novo
Testamento, devemos admitir que esta noção é relevante nesta Carta e se a cristologia sacerdotal se perpetua, devemos muito a este escrito.
b) Títulos Cristológicos referentes à obra futura de
Jesus
9. “Messias”: o título messias tem sua raízes antes de
tudo na esperança escatológica do judaísmo, onde o
adjetivo “messiânico” é empregado quase como sinônimo de “escatológico”. Na época de Jesus não existia
33
uma concepção única e firme a respeito do messias,
pois a esperança de todos os judeus se resumia num
redentor, o qual apresentava os traços nacionais judaicos. Contudo, na época do Novo Testamento, existia um certo tipo de messias predominante, aquele
que poderia ser chamado de “messias político” ou
então “Messias judaico”. Para os cristãos messias
constituiu-se como um título cristológico por excelência. A palavra grega “Cristós”, é a tradução da palavra hebraica “maschiach”, que quer dizer ungido.
Para os autores do Novo Testamento “Jesus Cristo”
significa “Jesus o messias”. Para os judeus, o rei de
Israel era denominado “o ungido de Iahweh”. Porém
este título não era unicamente para o rei, pois todo
homem de Deus, encarregado de uma missão para
com o povo também podia receber esta denominação;
assim eram os sacerdotes (1Rs 19,16). O rei naturalmente tinha um caráter divino e este título indicava a
origem divina de sua função (2Sm 7,14). Particularmente durante o exílio foi conferido ao rei de Israel a
figura do messias que virá (Ez 37,21). Esperava-se
um rei totalmente terreno, político e não um ser celestial que apareceria de uma forma milagrosa. Este
seria um rei pacífico e desempenharia um papel político (Zc 9,9s). Este rei era visto também como o messias que viria para aniquilar os pecadores e dar a sua
graça para os bons. Sua missão estaria localizada
num plano puramente terreno, como rei político de
Israel teria um caráter pacífico ou guerreiro. Teria
Jesus se considerado o messias? Em Mc 14,61; Mt
26,64; Lc 22,67, Sumo Sacerdote procura uma declaração messiânica pronunciada pelo próprio Jesus,
para poder acusá-lo e denunciá-lo aos romanos como
agitador político, pois pretender o título e a função de
messias, significava que Jesus queria estabelecer o
34
trono de Davi e portanto um governo independente.
Se Jesus afirmasse que era o messias, o Sumo Sacerdote teria o motivo para acusá-lo, se não declarasse, Jesus ficaria desacreditado diante do povo. Para o
evangelista Marcos, Jesus respondeu que sim (eu
sou), já para Mateus, Jesus não deu um sim perfeitamente claro (tu o disseste), o que quer dizer: “És tu
quem o diz, e não eu”, ou seja, Jesus não teria respondido claramente nem sim nem não à pergunta
capciosa do Sumo Sacerdote. Em Lucas, Jesus se
nega a responder por um sim ou por não, e acrescenta uma declaração relativa não ao messias, mas ao
Filho do Homem “Se vô-lo disser, não o acreditareis...”. Aqui Jesus corrige a pergunta do Sumo Sacerdote, substituindo o título de messias pelo de Filho do Homem. Jesus tinha consciência que as idéias
messiânicas judaicas eram políticas e esta não era a
maneira de se compreender a sua missão, porém para sublinhar que tinha a consciência de sua missão,
acrescenta a declaração sobre o Filho do Homem, que
como um ser celestial, está mais próximo de Deus do
que o messias. A recusa ao título de messias não significa que Jesus renunciou à sua pretensão soteriológica, pelo contrário, o título Filho do Homem, no
sentido que é dado pelo livro de Daniel, é de um ser
celestial que transcende a figura de um messias puramente político. O que Jesus renuncia é portanto, o
papel político do messias rei. Em Mc 15,2 encontramos a interrogação, desta vez de Pilatos, se Jesus é o
rei dos judeus, onde na verdade o governador quer
saber se Jesus é o messias, o rei dos judeus. Jesus
responde-lhe: “Tu o dizes”, num sentido mais afirmativo, porém é igualmente é uma resposta evasiva.
Por fim ainda em Mc 8,27ss, no texto que concerne
à cena de Cesaréia de Felipe, Pedro declara: “Tu és o
35
messias”, ao que Jesus proíbe Pedro e os outros discípulos de falar disso, o que indica implicitamente
que Ele teria aceitado a confissão messiânica de Pedro, porém deixa claro o seu sofrimento como Ebed
Iahweh, algo nada compatível com a esperança messiânica judaica. Jesus conhecia bem o desejo de seus
discípulos de o verem assumindo a função de um
messias político; isto esclarece bem o pedido dos filhos de Zebedeu em relação aos lugares de honra no
seu reino futuro e até esclarece a razão do porquê eles o abandonaram no momento de sua prisão que
além de uma debilidade humana, pode ter sido também uma desilusão ao ver que Ele não correspondia
àquela imagem judaica do messias rei. Não é errado
imaginar também nesta desilusão, a razão subjetiva
da traição de Judas Iscariotes. A proibição de Jesus
de não dizer que ele era o messias, se explica no sentido de se impedir uma proclamação que pudesse favorecer uma falsa interpretação de sua missão, precisamente a que combatera como uma tentativa diabólica. Assim se conclui que Jesus não recusou o título
de messias, mas que manifestou para com ele uma
grande reserva. Jesus considerou inclusive este título
como uma tentação satânica e procurou substituí-lo
pela expressão “Filho do Homem”. Este título se opõe
à idéia de “Ebed Iahweh”. Portanto não houve por
parte de Jesus uma recusa direta a este título, mas
uma grande reserva diante das imagens que se concentravam em torno do messianismo político. A maneira como Jesus cumpre a sua missão como messias, o mediador, se opõe à esperança judaica.
10. “Filho de Davi”: este título é uma variante do título
de messias, o qual designa o messias de acordo com
a sua origem: Filho de Davi. Precisamos perguntar:
Jesus é verdadeiramente proveniente da família que a
36
tradição fazia ser da casa real de Davi? Considerou
Jesus a origem davídica como uma condição essencial para a realização de sua missão? Muitos historiadores negam a existência de uma tradição familiar
davídica na família de Jesus e para isto argumentam
que esta tradição teria sido criada mais tarde pela Igreja, a fim de responder à polêmica judaica, já que o
messias esperado devia sair da família de Davi. Muitos estudiosos afirmam que a genealogia dada por
Lucas seria aquela de Maria, e aquela dada por Mateus seria a de José. Paulo na sua Carta aos Romanos (1,3) atesta que a família de Jesus seria proveniente da família real de Davi. Sua afirmação se baseia
provavelmente numa confissão de fé da comunidade
primitiva, o que mostra que a filiação davídica de Jesus era indiscutível. Com isso pode-se afirmar que a
família de Jesus possuía ao menos uma tradição oral,
segundo a qual ela pertencia à linhagem de Davi.
Mas Jesus se auto-designou como “Filho de Davi”? O
evangelista Marcos (12,35ss) faz uma referência a este título e a conclusão dos estudiosos é de que Ele
não recusou diretamente este título quando os outros
davam-lho, mas recusou energicamente a idéia de
uma realeza política associada a este título. Contudo, podemos afirmar que o cristianismo primitivo adotou esta terminologia em relação a Jesus assegurando que ele apareceu sobre a terra como Filho de
Davi, que ele exerce a realeza sobre a comunidade
dos fiéis e que virá no fim dos tempos como messias.
11. “Filho do Homem”: este título messiânico é o único
segundo os evangelhos sinóticos, que Jesus aplicou a
si mesmo. Este título no judaísmo significa aquele
que pertence à espécie humana; de fato em aramáico
a palavra “Barnascha” significa “Homem”. Este título
aparece a primeira vez no livro de Daniel (7,13), mas
37
não parece ter uma conotação de caráter messiânico.
Só mais tarde passou a ser designado um Salvador
escatológico, como por exemplo é designado no livro
de Enoque, onde é classificado como um ser celestial
sobrenatural. Este “Filho do Homem” aparecerá somente no fim dos tempos, sobre as nuvens com o objetivo de julgar o mundo e de realizar o povo dos santos. Jesus qualificou a si mesmo de “Filho do Homem”? Encontramos algumas referências deste título
nos evangelhos (Mc 2, 27ss; Mt 12,31; 25.31ss’ Lc
12,10...). Nos variados textos que fazem referências a
este título cristológico aparece a conotação de que
Jesus o aplica à sua missão terrena, expressando assim a sua humilhação, como servo sofredor. Embora
este título apareça 69 vezes nos sinóticos, encontramos também 12 vezes no evangelho de João; eis algumas destas referências (Jo 3,13; 5,27; 6,27; 9,35;
12,23; 13,31...). Encontramos também em outras
partes do Novo Testamento (Ap 1,13).
c) Os títulos Cristológicos referente à obra presente
de Jesus
12. “Jesus o Senhor (Kyrios)”: este título melhor do
que qualquer outro, expressa o fato de Cristo ter sido
elevado à direita Deus e de interceder pelos homens
em sua condição de glorificado. Para os primeiros
cristãos este título indicava que Jesus não pertencia
somente ao passado da história da salvação, e nem
era apenas objeto de uma esperança futura, mas
também era uma realidade do presente, onde ele estava vivo em relação com a sua Igreja. Os primeiros
cristãos expressaram esta profunda convicção em
sua profissão de fé: Kyrios Iêsous- Jesus é o Senhor.
No mundo helenístico o termo “Kyrios” era um título
38
reservado aos deuses e deusas; basta lembrar a afirmação de Paulo na sua primeira Carta aos Corintios
... “Como há muitos deuses e muitos Kyrioi, para nós
há um só Deus... e um só Kyrios, Jesus Cristo” (1Co
8,5ss). O título de Senhor atribuído a Jesus pela fé
cristã segundo W Bossuet foi-lhe atribuído por influência do helenismo. No império romano este título estava ligado à pessoa do Imperador e tinha um sentido
político e jurídico, mas sem implicar a afirmação da
divindade do imperador, embora no Oriente, muito
antes da época romana, os soberanos eram honrados como deuses. Os Imperadores romanos herdaram
esta dignidade divina, onde para os imperadores romanos já mortos, eram lhes atribuído por um culto
de natureza divina. O imperador era chamado Kyrios
como sinal de seu poder político e consequentemente
era honrado também como um Deus; portanto este
título no mundo helenístico passou do sentido geral
de “Senhor” para um sentido absoluto de “o Senhor”.
O título “Senhor” aplicado a Jesus, só recebeu a sua
plena significação depois de sua morte e glorificação,
conferindo a Ele também a dignidade de messias. Ele
foi “feito Senhor” (Atos 2,36). Marcos dá a Jesus este
título apenas uma vez (11,3) e Mateus jamais lhe dá
este título, ao passo que em Lucas ocorre freqüentemente (Atos 2, 36). Podemos também conferir este título em Fl 2,9; Rm 1,3; 1Co 16,22... A confissão de fé
“Senhor Jesus” teve uma grande importância para os
cristãos fora da Palestina, principalmente durante as
perseguições, onde estes proclamavam a soberania
de Cristo em contraposição à do Imperador (Ap
17,14). Para os primeiros cristãos a soberania de Jesus indicava que ele estava sentado à direita de Deus
e que todos os inimigos lhe estão submetidos (1 Pd
39
3,22). Portanto ele é o único soberano e não existe
outro além dele.
13. “Jesus o Salvador”: este título aparece uma vez na
epístola aos Filipenses, e encontra-se esporadicamente no evangelho de Lucas e de João e de uma maneira mais freqüente nas Cartas pastorais na segunda
Carta de Pedro. A aparição tardia do título "Salvador"
parece ser devido ao fato do papel iminente que desempenhou o título de Kyrios. No Antigo Testamento
Deus é chamado "Salvador". Mas também este título
é dado para alguns homens de Deus que salvam o
seu povo em seu nome e por sua ordem. Assim foi
chamado Moisés que "Salvou" a seu povo; e também
os chefes de Israel foram chamados de "Salvadores".
O messias era considerado como o "Salvador que virá" para livrar definitivamente o seu povo. Portanto,
no Antigo Testamento e no judaísmo, de uma maneira geral, o título Sóter (Salvador) estava ligado essencialmente ao Salvador do povo, a heróis que salvaram
o seu povo. Durante sua vida Jesus nunca foi chamado “Sóter” por ninguém e nem chamou a si mesmo deste modo. Este título encontra-se presente sobretudo nas Cartas pastorais (1Tm 1.1; 2.3; 4.10; Tito 1,3; 2.10; 3,4) e também no evangelho de Lucas
(1,47; 2.11). Trata-se da transferência a Jesus de um
atributo que o Antigo Testamento dá a Deus. Jesus é
o Salvador porque salvará o seu povo do pecado (Mt
1,21). Contudo, o alcance teológico do título “Sóter”
terá a sua plena expansão no final da época apostólica, quando este título, associado ao outros atributos
importantes do nome de Jesus, tomou lugar na a antiga fórmula “Ichthys: Iesous Christós Theon Niós
Sotér (Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador).
d) Títulos referentes a preexistência de Jesus
40
14. "Lógos": este título ocupa um lugar de destaque
na Cristologia da Igreja antiga, contudo no Novo Testamento apenas João o menciona. Este título ocorre
mais na filosofia grega de Heráclito e mais tarde no
estoicismo. O Lógos aí é a lei suprema do mundo, que
rege o universo e que está presente na razão humana. No evangelho de João este título, Lógos, só é atribuído a Jesus no prólogo e em outras duas passagens. Este é fruto de uma reflexão teológica que pressupõe a experiência litúrgica da soberania de Cristo
(Jo 1,1). O Lógos é Deus e ao mesmo tempo estava
em Deus. O título cristológico Filho de Deus geralmente foi examinado na dogmática posterior exclusivamente do ponto de vista das duas naturezas: "Filho
de Deus", o qual indica a natureza divina de Jesus
Cristo e "Filho do Homem", que indica a natureza
humana de Jesus. Na verdade, o título "Filho de
Deus" caracteriza-se de maneira particular e totalmente única a relação entre o Pai e o Filho. A origem
desta noção deve ser buscada nas antigas religiões
orientais onde os reis em especial, eram considerados
como gerados dos deuses. Esta crença estava particularmente espalhada no Egito, onde os faraós passavam a ser filhos do deus sol Rá. Na época do Novo
Testamento os imperadores romanos tinham o título
de “divi filius”. No helenismo este título não era dado
somente para os monarcas, mas para gente de todas
as classes para quem eram atribuídas forças divinas;
todos os taumaturgos eram "Filhos de Deus". A pretensão destes homens de serem Filhos de Deus, baseava-se na convicção de que eram dotados de forças
divinas. No Antigo Testamento esta expressão é aplicada tanto para o povo de Israel inteiro (Ex 4,22; Is
1,2; 30,1; Jr 31,20), o qual é chamado "Filho de
41
Deus", como também para os reis, (2 Sm 7,14; Sl
2,7), ou ainda para os comissionados especiais de
Deus, tais como os anjos e também o Messias, como
indica o livro Etíope de Enoque. Em resumo, podemos dizer que para o Antigo Testamento como também para o judaísmo, o que caracteriza o Filho de
Deus não era primordialmente uma força excepcional
e também nenhuma relação de substância com Deus
em virtude de haver sido divinamente gerado; mas
sim o fato de ser eleito para realizar uma missão divina particular, e de obedecer estritamente ao chamado de Deus. Será que Jesus considerou-se como
"Filho de Deus"? Para muitos teólogos a resposta é
negativa (W. Bousset, Bultmann), os quais sustentam
o emprego deste título por uma questão de origem
helenística. Seria possível portanto, que a comunidade primitiva tivesse colocado posteriormente este título na boca de Jesus, Contudo os Sinóticos deixam
claro que durante a sua vida Ele foi reconhecido como "Filho de Deus"; basta lembrar a declaração de
Pedro (Mt 16,17) a declaração do diabo (Mt 4,3-6),
dos demônios (Mc 3,11; 5,7), a voz celestial no momento do batismo e da Transfiguração, a declaração
do Centurião (Mc 15,39). Portanto este título para os
Sinóticos parece remontar ao próprio Jesus. É de se
notar que Jesus recusou diretamente ou ao menos
evitou conscientemente o título de "Messias", mas no
caso do título "Filho de Deus", num sentido totalmente único e especial, este deve ter sido um elemento
essencial da consciência que Jesus tinha desse mesmo. Devemos lembrar que Jesus preferiu, em virtude
do “segredo messiânico”, o título “Filho do Homem”
ao de "Filho de Deus". O título “Filho de Deus” contém uma afirmação de soberania e de dignidade divina excepcional. O título “Filho de Deus”, figurou en42
tre as primeiras formas de confissão de fé da igreja
primitiva (At 8,36-38). Este credo fundamental encontramos também na primeira Carta de João (1Jo
4,15), assim como em outras passagens do Novo Testamento (Hb 4,14; Rm 1,3s). A carta aos Gálatas (4.4)
afirma que Deus enviou seu Filho para nos resgatar,
assim como também a Carta aos Romanos (5,10) afirma que pela morte do Filho de Deus fomos reconciliados. Paulo menciona também um outro aspecto: a
soberania do Filho de Deus, o qual é a imagem de
Deus desde o começo (Cl 1,14s), e por isso Deus nos
predestinou a sermos semelhantes à imagem de seu
Filho (Rm 8,29). Por fim, Paulo fala da unidade entre
o Pai e o Filho (1Cor 15,28), Deus nestes últimos
tempos, falou-nos pelo Filho” (Hb 1,1s).
15. “Deus”: com o título cristológico “Kyrios” Jesus é
considerado Deus enquanto soberano, que desde a
sua glorificação rege a Igreja, o universo e a vida de
cada indivíduo; enquanto “Lógos” é aquele que se revela desde o começo enquanto Deus porque é aquele
que vem do Pai e ao Pai retorna. As passagens onde o
nome de “Deus” aparece aplicado a Jesus são poucas; Jesus não se chamou a si mesmo de “Kyrios” e
nem tampouco se auto-designou “Theós”. No evangelho de João encontramos duas passagens onde aparece claro este título (Jo 1,1; 20,28). Na carta aos
Hebreus (Hb 1,8-9) este título vem empregado duas
vezes. Paulo também designa a Jesus com título de
“Deus”, porém não tão explicitamente como o evangelista João ou a Carta aos Hebreus, pois a divindade
de Cristo está implícita no título o “Kyrios” (1Cor 8,9;
Fl 2,6; Cl 1,15; 2,9; Rm 9,5).
Em conclusão, pode-se provar logicamente que o
centro de toda revelação divina reside na vida terrena e
43
na morte de Jesus; ele é o centro da história divina da
salvação, o centro indiscutível da revelação de Deus. Esta verdade os primeiros cristãos a compreenderam aceitando o testemunho da vida de Jesus, com os acontecimentos de sua paixão e morte e de sua ressurreição e
também fazendo a experiência litúrgica e pessoal da
presença do “Kyrios”; Senhor da igreja e do mundo. Estes meios para o conhecimento de Jesus Cristo são os
mesmos para o homem de hoje.
7. O PERFIL CRISTOLÓGICO NO NOVO TESTAMENTO
Sendo que fundamentamos a Cristologia nos evangelhos, é necessário ter uma visão sintética daquilo
que o Novo Testamento nos ensina sobre Jesus. Cada
evangelista traça um perfil de Jesus; assim Marcos delineia um Jesus autenticamente humano o qual tem sentimentos de tristeza (3,5), trabalha muito (3,21), manifesta “sangue quente” ao expulsar os vendilhões do templo (11,15). Marcos denomina Jesus de “Filho do Homem”, título que ocorre 14 vezes nos lábios de Jesus no
decorrer do seu evangelho. Este título quer significar
simplesmente que Jesus é homem. Este título que se
encontra 93 vezes no livro de Ezequiel, está também no
livro de Daniel (7,13s) com um sentido messiânico. Portanto Jesus é também o Messias que perdoa os pecados,
que é Senhor do Sábado; é aquele que deverá consumar
a história (Mc 2, 10; 2,28; 13,26).
Em Marcos é também característico o título “Filho
de Deus”. Ele inicia seu Evangelho com as palavras
“Princípio da boa nova de Jesus Cristo, Filho de
Deus”(1,1). Jesus é o Filho de Deus que expulsa demônios (3,11), é Jesus quem responde afirmativamente ao
44
Sumo sacerdote que ele é o Messias, o Filho do Bendito
(14,61). Na transfiguração é o Pai quem aponta Jesus
como o seu “Filho amado”. Será o Centurião romano
quem confessará que Jesus é verdadeiramente o Filho
de Deus (15,39).
Marcos enfatiza também a divindade de Jesus ao
relatar as obras que realiza, ou seja, os milagres os
quais manifestavam o seu poder divino (2,3-12); Nesta
passagem Jesus cura o paralítico e também lhe perdoa
os pecados e o povo escandaliza-se alegando que somente Deus pode fazer tal prodígios. Jesus também realiza
milagres evidenciando o seu poder sobre a natureza
(4,35), sobre as doenças (6,56) e sobre a própria morte
(5,21-43). É importante notar que no evangelho de Marcos os milagres representam 31% do texto. Se Jesus não
tivesse feito milagres, como explicar o entusiasmo do
povo por ele, a fé dos apóstolos na sua divindade e a decisão dos Sacerdotes e fariseus em matá-lo?
O evangelista ainda afirma a divindade de Jesus
relatando que ele pregava e expulsava demônios (1,2326; 3,15; 6,7). Jesus expulsa os demônios indicando que
o Reino de Satanás está no fim (3,22-27). Ele perdoa os
pecados (2,9).
O evangelista Mateus que escreveu para os judeus
convertidos ao cristianismo, utiliza o Antigo Testamento
para demonstrar que Jesus é o Messias prometido pelos
profetas. Ele vê no Antigo Testamento as luzes projetadas sobre Cristo (1,22; 2,5; 2,17; 3,3; 8,17; 11,10;
13,14). Ao relatar a genealogia de Jesus Cristo ele utiliza
o vocábulo Cristo que significa Messias (1,1). Ele apresenta Cristo num contexto humano; Ele é Filho de Davi,
o Filho de Abraão, o que significa que ele é o herdeiro do
rei a quem foram feitas as promessas messiânicas (2Sm
7,1-16) e que realiza as promessas feitas a Abraão (Gn
12,3). Jesus é o Filho de Maria por obra do Espírito San45
to (1,18-25), o que significa que Jesus é a grande novidade, o novo Adão. José recebe a incumbência de dar o
nome de Jesus ao Filho de sua esposa, o que quer dizer
que José é o pai de Jesus segundo a lei da adoção que
em Israel conferia plenos e efeitos de paternidade.
O evangelista Mateus evidencia a majestade de Jesus, omitindo tudo que possa sugerir alguma limitação
decorrente de sua humanidade. Por exemplo, afirma que
Jesus faz os milagres que quer (13,58). Ressalta a atitude de profunda reverência do povo diante dele (8,2; 9,18;
15,26; 20,20), assim como também a profunda homenagem a ele (18,26). Ele utiliza também o verbo aproximarse que significa ter um acesso reverente, como por exemplo quem vai pedir-lhe um milagre, aproxima-se dele
(8,25; 9,1-20; 28;15-23; 4,3). Os discípulos aproximamse dele respeitosamente (8,25).
Há, portanto uma ênfase majestosa sobre a pessoa
de Jesus pois ele é um mestre que ensina uma justiça
melhor que a dos fariseu (5,8), ele é o taumaturgo que
realiza milagres (8,9). Ele é o legislador da vida comunitária, o sensor dos escribas e fariseus hipócritas... Para
Mateus Jesus é o Filho de Deus vivo, que tem a igualdade com o Pai (11,25-27). Jesus manda batizar “em nome
do Pai do filho e do Espírito Santo” (28,19). Pedro confessa que Ele é o Cristo, o Filho do Deus vivo (16,16;14,32).
O próprio Jesus responde ao Sumo sacerdote afirmando
que é o Cristo, o Filho de Deus. Jesus chama a Deus de
seu Pai (7,21; 12,50). Portanto para Mateus a divindade
de Jesus sobressai com evidência realçando assim a sua
transcendência.
O evangelista João se serve do vocábulo grego Lógos para designar o Cristo que tornado carne, habitou
no meio dos homens (1,1-14;1Jo 1,1s/ Ap 19,13). Para
João o Lógos se fez carne. Com a encarnação de Jesus,
Deus santificou e consagrou tudo o que era humano.
46
Através de sua natureza humana Jesus comunicou aos
homens os dons do Pai (6,54). Com a sua encarnação,
Deus se dignou viver a condição humana. Mas o evangelista também salienta o aspecto transcendental de Jesus
(12,3;16,28). Sua transcendência também é revelada
pelo evangelista no emprego da expressão “Eu sou”,
uma fórmula que faz alusão ao nome Javé, nome com
que Deus se revelou no Antigo Testamento (Ex 3,13),
indicando assim a igualdade de natureza divina que existe entre o Pai e o Filho (13,19; 8,24.28.58;
10,30.38;14,19;15,26). João enfatiza também a ação
salvífica de Jesus; ele veio ao mundo para livrar o homem do domínio de Satanás (12,31; 14,30,16).
O apóstolo Paulo tem uma cristologia muito elaborada, ele que escreveu suas cartas entre os anos 51 a
67. Para ele o Cristo existia antes de se manifestar aos
homens, ele era o próprio Deus igual ao Pai em dignidade. Ele existia na condição divina e se esvaziou, tornando-se servo semelhante aos homens, humilhando-se e
tornando-se obediente até a morte e morte de cruz (Fl
2,6-7). Portanto ele preexistia e possuía a natureza e a
glória de Deus Pai. Encarnando-se, despojou-se de sua
glória para assumir a condição humana e por isso Deus
o exaltou sendo reconhecido como o Senhor. Paulo atesta também a preexistência do Filho em Gl 4,4; 1Tm
3,16.
Outra designação que o apóstolo dá a Jesus é de
Cabeça do corpo que é a Igreja, (Cl 1,15-20). Para Paulo
Cristo é também o segundo Adão, pois assim como todos
morreram em Adão, todos hão de reviver em Cristo; ele é
o Pai da nova humanidade, (1Cor 15,22; Rm 5,12-21).
Cristo é também o enviado do Pai (Rm 8,3; Gl 4,4). É
também o Senhor (1Cor 8,6; Fl 2,9-11).
Na carta aos Hebreus, a qual não é de autoria de
Paulo mas de um seu discípulo, a imagem característica
47
de Cristo é de Sacerdote e Rei. Ele como Deus feito homem, se tornou o mediador da nova aliança; como Sumo
Sacerdote penetrou uma vez por todas no Santuário celeste e ofereceu um sacrifício não com sangue de novilhos ou bodes, mas com o seu próprio sangue, obtendo
para nós a redenção eterna. extinguiu assim a antiga
aliança e ofereceu um sacrifício não pelos próprios pecados mas pelos pecados dos homens derramando o seu
sangue, ou seja, dando a sua vida numa entrega total ao
Pai (9,1-28;10,5-10). Jesus com o seu sacrifício continua
a sua função de mediador e de intercessor em favor da
humanidade (7,27). Ele é o Sumo Sacerdote misericordioso e fiel, que deu a sua vida para a expiar os pecados
da humanidade (2,14-17). Jesus é também o Cristo Rei
e Sacerdote, com ele o sacerdócio do Antigo Testamento
ficou abolido (7,1-4.9-11).
O livro do Apocalipse escrito por João por volta do
ano 96 durante as perseguições quando os cristãos corriam perigo de esmorecer na fé, surge com seu estilo
próprio, cheio de símbolos e com um gênero literário já
conhecido pelos judeus após o exílio na Babilônia (587538 aC). Este descreve, a intervenção de Deus na história dos homens para julgar os bons dos maus e acabar
com iniqüidade sobre a terra. O livro descreve o Cristo
Jesus vencedor da morte, ressuscitado e reconhecido
como o Senhor da história (5,8-14). Portanto a imagem
do Cristo é exaltada como Kyrios. Outro título dado a
Cristo neste livro é de Pantokrátor, ou seja, TodoPoderoso (1,12-16). Neste trecho vem oferecida uma síntese dos principais títulos de Cristo sob a forma de símbolos; ele está vestido com uma túnica, a qual representa o seu sacerdócio (Ex 28,4); tem um cetro de ouro o
que significa a sua realeza; seus cabelos são brancos o
que significa a eternidade (Dn 7,9); seus olhos são o
chamejantes indicando a ciência divina; seus pés de
48
bronze, indicam a estabilidade; sua face como sol que
brilha, indica a majestade soberana (Dn 10,6); há uma
espada afiada, indicando a sua palavra rigorosa e eficaz
(Ap 19,15; 2,16).
Assim, o Apocalipse põe em relevo a transcendência divina de Jesus enfatizada também em outras passagens onde afirma que Ele é o Alfa e o Ômega, o Vivente (1,8; 22,13; 1,18). Ele está em pé de igualdade com o
Pai e por isso recebe a mesma adoração (5,13; 22,3;
3,21); Ele é ainda chamado Rei dos Reis (19,12;17,14;
11,15).
Marcos inicia o relato da vida de Jesus com o seu
batismo feito por João Batista. Depois do batismo, Jesus
no deserto foi tentado regressando em seguida em Nazaré para pregar o evangelho e anunciando: "O Reino de
Deus chegou"... Contemporaneamente forma um grupo
de discípulos e segue para Cafarnaum onde prega na
Sinagoga e começa expulsar demônios, curar leprosos,
ajunta-se com os pecadores, sendo que os fariseus o desaprovam e o criticam também por não observar o sábado. Entretanto, a sua fama se espalha por toda a Região.
Para Marcos o cerne de sua pregação esta caracterizada nas parábolas tiradas em grande parte da vida
rural. No seu grupo estão pescadores, zelotas, cobradores de impostos, judas o traidor. O povo no contato com
ele constatam sua força influindo até na natureza, acalmando a tempestade, multiplicando pães, curando
cegos... e o reconhece como um grande profeta, como o
Messias. Durante o seu ministério vai algumas vezes em
Jerusalém, e ali é aclamado como rei, expulsa os negociantes do Templo, atrai a atenção dos fariseu e dos saduceus, estes o perseguem e prendem. Na véspera de
sua paixão abençoa o pão. É interrogado e declara-se o
Messias, que é o rei dos Judeus, é espancado, amarrado
na cruz e pregado, morrendo. José de Arimatéia o sepul49
ta, as mulheres vão visitar seu túmulo e constatam sua
ressurreição. Após a ressurreição aparece aos discípulos e por fim foi elevado aos céus.
Para Marcos, os títulos de Cristo Messias e Filho de
Deus têm uma grande importância, pois ele é aquele
que realiza o Reino de Deus (Mc 1,15), por isso ensina
como alguém que tem autoridade (Mc 1,22), que tem
forças para curar.
Mateus liga Jesus ao Antigo Testamento e em seu
Evangelho encontramos a metade das palavras de Marcos, o que indica que ele usou Marcos como fonte. Para
Mateus Jesus teve uma lista invulgar de ancestrais, são
precisamente 28 gerações até Davi, mais 14 até Abraão.
Ele refere José como o pai nominal de Jesus. Jesus nasceu em Belém sob o domínio de Herodes, foi visitado por
Magos, Relata a matança dos inocentes por Herodes o
que levou José fugir para o Egito, voltando depois para
Nazaré (tudo isto coloca como cumprimento do Antigo
Testamento). Relata do batismo de Jesus no Jordão, a
sua tentação no deserto e em seguida o Sermão da Montanha, as curas, os exorcismos, as parábolas, a paixão,
morte e ressurreição de Jesus, finalizando com a missão
aos apóstolos para irem no mundo inteiro pregando o
Evangelho.
Lucas, inicia seu Evangelho afirmando que fez uma
investigação apurada para escrever seus escritos, os
quais são proclamações de natureza milagrosa de Jesus
e de sua autoridade. Coloca como primeiras figuras de
seu Evangelho o velho Zacarias e Isabel, enfatizando o
nascimento milagroso de João Batista, a concepção virginal de Maria, o Magnificat, o canto de Zacarias, o recenseamento, o nascimento em Belém, os pastores e Jesus aos 12 anos. O Sermão da Montanha é colocado
mais tarde e uma planície e o relato da paixão é seme50
lhante a Mateus e Lucas. Enfatiza também os discípulos de Emaús.
Como percebemos, o perfil cristológico apresentase claro nos quatro evangelhos canônicos escritos em
grego, os quais são a documentação mais vasta sobre
Jesus, sua atividade e seus ensinamentos. Estes foram
escritos entre os anos 70 – 100 dC. Os originais destes
não existem mais, somente cópias que datam de 100 a
150 anos de distância do texto escrito ou ditado pelo
autor. O papiro mais antigo que traz um fragmento de
João (Jo 18,31-33.7), o P 52, que descoberto no Egito,
remonta à metade do século II e outras folhas de papiro
dos evangelhos descobertos no Egito, remontam o século III. Os papiros ou fragmentos de papiros do NT são
uns 80. Para a validade da pesquisa histórica dos evangelhos é preciso estabelecer primeiramente a autoridade
do texto mediante o confronto das diversas edições reproduzidas em papiros ou códigos, e este trabalho já
tem mais de um século de estudos, confirmados pelas
descobertas de outros papiros. Depois, deve-se estabelecer o valor histórico das fontes em que se fundamentam os evangelhos, assim como o ambiente religioso e
cultural do judaísmo e dos testemunhos dos escritos
Paulinos. Vem depois a consideração o ponto de vista
literário e teológico do escritor (Redaktionsgeschichte).
8. FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA DA CRISTOLOGIA NO
NOVO TESTAMENTO
A teologia católica admite que o evangelho antes
de ser escrito foi pregado oralmente no início e que os
pregadores se preocuparam mais em estruturar a fé dos
ouvintes levando a eles a mensagem de salvação. Porém
não admite que tenha havido desvio da realidade histó51
rica ou o desinteresse pela figura real de Jesus, e por
isso, quem crê nos evangelhos não crê naquilo que os
antigos cristãos imaginavam simploriamente, mas na
autêntica mensagem de Jesus Cristo. A fundamentação
dessa afirmação podemos tê-la na seguintes considerações:
As primeiras comunidades fundadas foram guiadas e também visitadas pelos apóstolos os quais procuraram ser fiéis na transmissão e na conservação da
mensagem (At 1,15-26; 2,14-40; 3,12-26; 5,29-32; 1Cor
15,6). Os apóstolos foram testemunhas do que viram e
ouviram (At 1,8; 2,32; 3,15; 4,20;13,30; 1Cor 15,3-11).
Os pregadores tiveram a preocupação de transmitir fielmente a mensagem, (1Cor 11,2.23; Fl 2,14; 4,9; 1,12s).
A fé cristã é ligada a fatos históricos e objetivos,
de modo que não pode ser negada a sua autenticidade.
São Paulo afirma que se Jesus não tivesse ressuscitado,
seria vazia a pregação e ilusória a fé (1Cor 15,14).
Os apóstolos sempre procuraram distinguir entre
o mito e a Palavra da verdade (1Tm 1,3; 4,7; 2Tm 1,4; Pd
1,16). Além do mais, a transmissão da fé foi acompanhada pelo Espírito Santo prometido por Jesus (Jo
14,22).
A historicidade dos evangelhos é comprovada
também por fatos históricos, geográficos, políticos e religiosos da Palestina. Além disso os apóstolos dificilmente poderiam mentir naquele ambiente hostil onde a
mensagem era pregada. Soma-se a isso o fato de que os
evangelistas nunca poderiam ter inventado um Messias
do tipo de Jesus, pois não cabia na mente dos judeus a
idéia de um Deus feito homem (1Cor 1,23). Devemos
considerar também que os apóstolos, eram homens rudes da Galiléia e que teriam dificuldades em criar a figura de Jesus com uma dimensão tão grande seja intelectual, seja moral ou psicológica. Por fim, pregar a mensa52
gem de Jesus naquele ambiente não era fácil pois era
uma mensagem exigente que exigia a amor aos inimigos,
a renuncia, a proibição... E mesmo assim o povo se entusiasmava por aquilo que era pregado pelos apóstolos.
9. FONTES BÍBLICAS SOBRE JESUS
Com a Dei Verbum qualquer investigação sobre
um fato que pretendesse ser “histórico” não podia prescindir das Fontes, pois só esta na sua qualidade e
quantidade, legítima a pesquisa histórica, também para
Jesus, um personagem ultra – histórico. Daí a pergunta: Quais e quantas são as fontes históricas sobre Jesus? Qual o seu valor e alcance histórico? Diante disso
é preciso estabelecer um elenco ordenado dos documentos que hoje nos põem em contato com Jesus e a
ressonância destes no meio ambiente. O elenco inclui
documentos textuais literário – epigráficos e descobertas arqueológicas. Hoje os documentos são muito superiores há dois séculos quando iniciou-se a pesquisa
histórica sobre Jesus. Basta lembrar os textos de Qumrân e de Nag Hamanadi do Egito, assim como as escavações da Palestina, as quais deram aos estudiosos
informações que nem Orígines, ou Jerônimo possuíam,
embora dispusessem de bibliotecas excepcionais e de
contatos com as tradições vivas “in loco”.
Depois de 70 dC, ano da destruição de Jerusalém e do Templo, os judeus organizaram aos poucos o
centro religioso cultural de Jâmnia (Judéia) sob a direção de Johanan ben Zakkai, da escola de Hillel e depois
com Aqiba (135) e Judah (200).
No período chamado dos Tanaim (repetidores),
redigiu-se a “Mishna” onde recolheu-se os ensinamentos tradicionais de caráter moral e jurídico. No século
III – IV deu-se o período dos “Amoraim”, ou seja, dos
53
rabinos intérpretes da tradição da Mishna. No século V
– VI houve o empenho em comentar o Talmude babilônico por iniciativa dos rabinos chamados Saboraim
(raciocinadores) .
Hoje esta massa de tradições judaicas elaboradas em cinco séculos acha-se à disposição por escrito,
e é uma fonte preciosa para o conhecimento do ambiente cultural e religioso em que viveu Jesus. Mas o que
dizem sobre Jesus estes documentos? O que dizem os
historiadores coetâneos a Jesus a respeito dele e de suas atividades? Concordam ou divergem de outras fontes?
O Evangelista Mateus vem testemunhado por Papias, bispo de Cerápolis na Frígia. Homem fiel a tradição recolheu testemunhas sobre a primeira geração
cristã de pessoas que tiveram contatos com os apóstolos. Também Irineu, bispo de Lião e discípulo de Policarpo, que por sua vez tinha sido discípulo de João, afirma em seu livro contra heresias, escrito por volta do
ano 180 que Mateus viveu entre os hebreus, publicou o
seu evangelho em hebraico. Da mesma forma, Clemente
de Alexandria (+220), Orígines (+254) e Tertuliano (+215)
testemunharam a favor de Mateus. Portanto é antiquíssima a tradição de que Mateus escreveu o evangelho e
que seu modo de falar é palestinense (Reino de Céus)
invés de (Reino de Deus). Mateus fala de si próprio como
publicano, os outros falam dele como Levi.
O evangelista Marcos é também testemunhado por
Papias e Irineu. Clemente Alexandria atesta que o evangelho de Marcos foi escrito em Roma. Foi escrito para
pagãos e quando cita palavras em língua semítica dá a
tradução como por exemplo: “Talitá Cum” (Menina levanta-se) “Corbara” (Oferta Sagrada), “Effetá” (Abre-te), “Aba” (Pai).
54
A prova mais antiga do evangelho de Lucas encontra-se no fragmento muratoriano um documento descoberto em 1740 numa biblioteca de Milão por Ludovico
Muratori e faz parte de um catálogo de livros sagrados
composto pela Igreja de Roma em 180. Este documento
diz que Lucas era médico e que depois da Ascensão de
Jesus escreveu o evangelho que o tem como autor, servindo-se do que ouvira de São Paulo.
Por fim, o evangelista João tem a confirmação pelo
fragmento muratoriano, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Orígines...
Umas das provas da antigüidade dos evangelhos é a
grande quantidade de suas citações nos mais antigos
escritos cristãos. Frases inteiras existem nas cartas aos
Corintios de São Clemente Romano, terceiro Papa, escritas pelos anos 95. Na Didaquê, coletânea anônima de
normas morais e rituais da Igreja siríaca escrita nos ano
110-120. Quanto a João, há um fragmento de um antigo
papiro egípcio desse evangelho ( papiro de Ryiands) do
ano 130.
O que os evangelistas escreveram foi voltado para a
verdade e não tinham motivos para mentir. Estes eram
pessoas equilibradas e se tivessem mentido teriam pessoas para desmascará-los, já que tinham a oposição dos
judeus, foram perseguidos, presos e mal vistos. Nenhum dos apóstolos colocou como doutrina sua, o que
escreviam, pois eram homens simples e nem tinham facilidades para entender as idéias de Jesus.
Além destas referidas fontes fundamentadas nos
quatro evangelhos, dispomos igualmente das outras fontes denominadas fontes cristãs, as quais ensinam que
Jesus é descendente de Abraão (Gl 3,16), é da tribo de
Judas (Hb 7,14). Família de Davi ( Rm 1,3), nasceu de
melhor (Gl 4,4), ressuscitou (ICor 15,5), transfigurou-se
(II Pd 1,16-18), institui a Eucaristia (I Cor 11,23s), pa55
deceu sob Pilatos ( ITm 6,13), foi crucificado (II Cor 2,2)
(I Pd 2,24), subiu aos céus (Ef 4,10).
10.
AS FONTES JUDAICAS SOBRE JESUS
Jesus e os seus discípulos nasceram e viveram na
Palestina, em um ambiente cultural e religioso, contudo
pouco podemos tirar das fontes judaicas palestinenses
que seja válido para conhecer Jesus e sua obra. Isto não
significa que suas atividades e obras não sejam mencionadas na biblioteca tradicional judaica, o Talmude, ou
em outros escritos judaicos mais tardios (sec IV – V),
mas que estas não representam tradições autônomas
relativas àquelas em que se colhem nos escritos canônicos ou apócrifos, como afirmou J. Maier em sua obra
“Jesus de Nazaré na tradição Talmúdica” (1978). Maier
afirma que o nome de Jesus foi acrescentado e adaptado
no século IV, com um resquício da tradição arcaica paralela aos evangelhos como no caso da condenação e
execução de Jesus; portanto é preciso precaução.
No “Diálogo de Trifon” (151 – 161) Justino acusa
os judeus de terem rejeitado Jesus, o Messias e teremse opostos à difusão do evangelho acusando o cristianismo de “heresia ímpia e criminosa”, cuja origem deve a
um certo Jesus “Mago e sedutor do povo”. Este testemunho de Justino tem uma grande afinidade com o evangelho de Mateus, sobretudo quando lembra o episódio
do roubo do corpo de Jesus do sepulcro. É um documento de caráter polêmico e não fonte autônoma de
pesquisa histórica.
Obra polêmica é de Celso “Discurso Verdadeiro”
(178) onde anota pormenores sobre o nascimento de Jesus, e segundo esta obra Jesus teria inventado o seu
nascimento de uma virgem, mas nasceu de uma aldeã
56
pobre da Judéia que acusada de adultério fora repudiada pelo marido, um carpinteiro de profissão. Adianta
ainda que a mãe de Jesus tinha ficado grávida de um
soldado de nome Panthera. A história do soldado Panthera pode derivar de uma deturpação intencional do
autor, com a finalidade polêmica no ambiente judaico da
diáspora, onde se ouvia falar do nascimento de Jesus de
uma “Parthenos”(Virgem).
Portanto, pouco nada se pode deduzir das fontes
judaicas diretas; o Talmude, ou indiretas com as citações de autores cristãos sobre a obra histórica de Jesus.
Os autores judeus só se interessaram de Jesus depois
que o cristianismo estava cristalizado no Império Romano e não se podia ignorá-lo, e por isso quando ele foi
incluído no Talmude não se tinha mais nenhuma lembrança precisa e autônoma a seu respeito.
Um dos principais testemunhos sobre Jesus nos
vem de Flávio Josefo nascido por volta dos anos 37 – 38
aC na Palestina de uma família sacerdotal. Estudou a
“Torah”, aderiu ao movimento dos fariseus interessandose em Jerusalém pela política. Em 64 foi à Roma e voltando em 66, acusado pelo exército de Vespasiano, entregou-se aos Romanos. Aderiu a Tito, tornou-se livre e
assistiu os acontecimentos da guerra que destruiu Jerusalém, tornou-se cidadão Romano e adotou o nome de
Flavius e viveu em Roma as expensas da família imperial.
O autor testemunha Jesus em sua obra: “Antigüidades judaicas”. Narra os incidentes na Palestina sucedidas no tempo de Pilatos, os protestos dos judeus contra a introdução em Jerusalém das insígnias militares
que ostentavam a figura do Imperador, a sublevação dos
judeus quando souberam do projeto de Pilatos de construir um Aqueduto para Jerusalém à custa do tesouro
do Templo. Fala de Jesus como homem sábio, que fazia
57
coisas extraordinárias, que arrastou para si muitos judeus e gregos e era chamado de Messias. Condenando à
morte de cruz por Pilatos ao 3º dia, apareceu vivo. Estes
relatos de Flávio Josefo são citados por Eusébio de Cesaréia (sec. IV) na “História Eclesiastica” e por Jerônimo
em “De viris ilustríbus” e por muitos outros.
Flávio Josefo narra ainda que Pilatos ordenou a
repressão violenta dos samaritanos em conseqüência de
uma sublevação no Monte Garizim, e devido a isso Pilatos teve que ir à Roma prestar contas e foi deposto de
seu cargo de governador da Judéia.
Portanto, o “tetesmunho Flaviano”, sobretudo sobre Jesus é aceitável, concorda substancialmente com
os dados da tradição cristã, e suas reticências sobre Jesus e o início do cristianismo é compreensível em vista
da situação política contra os judeus e porque quando
ele escreveu “Antigüidades”, no 13º ano de Reinado de
Domiciano, a atmosfera política não era favorável ao
cristianismo que era considerado como suspeito.
Além de Flávio Josefo tem-se também o testemunho de Tácito um historiador não judeu, escreveu “Annales” (115 – 117 dC), onde relata o incêndio que Nero
provocou em Roma em julho de 64, para culpar os cristãos aos quais ele odiava. “Cristo, fundador da seita, cujo nome haviam adotado, fora justiçado pelo procurador
Pôncio Pilatos, sob o Reino de Tibério”.
Ele relata da expansão do cristianismo não só na
Judéia, mas também em Roma, e os suplícios dados aos
cristãos que “embora culpados e merecedores dos mais
graves castigos suscitavam compaixão, como gente sacrificada, não só ao bem público, mas à crueldade de
um só”.
A descrição de Tácito reflete a mentalidade com
que os cidadãos de Roma concebiam os cristãos que olhavam com suspeita as seitas estrangeiras.
58
Também Thallos historiador samaritano, que escreveu suas histórias em Roma na metade do século I e
relata indiretamente a pessoa de Jesus. Igualmente Suetônio menciona o nome Cristo em sua obra “Vidas dos
Césares”, afirmando que Claúdio expulsara os judeus de
Roma por causa de Cristo, o que corresponde a Atos dos
Apóstolos 18,2. Suetônio escreveu por volta do ano 120,
há 70 anos de distância, por isso não teve interesse de
precisar quem era esse “Cristo”.
Plínio, o moço, governador da Bitínia escreveu
uma carta por volta do ano 110 a Trajano para pedirlhe instruções a respeito das medidas a tomar contra
os cristãos denunciados nos tribunais é um testemunho a existência de Jesus Cristo. Ele via o cristianismo
como uma das tantas superstições que dentre as práticas religiosas tinha o costume de reunirem-se “num dia
fixo para cantar um hino a Cristo, como se fosse deus”.
O testemunho de Mara bar Serapion datado do
século I, escrito em língua Siríaca, refere a um “Sábio”
que os “judeus mataram e por isso foram despojados do
próprio Reino”, e desse rei sábio diz-se que sobrevive
graças “às novas leis por ele promulgadas”.
Portanto, destes historiadores deduzimos que falam da pessoa e obra de Jesus telegraficamente, ou seja, que foi fundador de um movimento que a partir do
século I está presente em Roma e Províncias, era conhecido com o apelativo de Cristo e um judeu condenado à cruz na Palestina pelo governador Pôncio Pilatos
no tempo de Tibério. Aos olhos destes escritores a obra
de Cristo só interessa como movimento religioso que
para os romanos era uma superstição, como era todas
as outras religiões não oficiais. Seus adeptos eram judeus ou estrangeiros mais ou menos detestáveis ou
suspeitos. Estas notícias são preciosas se confrontadas
59
com as fontes cristãs, onde revelam-se as concordâncias.
1. Fontes cristãs extra- evangélicas
Pode parecer paradoxal, mas a mais antiga documentação cristã, as cartas de Paulo, é a mais sóbria e
reticente quanto aos acontecimentos históricos e aos
ensinamentos de Jesus. Bornkann, disse que “hoje sabemos com toda a probabilidade muito mais sobre o Jesus histórico do que Paulo”, é que Paulo considera Jesus numa perspectiva que ultrapassa a vicissitude histórica, pois ele mesmo afirmou: “Embora tenhamos conhecido Jesus Cristo segundo a carne, agora não o conhecemos mais assim” (II Cor 5,16), ou seja, para Paulo
os critérios de avaliação não são mais os histórico humano ou carnais, mas a fé em Jesus crucificado e ressuscitado; esta é a metodologia Paulina, o que não significa que o anúncio de Paulo não seja ancorado solidamente na pessoa, obra e ensinamentos de Jesus.
Paulo que conheceu Jesus através dos formulários tradicionais da comunidade primitiva (I Cor 7,10 ;
9,14; 11,23; 15,3; I Tes 4,15), ele atesta que Jesus é
judeu, descendente de Davi, viveu na Palestina, teve
irmãos (Tiago) reuniu os doze, dentre os quais Pedro,
com o título de Céfas e João, comeu a Páscoa com os
discípulos na tarde que antecedeu a sua morte (I Cor
11,23-25), foi entregue pelos chefes dos judeus ( I Ts
2,15) com a autorização da autoridade Romana (I Cor
1,13.23; Gl 3,1.13). Morreu, foi sepultado, ressuscitou
(I Cor 15,3-7). Na verdade, Paulo não refere os milagres
de Jesus, à sua atividade na Galiléia, às suas parábolas. Seus escritos são o eco da catequese cristã que se
encontra nos evangelhos escritos 20-30 anos mais tarde (Rm 12,14-15.17; Mt 5,18-48; Gl 5, 17.43).
60
11. O QUE DIZEM OUTROS DOCUMENTOS SOBRE
JESUS
Existem alguns documentos denominados apócrifos, os quais não têm valor histórico ou científico. Um
deles escrito por Publius Lentulus, governador da Judéia, afirma que Jesus era de uma nobre estirpe e tinha
uma aparência a de beleza fora do comum. Sua fronte
era lisa e bela, sua barba era curta e espessa. Era amado por todos, tinha um estilo de vida austero mas alegre, sua conversação era muito amável e mantinha atitudes discretas. Sua aparência era semelhante à de sua
mãe; era considerado um prodígio em sabedoria por todos os habitantes de Jerusalém. Nunca estudou, no entanto conhecia toda ciência. Os hebreus diziam que jamais ouviram conselhos semelhantes, assim como instruções tão elevadas, que ele ensinava com autoridade.
Os judeus também o consideravam divino. Ele somente
praticava o bem e todos reconheciam que dele só recebiam curas e benefícios.
Era um grande profeta e seus discípulos o chamavam Filho de Deus. Sua sabedoria superava a dos maiores gênios; era amável, manso e fascinante. Ninguém
jamais o ouviu rir, muitos porém o viram chorar.
Uma outra cópia tida como autêntica sobre o processo de Cristo e que se encontra no museu da Espanha
coloca na boca de Pilatos estas palavras: “EU, PÔNCIO
PILATOS, aqui presidente do IMPÉRIO ROMANO dentro
do palácio e arqui-residência, julgo, condeno e sentencio à
morte Jesus chamado pela plebe CRISTO NAZARENO e
Galileo de nação, homem sedicioso, contra a lei mosaica,
contrário ao grande imperador Tibério César...”seja amarrado e açoitado, e que seja vestido de púrpura e coroado
de alguns espinhos, com a própria cruz aos ombros para
61
que sirva de exemplo a todos malfeitores, e que, juntamente com ele, sejam conduzidos dois ladrões homicidas... E que se conduza Jesus ao monte público da justiça, chamado calvário, onde, crucificado e morto, ficará o
seu corpo na cruz, como espetáculo para todos malfeitores, e que sobre a cruz se ponha, em diversas línguas,
este título: Jesus Nazarenus rex judaeorum...
Onde esteve Jesus dos 12 aos 30 anos de idade? O
evangelho diz que Jesus nos doze anos esteve no templo
de Jerusalém entre os doutores (Lc 2,41) depois não diz
mais nada sobre Ele até a início de sua vida pública
quando tinha aproximadamente 30 anos de idade (Lc
3,23). Alguns procuraram dar explicações conjeturais
para este espaço de tempo da vida de Jesus. Por exemplo a sociedade Rosa Cruz diz que Jesus e estudou com
os religiosos da escola do monte Carmelo e quando tinha
14 anos foi levado para a Índia onde permaneceu no
mosteiro budista; dali foi levado para o vale do GANGES
onde aprendeu sistema terapêutico dos hindus, depois
passou para Pérsia e em seguida para a Mesopotânia.
Continuou a sua formação na Grécia sempre guiado por
magos sendo que depois dirigiu-se para o Egito onde estudou em Alexandria e Heliópolis. Finalmente recebeu o
título de Mestre indo para a Palestina onde pregou o evangelho.
Para o Esoterismo neste período da vida Jesus foi
para a Índia, depois para o Egito e por fim para Pérsia
onde estudou. Visto que ele combatia a distensão de
castas na Índia foi perseguido sendo considerado um
agitador rebelde, um socialista perigoso e um cidadão
indesejável. Depois Jesus voltou para a Israel onde começou a pregar o evangelho.
Para as fontes Teosóficas, Jesus neste período de
sua vida foi enviado para um mosteiro essênio no deser62
to da Judéia. Ali estudou e depois foi para o Egito e por
fim João Batista o batizou tornando-se um novo avatar.
Portanto sobre a chamada “vida oculta” de Jesus,
os evangelistas não nos relatam nada. Depois de completar seus doze anos até quando se apresenta publicamente para pregar aos que nele crêem e para formar a
comunidade dos 12 apóstolos, a opinião da teologia que
ele tenha vivido em Nazaré e trabalhado na carpintaria
com José. Entretanto alguns afirmam, sem nenhum
fundamento, que ele teria viajado fora da Palestina tendo ao Egito e até mesmo à Índia. A possibilidade de que
Jesus tenha viajado o fora da Palestina é uma hipótese
que não tem provas históricas. Alguns chegam a afirmar
que Jesus teria inclusive constituído família e tido filhos
na Índia. Idéia fantasiosa, assim como aquela que diz
que Jesus não teria vindo a este mundo em carne e osso, mas que foi uma espécie de extraterrestre que desceu à terra numa nave espacial, inclusive os defensores
desta idéia servem-se de alguns exemplos da arte como
a do famoso ícone chamado “a ressurreição de Cristo”, o
qual encontra-se em Moscou, para demonstrarem suas
convicções, onde nesta obra de arte Jesus aparece num
receptáculo que lembra uma espaçonave oval apoiada
no chão e do seu exterior sai fumaça espessas que oculta os pés dos anjos. Também o Pantokrátor da fachada
da Igreja Moarbes de Ojeda, em Palência, Espanha, representa Jesus Cristo dentro de uma cápsula espacial.
Para os adeptos da teoria do Cristo extraterrestre, quando Jesus ressuscitou ele subiu para os céus numa nave
espacial e a sua segunda vinda acontecerá em uma outra nave espacial.
Outros ainda chegam a admitir que Jesus é fruto
da mitificação que os evangelistas fizeram dele. Um dos
defensores desta hipótese é o racionalista Raimarus, o
qual escreveu o livro intitulado “Da pretensão de Jesus e
63
seus discípulos” publicado em 1778, onde sustenta que
Jesus foi um messias político que morreu na cruz como
um fracassado e seus discípulos acreditaram que ele era
Messias e por isso roubaram o seu corpo e criaram o
mito da ressurreição anunciando que ele voltaria. Nesta
mesma linha, Strauss um outro autor de uma obra intitulada “Vida de Jesus”, publicada em 1835, afirma que
os apóstolos não tinham necessidade de criar o mito de
Jesus para evitar a sensação de fracasso e que portanto
eles agiram de boa fé e acreditaram na sua ressurreição
e na suas aparições, porém o mito surgiu da criação da
devoção popular transformando Jesus histórico num
personagem modelado pela fé das diversas comunidades
cristãs. Portanto Jesus foi idealizado e mitificado pela fé.
Foram encontrados entre 1947 e 1956 em 11 cavernas de Qunram e nelas 800 documentos, os quais já
se encontram quase todos traduzidos, faltando contudo
alguns papiros que constituem 15 mil fragmentos, alguns menores que uma unha. Os manuscritos de Qumram são as mais velhas cópias que existem do Antigo
Testamento. Estes foram escondidos pelos Essênios
com medo dos Romanos, em cavernas e envolvidos em
panos de linho e colocados dentro de vasos. O mais antigo data de 152 aC e o mais recente do ano 69. Cientistas e filósofos que trabalharam neles e já descobriram por exemplo: que os Essênios realizavam o batismo na água, que tinham a idéia do Messias e a oposição à aristocracia sacerdotal do Templo; estas eram idéias dos Essênios e que os cristãos absorveram. Não
encontraram nada sobre Jesus nestes pergaminhos,
por isso, Puechdiz que “Jesus é um pouco a imagem do
mundo onde ele nasceu”.
Contudo estes documentos mencionam um fa-
moso mestre de justiça que praticou a pobreza, a
penitência, a humildade, o amor ao próximo e que
64
era considerado o Messias. Ele foi objeto de hostilidades do sacerdotes do partido dos Saduceus e foi
condenado ao suplício.
Podemos dizer que todas estas explicações sobre
os anos obscuros de Jesus acima mencionadas não têm
fundamento exegético- bíblico; estas são tendências ocultistas ou teosófista com sabor de fantasia e não de
raciocínio científico. Mas por que os evangelhos ignoram
este espaço da vida de Jesus? Por que os evangelistas
nunca tencionaram escrever uma vida de Jesus com um
caráter de biografia? Porque eles procuraram fazer eco
escrito à pregação moral dos apóstolos a respeito de Jesus e anunciado em primeiro lugar a sua paixão, morte
e ressurreição como evento salvífico para o homem. Depois porque os evangelistas foram levados a narrar as
grandes linhas da doutrina ensinadas por Cristo durante os três anos de sua vida pública e se não relataram
nada entre os 12 até os 30 anos de sua existência não é
porque ignoravam o que Jesus tinha feito, mas porque
isso não interessava diretamente na finalidade catequética e pastoral dos apóstolos. Portanto pode-se dizer que
Jesus viveu este período de sua vida em Nazaré trabalhando na carpintaria com José.
É importante afirmar que a expansão do cristianismo e portanto do nome de Cristo, deve-se muito a
Saulo de Tarso (5 aC – 64dC), cidadão romano e culto,
o qual à revelia de Tiago, irmão de Jesus e chefe dos
judeus cristãos em Jerusalém, pensou o cristianismo
como uma reforma religiosa do “povo eleito”, batizando
judeus e gentios. Durante dezesseis anos ele percorreu
20 mil Km a pé fundando comunidades na Síria, na Ásia, na Grécia e em Roma e escreveu catorze cartas à
estas comunidades. No ano de 56 foi acusado de introduzir os gentios no Templo e no ano 60 foi à Roma encontrar-se com Pedro. Em 64 houve o incêndio de Ro65
ma, encaminhado por Nero para destruir a cidade e os
cristãos foram acusados, perseguidos, torturados. Pedro foi crucificado e Paulo como cidadão romano, teve o
privilégio de ser decapitado. A esta altura da história
havia mais cristãos fora da Palestina do que nela e o
cristianismo tinha se inculturado conquistando o mundo.
12. AS ORIGENS E O GÊNERO LITERÁRIO DOS EVANGELHOS
Os sinópticos foram escritos 30-40 anos depois de
Cristo e o evangelho de João 70 anos depois de Cristo.
Os apóstolos na evangelização formaram uma coletânea
de lembranças sobre Jesus em forma de catequese oral, como havia no judaísmo. Os apóstolos não tiveram
a preocupação de compilar uma vida de Jesus ordenada
e com detalhes, mas preocuparam-se principalmente em
transmitir as palavras e os gestos dele para as comunidades cristãs. Estas recordações que depois formaram
blocos, foram unificadas pelos evangelistas conforme
suas visões, o que explica as divergências de datas e lugares. Mas as imprecisões não são só quanto as datas e
os lugares, mas também quanto ao conteúdo, o qual se
explica tendo em vista a situação concreta em que foi
formada a tradição oral, ou seja, as situações vitais. As
recordações contidas nos evangelhos foram transmitidas
pela Igreja quando esta estava empenhada em três atividades: No primeiro anúncio da Fé aos cristãos (Kerigma), no aprofundamento da Fé (catequese) e na oração
comunitária (liturgia). Em outras palavras: quando a
Igreja vivia a dimensão da missão, da catequese e do
culto. Por isso a redação dos evangelhos receberam influência destes três níveis no empenho de sua colaboração. Além disso, cada evangelista teve uma sensibilidade
66
específica, a redigir o seu evangelho, por exemplo Mateus dirigindo-se aos hebreus, quis provar que o Cristo é
o Messias e mostrou que tudo aconteceu para que se
cumprisse a profecia, por isso lembrou de particulares,
tais como: o preço da traição (26,15), o vinagre na cruz
como cumprimento do Salmo 69 (27-34), Jesus entrando em Jerusalém numa jumenta (Mateus 21,7) para
cumprir Zacarias 9,9, etc. Já Marcos escrevendo aos
romanos, homens de ação, sensíveis à força, enfocou
mais a força de Jesus nos milagres. Enquanto que Lucas escrevendo para os pagãos, apresentou o Cristo como misericordioso (Lc 15), cheio de perdão pelos pecadores. Basta lembrar o episódio da pecadora pública (7,
36-50), de Zaqueu (19,1-10), o bom Ladrão (23, 4043)...
Claro que a visão teológica de cada evangelista não
esclarece tudo sobre a diversidade nos evangelhos, por
isso precisamos ver agora os "Gêneros literários" dos
mesmos.
Sabemos que duas pessoas de civilizações diferentes podem reagir de modo diferente diante de uma situação. Por exemplo, o Hindú ficará com fome, mas não
comerá carne de vaca, considerado para ele um animal
sagrado. Já para um ocidental isto é absurdo.
Gênero literário é um determinado modo de escrever próprio de um ambiente. Existem vários tipos de linguagem; política, jornalística, acadêmica, etc. Portanto,
para se compreender o sentido exato de uma afirmação,
é preciso compreender a linguagem a que pertence. A
Bíblia é inspirada, não ditada, mas o autor sagrado escreveu de acordo com a sua mentalidade, sua cultura e
os gêneros literários de seu tempo e de seu ambiente. A
Bíblia se exprime por linguagem humana. Deus "falando
por meio do homem, fala à maneira dos homens." Ora os
evangelhos por serem antigos, usaram gêneros literários
67
que não nos são familiares hoje. Por exemplo: o gênero
apocalíptico apresentado em (Marcos 13, Lucas 21,5-33,
Mateus 24, 1-44) procura exprimir a presença de Deus
com termos abstratos, através de acontecimentos sobrenaturais (voz, trovão, nuvem). Este é um procedimento
literário judaico, com artifícios literários.
Os evangelhos nasceram de uma catequese primitiva para convencer e converter, por isso não podemos
limitar nossa confiança neles, somente baseando-os na
pura crônica, ou no relatório oficial. Até a história moderna, escrita com o mais austero rigor científico, sempre envolve elementos subjetivos e pessoal. Por exemplo
uma vida de Napoleão escrita por um homem com interesse militar, tem ótica diferente daquele que tenha um
interesse político ou econômico, isto porque em toda
história está presente a problemática e a personalidade
de quem escreve, conferindo-lhe uma tonalidade especial, sem com isso falsear a realidade.
Sabendo que foram as comunidades cristãs que deram forma à tradição oral da qual os evangelistas se
serviram, é possível ainda falar de historicidade dos evangelhos? Já vimos que as imprecisões não significam
que os evangelhos sejam lendários, além do mais, os
dados da geografia, história, arqueologia são claros indícios de sua credibilidade. Podemos falar então de historicidade essencial dos evangelhos e esta historicidade
essencial é corroborada como dizem os teólogos pela
"concordância discorde" que existe entre elas sinalada
pela antigüidade de seu conteúdo e apego à Tradição da
Igreja. Sabemos que os evangelistas nem sempre são
concordes em referir as palavras e atos de Jesus, o que
significa que eles não copiaram um do outro nem atingiram partes comuns, mas apesar disto conservam uma
profunda unidade.
68
Além do conteúdo, também o ambiente em que
formaram os evangelhos depõe a favor de sua historicidade, e neste sentido a Igreja Primitiva foi super apegada à Tradição. O evangelista Lucas salienta que (1,1-4)
antes de escrever fez uma acurada investigação, portanto não escreveu sem ter fundamento; de fato o primeiro
discurso sobre a ressurreição de Jesus, tem os apóstolos como testemunhas, (At 2,32; 3,15). Quando tratou
de escolher o sucessor de Judas, Pedro propôs um que
tinha acompanhado os apóstolos desde o tempo de Jesus ( At 1,21-22 ). A condição para ser apóstolo era ter
testemunhado a vida de Jesus (At 10,39-41). Também
Paulo, que não foi testemunha ocular, ensina que
transmite o que recebeu (I Cor 11,23) e os doze apóstolos foram as primeiras testemunhas da ressurreição
(At. 1,8-22).
Em conclusão podemos afirmar que embora os evangelhos não sejam livros de história mas de catequese, estes transmitiram o verdadeiro pensamento de Cristo, os traços de sua personalidade e os acontecimentos
de sua vida, Por meio deles podemos entrar em contato
com o Cristo histórico ao menos no que se refere ao essencial.
a) A linguagem do meio eclesial primitivo
Mesmo admitindo a continuidade da tradição entre
a comunidade pré e pós-pascal, não está provado que o
meio ambiente eclesial com o tempo manteve-se fidelidade a Jesus. Mesmo estabelecendo que os evangelistas
foram substancialmente fiéis a suas fontes, apesar da
liberdade redacional, temos de reconhecer por trás das
fontes escritas sempre uma mesma e única fonte que foi
o meio eclesial no qual formou e desenvolveu a tradição
evangélica. Qual é a qualidade do meio eclesial? A
Formgeschichte estudá-la submetida ao meio sociológico
69
(sitz im leben externo) da Igreja primitiva em suas atividades litúrgicas, missionária e catequética, mas, o mais
importante é conhecer suas atitudes interiores, assim
como o espírito e a mentalidade que inspirou o seu
comportamento exterior.
Trata-se de perceber quais as reflexões espontâneas
da comunidade primitiva a respeito de Jesus e de sua
palavra e a estrutura psicológica e mental desta comunidade. Isto é possível pelas vias da semântica, partindo
dos vocábulos freqüentes que cobrem todo o horizonte
da Igreja cristã, e para isto serve-se dos textos que descrevem o meio eclesial mais primitivo, a saber, as cartas
de Paulo e os Atos dos Apóstolos. Uma comunidade ou
um indivíduo se revela pela sua linguagem, no emprego
de certos textos. Precisa saber se a mentalidade revelada
em tais vocábulos usados com freqüência vai no sentido
de fidelidade a Jesus ou foi uma fabulação criadora.
Conseguindo por meio destes vocábulos privilegiados determina o Sitz im leben interno da comunidade,
estaremos de posse de um critério importante para apreciar a qualidade do meio eclesial onde se formou e
desenvolveu a tradição. A fidelidade dos evangelistas à
Igreja tem por garantir a mesma fidelidade da Igreja a
Jesus.
Entre os vocábulos distinguimos três grupos: os
que ligam-se à idéia da tradição de receber e transmitir; os que dizem respeito aos colaboradores imediatos
de Jesus, ou seja, testemunha, apóstolo, serviço; e os
que dizem respeito sobre a atividade mais vasta dos pregadores do Evangelho (ensinar, proclamar, evangelizar).
Aqui precisa uma investigação semântica precisa.
O verbo transmitir em Paulo é repetido cento e vinte vezes em sentido diversos e a palavra tradição em
sentido de transmissão, doze vezes. Paulo era fariseu fiel
à Torá e declara que submeteu o seu Evangelho à Igreja
70
de Jerusalém para ser confirmada a sua autenticidade
(Gl 2,1-6). Ele estabelece uma correspondência estrita
entre receber e transmitir (1Cor 15,3; 11,23) e fala que
sua exortação é como se Deus mesmo exortasse por
meio de nós (2Cor 5,20). Pede para ser fiel às tradições
que aprenderam (2Ts 2,15; 3,6) e para pôr em prática o
que receberam dele (Fl 4,9; 1Cor 11,2; Col 2,6-7). Para
Paulo abandonar a tradição do evangelho é o mesmo que
abandonar o Cristo. Não se trata para ele de criar ou de
inovar, mas de transmitir.
Na tradição rabínica a Torá escrita tinha fidelidade
na retransmissão devido as escolas de copistas profissionais, sempre em treinamento e das escolas elementares onde se ensinava a ler e decorar sem alterar o texto.
Para o transmissão da lei oral, existiam escolas, além
dos tannaim que eram especialistas da memorização,
bibliotecas vivas. Estes memorizavam sob a direção de
um mestre repetindo indefinidamente, e para conservar
o texto inalterado como “ipsissima verba”, faziam resumos, paralelismos, palavras chaves e a repetição; tinham a lei sempre nos lábios. Sabemos que também na
origem dos evangelhos existiu uma tradição oral que se
manteve mesmo depois da fixação por escrito dos evangelhos.
Em suma, podemos afirmar que o Cristianismo não
começou com a pregação da Igreja, mas com Jesus e a
tradição de seus ditos e gestos. É a Boa Nova trazida
por ele. O próprio Jesus não poderia ser compreendido
sem a tradição Judaica. Ele desde o começo é considerado mestre e para isso usou os métodos de ensino da
época, levando os discípulos a memorizar, o que contribuiu para garantir a transmissão fiel de seus ditos e
gestos. Os doze ficaram em Jerusalém por 15 ou 20 anos durante a formação da tradição evangélica e os fiéis eram assíduos ao ensinamentos dos apóstolos (At. 2,
71
42). A tradição desenvolveu pela forma do Midrash a
interpretação da escritura à luz do ensinamento de Jesus e da experiência eclesial nova e sob forma das questões doutrinais e problemas na comunidade, assim como das respostas tiradas da tradição de Jesus e das Escrituras. Assim os Logia de Jesus são evocados e repetindo como se fazia nos círculos rabínicos. A Igreja atribuiu a Jesus como mestre uma autoridade superior a
dos rabinos.
Outras civilizações tiveram suas tradições transmitidas oralmente. É o caso dos Vedas, livros sagrados do
induismo (1000-2000 AC), onde a fidelidade é assegurada por severos mestres e estudantes. Estes livros foram
transmitidos oralmente graças à técnicas rigorosas como a metrificação e contagem das palavras, repetição
etc. Também a tradição oral africana particularmente no
Congo foram transmitidos com fidelidade.
Testemunhar caracteriza a atividade apostólica após a ressurreição. Estes foram escolhidos por Deus
como profetas (At 1,26). Eles viram e ouviram o Cristo
(At 4,20) e foram-lhe íntimo (At 1,21-22). Por isso possuíram uma experiência direta de sua pessoa e dos seus
ensinamentos. Eles receberam a missão de Cristo para
testemunhar (At.10,41). Eles anunciaram a palavra com
segurança, isto é, com coragem e sem medo (1Jo 1,1-3).
Para suceder Judas foi preciso que Matias fosse companheiro dos apóstolos (At 1,26). Os apóstolos foram testemunhas oculares e auriculares desde o batismo no
Jordão até a ressurreição (At 4, 21-26; 10,39). Foi Jesus quem mandou que os apóstolos fossem testemunhas. (At 10,42-43; 2, 32-33).
Paulo se apresenta como "apóstolo do Cristo" (1Ts
2,7), isto é, como embaixador, como aquele que exerce
uma missão em nome de alguém que tem autoridade.
Ele é encarregado de anunciar o evangelho (1Ts 4,4;
72
2,9), é embaixador (2Cor 5,20). Para Lucas os apóstolos
não são embaixadores, mas testemunhas qualificadas
da ressurreição. Paulo se apresenta como diákonos do
evangelho (Cl 1,15), como servidor de Cristo (2Cor
11,23). Diakonia é essencialmente ministério da palavra.
Ele, em Atos dos Apóstolos 6,4, fala também da diakonia
tou logou. Dai uma das funções principais dos apóstolos
é estar a serviço da palavra (At 6,2-4), e estar à serviço
é testemunhar tudo sobre Jesus desde o batismo até a
Ressurreição.
b) Obstáculos à revelação do mistério de Jesus
Devemos admitir que alguns obstáculos dificultam
a revelação do mistério de Jesus e dentre estes salientamos os seguintes: A mentalidade religiosa de então
que considerava como essencial a obediência à lei de
Deus promulgada por Moisés, e pouco inclinada a refletir sobre Deus e sua natureza; A mentalidade religiosa
moldada no embate com a idolatria e para a qual tudo
que não coincidisse com Dt 6,4 era idolatria;
A mentalidade religiosa estruturada pelo pensamento escatológico apocalíptico para a qual o fim de
tudo era eminente. Em vista destes pontos a revelação
do mistério de Jesus devia ser progressiva e passada
pelo filtro da mentalidade dos discípulos. Além do mais,
Jesus embora sendo Deus, não se identificava com
Deus e também confessava o monoteísmo da fé de Israel
(Dt 6,4; Mc 12,29). Por isso, numa primeira etapa Jesus,
de sua pessoa e de seus ensinamentos revelará não tudo
aquilo que poderia ser compreendido, mas tudo o que
podia ser aceito e assimilado sem erros, considerando a
mentalidade de então. Num segundo estágio ele formará
o grupo de discípulos, os quais atraídos pela sua personalidade, se encontrarão num pré-julgamento favorável
que permitirá aceitar algum ensinamento que lhes pare73
ça chocante e que ainda não compreendam. Num terceiro estágio selecionará dentro desse grupo dos discípulos
alguns privilegiados aos quais poderá confiar uma doutrina mais elevada.
Podemos portanto, precisar que Jesus primeiramente procurara ensinar publicamente através de suas
pregações e já aqui encontrou resistência sendo acusado
de blasfemador pelo povo porque se fazia Deus (Mt
26,65; Mc 14,64; Lc 22,71). A blasfêmia consistia em
fazer-se como Deus, e em perdoar os pecados (Mc 2,7;
Mt 9,3). Na literatura bíblica os reis pagãos eram acusados de usurpar as prerrogativas de Deus (Ez 28,2; 2Mc
9,12), o que caracterizava algo muito sério. Se com isso
não bastasse, Jesus coloca-se acima de Moisés com o
direito de modificar a própria lei (Mt 5,21-27.31.33-38).
Ele utiliza a expressão: “Eu porém vos digo...”, a qual
não tem nenhum paralelo no AT. Jesus não afirma como
Moisés em Dt 6,1 “são estes os mandamentos, as leis e
as ordens de Javé...” Nem como os profetas: “Assim fala
Javé...”, mas dispõe da lei e da tradição, interpretandoa, corrigindo-a, igualando-se a Deus. Ele exige que o
prefira em relação a seus pais e aos próprios filhos (Mt
10,37).
Portanto, quando Jesus falava a um vasto auditório
manifestava que tinha com Deus um vínculo de proximidade, superior aos outros enviados e que dispunha de
um poder que pertence a Deus como o de perdoar os
pecados. É de se notar que somente uma vez Jesus se
designará como o Filho de Deus (Mc 12,6-8).
A progressiva revelação da divindade de Jesus ele o
fez partindo das multidões, de fato os evangelistas servem-se da a expressão "dizia às multidões", "dizia aos
discípulos". (Mt 11,7; Mc 7,14; Lc 5,3; 7,9; Mt 9,37;
10,1; 15,32). Na primeira parte de seu ministério na Galiléia, Jesus dedicou-se principalmente às multidões e
74
somente depois dirige-se aos discípulos (Mc 13,32; Mt
24,36; Mt 11,25-27; Lc 10,21-22). Nas palavras dirigidas
somente aos discípulos revela o mistério de sua relação
com o Pai, tendo com Ele uma relação de intimidade e
de proximidade, uma proximidade acima dos anjos do
céu, pois Ele conhece o Pai como o Pai conhece o Filho.
Entre Ele e o Pai existe uma intimidade que não tem nenhuma analogia na relação dos homens com Deus, pois
chama Deus de Abá (Mt 11,25).
Por fim um grupo de privilegiados contam com a revelação íntima da divindade de Jesus, a exemplo dos
três discípulos no Monte Tabor. Experiência que depois
se fortificou com a experiência da ressurreição, por isso
após a Páscoa nas comunidades cristãs, a atitude do fiel
para com Jesus ressuscitado era idêntica à do judeu em
relação a Javé; Jesus é invocado como Senhor, e o nome
do Senhor aplica-se não mais a Javé, mas a Jesus (At
2,21). O fiel se converte ao Senhor Jesus e não mais a
Javé (At 9,35), crê nele como se crê em Javé (At 3,36).
Jesus é o Senhor perante o qual todo joelho deve dobrar
(Fl 2; 6,11). Portanto se reconhece a divindade de Cristo, e não só a divindade, mas também a sua preexistência (cf Fl 2,6-7; 1Cor 8,6; 2Cor 8,9). Desta forma, a fé na
preexistência e divindade do ressuscitado, é presente
nas comunidades cristãs, em menos de 20 anos após a
Páscoa. Ressaltamos que nessa época começava a evangelização do mundo pagão, e o influxo dos cristãos de
origem pagã era desprezível, logo a idéia da divinização
de Jesus nasceu no meio judeu. Ora, o meio judeu era
contra uma semelhante doutrina, portanto tal doutrina
só pode ter vindo de Jesus que a ensinou e que Deus
confirmou com a ressurreição. A crença proclamada após a ressurreição sobre a divindade de Jesus foi corroborada pela vinda do Espírito Santo (Jo 16,12-13;
14,25-26), pois a semente depositada por Jesus caiu
75
num solo não apto para acolhê-la e fazê-la germinar,
para tanto foi necessário a Páscoa e o Pentecostes (DV
19).
c) A compreensão de Jesus na Igreja
A compreensão de Jesus Cristo na Igreja foi possível mediante algumas fontes dentre as quais a Patrística. A época patrística que compreende o Ocidente com
os autores cristãos até Gregório Magno (+604) e para o
Oriente até João Damaceno (+749). Produziu uma grande quantidade de escritos de bispos, padres, diáconos,
monges e leigos. Particularmente os Padres foram os autores dos primeiros escritos sobre Jesus Cristo. Estes
eram conhecidos como Pais em vista do discípulo ser
chamado de filho (ICor 4,15). Todos estes escritos sem a
distinção de um grau hierárquico, eram considerados,
pois escritos por mestres aprovados, que possuíam a
ortodoxia da doutrina, a santidade de vida e a aprovação
eclesiástica.
A primeira língua da literatura patrística foi o grego, isto é até o século III, porque a civilização helenística tinha conquistado o mundo Romano. Depois disto o
grego foi substituído no Oriente pelo Siríaco, o Copto e o
Armenio e no Ocidente pelo latim. Na verdade, o grego
da literatura patrística não era o grego clássico, mas a
Koiné, um meio termo entre o clássico e o popular, isto
valeu também para o Novo Testamento e perdurou até o
início do século IV.
Existem três fontes principais para se conhecer o
pensamento dos Padres sobre a fé em Jesus e a compreensão de sua pessoa. Primeira: A vastíssima literatura
patrística de variado gênero literário, como o atos dos
mártires, as cartas endereçadas a pessoas e comunidades, os escritos apostólicos, os comentários dos livros
da bíblia, as homilias, as catequeses, as regras para co76
munidades nomásticas, etc. Segundo: Os textos de várias liturgias (grega, romana, copta...) e as profissões de
fé (símbolos de fé apostólica usados em Roma pelo ano
200, o credo do Concílio na Nicéia, do Concílio de Constantinopla, etc. Terceiro; Os documentos de Concílios
Ecumênicos, as Cartas dos Papas e dos Sínodos nacionais e regionais.
Outra fonte para a compreensão de Cristo é o uso
da Sagrada Escritura, pois ignorar a Escritura é ignorar
Cristo. A Patrística manteve um constante contato com
a Sagrada Escritura meditando e comentando-a para
penetrar na divindade de Jesus.
Por fim, a reflexão dos Padres apostólicos, pois os
estudos realizados por eles tiveram um caráter pastoral
e trouxeram um testemunho importante de fé cristã, sobretudo porque eles pertenciam a regiões diversificadas
(Ásia Menor, Síria, Roma).São testemunhos escritos em
circunstâncias particulares e nestes destacam-se uma
forte convicção de que a segunda vinda de Cristo será
eminente; uma lembrança calorosa da pessoa de Cristo
por causa dos contatos diretos de seus autores com os
apóstolos e dentre estes uma das testemunhas mais vivas é Inácio de Antioquia (+110).
Nos séculos II - III com os apologistas gregos a reflexão se coloca sobre o Verbo e dentre os mais destacados apologistas, temos Justino, o mártir (+165), grande
filósofo que um dia se convenceu que a filosofia não saciava seu coração e voltou-se para os profetas começando refleti-los e a tê-los como única filosofia verdadeira. Para ele o Lógos é o medidor entre Deus e o homem,
Deus comunica-se com o mundo pelo seu intermediário,
é o Lógos que instrui o homem. Todo homem possui na
própria razão uma semente do Lógos.
No final do II século, difundia-se um sincretismo
religioso com o nome de gnoticismo, o qual propunha
77
que a matéria e o corpo humano são um princípio inferior do qual se deve libertar. Nega-se assim a ressurreição dos mortos, a parusia, o juízo final, o inferno. Contra estes polenizou Irineu de Lião, discípulo de Policarpo.
Ainda por volta do ano 200 haverá numa extraordinária vitalidade no campo apostólico da literatura eclesiástica, nascendo a escola teológica de Alexandria com
Clemente, Irineu, Dionísio, Cirilo, etc.
13. A GALILÉIA NO TEMPO DE JESUS
A Galiléia é a região onde Jesus viveu quase toda
sua vida e foi o primeiro palco de sua missão, por isso é
o lugar de sua formação e de seu amadurecimento humano religioso. É importante que tenhamos antes de
tudo uma visão de toda a Palestina, um país que no
tempo de Jesus possuía 240 km em linha reta, com largura de aproximadamente 65 km. Este possuía um clima subtropical e mesmo sendo assim pequeno apresentava quatro zonas climáticas diferentes. A zona litorânea, a região montanhosa, o deserto Negeb e a depressão do Jordão. Possuía na verdade praticamente duas
estações: o verão seco que se estendia de maio a outubro e o inverno que tomava os meses de novembro a abril. Possuía também planícies, tais como: a de Ulata e
de Esdrelão e elevações como o monte Tabor com 588
metros, o monte Garizim com 388 metros, o monte Silo
com 915 metros. Em Jerusalém situada a 700 metros de
altitude, estavam os montes Scopus com 38 e 831 metros, o das Oliveiras com 818 metros, o Moriá com cerca
de 40 metros, o Sião de com 70 metros, etc. Possuía
também algumas zonas desérticas e áridas.
78
A palavra Galiléia significa “terra dos pagãos”, por
isso é também chamada de Galiléia dos gentios (Mt
4,13-16). No tempo de Jesus era habitada em grande
parte pelos hebreus. Nela Jesus transcorreu a maior
parte de sua existência, vivendo mais precisamente na
região da baixa Galiléia, em Nazaré e ao longo das margens do lago de Genesaré. Ali Jesus realizou grande parte de sua pregação (Mc 6,6; Lc 8,1; Mt 4,23). A Galiléia
no tempo de Jesus era constituída geograficamente de
um território com cerca de 40 a 50 km de largura por
100 Km de comprimento. A tese de que era constituída
de um ambiente bastante popular, ligado à “am há-arez”
(a gente da terra), ou seja, a parte mais inculta e pobre
da população, hoje não tem mais consistência diante de
pesquisas rigorosas conduzidas por estudiosos hebreus
contemporâneos.
Para uma melhor visualização desta região usa-se
dividi-la em Alta Galiléia, Baixa e Galiléia. A Baixa Galiléia, região onde viveu Jesus era bastante povoada e fértil, cortada por estradas comerciais e um importante
centro administrativo. Sendo irrigada por chuvas, possuía terras férteis com por exemplo a planície de Esdredom, a qual era grande produtora de cereais e de hortaliças. Da mesma forma eram férteis as colinas e as planícies do mar do que o Tiberíades; um verdadeiro paraíso, na expressão de Flávio Josefo. Possuía o lago Genesaré abundante em peixes. Na a Alta Galiléia existia a
cidade de Cafarnaum, a 8 km do Jordão (Mt 8,5), a qual
possuía um destacamento de soldados romanos, comandado por um centurião, o qual construiu uma Sinagoga. Existia também a cidade de Séforis com uma população de aproximadamente 35.000 habitantes e também o Tiberíades, um outro centro populoso. Nazaré não
distava mais do 7 quilômetros de Séforis. De Nazaré partiam uma estrada em direção para Tiberíades e outra em
79
direção para Citópolis, a mais importante cidade grega
do lado de cá do Jordão.
Estudos mostram que as cidades de língua grega
formavam como que um grande círculo ao redor da Galiléia, e com isso podemos afirmar as influências culturais
nesta população, ou seja, de não conceber uma Galiléia
somente de cultura aramaica. Segundo estudiosos da
população judaica da Galiléia no tempo de Jesus não
deveria superar os 150.000 habitantes.
Existia, como afirmamos, um relacionamento tanto comercial como cultural entre os hebreus e os gentios
dentro da Galiléia, mas o sentimento da população judaica e a suas leis sobre a pureza contribuíram muito
para a manutenção da própria identidade judaica quando em contato com os gentios. As cidades gregas vizinhas da Galiléia e da Judéia tinham os seus antigos
deuses asiáticos, mas a rigidez monoteísta não permitia
uma contaminação. Esta opinião é defendida por Schurer ao afirmar: “Quanto mais vigorosa e persistente era a
pressão do paganismo na Palestina, tanto mais enérgica
era a resistência oferecida pelo judaísmo. Não se pode
evitar o avanço da cultura pagã, mas as vigilantes autoridades religiosas estavam alertas contra qualquer coisa
que pudesse ofender a lei. Para o judaísmo era questão
de vida ou de morte manter máxima vigilância a esse
respeito”. Portanto, as normas sobre a pureza e outros
costumes judaicos eram reais barreiras contra o perigo
da helenização. Além do mais, os fariseus que na época
de Jesus eram aproximadamente 6.000 em toda a Palestina, os quais tinham muita influência sobre o povo; eram defensores dos antigos costumes e das leis religiosas. O mesmo se pode dizer sobre os essênios que na
época constituíam um grupo de aproximadamente 4.000
pessoas.
80
Uma figura que se destaca na Palestina é o rei Herodes, o qual no ano de 37 conquistou Jerusalém tornando-se rei. Por sua habilidade na política externa, e
por sua sagacidade em pacificar e reconstituir o Reino
para que tivesse os mesmos limites do tempo de Davis,
assim como pela magnificência de suas construções e
pela sua sábia administração, não obstante a sua com
lealdade, ele mereceu o título de “Grande”. Schurer afirma que Herodes possuía quatro inimigos e conseguiu
vence-los e controlá-los: o povo, a nobreza, a família dos
asmorreus e Cleópatra do Egito.
Herodes era cruel e mandou matar não somente
Mariana, sua mulher, mas também a sua mãe e Alessandra. Antes já havia assassinado Jônatas Aristóbulo
III, o irmão de Mariana e sumo sacerdote, e o velho Hircano II. Herodes foi um bom administrador construindo
em honra de Augusto a cidade de Cesaréia e reconstruiu
Samaria dando-lhe o nome de Sebaste. Construiu também a fortaleza Herodium em Massada construindo um
palácio de três andares na rocha. Mas a sua obra mais
famosa foi a reconstrução do Templo de Jerusalém. “A
grandeza desta obra gigantesca é testemunhada pelos
seguintes números: nela foram empregados não menos
de 10.000 leigos, e 1.000 sacerdotes foram preparados
expressamente para os trabalhos das partes internas,
nas quais os e israelitas, isto é, os leigos, não podiam entrar. O trabalho teve a duração de nove anos e meio, dos
quais oito anos para se levantar as loggias e o pátio externo e outro meio do ano para o próprio Santuário. Essas
cifras mostram que a obra principal foi a terraplanagem
do terreno para o Santuário. Semelhante trabalho exigiu o
uso extraordinário de forças, energia e técnicas para o
seu planejamento e execução” (Schalit) . Mas, as obras
de Herodes não param por aí, ele construiu ainda em
Jerusalém um teatro, um anfiteatro e um hipódromo,
81
construções que desagradaram os judeus tradicionalistas. Construiu também para si um esplêndido palácio,
ornamentado com mármore e ouro. Não deixou de construir também numerosos templos pagãos enfeitando-os
com estátuas.
A Galiléia era cortada por várias estradas e tinha
um bom movimento proveniente da Mesopotânia. Em
Damasco começava a Via Maris, a qual atravessava a
Galiléia; esta importante estrada começava em Damasco, na Síria, e chegava ao Egito. Ela é lembrada em Isaías (8,23) e também em Mateus (4,12-17).Também Sidônia tinha comunicação com Alta Galiléia.
Embora o povo judeu defendia fortemente a sua
própria identidade religiosa em toda a Palestina, foi
grande a influência do helenismo, causada sobretudo
por sua cultura e língua, assim como por suas instituições civis. Hengel em seu livro: “O Judaísmo e Helenismo. Estudo sobre seu encontro na Palestina durante o
antigo período helenista”, relata que: “na própria Palestina, virtualmente todo habitante esteve em estreito contato
com os novos senhores, fossem eles soldados, oficiais,
mercadores ou proprietários”. O próprio Hengel ainda
afirma que: “o enquadramento das parábolas de Jesus,
com seus grandes proprietários, exatores, administradores, agiotas, trabalhadores diários e fiscais alfandegários, com especulações de grãos, escravidão por dívidas e
a apropriação de áreas, só poderão ser compreendidos
levando-se em consideração que as condições econômicas
introduzidas pelo helenismo na Palestina”. Ora, diante
dessa realidade é natural que tenha havido a difusão do
conhecimento por meio da língua.
Séforis, uma cidade no interior da Baixa Galiléia,
era muito helenizada. Esta juntamente com Tiberíades
era a maior a cidade da região e uma importante fortaleza. Nela foi encontrado um teatro romano cujo semi82
círculo possuía 74 m. Com uma capacidade para colher
aproximadamente 4.000 a 5.000 espectadores e isto
num lugar distante apenas 7 km de Nazaré. Neste teatro
não se representavam comédias ou tragédias aramaicas,
por não existirem, mas sim as gregas de algum escritor
grego da região. Diante desta realidade podemos afirmar
que existia um bom número de judeus que freqüentavam esta cidade. Estudiosos chegam a afirmar que Séforis chegava a ter no tempo de Jesus 30.000 habitantes
entre judeus, árabes, gregos e romanos. Disto também
se pode concluir que as aldeias da vizinhança deviam
ser as principais fontes que supriam de cereais, óleo,
hortaliças e produtos pecuários para a cidade
Tiberíades, construída em o honra do Imperador
Tibério, por Herodes Antipas, entre os anos 17 e 20,
possuía uma população mesclada, em grande parte formada por gregos.
Nazaré, situada na baixa Galiléia localizava-se no
cruzamento de estradas secundárias, todas ligadas aos
principais caminhos entre os quais a Via Maris, que
passava 10 km a oeste. Por ela passavam outras estradas que permitiam a ida a Jerusalém por várias direções. Segundo estudos esta cidade possuía uma população no tempo de Jesus com cerca de 1.600 a 2.000 habitantes. Encontrava-se a apenas 7 km de Séforis de
modo que não podia deixar de sentir a influência desta
importante cidade. É de supor que José e Jesus tenham
prestado seus serviços de carpinteiro ou até como operários na construção desta cidade. Nazaré, como localidade agrícola, deve ter sido uma das principais fornecedoras de grãos, óleos, vinho, hortaliças e produtos artesanais para os mercados Séforis.
14. O MUNDO SOCIAL EM QUE VIVEU JESUS
83
É evidente que a geografia física influi muito no
caráter e no comportamento de uma pessoa, mas também a geografia humana feita de sua cultura, das atividades de trabalho e do intercâmbio com as pessoas influi e igualmente. No que toca à geografia física e humana de Jesus podemos dizer que ele nasceu e cresceu
numa família em Nazaré, uma pequena aldeia perdida
nas colinas da Galiléia onde viveu e assimilou naquele
contexto a cultura da gente do seu tempo. Toda a sua
juventude foi na verdade marcada pelo ambiente rural
desenvolvido particularmente nos limites de sua aldeia.
Este é o período que os evangelistas chamam “de vida
escondida”. Mas, mesmo neste período da juventude de
Jesus e ele não viveu a sua vida encerrada na sua pequena aldeia; basta dizer que hoje os estudos, as escavações arqueológicas nos informam que Cafarnaum no
tempo da juventude de Jesus era um florescente centro
comercial com uma notável atividade artesanal, particularmente a pesca, as qual possuía uma organização de
tipo industrial. Da mesma forma a cidade de Séforis
possuía um teatro com cerca de 4.000 lugares com ambiente bastante incrementado para a cultura judaica e
helenista. Jesus, menino e adolescente, viveu neste contexto e por isso sofreu também a suas influências.
Sabemos que Jesus não deixou nada por escrito,
também se tinha freqüentado as escolas das Sinagogas
do seu tempo. Os evangelhos não fazem descrições sobre
Jesus, pois o interesse deles era querigmático, ou seja,
de anunciar o evangelho, o que não significa que não há
a historicidade no que escreveram. O Novo Testamento
não fornece um enquadramento e histórico dos acontecimentos, por isso as principais fontes históricas para a
formação de um quadro geral da Palestina no tempo de
Jesus, devemos buscar em fontes extra bíblicas, tais
84
como as do historiador Flávio Josefo, sem deixar de considerar os trechos mais antigos das fontes rabínicas.
Qual era realmente o mundo social de Jesus? Ao
responder a esta pergunta precisamos levar em consideração de que Jesus tenha pertencido a uma classe semelhante as classes médias do mundo urbano de então
(A.R.Batey, Jesus & the forgotten City. New Light on
Sepphoris and the Urban World od Jesus, Grand rapids,
Michigan, Backer Book House,1991). Na verdade, não
podemos conceber Jesus unicamente inserido no contexto judeu, por isso a suposição de Bultmann e de outros teólogos de que havia uma grande separação entre o
cristianismo do mundo judaico e o cristianismo do
mundo grego, não é sustentável, como também não é a
teoria da mitização por ele proposta. Hoje tem-se à disposição dados historicamente sólidos a respeito do tempo de Jesus e sobre os primeiros discípulos dele que nos
dão informações consistentes sobre o ambiente em que
Ele viveu e dados suficientes para delinear o próprio
significado da vida e da pregação dele e dos seus discípulos. Hoje não se pode mais conceber Jesus como sendo um personagem impreciso, ou como um mito ou até
pensar, como autores racionalistas do século XIX e do
início do passado, que ensinavam que o cristianismo foi
uma criação mitológico - teológica paulina.
15. O AMBIENTE DE JESUS E A SUA PRESENÇA NELE
Estudiosos afirmam que o status de Jesus não é
o que comumente ouvimos falar por aí; Ele não era pobre sem meios para a subsistência, mas um trabalhador
independente e reconhecido, que mesmo não sendo rico,
vendia e comercializada seus produtos e oferecia seus
85
trabalhos de carpinteiro; Ele era o filho do carpinteiro
(Mt 13.55) e Ele mesmo era carpinteiro (Mc 6,3). As últimas descobertas induzem a ver no Tékton a figura do
construtor, em lugar de simples carpinteiro; ou então
um mestre de obras ou até um operário especializado. O
conceito Tékton se aplicava, ao que parece, a uma certa
habilidade e experiência no trabalho de produzir com
madeira, desde objetos de uso cotidiano e até obras
mais complexas. Justino interpreta a palavra Tékton
como o que fabricava principalmente arados e cangas.
Contudo não se pode negar que o profissional Tékton
tinha um trabalho de construção de móveis para as casas mais prósperas da região e a fabricação de seus próprios instrumentos de trabalho, como também fazia o
trabalho em verdadeiras e próprias construções públicas. Hengel é da idéia de que não se pode excluir que,
exatamente na condição de carpinteiro, Jesus tenha
trabalhado na reconstrução de Séforis. De fato, Séforis,
fora construída por Antípas como uma verdadeira capital com o espírito e a aparência greco-romano. Tratavase de uma verdadeira metrópole, uma cidade cosmopolita que devia ter aproximadamente 30.000 habitantes e
que continuou a ser a maior cidade da Galiléia no tempo
de Jesus, mesmo depois da construção de Tiberíades.
Esta possuía bancos, arquivos, ginásios e como falamos,
um teatro para 4.000 espectadores.
Batey, que trabalhou nas recentes escavações de
Séforis, concluiu: “que Jesus tenha tido freqüentes e significativos contatos com a vida de Séforis, é uma hipótese
provável. A proximidade da capital com Nazaré, juntamente com sua importância cultural e política, tornava
Séforis acessível e atraente. Embora, Séforis tivesse sido
construída seguindo o modelo helenista, seus habitantes,
na maioria, eram judeus e para aí haviam mudado há
pouco tempo, para reconstruir a cidade. Vários líderes
86
sacerdotais tinham um relacionamento especial com os
chefes dos sacerdotes de Jerusalém. Não existe razão
plausível para que um jovem de Nazaré não a tivesse
freqüentado. É totalmente possível que José e Jesus tenham trabalhado em suas construções. E se não o fizeram, tinham conhecimento do andamento dos trabalhos,
sendo informados pelos trabalhadores. Esses contatos
ajudam a dar forma ao mundo em que Jesus cresceu, e
também ajudam em sua compreensão” (R.A Batey, “Is
not the carpenter?” NTS,30 (1984), pg 255).
Séforis, reconstruída, teve suas Sinagogas, como
Nazaré possuía a sua. Certamente Jesus não tinha muito trabalho em Nazaré, a qual era uma cidadezinha de
aproximadamente 2.000 habitantes. Por isso devia ir
buscar trabalhos nas aldeias ao redor das cidades. Diante disto é aceitável reconhecer que Jesus tenha trabalhado em Séforis.
Fica claro, portanto que no tempo de Jesus a Galiléia se comunicava com os viajantes que por ela passavam e também com os seus habitantes, usando o grego
da Koiné. Dentre estes não podemos esquecer daquele
um milhão e meio ou 2 milhões de judeus da diáspora
que tinham naquele tempo, pelo menos metade deles, o
grego como a língua mãe e que faziam sempre as suas
peregrinações ao templo de Jerusalém. Os habitantes da
Galiléia falavam o aramaico e talvez um pouco de hebraico. Diante desta realidade Jesus consequentemente
também conhecia outras línguas. Na verdade hoje é a
opinião comum de numerosos estudiosos da existência
de um certo trilingüismo na Palestina. Por isso não só o
aramaico era tido como a língua usada pelo povo, mas
também o grego e o hebraico, línguas estas faladas por
ao menos certo número de judeus cultos. Além disso,
muitos habitantes deviam relacionar-se com as cidades
da costa ou da Decápolis, onde era usado o grego.
87
De 300 a 200 aC, a Palestina foi dominada pelos
Ptolomeus e muitos judeus emigraram para o Egito, especialmente para a Alexandria, ora tudo isso importava
em uma crescente presença da língua grega também na
Palestina judaica. Com o rei Antíoco, o Grande (223187), a Palestina ficou sob o domínio da Síria e teve início a um período de forte helenização que chegou até a
ser imposta pela força. Numerosas palavras gregas penetraram nos escritos sagrados hebraico. Devemos considerar também que obras literárias em grego ou traduzidas para o grego por judeus e para os judeus tornaram-se importantes desde o século III antes de Cristo.
Basta lembrar que a tradução da bíblia hebraica para o
grego ou na versão chamada dos LXX. Para o grego foram traduzidos também os livros deuterocanônicos,
dentre os quais, o último, o da Sabedoria foi composto e
planejada em grego na primeira metade do século I antes de Cristo.
Flávio Josefo escreveu primeiro em aramáico, e
depois traduziu para o grego a sua obra “Guerra Judaica”. Já antes do século I encontramos centenas de inscrições gregas na Palestina que atestam o quanto esta
língua era usada pelo povo. Alguns estudiosos afirmam
que no decorrer do século I, durante o reinado de Herodes, havia a existência de escolas primárias de grego em
Jerusalém. Conforme afirma o estudioso Rabin, “Uma
vez que podemos assumir que em Jerusalém e na Judéia
o hebraico da Mishná era a língua corrente e o aramaico
ocupava o segundo lugar, esta situação devia ser diferente em áreas como a planície da Costa e da Galiléia. Aqui o
aramáico, e possivelmente o grego, eram as línguas dominantes faladas pelo povo de todas as classes, ao passo
que o hebraico funcionava unicamente como língua literária” (Ch, Rabin, Hebrew and Aramaic in the first century, in: Safari&Stern).
88
O estudioso Schwank afirma: ”Pudemos obter, através das escavações do teatro de Séforis, pela primeira
vez e de modo totalmente inesperado, uma compreensão
dos conhecimentos lingüísticos dos extratos populares na
Galiléia no tempo do Novo Testamento. Então o povo da
Galiléia falava mais de uma linguagem. E isso não é para causar admiração quando se lembra que a Galiléia foi
judaizada pela primeira vez, pela força, ao redor de 100
aC, pelos asmoreus. Desde o fim do século 8º aC era o
território dos pagãos”. Jesus dialogava com as pessoas
que falavam grego sem a necessidade de intérpretes,
basta lembrar a conversa com Pilatos, com o centurião
pagão, com os Gerasenos, com os habitantes da Decápolis, com a mulher cananéia... O próprio Pedro fala em
grego em At 10, com o centurião. Podemos concluir a
possibilidade de que Jesus se dirigisse aos Galileus tanto em aramaico como em grego. Novamente Batey nos
afirma que “As escavações arqueológicas em Séforis continuam, produziram a certeza de uma sofisticada cultura
urbana, o que coloca Jesus em um ambiente radicalmente
diverso, que muda as presunções tradicionais sobre sua
vida e seu ministério. O retrato tradicional de Jesus como
um camponês crescido em relativo isolamento e em uma
pequena aldeia de quatrocentas pessoas, longínqua Nazaré, deve ser refeito com a entrada em cena de uma florescente metrópole greco-romana, há pouco descoberta,
que se vangloria de seus 30.000 habitantes – judeus, árabes, gregos e romanos. Séforis poderosa, próspera,
amante da paz, mantinha relacionamentos com os outros
centros greco-romanos das rotas comercias do leste, que
falavam a língua grega... O novo testemunho desconhecido de Séforis vem mudar as precedentes interpretações
sobre Jesus e requer uma nova imagem do homem e do
movimento que ele fundou”.
89
O tempo em que Jesus viveu se fixa entre 7 aC e
39 dC; caracteriza-se como uma época de instabilidade
política, a qual Herodes, o Grande conseguiu minorá-la
com sua tirania, mas que depois desembocou na guerra
judáica de 66 dC.
As causas desta situação peculiar deve-se a vários
fatores dentre os quais assinalamos os seguintes:
 As divisões administrativas com provação de disputas entre as diversas regiões.
 A população da Palestina heterogênea e com interesses de grupos opostos, entre os quais os pagãos, os
judeus helênicos, os judeus cumpridores da lei, etc.
 A excessiva exploração do povo por impostos, os dízimos, os tributos ao Templo, as contribuições para
Herodes, o Grande e seus filhos, o trabalho territorial
a César, a manutenção do exército, as alfândegas,
etc.
 A repressão dos grupos populares que se revoltavam
contra a aristocracia, contra os governantes e o poder romano.
 A indolência dos filhos de Herodes e dos Procuradores Romanos.
 As lutas internas pelo poder das famílias reais.
 As lutas por postos rendosos do Templo e do Sinédrio.
 O confronto entre os grupos religiosos e políticos.
Devido ao clima reinante na Palestina do tempo de
Jesus, fomenta-se alguns acontecimentos importantes
nesta época, os quais podem ser elencados assim:
 A rebelião por ocasião da morte de Herodes, o Grande, a qual teve como finalidade impedir a sucessão
de seus filhos e sacudir o Império Romano.
 A repreensão romana com a imposição da força do
Império resultando em 2.000 crucificados além dos
90
mortos de guerra e os prisioneiros vendidos como escravos.
 A organização e consolidação dos zelotas sob a direção de Judas, o Galileu, e do fariseu Sadoc, discípulo de Shammai.
 As revoltas no ano 6 dC contra Arquelau e o pagamento de tributos a César.
O contexto sócio, político, religioso, ideológico e econômico levou contudo a notáveis mudanças e transformação na vida deste povo; eis algumas causas e conseqüências mais notáveis:
 A morte de Herodes, o Grande e a sucessão de seus
filhos controlada por Augusto.
 O desterro de Arquelau, no ano 6 dC e a transformação de seus territórios (Judéia, Idumeia, Samaria) em
província pela procuradoria imperial, o que significou a
sujeição do Sinédrio ao Procurador Romano, a qual
passou a nomear os sumo sacerdotes.
 A morte de Felipe no ano 34 e anexação de seus territórios à Província da Síria.
 A destituição de Pilatos e Caifás (dC 36 e 37) e o exílio
de Herodes Antipas na Galia em 39dC.
 A consolidação das duas escolas rabínicas farisáicas;
a liberal de Hillel e a rigorista de Shammai.
 A radicalização das teses zelotas sob a influência de
alguns discípulos rigoristas de Shammai e dos essênios de Qumrân.
É de se notar que a Palestina no tempo de Jesus
possuía uma economia baseada na agricultura, na pecuária, no artesanato e na pesca no Mar da Galiléia. A
região da Judéia por ser montanhosa, entretanto quase
não se prestava para a agricultura, porém contribuía
muito com a criação de gado, de suínos e de caprinos.
Havia também um grande incentivo para o trabalho na
construção e na arte. A Galiléia por ser uma região fértil
91
com chuvas freqüentes, tinha preponderantemente o
cultivo de cereais, da vinha, de frutas e legumes, do linho, do couro, a pesca no Tibiríades com emprego de
redes de até 50 metros. É importante salientar que existia um ágil no comércio particularmente devido as duas
rotas de comércio que atravessavam a Galiléia; uma denominada de Ptolomeida - Damasco e a outra Damasco
- Jerusalém.
Deve-se salientar que as técnicas agrícolas, pecuaristas e artesanais eram bem rudes, contudo estas evoluíram com a reconstrução do Templo por Herodes.
Haviam aldeias constituídas de pequenos proprietários camponeses que se sustentavam, assim como havia os latifúndios onde trabalhavam, os assalariados e
os escravos. Nas cidades havia artesãos e comercializantes. Os latifundiários, os comerciantes e arrecadadores de impostos que não eram sacerdotes; estes constituíam a aristocracia leiga e faziam parte do Sinédrio:
“Senadores” ou “Anciãos”. O evangelista Lucas (Lc
19,47) fala deles como chefes do povo.
A aristocracia sacerdotal era composta por Sumo
Sacerdotes em função e pelos ex-sumo sacerdotes, além
do chefe do Templo, 7 vigias e 3 tesoureiros. Esta formava a comissão permanente do Sinédrio. Os 24 chefes
dos turnos semanais, e os 158 chefes dos turnos diários
também faziam parte da aristocracia sacerdotal, mas
não pertenciam ao Sinédrio. O NT os designa globalmente como “Sumo Sacerdotes” e a maioria vivia em
Jerusalém.
Durante o reinado de Herodes, o Grande, haviam
muito latifundiários e muitos trabalhadores braçais parados e desejosos de vender sua jornada de trabalho por
um denário (Mt 20,4), o salário insuficiente para uma
família de dois filhos. Existiam também os grandes comerciantes principalmente em Jerusalém, comerciali92
zantes de gado. Neste comércio Anás tinha exclusividade para a venda dos animais que eram usados nos 329
sacrifícios no Templo, além do trigo, do vinho, do azeite,
da madeira, das jóias. Existiam igualmente numerosos
cobradores de impostos que rendiam especulação, assim como havia o imposto a César, o imposto ao exército protetor, os impostos aduaneiros, o imposto para o
Templo e o dizimo aos Sacerdotes.
Em todas as cidades haviam postos para cobrar o
imposto a César, e ao exército protetor. Nas fronteiras e
nas portas das cidades e mercados, cobravam-se os impostos aduaneiros. Salienta-se que os romanos escolhiam para cobrar impostos os anciãos do Sinédrio e as
famílias ricas de Jerusalém. Cada posto de tributo e taxas tinha um preço de arrendamento fixado pela estimativa de arrecadação. Os ingressos superiores à norma
estabelecida eram dados como ganho pessoal do arrendatário, o que contribuía para a corrupção. A renda dos
impostos ia para a caixa do Senado Romano, para o pagamento de pensões militares, e outras despesas.
Para o Império Romano o imposto supunha um
censo e o cadastro onde cada cidadão declarava o que
possuía, além disso havia impostos indiretos de alfândega, de pedágios, etc. O dízimo era 1/10 do produto do
solo e se pagava no verão a cada 3 anos através de um
levantamento da dívida (Dt 14,28).
O imposto ao Templo era pago todo ano a partir
dos 20 anos de idade (Mt 17,24) o equivalente a dois
denários – dois dias de trabalho do campo. O dízimo
dividido em Primícias visto que Deus é proprietário do
solo; devia-se consequentemente doar algo por ocasião
da primeira colheita. Também dava-se o dízimo sobre o
gado (Nm 18,21) para sustento dos levitas e o dizimo em
dinheiro para o sustento dos pobres (Dt 14,26-27).
93
A estrutura da Palestina era de cunho patrimonial.
O Pai dava ordens; a ele cabia castigar, pronunciar as
orações, e ensinar. Já a mulher era inferior em tudo ao
homem. “Louvado sejas porque não me fizestes pagão!
Louvado sejas porque não me fizeste mulher, louvado
sejas porque não me fizeste ignorante!”
Para o culto no Templo havia um átrio para os homens e outros com 15 degraus abaixo para as mulheres. Nas Sinagogas existiam as separações e até entradas separadas. Só era celebrado o culto na Sinagoga
quando havia ao menos uma dezena de homens, pois
não se considerava o número das mulheres. Elas não
tinham direito de ler nada na liturgia da Sinagoga.
“Quem ensina a Torá a sua filha, ensina-lhe tolices”, As
mulheres portanto eram tidas como incapazes de receber instruções. A Torá não obrigava as mulheres do
mesmo modo que aos homens. Elas estavam isentas de
peregrinarem a Jerusalém nas grandes festas do ano,
de recitarem o Shemá, de usarem os filactérios e da ação de graças à mesa.
Neste contexto cultural e religioso a viúva não tinha proteção. A adolescente até 12 anos não tinha nenhum direito, sendo que o pai podia escolher-lhe o marido. Na vida conjugal a mulher depende do marido e era
considerada objeto de prazer e instrumento de fecundidade. A mentalidade machista permitia a poligamia e o
repúdio da mulher por qualquer motivo (feiura, má preparação da comida...). A mulher devia cozinhar, moer,
tecer, lavar e até lavar os pés do marido. Ela não participava da vida pública e trazia o rosto coberto. Não podia parar para conversar com homem e não era ouvida
como testemunho público. Não ocupava função pública.
Não podia servir-se do trabalho de um escravo judeu.
Os motivos desse tratamento eram ligados, em
grande parte, aos preceitos de puro, impuro. Dentre o
94
que produzia impureza estava tudo aquilo que tinha a
ver com a vida sexual e a mulher encontrava-se ciclicamente em estado de impureza devido a menstruação.
Após o parto era conservada a impureza por quarenta
dias se tivesse dado à luz a um menino e oitenta se fosse uma menina (Lev 12,2s); durante este período não
podia entrar nem mesmo no átrio do Templo dos pagãos.
Neste ambiente marcado preponderantemente pelos preceitos religiosos os filhos eram educados com rigidez e eram considerados dons de Deus vendo na criança a benção de Deus. Nos primeiros anos a mãe cuidava dos filhos e aos quatro anos começava a instrução
do filho na lei feita pelo pai, com o Shemá. A freqüência
a escola dava-se por volta dos seis anos. Na puberdade
iniciava-se o aprendizado completo da Torá. Até aos 12
anos o pai podia fazer a filha casar.
A sociedade permitia às famílias ricas disporem de
escravos os quais eram comprados como mercadorias.
Podia-se tornar o escravo por castigo ou para compensar pagamento de dívidas, mas somente podiam ser escravos os adultos, as filhas menores de 12 anos, o filho
e a esposa não podiam. A filha era libertada aos 12 anos
e o homem após seis anos (ano sabático). O escravo pagão não possuía nada, mas podia ser circuncidado e
tinha direito de descanso no sábado.
Os evangelhos não são biografias, mas podemos
captar a “ipsissima vox ex facta”. Mas o importante é
descobrir as intenções originais de Jesus (ipsiossimo
intentio); devemos descobrir as intenções que evidenciam suas decisões e escolhas. Uma delas é que Jesus
quis ser batizado por João Batista, preferiu seguir João
Batista ao invés de qualquer liderança ou movimento de
seu tempo e com isso compreendemos a direção do pensamento de Jesus.
95
Os romanos tomaram a Palestina em 63 aC tornando-a sua Colônia e nomeando seus governantes –
Herodes, o Grande que morreu 4 aC, sendo seu reino
dividido pelos seus filhos Herodes (Judeia – Samaria),
Herodes Arquelau (Judeia – Samaria) Herodes Antipas
(Galiléia – Pereia), Herodes Felipe (regiões mais ao norte). Quando Jesus tinha 12 anos, Arquelau foi deposto e
o substituiu um procurador Romano para governar Judeia-Samaria; este foi o começo da última e mais turbulenta época da história da nação Judeia, época que
terminou quase com a destruição do Templo, da cidade
de Jerusalém e da nação, em 70 dC e depois uma destruição completa no ano 135 dC.
Essa época começou com uma rebelião causada
pelo problema da a cobrança de impostos. Os romanos
com o recenseamento começaram um inventário dos
recursos do país para fins de taxação. Os judeus se revoltaram, com isso e o líder foi Judas, o galileu que
fundou um movimento de inspiração religiosa, com
pessoas que lutavam pela liberdade. Os romanos abafaram a rebelião e crucificaram dois mil homens. O movimento chamado Zelotas pelos judeus e de bandidos
pelos romanos, continuou. Era um movimento de resistência, organizado em facções e algumas vezes, inclusive de união com Sicários que se especializam em assassinatos. Durante 60 anos os zelotas atormentaram os
romanos com levantes e guerrilhas ocasionais, transformando-se em um exército revolucionário. Em 66 dC
(30 anos após a morte de Jesus), com o crescente apoio
popular derrubaram os romanos e tomaram o governo
no país. Quatro anos mais tarde um exército poderoso
de Roma destruiu-os com um massacre sem piedade,
alguns resistiam em sua fortaleza em Massada até 73
dC quando quase mil deles preferiam suicidar-se a se
entregarem.
96
Os zelotas formavam um movimento religioso,
pois julgavam que Israel era uma teocracia, isto é, uma
nação escolhida por Deus, onde Ele era o único Rei, e a
terra e os recursos pertenciam somente a Ele.
Aceitar os romanos era infidelidade a Deus. Pagar
impostos a César seria dar o que era de Deus. Também
os fariseus pensavam assim, por isso seis mil fariseus
recusaram assinar um juramento de obediência a Cesar, e os romanos tiveram que desistir desta exigência.
Mas a maioria dos fariseus não se sentia compelido pegar armas contra os romanos, pois sabiam que as possibilidades eram-lhes contra portanto tinham como
principal preocupação a Reforma do próprio povo de
Israel, admitindo que Deus tinha permitido que caíssem
nas garras dos romanos por causa da infidelidade de
Israel em relação à lei e às tradições. Os fariseus pagavam impostos a Roma sob protesto, e se isolavam de
quem não era fiel à lei e às tradições. Formavam comunidades fechadas, e eram separados, isto é, diziam
formar a verdadeira comunidade de Israel. Tinham uma
moral legalista e burguesa e acreditavam que Deus lhes
enviaria o Messias libertador.
Os Essênios foram mais longe que os judeus na
busca da perfeição; estes viviam uma vida ascética, fora da comunidade, no deserto. Preocupavam mais que
os fariseus com a impureza ritual e com a contaminação com os impuros. Observavam diariamente e meticulosamente os rituais de purificação prescritos pelos sacerdotes. Rejeitavam quem não pertencia a sua seita,
dedicavam amor somente aos membros do grupo, acreditavam no eminente fim do mundo onde com a vinda
do Messias os filhos das trevas, e dentre estes os primeiros seriam os romanos, seriam destruídos. Eram tão
belicosos como os zelotas e por volta do 66 dC parece
que se uniram aos zelotas contra os romanos.
97
No meio deste contexto religioso, os saduceus eram os mais conservadores, agarravam-se às antigas
tradições hebráicas e rejeitavam todas novidades, tanto
na crença como no ritual. Não aceitavam a ressurreição
e eram colaboradores dos romanos. Eram em grande
parte membros da aristocracia, chefes dos sacerdotes e
anciãos, assim como alguns rabinos eram os líderes e
formavam a classe dominante.
Havia também um pequeno grupo de escritores
anônimos que se dedicavam à literatura apocalíptica,
eram videntes que acreditavam ter o segredo do plano
de Deus. Tais escritores escribas possivelmente pertenciam ao grupo dos os fariseus e dos essênios. Eram anônimos.
Em meio a estes movimentos e especulações político-religiosa, estava João Batista, profeta de condenação e destruição que profetizava a condenação e destruição de Israel. O longo silêncio da voz dos profetas foi
quebrado por João Batista no deserto com um estilo de
vida de profeta austero. A mensagem de João Batista é
que Deus estava irado com o povo e pretendia castigalo, com um castigo semelhante a um incêndio na floresta onde as víboras fogem (Mt 3,7), as árvores são queimadas (Mt 3,10) e as pessoas mergulhadas num batismo de fogo (Mt 3,11). O julgamento sobre Israel seria
executado por um ser humano (Mt 3,11; 11,3). O julgamento dependeria da resposta dos homens, ou seja,
se se arrependessem. Era dirigido aos pecadores, às
prostitutas, aos fariseus... (Lc 3.12-14; Mt 21,32). Ele
questionou até Herodes Antipas (Mc 6,18). Para João
Batista a conversão devia ser pessoal com o batismo
(Mc 1,5), um batismo para perdão dos pecados (Mc 1,4)
isto é, para ser poupado do castigo, da cólera de Deus.
João Batista, contudo não pregava uma mudança na
prática da pureza ritual, da observância do sábado, do
98
pagamento de impostos (Lc 3 11-14). Criticou Herodes
(Lc 3,19) o qual para casar-se com Heodiades, divorciou-se da filha de Aretas II, Governador do reino dos
Nabateus, coisa considerada uma quebra de aliança política e também um insulto. Os nabateus estavam preparados para a guerra e João Batista só piorava a situação criticando o casamento, portanto Herodes mandou
prender João Batista por razões políticas foi decapitado
porque falou em público contra Herodes. João Batista
foi o único que impressionou Jesus e por isso juntou-se
a ele e a aceitação de seu batismo é a prova de aceitação de sua profecia. Jesus mostra assim que discorda
com todos os que rejeitam João Batista e seu batismo.
Jesus também via uma eminente catástrofe para Israel
(Lc 19,43-44; 21,20-23; 13,1-3; Mc 13,14-20).
É possível que Jesus tenha começado seguir o exemplo de João Batista, e tenha batizado algumas pessoas. (Jo 3,22-26) mas não seguiu esta prática (Jo 4,13). Invés disso foi à procura das ovelhas perdidas de Israel. Esta é a segunda decisão ou o primeiro indício para descobrirmos o seu pensamento. Ele decidiu para
algo que tinha a ver com os pobres, os pecadores, os
coxos, os leprosos, os famintos, os cegos, as prostitutas,
os coletores de impostos, os endemoniados, as multidões, os pequenos, os últimos, as crianças (Mc
1,23.32.34.40; 2,3.15.17; 3,1 ; 9,17.18-42; 12,40-42, Lc
4,18; 5,27; 6,20-21; 7,34.37.39; 10,21; 11,46; 14,1321; 15,1; 13,22; Mt 5,10-12; 8,28; 9,10-14; 10,3.15.42;
11,28; 19,30; 20,16). Estes Jesus os tinha como pobres, pequenos, enquanto que os fariseus os tinham
como pecadores e ralé. Os pobres primeiro de tudo eram
os mendigos não tinham como sustentar-se, pois não
havia assistência social e pensões, depois, as viúvas e
os órfãos que não tinham nenhum modo de ganhar a
vida. Também entravam nesta categoria os operários
99
diaristas não qualificados e os camponeses. Em geral
todos estes não morriam de fome, mas o principal sofrimento deles era o desprezo (Lc 16.3). No Oriente Médio o prestígio e a honra eram mais importantes que a
comida ou a própria vida. Por isso pobres significa todos
os oprimidos que dependiam da misericórdia de outro.
Os pecadores eram os párias sociais, qualquer pessoa
que desviasse da lei, dos costumes tradicionais da classe média; nestes estavam incluídos os que tinham profissões pecaminosas ou impuras (prostitutas, coletores
de impostos), ladrões, pastores, jogadores e também os
cobradores de impostos porque decidiam a quantia de
impostos que se devia jogar e muitos eram desonestos.
Os pastores também entravam nessa categoria porque
conduziam suas ovelhas por terras alheias. Pecadores
eram também os que não pagavam o dízimo aos sacerdotes, os que eram negligentes quanto a observância do
sábado e da pureza ritual. Os analfabetos eram imorais
e sem lei, os “am haares”, camponeses não educados
(Jo 7,49), incapazes de virtudes e de piedade. Ser pecador era destino da pessoa, assim as prostitutas podiam
tornar-se novamente puras por meio de um complicado
processo de arrependimento, mas isso custava dinheiro,
e o dinheiro ganho na profissão não podia ser usado. O
coletor de impostos devia deixar a profissão e restituir o
dinheiro com 1/5 a mais a tudo que tivesse lesado. Os
instruídos teriam que se submeter a um longo processo
de educação e sentiam-se frustados porque sabiam que
nunca seriam aceitos para o convívio com as pessoas
respeitáveis porque não tinham estima social, nem
mesmo o consolo de que estavam nas boas graças de
Deus, e o resultado era um complexo de culpa. Os pecadores eram muito predispostos à doenças não só por
causa das suas condições físicas, mas também por causa das suas condições psicológicas. Muitos sofriam do100
enças mentais que por sua vez provocavam condições
psicossomáticas como a paralisia e a dificuldades na
fala. Assim se explica também as possessões, tendo em
visa que para o judeu o corpo é na morada de um espírito e outros espíritos podiam também habitar no corpo
de uma pessoa (espírito bom, ruim). Por isso sempre
que uma pessoa não estivesse em si era considerada
que alguma coisa tinha entrado nela, assim o comportamento patológico de uma pessoa mentalmente doente
era definido como possessão por um espírito mau. Uma
epilepsia era considerada possessão (Mc 9,17-27; Mc
1,23-26; Mc 5,2-5).
Doenças físicas e psicomáticas eram também
consideradas obra do espírito mau (Lc 13, 10-17; Mc
9,17-25; 7,35), por isso a febre da sogra de Pedro é
chamada de espírito mau (Lc 4,3s). São doenças que
chamamos de disfunções. A lepra não era tida como obra do espírito impuro, porém era tida como resultado
do pecado. O filho de uma união ilegítima era considerado pecado por dez gerações.
Os pobres não podiam receber nenhum cargo de
honra, postos de confiança, ou cargos públicos. Era o
mundo dos perseguidos e dos cativos (Lc 4,18). Os artesãos, carpinteiros e pescadores eram profissões respeitáveis e pertenciam à classe média. Os fariseus, essênios e zelotas eram da classe média; gente instruída.
A classe alta e governante era imensamente rica e
vivia em grande luxo e esplendor, a esta pertenciam as
famílias aristocráticas, os sacerdotes, os chefes e os
anciãos.
Jesus era da classe média, mas a desvantagem de
Jesus é de que era Galileu e os judeus de Jerusalém
tendiam menosprezar até os judeus de classe média
provenientes da Galiléia. Ele se tornou um pária por
opção e isto por compaixão (Mt 14,14; Mt 9,36; Mc 1,41;
101
Mt 20,34, Mc 8,2). A palavra compaixão do verbo “splagchnizomai”, indica movimento que brota das entranhas da pessoa, uma reação das tripas. É um sentimento eminentemente humano, os evangelistas não tinham razões apologéticas para atribuírem isso a Jesus.
Os médicos eram raros e caros e os pobres não
podiam consulta-los. Existiam contudo os curandeiros e
os exorcistas. Jesus não usava ritual para curar, por
isso foi acusado de que curava por Belzebu. Ele exigia a
fé (Mt 21,22) não usava fórmula mágica. Com a fé o
homem torna-se, como Deus, Todo-Poderoso (Mt 17,20;
Mc 11,23; Mt 17,19-20).
Jesus misturou-se com os pecadores (Lc 15,2; Mc
2,15; Mt 9,10; Lc 5,29; 7,34), recebeu pecadores em sua
casa e muito embora dormisse nas estradas e em casas
de amigos, tinha em Cafarnaum uma casa (Mc
1,21.29.35; 2,1-2). Como pode ter sido acusado de receber pecadores se não tivesse uma casa? Ao receber os
marginalizados, Jesus deu-lhes um senso de dignidade
e ao sentar à mesa com os pecadores, era implícito o
perdão dos seus pecados. Os pecados eram dívidas que
se deviam a Deus (Mt 6,12; 18,23-35), contraídos por
conta própria ou pelos antepassados. O perdão significava o cancelamento da dívida para com Deus; perdoar
(aphiemi) significa o cancelar, libertar. Sendo a doença
conseqüência do pecado, a cura era considerada uma
conseqüência do perdão. A motivação para Jesus curar
era a compaixão. O poder de curar era o tamanho da fé
e as multidões se maravilhavam não porque estes poderes haviam sido dados a Jesus, mas sim aos homens
(Mt 9,8). Qualquer pessoa com fé suficiente podia ter
feito o mesmo. Jesus disse à pecadora: “Teus pecados
estão perdoados, tua fé te salvou” (Lc 7,45-50).
Na dinâmica do Reino de Deus, Jesus tinha como
programa a libertação (Lc 4,16-21) dos oprimidos (Lc
102
6,20-21; Mt 5,1-12).A atividade de Jesus despertou nos
pobres grandes esperanças, mas não tinha nada a ver
com o céu como lugar de felicidade e recompensa após a
morte. Céu para os judeus era sinônimo de Deus. O
Reino dos Céus significa Reino de Deus; ter recompensa
no Reino do Céu significa estar em boas graças com
Deus. Para os judeus todos os mortos iam para o Sheol
(túmulo) a crença no céu veio com a ressurreição de Jesus.
Os judeus eram contrários à dominação romana.
Jesus foi acusado de revolucionário, impedindo que se
pagasse o imposto a César e declarando-se Messias (Lc
23,2). Na sua cruz foi colocada a inscrição INRI. Jesus
era culpado ou não? Para um grupo ele era culpado
porque se proclamava Messias, e incitou uma revolução
para derrubar os romanos. Iniciou um movimento político-religioso semelhante a dos zelotas, um dos seus 12
discípulos era conhecido como Simão Zelota (At 1,13)
conforme Atos 5, 34-39.
Outros afirmavam que era inocente das acusações. Jesus era precavido, pois proclamava-se Messias
espiritual dos judeus e pregava mensagem espiritual. A
sua acusação foi inventada pelos líderes judeus. Jesus
queria a libertação do jugo romano como queria todo
judeu, porém os evangelistas não estavam interessados
com a opinião de Jesus a este respeito, porque depois do
70 dC não era questão relevante. Entretanto Lucas baseou-se num documento escrito antes do 70 dC, chamase Proto-Lucas, de onde muitas passagens de seu evangelho e de Atos dos Apóstolos, provém desta fonte. O
Proto-Lucas refere-se constantemente à libertação política de Israel (Lc 2,38; 2,25; 1,68; 1,71.74). Porém para o
Proto-Lucas Jesus queria salvar Israel não do modo dos
zelotas, mas persuadindo Israel a mudar, sem isso seria
impossível a libertação.
103
Jesus queria uma libertação diferente daquela
dos zelotas, estes queriam a mera troca do governo, ao
contrário Jesus queria a mudança que afetava a estrutura da vida, queria um mundo qualitativamente diferente. Jesus enxergou que existia mais exploração e opressão dentro do judaísmo que fora dele, pois os judeus de classe média oprimiam os pobres, por isso o
pretexto contra opressão dos romanos era hipocrisia. A
organização cívica das multidões de judeus, seus fardos, sua opressões dependiam muito menos do Imperador Romano e muito mais da teologia que reinava nos
grupos de escribas e fariseus. Além disso os zelotas lutavam não para a verdadeira libertação, mas por nacionalismo, por racismo judeu. A revolução de Jesus
era muito mais radical que qualquer coisa dos zelotas.
Jesus questionava radicalmente, os aspectos da vida
política, social, econômica e religiosa.
O âmago do conteúdo do anúncio de Jesus destina-se aos pobres (Mt 5; Lc 6,20-23), os quais são beneficiários da felicidade que percorre toda a história bíblica, desde o Êxodo até os profetas do exílio. É para os
pobres que viria o enviado de Deus (Is 61,1-2), eles são
os primeiros beneficiários da intervenção de Deus (Mq
4,6-7). Os pobres são os beneficiários, e estes não são
só os miseráveis, os privados de bens para a vida, os
famintos, os aflitos e os perseguidos, mas também as
crianças, os pecadores e pagãos.
O Reino de Deus não é só manifestação da graça
de Deus, mas também da misericórdia. De fato os pecadores também fazem parte dele, assim como os publicanos, suspeitos de desonestidade e qualificados como
impuros, pois Jesus é amigo dos pecadores (Mt 11,19).
Também os pagãos são objetos do Reino, uma posição
diferente da tradição de Hillel onde o pagão só se con104
verteria se se tornassem um prosélito, membro da comunidade de Israel.
As linhas mestras das atividades de Jesus são delineadas nos evangelhos onde os sinópticos referem as
situações conflituosas nas quais Jesus enfrenta os escribas, os fariseus (Mt 9,3; 11; 12,2), os saduceus (Mt
16,1; 22,23), os herodianos (Mt 22,15-16; Mc 3,6), os
anciãos (Mt 21,23) e o Sinédrio (Mc 14,53.55; 15,1).
Todas essas situações Jesus viveu dentro das instituições e dos costumes judaicos (festas, peregrinações,
Templo, sinagogas). Dentre as coisas que contrapõem
Jesus com o judaísmo, estão a observância dos costumes religiosos (jejum, sábado, pureza, ritual, os alimentos e interpretação das Escrituras e da tradição em algumas crenças, tais como: a ressurreição dos mortos, o
mandamento principal e o tributo ao Imperador (Mc
2,1-3.6; 7,1-23; 12,13-34).
Quanto ao sábado este era um dos dez preceitos
da aliança (Ex 20,8-11) e observá-lo era obrigação do
povo de Deus (Is 56,2-6). Nos escritos de Qumran dizia
se que se um animal caísse no buraco no sábado, não
se podia tirá-lo, até mesmo se fosse uma pessoa. Jesus
invés cura o homem de mão seca no sábado (Mc 3,1-6),
faz outras curas (Lc 13,10-17; 14,1-6; Jo 5,5-6; 9,6.1316), colhe espigas (Mc 2,23-28).
Outra realidade onde aparece o contraste entre
Jesus e os observantes judeus é o da pureza ritual, em
especial no que se referem aos alimentos e à convivência
na mesa. A legislação sobre a pureza ritual funda-se em
Lev 11,11-47; Dt 14,3-21 e a pureza ritual era um sinal
de pertença a Deus, esta foi estendida para todo povo e
não somente aos sacerdotes, daqui a escrupulosa observância. Jesus denuncia este formalismo (Lc 11,39) e
propõe a pureza interior (Lc 11,40-41; Mt 15,11); Ele
senta-se à mesa com os impuros (Lc 7,34; Mc 2,13-17).
105
Outro ponto nevrálgico da religiosidade e da identidade nacional judaica é o Templo de Jerusalém, pois
era à volta dele que se concentrava a reforma espiritual;
este era o símbolo da liberdade religiosa e nacional. O
Templo no tempo de Jesus era o segundo Templo renovado pela restauração de Herodes, o Grande a partir dos
anos 19-20 aC e continuado até às vésperas de sua destruição em 66-70 dC. Para ele dirigiam os peregrinos
judeus para as festividades nas diversas estações do ano. Todos os dias celebravam-se o culto de sacrifícios de
manhã e à tarde com os sacerdotes e com delegações de
leigos. No átrio externo do Templo transcorria a vida social e cultural; ali vendiam-se animais, faziam-se os
câmbios de moedas e os mestres ensinavam. Ao Templo
estavam ligados as classes sociais e as grandes famílias
de Jerusalém, cujo prestígio e fortuna estavam ligados a
ele. Os escribas faziam as normas atinentes à vida do
Templo, já os grupos de orientação farisaica tinham o
interesse na observância da pureza ritual e dos compromissos religiosos; tais como o dízimo e as primícias.
O culto do Templo não era contestado nem mesmo pelos
monges de Qumrân, mas o que se contestava era a indignidade do alto clero que o presidia.
Jesus estava presente no Templo onde ensinava e
fez ali algumas curas (Mt 21,14; Jo 18,20), expulsou os
vendedores e compradores (Mc 11,15), e anunciou a sua
destruição (Mc 13,2; Lc 13,34-35). Jesus não anunciou
a destruição do Templo como fizeram os profetas, ou
seja, por causa da infidelidade do povo, nem uma sua
reforma, conforme propunham as classes sacerdotais e
farisaicas, mas a superação do Templo com a instalação
do Reino, pois para ele o Templo encontrava-se onde se
atuava uma nova relação com Deus (Jo 4,23).
Nenhum personagem é tão falado, estudado e
lembrado em vida e depois da morte como Jesus. Ne106
nhum livro foi exposto tanto à crítica quanto os Evangelhos que falam Dele e é a sua fonte principal.
Sua vida foi singular e um parodoxo, tentam matá-lo quando ainda criança de berço, o perseguem durante a sua vida pública, respondem com pedras à sua
lógica, e por fim pregam-no numa cruz, para Dele livrar-se, mas o temem também quando morto e colocam
estupidamente os guardas no sepulcro para o guardarem.
Depois de sua morte, no curso de 20 séculos,
uma soma ininterrupta de inimigos continuou a perseguição sempre mais refinada, atormentando e perseguindo os seus seguidores, renegando o seu evangelho,
suas obras. Mas depois de 20 séculos Ele continua em
nosso meio como um sinal de contradição. Por que?
Porque junto com o número de seus perseguidores. Existem também um grupo sempre mais crescente de
amantes apaixonados, de Sua pessoa e de sua mensagem, que vivem e morram por ele em todo o mundo. A
mesma coisa se dá com o seu evangelho, todas as anatomias e sofisticações da crítica não conseguiram dilacerá-lo.
Hoje assistimos infelizmente com o coração triste
uma crise de fé, uma indiferença quanto ao seu ensinamento que também é presente entre seus seguidores
e que se tornou uma práxis. Trata-se da fé Nele que é
sacudida pela crise do pensamento. Mas esta crise de fé
tem seus precedentes já no passado, abrindo-se abre no
século XVIII, onde a preocupação dos autores deste período era de eliminar da vida de Jesus o elemento sobrenatural e reduzí-lo a um mito (Strauss), de tê-lo como um homem de alto sentimento moral (escola liberal),
como um pregador da paternidade e Deus e da fraternidade (Harnack), como um homem encantador (Renan),
107
ou como um obssessionado do fim do mundo (Scheweitzer).
Mas depois de um itinerário aventuroso de 20 séculos a crítica confirma substancialmente a doutrina
católica sobre a pessoa de Jesus e seu Evangelho. Portanto, o “Jesus Praedicans” e o “Christus Praedicatus”,
o Jesus de Nazaré é o Cristo kerigmático, é uma mesma
realidade. Podemos, portanto ter os evangelhos como
documentos históricos, para encontrar o Cristo, cuja
existência é também atestada por fontes profanas bem
notáveis: tais como: Svetonio, Plinio, Flavio Josefo e sobretudo Tácito que nos seus Anais insere Cristo na história de Roma com tais afirmações: “O autor desta denominação (cristãos), Cristo sob o imperador Tibério foi
condenado ao suplício pelo procurador Poncio Pilatos...”.
Por isso mesmo Schwietzer disse que de “poucas personalidades do mundo antigo possuímos tantas notícias e
discursos, seguramente históricos quanto a de Jesus”.
Mas a prova mas verídica da historicidade de Jesus é a Igreja uma instituição de 20 séculos. Esta revolucionou o mundo, criou um direito, uma mística, uma
arte admirável, uma cultura, uma civilização que se encarnou em todas as raças e sobre toda a terra. A Igreja
e o cristianismo fazem parte das civilizações de quase
todo o mundo, também se em alguns lugares existem
perseguições aos cristãos. Isto demonstra não só a existência histórica de Jesus, mas também a sua presença
operante nos séculos.
A mentalidade de Herodes foi mais grega do que
hebraica fazendo-se rodear sempre por literatos gregos.
Ele irritou muitos judeus mandando colocar uma águia
romana sobre a porta do templo. Os últimos anos de sua
vida foram conturbados e por desconfiança mandou matar os seus dois filhos, Alexandre e Aristóbulo e ficou
desconfiado até de seu filho predileto Antípater, o qual
108
mandou matá-lo também. Apesar de tudo isso, Herodes
teve o mérito de assegurar na Palestina um período de
paz com a sua boa administração.
Herodes morreu no o ano 4 aC e logo em seguida
a o Imperador Augusto concedeu ao seu filho Arquelau o
título etnarca da Judéia, Samaria e Induméia, deu
também a administração a Herodes Antipas da Galiléia e
da Pereia e para Herodes Felipe, as regiões além do Jordão: Batanéia, Traconítide, Auranítide com Panéias e
também Ituréia.
16.
A EDUCAÇÃO FAMILIAR E SOCIAL DE JESUS
Jesus viveu a sua adolescência em Nazaré, um
lugarejo de 1.600 habitantes e quase todos analfabetos.
A primeira educação entre os judeus era recebida
na família, a qual era prosseguida nas Sinagogas, as
quais eram usadas também como escolas especialmente
para a instrução primária. Em Nazaré existia uma escola elementar que funcionava na Sinagoga. As Sinagogas
eram centros de aprendizagem. O Jesus ia à Sinagoga
nos sábados o que indica que desde a infância tinha
uma familiaridade com ela. Jesus recebeu a educação de
José seu pai. O Talmude de Jerusalém ensina que entre
o deveres dos pais para filhos estava o de ensinar-lhes
uma profissão, de dar-lhes o casamento, e os primeiros
rudimentos do conhecimento da Sagrada Escritura ensinando-lhes a lei e as mais importantes orações tradicionais.
Jesus fazia parte de um povo que sabia rezar e
por isso todos os dias recitava o Shemá (Dt 6,4-7), oração esta obrigatória para todos de sexo masculino com
idade 13 anos para cima e que era receitada pela manhã
e pela tarde. Esta era o mínimo da prática religiosa. Além desta havia também uma tríplice oração chamada
109
tefila, a qual era recitada pela manhã, a tarde e ao anoitecer, obrigatória também para as mulheres, as crianças
e os escravos. Em vista destas obrigações de orações diárias, o piedoso israelita usava os tefilim, pequenas caixas amarradas no antebraço esquerdo e na fronte e que
continham a alguns trechos bíblicos como Ex 13,110.11-16; Dt 6,4-9;11,15.21; Nm 15,36-41. Alguns desses carregavam fitas coloridas nas bordas dos mantos,
chamadas zizit, com o significado de chamar atenção
para a observância dos mandamentos. Usava-se também publicamente os Mezuzôth, ou seja, pequenos pedaços de pergaminho com textos do Shemá, que eram
colocados nas portas de locais públicos para chamar a
atenção de todos para a oração e observância da lei.
Muitos estudiosos afirmam que o Shemá e a tefila foram
orações habituais de Jesus, as quais eram excitadas em
hebraico.
A descoberta do teatro em Séforis, a poucos quilômetros de Nazaré, com 4.000 ou 5.000 lugares, mostra
que ali havia um vasto e difuso conhecimento do grego
também para as aldeias circunvizinhas. Face a isso os
estudiosos afirmam que Jesus falava o grego, além do
aramáico e compreendia o hebraico. Os estudiosos excluem que Jesus tenha freqüentado escolas superiores
de rabinos, mas freqüentou sim, escolas elementares,
visto que nas Sinagogas, desde os tempos antigos, existiam lugares para a instrução. Fílon chama a Sinagogas
de escolas (didaskaléia) onde era ensinado todo o gênero
de virtudes.
17.
JERUSALÉM NO TEMPO DE JESUS
Uma descrição bastante completa sobre Jerusalém, nos é dada pelo teólogos Joaquim Jeremias em seu
110
livro “Jerusalém no tempo de Jesus”, a qual era compreendida socialmente por uma população de classes altas
dentre as quais o alto clero, a nobreza leiga e a classe
superior dos escribas. Depois, as classes médias compreendiam os grandes e pequenos comerciantes, os artesãos proprietários de oficinas, os funcionários e servidores administrativos. Para estes, os peregrinos eram
uma grande fonte de receitas tanto para o fornecimento
de alimentação como de animais para o sacrifício. Nessa
classe existiam muitos artesãos. O Templo era uma das
principais receitas sendo que naquele tempo calcula-se
a existência de 2.000.000 judeus, dos quais 1.500.000
viviam na diáspora e o restante na Palestina. Supondo
que um terço dos homens adultos pagasse de taxa o
meio ciclo, o qual valia dois denários, o salário de 2 dias
de um operário, chegava-se à soma de um milhão de
denários, uma enorme soma, e a isso juntavam se as
doações espontâneas. Por fim, vinham as classes pobres
e constituídas de trabalhadores braçais, mendigos e escravos. Os escravos eram vendidos; em Jerusalém existe
uma pedra sobre a qual se expunham os escravos para
serem vendidos como mercadorias.
Para que tenhamos uma visão mais ampla do ambiente de Jerusalém abordaremos alguns aspectos que
faziam parte do panorama desta cidade no tempo de Jesus, a saber: as profissões, as construções, a religião e o
culto, a nobreza leiga e por fim a situação social da mulher.
As Profissões
No judaísmo as profissões eram muito valorizadas,
por isso usava-se dizer que “Quem não ensinava uma
profissão ao filho, era como se lhe ensinasse o banditismo”. As profissões mencionadas no Talmud eram várias
desde fabricantes de prego, comercializantes de linho,
111
padeiros, curtidores, arquitetos, comercializantes, etc.
Era comum encontrar na Judéia, artigos de lã, inclusive
existiam 80 jovens que teciam para o Templo em Jerusalém, embora esta profissão era quase que exclusivamente feminina, pois esta profissão era considerada desprezível. É interessante salientar a existência da profissão
de pisoeiro, a qual consistia em tornar a lã impermeável
e os que a exerciam eram na maioria não judeus. Salienta-se ainda que a curtição de couros era um serviço que
não faltava porque as peles das vítimas oferecidas em
sacrifício eram aproveitadas sobretudo pelos sacerdotes.
As profissões dos oleiros e ferreiros também eram bastante comuns. Havia também a profissão dos médicos
(Mc 5,26). Era comum igualmente a profissão de copistas.
Entre os produtos alimentícios estava em 1º lugar
o óleo, produzido nos arredores de Jerusalém, ricos em
oliveiras devido ao solo propício. De fato em Jerusalém
haviam muitos lugares que inclusive prensavam as azeitonas trazidas da Pereia. Getsemani significa lagar, ou
seja, um instrumento onde se espremiam azeitonas, uvas... Este era um trabalho muito considerado.
Em Jerusalém havia também os carregadores de
água, pois segundo Flávio Josefo este comércio era forte
no tempo de seca. Antes da chegada de Tito, a fonte de
Siloé tinha secado assim como outras da cidade, e precisava portanto comprar água em ânforas. Marcos (14,13)
refere-se a um transportador de água numa bilha.
Em Jerusalém também se confeccionava bálsamo
e resinas, pois os bosques tinham árvores como o cinamomos que quando queimadas exalavam perfumes agradáveis, inclusive suas folhas eram usadas entre os
perfumes queimados no Templo. Era, portanto comum a
venda de bálsamo. As mulheres compraram aromatas
112
para ungir o mestre (Mc 16,1). Nicodemos veio ao sepulcro “trazendo uma mistura de mirra e aloés (Jo 19,39).
Os comerciantes de bálsamo representavam um
papel importante sobretudo para a corte de Herodes o
Grande, assim como a do artesanato artístico, sobretudo
de enfeites femininos. Estes enfeites eram comprados
pelo povo durante as peregrinações à Jerusalém como
forma de lembranças.
As construções
Herodes o Grande (37–3 aC) foi um grande construtor e dentre as suas obras destacam-se a restauração
do Templo; a construção do palácio de Herodes (29–
19aC / 62 – 64dC) com suas Três Torres (Hippicus, Fasael e Mariana); a Fortaleza Antonia; o suntuoso túmulo
de Herodes; o Teatro e aqueduto; Agripa I (41– 33dC) –
este governador construiu de interessante uma formidável muralha (com 5,25 m de espessura) no lado mais
setentrional de Jerusalém com aproximadamente 3.530
m de cumprimento. Agripa II (50-53 dC) dedicou-se ao
término do Templo de Jerusalém (62–64 dC), para o qual
usou mais de 18 mil homens. Mandou calçar as ruas de
Jerusalém com pedras brancas.
É de se notar que para as construções o material
mais utilizado era a pedra e que as construções reais
eram quase sempre monumentos estilizados, utilizando
para isso os melhores profissionais, assim como os artistas, os escultores, os tecelões artísticos, os projetistas
de jardins, os artífices para o trabalho com ouro e a prata, os fabricantes de mosaicos...
Para a construção do Templo de Jerusalém o qual
foi iniciado em 29-19 aC e terminado em 62-64 quando
era governador Albino, no começo foram contratados 10
mil operários e mil sacerdotes foram transformados em
artesãos. Construindo em mármore preto, branco e a113
marelo, com madeira proveniente do Líbano e com cedro, este foi construído com a maior ostentação possível.
Herodes queria recobri-lo todo de ouro e mesmo onde
não tinha ouro brilhava de modo a cegar (Josefo), sendo
todo equipado com utensílios sacros de ouro e prata.
Sua fachada (27,5m) era recoberta de placas de ouro
(Josefo), e correntes de ouro caiam das traves do teto, e
a mesa era em ouro maciço. O ouro era tão abundante
em Jerusalém, especialmente no Templo, que após a
tomada da cidade, uma imensa oferta deste material invadiu todo a Siria e a libra de ouro passou ser vendida
pela metade de seu preço (Josefo).
O culto e a religião
Durante os 82 anos de restruturação do Templo o
culto nunca foi interrompido. Não faltavam no Templo
os encarregados pelo fornecimento da água, os barbeiros
para as cerimônias dos votos de nazir, da consagração
dos levitas e da purificação após a cura da lepra. Existiam médicos no Templo para os sacerdotes e os pães da
proposição eram preparados pela família Gramo e a fabricação dos perfumes era do encargo da família de Entiros.
O Templo constituía o centro de uma colônia de
profissões durante os serviços litúrgicos contínuos. Os
trabalhadores ganhavam bem com pagamentos feitos
pelo tesouro do Templo, inclusive o tesouro era obrigado
a suprir as necessidade dos operários desempregados e
foi certamente por isso que após a restauração do Templo empreendeu-se a pavimentação das ruas de Jerusalém. Algumas famílias tinham cargos vitalícios como a
de preparação dos pães e perfumes para queimar.
Jerusalém situava-se numa região desfavorável às
profissões e pedra era a única matéria prima encontrada
com abundância nos arredores. Nas montanhas da Ju114
déia os rebanhos produziam peles e lã, a oliveira, a
mandioca e a azeitonas. A argila era de má qualidade e
faltava água, pois Jerusalém dispunha de uma única
fonte importante, a de Siloé. Na época da seca precisava
comprar água.
Jerusalém no tempo de Jesus tinha 25 mil habitantes e era uma cidade em que fluía muito dinheiro,
pois do mundo inteiro chegavam as taxas previstas pela
lei, taxas sob forma do imposto da didracma, do comércio das vítimas, dos votos... O fluxo de estrangeiros dava
boa renda com as peregrinações durante as festas. Todo
israelita piedoso tinha de gastar em Jerusalém um décimo do rendimento de sua terra, este era o chamado 2º
dízimo.
Havia ainda rendimentos dos impostos. Segundo
Josefo, Arquelau arrecadava anualmente da Induméia,
da Judéia e da Samaria, 6 milhões de dracmas. Diante
deste oásis material é claro que Jerusalém atraia os homens que possuíam grandes capitais, os importantes
negociantes, os editores de impostos, da mesma forma,
os judeus da diáspora que se tornavam ricos e vinham
morar ali. O Templo dava um grande suporte financeiro,
pois com os fundos do Templo pagava-se a manutenção
dos edifícios da cidade, a limpeza, a pavimentação e até
o serviço de água da cidade.
A esmola representava grande papel na piedade
judaica: “muitas esmolas, muita paz”, ensinava Hilel.
Ter compaixão do próximo era sinal que permitia reconhecer a descendência de Abraão. “O sol da riqueza é a
prática da caridade”. Era uso corrente dos peregrinos
praticarem a caridade em Jerusalém, estes gastavam em
Jerusalém com beneficência certa parte do segundo dízimo.
Em Jerusalém havia pessoas encarregadas de
procurar roupas e alimentos para as pessoas em trânsi115
to. O At 4,37; 5,2 fala de colaboradores voluntários na
distribuição dos bens. At 6,2 fala dos comandantes que
alimentavam os pobres. O Tamhûy (prato dos pobres)
era distribuído igualmente todos os dias aos pobres em
trânsito (pão, favas, frutas), o Qûppah (cesta dos pobres), era distribuída igualmente toda semana contendo
alimentos e roupas. O judeu fiel costumava devia dar
aos pobres após deduzir as taxas prescritas, um décimo
dos produtos que lhe restavam.
Havia no Templo, duas salas denominadas “Sala
dos silenciosos” e “Sala dos utensílios”. Na sala dos silenciosos ou dos pecadores, as pessoas temendo o pecado, depositavam suas dádivas em silêncio (secretamente)
e os pobres de boas famílias (pobreza envergonhava) eram atendidos em segredo. As pessoas podiam colocar o
dinheiro também no cofre do Templo (2Mc 3,4 – 6,1011). As viúvas e órfãos serviam-se do cofre (2 Mc 3,10).
Era proibido gastar o segundo dízimo fora de Jerusalém.
O culto constituía a principal fonte de renda para
Jerusalém, este garantia o meio de vida da nobreza sacerdotal, dos sacerdotes e dos funcionários do Templo.
O povo hebreu viveu muitas calamidades; em 163
aC Jerusalém foi assediada, os campos não produziam,
o que agravou a fome. Houve também uma seca violenta
em 65 aC. Em 64 aC um tufão destruíra colheitas em
todo o país. Em 37 aC com o cerco de Jerusalém a fome
grassou com violência em Jerusalém. No ano 13º de Herodes houve uma seca persistente que tornou o país improdutivo e nele planta alguma brotava, faltando alimentos, e diversas epidemias se espalharam como uma
espécie de peste que matava violentamente. Havia falta
de roupas porque os rebanhos foram dizimados ou
transformado em alimento, deixando de existir a lã e outras matérias primas para tecelagem.
116
O Sumo Sacerdote era a personagem mais importante do povo. Sua função habilitava cumprir a expiação
pela comunidade enquanto mandatário de Deus. Esse
caráter oriundo de sua função era-lhe conferido pela
investidura, com a tradição dos paramentos pontificais
compostos de 8 peças. Esta veste possuía uma virtude
expiatória, cada uma destas 8 peças expiava pecados
determinados. Assim sendo, tal veste constituía para os
judeus o símbolo da religião. Somente o Sumo Sacerdote podia penetrar um dia do ano Santo do Santo, o lugar
sacrossanto, vazio e silencioso. No momento da distribuição das coisas santas do templo entre os sacerdotes em
serviço, o Sumo Sacerdote podia selecionar aquilo que
desejasse, tinha licença de escolher para si em sacrifício
pelos seus pecados (animais ou aves) um sacrifício de
reparação, uma porção de oferendas alimentares, 4 ou 5
ou até mais dentre os 12 pães da preposição distribuídos cada semana, e por fim um couro do holocausto.
A lei previa um único dever para o Sumo Sacerdote; aquele de oficiar no dia da expiação (Lv 16) que entre
as obrigações tinha que ser ofertado um novilho imolado
pelos pecados no dia da expiação. A lei proibia de tocar
num defunto, de participar de um enterro e de deixar
crescer os cabelos em desalinho. Na semana precedente
ao dia da expiação o Sumo Sacerdote devia submete-se
por 7 dias à cerimônia de purificação (Nm 19,11-16) e
por 7 noites devia instalar-se e passar a noite num cômodo do Templo, para proteger-se da possibilidade de
qualquer contágio de impureza, em particular de sua
mulher. Este costume deu-se por volta do ano 20 dC
quando o Sumo Sacerdote Shimeon recebe nas vésperas
do dia das expiações o escarro de um árabe e ficou inapto par oficiar. O Sumo Sacerdote para preservar a pureza só podia casar com uma jovem virgem; não podia ser
nem viúva, nem repudiada, nem prostituta (Lv 21,13117
15). Esta virgem devia ter a idade entre 12 a 13 anos e
filha de um sacerdote, ou de um israelita de descendência legítima. O Sumo Sacerdote devia ter uma apresentação particularmente cuidada na sociedade. Se o Sumo
Sacerdote não pudesse oficiar no dia das expiações, um
sacerdote o substituía e passava a ser contado na lista
de Sumo Sacerdote, embora fosse apenas um substituto
por algumas horas. Se o Sumo Sacerdote fosse deposto
do cargo como foi Yohua (63-65), Anan (62 dC) conservava o seu prestígio, conservava o seu “charater indelebilis”, pois possuía uma santidade eterna. O Sumo Sacerdote transmitia o pontificado a seus descendestes,
embora no tempo dos Romanos, estes eram investidos,
contudo os políticos não davam muita importância às
prescrições como Herodes que investiu Aristóbulo como
Sumo Sacerdote em 35 aC com 17 anos quando a idade
canônica era de 20 anos. Herodes ousou nomear e destituir Sumos Sacerdotes. Assim, sob os Romanos o cargo
deixou de ser vitalício e hereditário. Neste período os
Sumos Sacerdotes de idéias saducéias tiveram que calar
suas opiniões no Sinédrio. Entretanto, casos de reportismo, conquistas abusivas, transgressões nas prescrições para seu próprio matrimônio, prática de comércio
na esplanada do Templo, era falta de formação teológica, contribuíram para diminuir o prestígio dos Sumos
Sacerdotes. Entretanto, no século I de nossa era a importância do Sumo Sacerdote foi reforçada consideravelmente. Enquanto chefe do Sinédrio e representante
do povo, neste período em que não havia mais rei, os
Sumos Sacerdotes representavam os judeus perante os
Romanos. Eram homens influentes como Anás e Caifáz,
O fato de serem eles os únicos a poderem entrar no Santo dos Santos os exaltavam acima dos demais.
O sacerdote de grau mais elevado a do Sumo Sacerdote, era o comandante do Templo e sua função liga118
da ao culto no Templo durante as cerimônias solenes,
era de assistente do Sumo Sacerdote e ocupava lugar de
honra. Se o Sumo Sacerdote não pudesse exercer as
funções no dia das expiações ele era substituído. Não
podia ser nomeado Sumo Sacerdote sem antes não ter
sido comandante do Templo e estes eram escolhidos entre as famílias de Aristrocracia Sacerdotal. O comandante devia fiscalizar o serviço de culto no Templo e podia efetuar as prisões que quisesse. Foi um deles que
prendeu o apóstolo Pedro no pórtico do Templo (At 5,2426).
Depois do comandante do Templo em ordem de
importância vinha os chefes das seções sacerdotais
hebdomadárias em número de 24 e os chefes das sessões cotidianas abrangendo cerca de 156. Esses sacerdotes viviam na Judéia e Galiléia, só estavam presentes
em Jerusalém uma semana em 24 semanas quando tinham o serviço com as funções determinadas para o
culto cotidiano. Estes realizavam as cerimônias de purificação para os leprosos e para as mulheres particularmente na porta de Nicanor, porta de comunicação entre
o átrio das mulheres com a dos israelitas. Foi um destes que recebeu o sacrifício de Maria (Lc 2,24), era também nesta porta que o sacerdote hebdomadário devia
fazer a mulher suspeita de adultério, beber as águas
amargas (Nm 5,16).
Havia também os tesoureiros do Templo que cuidavam das finanças do Templo e que compreendia, pois
imóveis, quantias em dinheiro, jóias, administração de
taxas e ofertas, assim como capitais particulares ali depositados, a fiscalização das aves e outros gêneros para
o sacrifício. Cuidavam ainda da administração e conservação dos aspectos em ouro e prata dos quais 93 eram utilizados num único serviço diário. Portanto, um
vasto campo de atividades com um grande número de
119
funcionários. Eram três os que se ocupavam das operações financeiras, os quais administravam as rendas do
Templo, tais como as doações e os impostos (Mt 17,24).
Administravam também as despesas de compra de lenha, do vinho para as libações e da farinha.
Em suma, as funções na cerimônia no Templo exigia muita gente, além do Chanceler (encarregado de receber o pagamento de ofertas de uma libação), o Ahia
(encarregado das libações), o Pethaia (encarregado dos
sacrifícios de aves), o Bem Ahia (médico do Templo), o
Bem Arza (chefe dos músicos), o qual dava o sinal aos
levitas do meio do culto, o Hugdas (cerimoniário do coro).
Paralelamente à aristocracia sacerdotal encontramos uma multidão de sacerdotes divididos em 24 classes cumprindo alternadamente uma semana de trabalhos em Jerusalém de sábado a sábado. O conjunto dos
sacerdotes compunha de 24 sessões hebdomadaria divididos aproximadamente em 156 sessões cotidianas, que
eram os encarregados dos sacrifícios públicos cotidianos, dos sacrifícios dos perfumes, do holocausto de um
cordeiro, da oferta alimentar. Calcula-se sem exageros a
ocupação de 50 sacerdotes para uma seção cotidiana
sendo que uma sessão hebdomadaria compreendia 6
sessões cotidianas, ou seja: 50x6 = 300 sacerdotes para
uma sessão hebdomaria. 24 sessões hedomadarias x
300 sacerdotes = 7.200 sacerdotes mais os levitas, dos
quais eram necessários 200 para fechar as portas do
Templo juntamente com os guardiões em serviço numa
sessão hebdomadaria. Além dos levitas cantores e músicos que também eram em número de 200, portanto 400
x 24 sessões = 9.600 levitas. Concluiu-se que no tempo
de Jesus existia um clero no total de 18.000 entre sacerdotes e levitas.
120
As funções dos sacerdotes se limitavam a duas
semanas por ano e às três festas anuais de peregrinação. Portanto os sacerdotes viviam em suas casas de 10–
14 meses (conforme a distância que estavam de Jerusalém). Além disso o sacerdote podia declarar puro um leproso após a cura (Mt 8,4; Lc 17,14), antes de ir à Jerusalém para oferecer o sacrifício pela própria purificação.
Os sacerdotes tinham o dízimo, mas era insuficiente para viver, portanto precisavam trabalhar. Só Herodes na
reconstrução do Templo utilizou mil carpinteiros sacerdotes, visto que suas profissões eram variadas, tais como: talhadores de pedras, comerciantes, açougueiros,
criadores de gado...
Os levitas constituíam o baixo clero e sendo inferiores aos sacerdotes não participam do serviço sacrificial,
somente eram encarregados da música do Templo e dos
serviços inferiores no mesmo. Também divididos em 24
sessões heldomadarias revezavam cada semana para os
serviços que eram dirigidos por um chefe. Eles se dividiam em músicos e servidores do Templo. Os músicos eram superiores e acompanhavam as liturgias.
No serviço cotidiano o chefe do coro dos levitas e
os levitas músicos e cantores, assim como os 12 tocadores de flautas na Páscoa e na festa das Tendas, ficavam
em cima de um estrado que separava o átrio dos sacerdotes e dos Israelitas.
Os sacerdotes do Templo incumbiam-se de funções inferiores de sacristãos e ajudavam os sacerdotes a
se vestirem e se despirem de suas vestes sacerdotais,
preparavam o livro das leituras bíblicas, cuidavam da
limpeza do Templo, mas não podiam entrar no átrio dos
sacerdotes, visto que este os mesmos sacerdotes limpavam. Eram também os seguranças do Templo, interceptando a passagem das pessoas para os lugares proibidos. Montavam guarda dia e noite no Templo e tinham
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até autoridade para prender. As autoridades para prender Jesus (Mc 14,43; Mt 26,47) comandada pelo chefe
do Templo (Lc 22,52) eram compostas por esta segurança levítica, reforçada pela Corte do Sumo Sacerdote (Mc
14,17) e também por soldados romanos (Jo 18,3-12).
Tanto a função do sacerdócio como do levita era
transmitida por herança, através de um levantamento
de suas genealogia e se um sacerdote tinha um casamento ilegítimo seus filhos não podiam ser sacerdotes.
No Templo de Jerusalém havia um arquivo das
genealogias do clero sempre atualizado. Muitas destas
genealogias desapareceram com as guerras sob Antíoco
Epifanio, Pompeu, Vespersino, Tito... Quando um filho
de um sacerdote tinha 20 anos, o Sinédrio sediado no
Templo na sala de pedras talhadas, do lado sul do átrio
dos sacerdotes, examinava-o quanto as suas condições
físicas e a legitimidade de sua origem para ser ordenado. Só depois e com um banho de purificação, impunham-lhe a veste sacerdotal (veste longa de bisso, calça
do mesmo tecido, faixa e turbante); ofereciam depois
uma série de sacrifícios aos quais se acrescentavam cerimônias particulares, ao todo esse ato solene durava
sete dias. Para os levitas também se fazia um exame de
sua origem para poder admiti-lo na função e devia ter a
idade entre 20 até 30 anos.
Se um sacerdote ou levita cantor se casava, era
preciso examinar a genealogia de sua esposa, a fim de
que um nascimento legítimo garantisse aos sacerdotes
ou levitas a dignidade. Examinavam também se os seus
pais, avós e bisavós eram de sangue puro. Freqüentemente um sacerdote casava com a filha de um sacerdote, basta lembrar o exemplo do Sumo Sacerdote Zacarias
da classe sacerdotal de Abia, que desposou Isabel, filha
de sacerdote (Lc 1,5).
122
O comércio
Os agricultores da região traziam eles mesmos
seus produtos para Jerusalém onde pagavam uma taxa
ao cobrador de alfândega do mercado. Porém, Jerusalém
tinha comércio com a Grécia, importava madeira do Líbano, vidros de Sidon, escravos da Siria, tecidos valiosos
da Babilônia, perfumes da Arabia... O trigo de primeira
qualidade da Galiléia era utilizado no Templo. A maioria
do trigo vinha de regiões da Palestina. As frutas e verduras eram produzidas pelas cercanias.
Os animais de corte vinham da Transjordânia,
basta dizer que um comerciante denominado Buta, contemporâneo a Herodes o Grande, fez vir 3.000 cabeças
de animais de pequeno porte para venda para os holocausto e sacrifícios pacíficos. Havia no átrio dos gentios
um comércio florescente de animais para o sacrifício,
talvez dirigido pela família de Anás (cf. Jo 2,14).
Por ocasião da Páscoa usava-se uma enorme
quantidade de espetos de romanzera para milhares de
vítima. Para o sacrifício diário serviam-se da figueira, do
pinho e da nogueira. A oliveira e sarmento eram impróprios.
As montanhas de Jerusalém com suas grutas eram um terreno favorável ao banditismo (Lc 10,30-37).
Em Jerusalém o nível de vida faustoso dos reis impunha grandes gastos. Quando Herodes construiu o seu
palácio fez vir do mundo inteiro os melhores materiais;
este palácio sobrepujava o Templo em esplendor. Jerusalém também era bem freqüentado por banqueiros (Mq
2,1-5; Is 5,8). O agricultor impelido pela necessidade,
via-se obrigado a hipotecar suas terras e sua colheita.
Jerusalém consumiu uma grande quantidade de material de qualidade para a restauração do Templo, pois
deste exigia-se o maior brilho e portanto material de
primeira qualidade, tais como: mármores em preto,
123
branco, amarelo e grande quantidade de ouro. Para o
culto no Santuário usava-se lenha, vinho, óleo, trigo,
incenso de primeira qualidade. Os Sumos Sacerdotes
tinham vestes com tecidos preciosos provenientes da
Índia. Todos os dias uma grande quantidade de novilhos, bezerros, carneiros, cabras, rolas eram oferecidos
como sacrifícios públicos. No tempo da Páscoa ofereciam-se diariamente dois vitelos e sete cordeiros em holocausto e um bode como sacrifício expiatório, assim como
os sacrifícios privados, basta dizer que para comemorar
o término do Templo, Herodes mandou sacrificar 300
bois.
Três vezes por ano o Templo atraia enormes multidões de peregrinos (Dt 16,1-16). Os judeus chegavam
de toda parte do mundo, especialmente para a Páscoa.
Era preciso alimentar essa massa humana, que vinha
com seu segundo dízimo, isto é com o décimo de todos
os produtos colhidos para gastar em Jerusalém. O número de vítimas imoladas eram aos milhares (256 – 500
vítimas pascais), diz Josefo.
Os estrangeiros vinham à Jerusalém de quase todo o mundo atraído antes de tudo por motivos religiosos
e em segundo lugar nas razões de natureza política ou
econômica. Eram especialmente sírios, babilônicos, egípcios e gente da Ásia Menor. Jerusalém era o lugar
onde estava a corte de Herodes, e onde o espírito helenista reinava com influência total. A luta das feras, as
corridas das bigas, os jogos de ginásio eram um poderoso centro de atração.
Jerusalém era também a sede do Supremo Tribunal, pois ali estava sediado o Sinédrio, a primeira Assembléia do país que por sua característica e sua atribuição, estendia-se aos judeus do mundo inteiro. Dada a
sua importância, o Sinédrio entretinha relações com o
mundo inteiro. Desde o ano de 6 dC Jerusalém era uma
124
cidade romana na Província com guarnição de tropas, e
dada a sua importância como centro da vida política
judaica, o povo afluía em grande número para assuntos
públicos e privados.
Jerusalém era um dos centros mais importantes
para a formação religiosa dos judeus. Atraia sábios da
Babilônia e do Egito e a reputação mundial de seus homens doutos fazia acorrer para lá os alunos. Nela achava-se o centro de convergência da vida farisaica, e depois durante muito tempo foi o centro da cristandade (Gl
2,1-10). Os cristãos do mundo inteiro enviavam ofertas
às comunidades de Jerusalém. Muita gente ali se estabelecia para ali depois morrer. Era a pátria do culto judaico, o lugar da presença divina na terra, ali os judeus
vinham para rezar. No Templo levavam para o julgamento de Deus a Sôtah, ou seja, mulheres suspeitas de adultério. No Templo levavam as primícias, ali, após cada
nascimento, as mães se purificavam pelo sacrifício prescrito e os judeus do mundo inteiro para lá enviavam suas taxas. Ao Templo, três vezes por ano fluía o judaísmo
disperso por todas as nações.
Nas três festas principais todos eram obrigados
comparecer no Templo, exceto os surdos, os débeis mental, os menores, as mulheres, os escravos, os coxos, os
cegos, os enfermos, os anciãos. Menor era aquele que
não podia ainda montar a cavalo nos ombros do pai.
Os que moravam longe se permitiam de fazer a
cada ano somente a viagem pascal. As mulheres também podiam ir se bem que não eram obrigadas, mas era
costume para os de longe levar o filho em Jerusalém
quando este completava 12 anos (o Talmude indica o
13º ano como idade a partir da qual o Israelita fica obrigado a submeter-se aos preceitos da lei), mas era costume levar as crianças de 12 anos nas peregrinações
125
para habituá-las ao preceito que devia atingi-los a partir
dos 13 anos.
Da diáspora também chegavam os peregrinos para
as festas “Miriades chegavam de miríades cidades para
cada festa do Templo, uns por via terrestre, outros por
mar, do oriente e do ocidente”... Segundo cálculos de
Joaquim Jeremias, o número de participantes à Páscoa
era de aproximadamente 180 mil peregrinos.
O luxo entre os ricaços de Jerusalém era grande,
dois homens apostaram 400 Zûr (denários) para ver
quem conseguia encolerizar Hilek. Rabi Meir conta que
alguns ricaços de Jerusalém amaravam 4 cordões de
ouro para as cerimônias das festas das Tendas. Em Jerusalém bebia-se o vinho de mesa em copos de cristal. A
nobreza sacerdotal residia em mansões, tinha servos e
servas.
Os escribas no tempo de Jesus com freqüência tinham uma profissão ao lado do ensinamento que davam
e viviam de auxílios. Não existiam muitos escribas ricos
no tempo de Jesus, mas os escribas que eram sacerdotes, recebiam salários, assim como os que estavam a
serviço do Templo, eram pagos com o dinheiro do tesouro. Os escribas pertenciam na maioria à classe pobre.
Diz que o escriba Agiba, em pleno inverno tinha que se
deitar sobre as palhas e nunca teve dinheiro suficiente
para dar um presente à esposa. Yuda bem Elai tinha
apenas uma capa e ele e a sua mulher usavam-na alternativamente para sair. Hibel, nascido na Babilônia veio
para Jerusalém a pé, trabalhou como diarista por um
Terop-pa’iq, isto é meio denário. Somente com 80 anos
conseguiu melhorar sua situação, tendo condições de
mandar sangrar um boi para si e sua família no átrio do
Templo.
Gado, pérolas, produtos colhidos e vinho, custavam bem mais caro em Jerusalém do que no campo. As
126
frutas custavam até três vezes mais que no campo. Devido a imensa demanda de pombas para o sacrifício, o
especulador fazia subir seu preço até cem vezes mais.
As taxas no tempo de Herodes o Grande eram altas, visto a necessidade de desenvolvimento do país,
com construções de pontes, administração de cidades,
assim como com as despesas no estrangeiro com construções de grandes dimensões nas cidades estrangeiras
como por exemplo em Rodes, Tripoli, Bibcor, Sidon, Tiro, Olimpia, Esparta, Atenas, Antioquia, Damasco. Devido o insaciável orgulho dos monarcas, havia além das
taxas, confiscos de bens. Contudo, Agripo I que herdou
de seu avô Herodes, o amor ao fausto, sabia cobrir suas
excessivas despesas pessoais sem sacrificar os súditos.
A nobreza leiga, os escribas e os fariseus
Os anciãos eram representantes da nobreza leiga,
membros do Sinédrio, formavam um grupo pequeno,
mas também conhecido como os grandes da cidade, os
conselheiros e os guardas de Jerusalém. Geralmente eram latifundiários, possuíam imóveis, e eram pessoas de
excelentes condições financeira. Eram em grande parte
Saduceus. A este grupo pertenciam alguns Sumos Sacerdotes (At 5,17.21), os quais formavam um grupo organizado e não era fácil pertencer ao seu círculo. Atinham-se estritamente à letra da Torá, tinham seu próprio código penal, eram conservadores, influentes na
nação e constituíam com os sacerdotes da alta classe o
Sinédrio. Tinham ao seu lado o poder judiciário e a autoridade governamental.
Também os escribas formavam uma classe superior. Havia um grande número de sacerdotes com formação de escribas. Pertenciam a esta classe também alguns membros do baixo clero, como chefe dos porteiros,
levita cantor; assim como pessoas de todas camadas do
127
povo: mercadores, artesãos, carpinteiros, cortadores de
linho, fabricantes de tendas, a maioria não pertencia a
classe abastada da população. O saber era o único e exclusivo poder dos escribas e quem desejasse agregar-se
à corporação dos escribas pela ordenação, seguia um
ciclo regular de estudos de alguns anos, começando como discípulo (Talmîd) e começava desde a tenra idade e
passando a ter um sólido conhecimento das escrituras
ainda jovem. O aluno tinha convivência pessoal com o
mestre e ouvia seus ensinamentos e quando tivesse aprendido a dominar toda a matéria tradicional e o método halaguita, a ponto de poder resolver por si mesmo
questões de legislações religiosas e ritual, tornava-se
“doutor não ordenado” (Talmîd hakam). Mas somente
com a idade canônica para a ordenação (40 anos), é que
podia ser ordenado (Semikak - At 6,6), sendo em seguida recebido na corporação dos doutores como membro
legítimo e doutor ordenado (Hakam) podendo ser juiz em
processos criminais, dar pareceres em processos civis, e
ter o título de Rabi. O próprio Jesus que não seguiu o
ciclo regular de formação culminado na ordenação, era
chamado de Rabi.
Somente os doutores ordenados transmitiam e
criavam tradição derivada da Torá, a qual se colocava
em pé de igualdade com a lei escrita e até mesmo acima
dela. Suas tradições tinham o poder de ligar e desligar
(Mt 16,19; 18,18).
Com exceção dos chefes dos sacerdotes e dos
membros das famílias patriarcais, o escriba era o único
que podia ingressar no Sinédrio. O partido fariseu do
Sinédrio compunha-se inteiramente de Escribas. O Sinédrio era eminentemente uma corte de justiça e o conhecimento da exegese escriturística era obrigatória nas
sentenças judiciárias. Por isso, estes exerciam também
atividades importantes na sociedade. Mas o fato da in128
fluência dominante dos escribas sobre o povo não consistia em serem conhecedores da tradição, ou no domínio da legislação religiosa, mas sim por serem portadores de uma ciência secreta, a tradição esotérica.
Era grande o prestígio dos escribas, quando passavam o povo levantava-se; eram saudados por primeiro
e chamados de Rabi. Quando os notáveis de Jerusalém
ofereciam um banquete era uma honra contar com alunos de escribas e futuros doutores. Os primeiros lugares
eram reservados aos escribas, e um Rabi merecia mais
honra que os próprios pais. Nas sinagogas tinham lugares de honra, sentavam de costas para o armário da Torá olhando a assistência e visível a todos, só em caso
especial contraiam matrimônio com filhas de pessoas
que desobedeciam a lei. Seus túmulos se encontravam
ao lado dos túmulos dos Patriarcas e dos Profetas venerados e conservados com temor supersticioso.
Já os fariseus que significa separados, formavam
verdadeira comunidade de Israel; eram pessoas do povo
sem formação escriba, porém eram muito ligados aos
escribas. Constituíam associações que visavam viver os
mandamentos religiosos. A origem deste grupo foi século
II aC, assim como a dos essênios. Para se tornar fariseus havia o período de um ano de prova durante a
qual o postulante devia dar provas de aptidão para seguir as prescrições rituais. O postulante se comprometia
em observar as prescrições judaicas sobre a pureza e o
dízimo.
A associação farisaica tinha seu chefe, fazia uma
refeição em comum na sexta-feira e tinha sua justiça
interna; podia pronunciar sobre a exclusão de um componente. Na época de Herodes havia mais de 60 mil fariseus (Jerusalém tinha 30 mil sacerdotes, 18 mil levitas e
4 mil essênios).
129
A comunidade farisaica compunha-se de plebeus,
gente do povo sem formação escriba, honestos, sérios,
muitas vezes severos e orgulhosos em relação aos demais que não observavam como eles as leis religiosas.
A situação social da mulher
Não participava da vida pública. Tinha o rosto escondido por um manto cobrindo-lhe a cabeça cingindo a
fronte e caindo até o queixo, portanto não se podia reconhecer os traços de seu rosto. Se a mulher saísse de casa sem cobrir o rosto faltava aos bons costumes e o marido tinha o dever de despedi-la sem pagar a quantia
que no caso de divórcio pertencia à esposa. Algumas
mulheres tão rigorosas nem em casa descobriam a cabeça (caiam sobre mim isto ou aquilo, se as traves de minha casa viram meus cabelos). Era proibido ao homem
encontrar-se sozinho com uma mulher, olhar para uma
mulher casada e até cumprimentá-la. Era vergonhoso
para um aluno de escriba falar com uma mulher na rua.
Nas Cortes governamentais não se observava este
costume, tome-se como exemplo o de Salomé (Mc 6,22)
No campo as mulheres que precisavam trabalhar não
observavam de modo tão estrito o hábito de cobrir a cabeça. Em casa as moças faziam o trabalho doméstico,
trabalhavam na costura e fiação e tomavam conta dos
irmãos menores. Para com os mais velhos tinham que
alimentá-los, vesti-los, lavar-lhes o rosto, as mãos e os
pés.
Até idade de 12 anos em meio a autoridade do pai
era soberania sobre a filha. A renda do seu trabalho era
dada ao pai e até a esta idade era o pai que escolhe o
marido dela acima de 12 anos e meio a filha era maior
de idade (era chamada Bôgenet) e podia noivar sem o
consentimento do pai.
130
Casavam a partir dos 12 anos e era comum se casarem entre parentes e quando casavam iam morar com
a família do marido. O marido tinha a obrigação de prover à sua mulher a alimentação, a moradia, o vestuário,
os remédios. Quando esta morria devia o marido contratar, mesmo que fosse pobre dois tocadores de flautas e
uma carpideira e até providenciar alguém para o discurso fúnebre.
Os deveres da esposa era cuidar do lar, moer, cozinhar, lavar amamentar, fiar, tecer lã, preparar bacia
para o marido lavar mãos e pés e sendo permitido a poligamia, a mulher devia tolerar a presença de concubina
a seu lado.
No tempo de Jesus os Shamaítas discutiram com
os Hiletitas sobre a exegese de Dt 24,1 que menciona
sobre o justo motivo para o homem repudiar a esposa,
caso encontre nela “qualquer coisa de vergonhoso”, “Erwat Dabar”. Os Hiletitas explicavam esta passagem assim: 1º. Uma imprudicícia (erwat) da mulher e 2º
Qualquer coisa (dabar) que desagradasse o marido davam-lhe o direito de afastar a mulher de sua casa.
Quanto à obediência a Torá a mulher era igual ao homem. Em todos casos de alguns mandamentos a mulher
era liberada, como por exemplo: ir em peregrinação à
Jerusalém na festa da Páscoa, Pentecostes, Tendas; abrigar-se nas tendas, agitar o lûlab por ocasião desta
festa, tocar o Shofar no dia do ano novo, ler a “megillah
(o livro de Ester) na festa de Purim, recitar diariamente o
Shemá, estudar a Torá. As escolas eram só para os meninos.
As Sinagogas tinham duas repartições: A
Sabbateîon reservada para as cerimônias litúrgicas, o
qual era acessível às mulheres, mas a Andrón só se abria para os homens e meninos.
131
Entretanto as famílias de classe média ensina às
jovens uma formação profana, ensinando-lhe por exemplo o grego, “pois era um adorno para elas”.
No Templo era permitido penetrar no átrio dos
gentios e das mulheres durante os dias de purificação
mensal e além desses no período de 40 dias após o nascimento de um filho (Lc 2,22), ou de 80 dias se fosse
uma menina (Lv 12,2-5). Não se podia entrar nem
mesmo no átrio dos gentios. Quando nascia um menino
era alegria, uma menina tristeza.
18. REFERÊNCIAS E ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE JESUS
Alguns dizem que há muito Marketing político nos
evangelhos para alegar que Cristo teria nascido no ano
70 aC., que o Natal não é 25 de dezembro, pois a Igreja
teria fixado este dia no ano 525 para coincidir com as
festas pagãs do Oriente e de Roma, que Jesus não nasceu em Belém (Judéia), mas em Nazaré (Galiléia), e o
presépio de Belém foi invenção dos evangelistas para
identificar a vinda do Messias com o que o Antigo Testamento anunciava.
Hoje a fé procura ser fundada em evidências científicas, basta dizer que existem mais de 80.000 livros
sobre Jesus Cristo.
É verdade que nas últimas 50 décadas as descobertas arqueológicas trouxeram à luz muitas coisas. A
lingüistica e a filosofia aprimoraram admiravelmente,
pois hoje pode-se comparar os textos antigos, analisar
os estilos, a mensagem e estabelecer pressupostos sobre a cultura da época, o ambiente, etc., entretanto de
Jesus desde o seu nascimento até seu batismo não temos descobertas arqueológicas sobre ele, e até a histo132
riografia grega e judaica não dizem nada dele neste período.
Com as escavações arqueológicas de 1945 nas
cavernas de Hammadi (Egito), onde encontra-se uma
biblioteca cristã do século 4º em língua Copta com evangelhos apócrifos e depois em 1947, com a descoberta dos manuscritos do Mar Morto nas cavernas de Qumran (Israel) encontrou-se documentos da seita judaica
dos essênios do ano 152 aC a 68 dC, os quais também
ignoram Jesus, mas revelam a cultura sobre a qual o
cristianismo cresceu. O filósofo, Pe. Emile Puech da escola Bíblica Arqueológica Francesa de Jerusalém afirma
que provavelmente o nosso conhecimento sobre Jesus
não vai mudar, mas poderemos ainda ter um melhor
conhecimento do Cristo real se surgirem novas indagações filológicas, lingüísticas e históricas sobre a Palestina e sobre a comunidade cristã do primeiro século.
Os quatro evangelhos são compilações de mensagens anônimas ou atribuídas aos apóstolos, orais ou
escritas, dos séculos I – II. Marcos o mais antigo evangelho foi escrito pelos anos 70 dC; Já Mateus foi escrito
entre os anos de 70 – 80; Lucas, foi escrito entre os anos 80 – 90 e João foi escrito depois dos anos 90. Os
evangelhos contém “material” suficiente para levar a fé
ao coração das pessoas abertas mas não para escrever
uma biografia de Jesus afirmava Luke Johnson.
Em 311 Constantino, Imperador Romano, converteu-se ao cristianismo e organizou o primeiro Concílio Ecumênico em Nicéia (hoje território Turco), onde
em 325 com 318 bispos, estabeleceu o primado da Igreja Romana sobre a cristandade, com importantes dogmas e a partir dali os escritos cristãos foram oficializados. Atanásio, bispo alexandrino, no século IV escreveu
27 textos do NT (exemplos e cartas) alguns escritos em
grego, a língua culta de então. Até o século IV a missa
133
em Roma era rezada em grego. Jerônimo traduziu os
textos bíblicos para a língua latina e assim estes popularizaram-se na Palestina no século V. Os monges Copistas reproduziram os textos à mão às vezes reelaborando-os conforme as tendências doutrinais.
Contesta-se os relatos de “Antigüidades Judaicas”, os quais oferecem informações importantes sobre
Jesus e o cristianismo e que foram escritos por Flávio
Josefo (37-100), o qual afirma que Jesus fazia milagres
e apareceu três dias depois de sua morte. Para Maria
Luzia Conassim, professora da História Antiga da Universidade de São Paulo, este texto foi distorcido pelos
copistas monges, pois “Josefo não podia acreditar que
Jesus fosse o Messias. Os monges agregavam o que
queriam, pois do século II ao século XV as únicas cópias
existentes dos livros estavam nos conventos”, diz a professora.
Alguns testemunhos não cristãos como o de Filão
(20 aC – 50 dC) escritor judeu, ignora Jesus e fala bastante sobre Pôncio Pilatos. Já Flávio Josefo, o historiador fala que em sua “época viveu Jesus, um homem sábio e o que se pode dizer é que era humano. Ele fazia milagres. Era o Cristo. Quando nossos cidadãos o denunciaram e Pilatos condenou-o à crucifixão, ele apareceu
três dias depois de sua morte, de novo vivo. Os profetas
anunciam suas maravilhas e milhares, o adoram”. (Ant.
judaicas cap. XVII). Também Tácito (55 – 120) escrevendo sobre o incêndio de Roma, disse: “Nero acusa
aqueles detestáveis por suas abominações que a multidão chama de cristãos. Esse nome vem de Cristo, que
sob o principado de Tibério, foi mandado para o suplício
pelo Procurador Pôncio Pilatos. Reprimida momentaneamente, essa superstição horrível brotou novamente, não
apenas na Judéia, mas agora dentro de Roma”. (Anais,
cap. XV). Da mesma forma Suetônio (70-128) falando
134
sobre a vida do imperador Cláudio, disse: “O imperador
expulsou de Roma os judeus que viraram causa permanente de desordem pela pregação de Cristo” (Vida de
Cláudio, cap. 25). Por fim Plínio, o jovem (61-114) escrevendo para o imperador Trajano relata que: “O cristãos têm o hábito de se reunir em um dia fixo para rezar
ao Cristo que consideram Deus, para cantar e juram não
cometer qualquer crime, abstendo-se de roubo, assassinato, adultério e infidelidade”. (Carta Trajano cap. X).
O Novo Testamento delineia o perfil humano de Jesus. Ele "foi achado em figura de Homem" (Fl 2,7), viveu
em tudo igual a nós, menos no pecado. Os evangelhos
colocam os traços humanos do Verbo encarnado salientando que experimentou a fome, a sede, sentiu cansaço,
fez experiência da dor e da tortura, conheceu a alegria, o
pranto, teve compaixão, medo, afeto, contrariedade. É
um homem que se interroga e se maravilha, tem amigos
que ficam chocados com as hostilidades com que é acolhido. Fez a experiência da tentação por duas vezes onde
foi solicitado no profundo de sua alma. Ele conheceu
todas as provas, mas nunca foi pecador (Hb 2,7; 4,15),
sendo o pecado uma oposição ao divino, ele não podia
contradizer-se.
Jesus é Santo desde o nascimento "crescia em sabedoria, idade e graça..." (Lc 2,52). Assim sua vida interior estava condicionada pelo desenvolvimento psicológico e pelas experiências; através das provas Jesus amadureceu e alcançou a perfeição. Seu crescimento em
santidade não consistia em corrigir-se, ou passar de um
estágio a outro, pois ele sempre teve a plenitude da santidade que convinha às etapas do seu desenvolvimento.
O crescimento de Jesus foi todo natural, pois tanto do
ponto de vista físico como psíquico, ele estava sob as leis
normais do desenvolvimento. Como recém nascido chorou, dormiu, foi amamentado, aprendeu a falar, e à me135
dida que se abria para o mundo ia tomando consciência
de si, descobrindo a sua própria individualidade e para
crescer em si mesmo ele teve necessidade dos outros
sobretudo de seus pais. Porém a influência negativa do
ambiente nunca lhe afetou, pois filtrava o que atingia e
rejeitava as impurezas, sem que isso o fizesse menos
homem que nós. Por ser o Filho de Deus o seu eu cresceu puro e por ser homem viveu o seu desenvolvimento
físico, a sua puberdade, o desenvolvimento de sua sexualidade e não teve a concupiscência. Nele desabrocharam os sentimentos de amizade, de abertura, de encanto
pela natureza, mas também do mal, das injustiças, dos
sofrimentos... Por muitos anos trabalhou como carpinteiro (Mc 6,3) em Nazaré, aldeia nunca mencionada no
Antigo Testamento.
Ele teve que aprender uma profissão e em seu nível
histórico sem saber, achava-se ligado ao nível cultural
da época e compartilhava as idéias e os conhecimentos
do seu tempo, por isso os seus conhecimentos em técnica não superavam aos do seu tempo. Seu saber era limitado e progredia com o tempo; ele teve que ir aprendendo através da experiência. Ele não sabia tudo como diziam alguns teólogos da Idade Média, os quais afirmavam
que ele por ter todas as ciências foi o melhor filósofo,
matemático, artesão, agricultor, pintor... "Ele não realizou nenhuma descoberta científica e trabalhou com instrumentos rudimentares. Por mais de 30 anos não tinha
sido nem notado (Mc 6,2-3). O Jesus histórico aparecia
aos olhos dos contemporâneos como um homem autêntico
em tudo e por tudo."
Jesus conhecia porém o homem em profundidade,
não um conhecimento no tipo conceitual, filosófico, mas
sim na linha dos profetas, nem por isso ele escreveu um
tratado sobre isso. Ele conhecia o pensamento íntimo de
cada pessoa (Natanael, a Samaritana) e este conheci136
mento era em razão de sua missão, assim como eram os
seus milagres.
Resumindo, podemos dizer que no que concerne às
coisas do mundo Jesus não era dotado de poder nem de
ciência extraordinária, era condicionado pelos fatores
psicológicos e históricos; a ignorância não é imperfeição
e sim parte da condição humana. Em suma, o Verbo se
fez carne... (Jo 1,14), isto é, o homem, tomado do ponto
de vista de sua mesquinhez e fragilidade, e Jesus penetrou nossa condição até na banalidade, na caducidade,
no fracasso e no vazio.
Quem era Jesus para os discípulos? Para respondermos essa pergunta devemos antes dizer que os apóstolos fizeram uma experiência nova e forte dele, pois experimentaram suas palavras e seu comportamento e ao
seu chamado, deixaram tudo para segui-lo. Portanto,
devemos admitir que Jesus provocava uma forte impressão naqueles que tinham contato com ele. Para a
multidão Ele era Profeta, um homem carismático que
agia e falava em nome de Deus, e Jesus não rejeita essa
visão, fazendo seu o que disse Isaias 61,1 e Lucas 4,1819. Ele falava como profeta; "Não convém que um profeta
pereça fora de Jerusalém " (Lc 13,33).
Porém, sua originalidade era tal que o povo não sabia em que categoria de profeta classificá-lo (Mc 8,2729). Para os apóstolos ele é o Messias, aquele que culminava as esperanças de Israel, que levava ao cumprimento as palavras de Javé, porém Jesus nega que Ele
fosse o Messias nacionalista que iria libertar Israel do
domínio estrangeiro, e isto gerou até uma certa ilusão
nos apóstolos; os Judeus perguntaram-lhe até quando
manteria o suspense sobre sua identidade (Jo 10, 24), e
mesmo os seus discípulos vêem nele o Messias nacionalista. (Lc 24,21 ; At 1,6).
137
Jesus aceitou o título "Filho de Deus" (Mc 14,62), ou
seja, alguém que tinha uma proximidade particular com
Javé em vista da missão. Israel era chamado Filho de
Deus, assim como todo israelita. (Ex 4,22 ; Dt 14,1) .
Para o judaismo, o Messias era chamado de Filho de
Deus para indicar sua relação privilegiada com Javé.
Embora Jesus não tenha se declarado que era Deus, ele
teve atitudes em relação ao perdão dos pecados, ou à lei,
e fez declarações diante do Sinédrio (Mc 14,62) que dava
a entender sua igualdade com Deus. O fato de ter sido
condenado como blasfemador (Mc 14,64), mostra que ele
reivindicou funções que só se atribuía a Deus.
Jesus para não ser mal interpretado não fez declarações sobre si, pois era preciso antes preparar as pessoas, por isso ele provoca os seus ouvintes a refletirem e
a se interrogarem sobre ele, sobre a sua identidade; suscita diálogo capaz de conduzir a um verdadeiro encontro
com ele (samaritana).
Outra maneira diferente do comportamento de Jesus foi quanto a atribuição de uma função única para si
em relação ao plano de Deus e sobre a humanidade.
Ele apresenta-se como o que anuncia a aproximação do Reino de Deus e o inaugura (Mt 12,28). Este reino chega associado à sua pessoa e ocupa o lugar central de sua mensagem, pois não é possível chegar a
Deus sem a comunhão com Ele (Lc 12,9). Ele não só
anuncia a salvação, mas é a salvação em pessoa;
Deus está próximo porque ele se encontra presente Nele, entra em contato com Deus e seu Reino, Nele se encontra a graça de Deus e seu juízo, ele é o Reino, o amor
de Deus. Ele é mais que Jonas, mais que Salomão (Mt
12,41-42). Faz tudo isto sem arrogância, sem buscar o
poder, a fama, a riqueza, pois vive um estilo de vida
humilde sendo pobre e não tendo casa (Lc 22,27).
138
A sua missão ele a desempenhou com segurança.
Sua palavra como a dos escribas nunca se limita a uma
explicação das escrituras, elas têm caráter imediatista;
ele sabe de modo inequívoco o que Deus quer e o que
anuncia. Não é a Sagrada Escritura a fonte última de
sua convicção, do conhecimento da Palavra de Deus e de
sua missão. Ele não apela para nenhuma visão ou revelação pessoal, mas encontra-se diante de uma intuição
imediata, ou diante de um conhecimento de Deus por
conaturalidade (Dupont).
Por fim o seu modo de rezar impressionava os discípulos, pois pela relação filial que cultivava com Deus,
ele falava com Deus como se falasse com o Pai (Kasper).
Chama Deus como em "meu Pai" e "vosso Pai", visto que
tinha uma consciência de estar numa relação íntima
com Deus. Ele revela um modo seu todo novo de entender Deus. Vivia a relação filial na obediência, uma obediência por antonomásia (Fl 2,6-11). A experiência que
tinha com Deus era a fonte de sua autoridade diante da
lei, das respostas que deixava estupefata as multidões e
tudo isto o fazia como alguém totalmente desraizado do
seu próprio eu, numa atitude de serviço. Ele pertencia a
este mundo, mas em meio a ele era totalmente um outro
(Bornkanm).
Jesus ressuscitado para a comunidade é Jesus no
culme de sua doação na cruz. Para Paulo o que importa
é Cristo crucificado ( ICor 2,2) , o anúncio de Jesus ignomioso, maldito (Dt 21,23) ex-comungado foi escândalo
e loucura (ICor 1,22-23). Jesus sofreu o mesmo destino
dos profetas e ele mesmo reconheceu o seu destino (Lc
13,33). Nesta perspectiva Jesus morreu na sua legítima
missão, morreu pelos nossos pecados conforme o credo
de Paulo (ICor 15,3), ele carregou como servo os pecados, por isso a crucifixão está inserida na história da
salvação. Sua morte foi desígnio divino e não condena139
ção (Mc 8,31), e este desígnio é para a salvação dos
homens, pois ele veio não para ser servido, mas para
dar a sua vida (Mc10,45). Seu corpo imolado, seu sangue derramado é em favor de muitos (Mc 14,24), isto é,
pelos pecados; sua morte tem caráter expiatório.
A expiação no mundo helenístico era o esforço do
homem, mediante o sacrifício, para influenciar a divindade, a fim de torná-la propícia, mas para a Sagrada
Escritura expiar é sinônimo de libertar os pecados, é
Deus quem expia como fala João (I Jo 4,10; 2,2 ; Hb
2,17) e em Jesus crucificado o homem encontra o perdão, a comunhão com Deus. Jesus não é um bode expiatório que substitui a nós, mas a solidariedade; ele fezse maldição, pecado e pobreza para dar-nos a riqueza
(Gl 3,13 ; IICor 5,21). Jesus morreu por nós para satisfazer a justiça divina ofendida, mas no sentido de que só
ele sem pecado pode realizar eficazmente a salvação e
estabelecer a unidade com o Pai. Ele foi colocado como
instrumento de propiciação com seu sangue (Rom 3,25).
O propiciotório era a tampa da Arca da Aliança onde
Deus perdoava ao povo seus pecados e que no dia da
expiação era aspergido com sangue.
Em conclusão afirmamos que na comunidade primitiva a reflexão sobre Jesus não é de tipo filosóficateológica , mas de fé. O ponto de partida é a relação atual com Jesus glorificado, profissão de fé que se traduzia em cantos, hinos, confissões de fé, doxologias... Não
é também uma Cristologia do tipo antológica, isto é, não
dava atenção para quem é Cristo em si mesmo, em seu
ser, mas é soteriológica, ou seja, vê o sinal salvífico particularmente na sua morte e ressurreição. O Helenismo
teve uma reflexão mais filosófica, mais voltada ao ser
de Jesus (Fl 2,6-11; Cl 1,15-20) ; Jo 1,1-18). Vê o Cristo
em total obediência à missão divina e sua relação com
o Pai. Naturalmente toda esta proclamação de fé em
140
Cristo tem um determinado aspecto de vida terrena de
Jesus como fundamento, como critério da própria interpretação da fé.
Naturalmente não podemos falar da divinização
progressiva de Jesus, um ato semelhante não se explica
no judaísmo. É inconcebível Paulo, judeu, divinizar outro judeu vivido poucos anos antes dele e além disso
morto na cruz. Os judeus recusavam divinizar o homem,
entretanto a Jesus o adoravam. Porque ele é Deus desde
sempre e isto foi manifestado pela ressurreição. É a contemplação do ressuscitado que abriu a fé à compreensão
daquilo que ele é desde a eternidade, a partir, porém de
sua figura histórica. Isto demorou tempo para ser explicitado, pois Jesus que era distinguido de Deus Pai, vem
compreendido como Filho, igual a Deus.
19. TESTEMUNHAS SOBRE JESUS NOS SÉCULOS II III
Os textos mais antigos (Pápias, Canôn de Muratori,
Irineu de Lião) consideram Marcos e Lucas autores no
sentido próprio. Para Pápias, Marcos foi discípulo de
Paulo e intérprete de Pedro; um cristão originário do
paganismo. Sua obra influenciou Lucas e Mateus e
Marcos foi influenciado por Paulo. Os autores, os evangelistas não forma simples comunicadores da tradição,
foram também intérpretes e teólogos, pois cada um tem
sua visão e seus processos literários.
A autoridade dos Evangelhos se manifesta na conservação fidelíssima do próprio texto do evangelho. O
fato de que desde o século II se lê os textos dos evangelhos nas liturgias em pé de igualdade com os profetas.
(Justino diz: "No domingo, há reunião dos habitantes
das cidades e da zona rural, e lêem-se as memórias dos
141
apóstolos ou dos escritos dos profetas). A Igreja contra
os hereges serviu-se dos evangelhos (ebionitas, marcionistas, docetas), além do mais, estes se apoiavam nos
evangelhos, especialmente Marcos apoiava-se em Lucas.
Todos eram unânimes em aceitar que pelos evangelhos
se conhecia a pregação dos apóstolos a respeito de Cristo. As Igrejas reconheceram os quatro evangelhos como
norma de fé e vida.
A Igreja tomou posição contra as formações dos apócrifos que tentaram preencher as lacunas dos evangelhos sobre períodos da vida de Jesus para satisfazer a
curiosidade popular e para certas exigências apologéticas. Também o Diatessaron de Taciano teve o mesmo
propósito servindo-se dos evangelhos. Já nos meados do
século II a Igreja considerou os evangelhos como números clausus em número de quatro, Irineu fala de "Evangelho quadriforme" e Eusébio de "quadriga sagrada ".
A Formgeschichte representada em alguns importantes teólogos tem como objetivo estudar a primeira
fase da história da Tradição (o Evangelho pregado atualizado, aplicado às situações da Igreja procurou jogar
algumas luzes para a interpretação dos textos Sagrados). Esta surgiu entre 1919-1922 para estudar a mediação das comunidades entre o acontecimento e o texto.
Sua tarefa foi classificar as formas literárias das narrações evangélicas estabelecendo um relacionamento entre
a forma literária e o meio ambiente que a ocasiona. Indaga, portanto quais são as situações na comunidade
em que o escrito nasceu, se desenvolveu e foi transmitido durante o processo da tradição. Interessa-se pela gênese, pela formação e evolução das tradições orais, antes dos textos escritos. Sua ambição é retratar toda a
história da tradição evangélica do evangelho oral ao escrito. Seu método é literário, mas sua perspectiva é histórica. Descreve a pré-história dos evangelhos. Poderia
142
ser comparada à geologia que estuda as formas sucessivas da crosta da terra.
Face a isso, vemos que a Formgeschichte destaca a
importância da tradição oral. O evangelho foi pregação
antes de ser escritura; a tradição precede a escritura. A
matéria dos evangelhos durante 25 ou 30 anos pregada,
serviu de missão, de catequese, de culto e de polêmica;
recebeu um colorido da Igreja e foi marcada pela interpretação teológica desta. Sublinha igualmente o caráter
inconsistente das coordenadas do tempo e do lugar tornando impossível uma seqüência lógica dos acontecimentos da vida de Jesus. O Jordão, a Galiléia e Jerusalém, são lugares privilegiados da presença de Jesus,
mas fora estes é difícil reconstruir o filme da vida de Jesus.
Para a Formgeschichte o que interessa mesmo é a
contribuição pessoal do autor, ou o cunho literário do
autor, pois cada forma literária tem o seu sitz im leben
particular, ou seja, o meio impõe a forma literária adequada; há uma interação entre o meio e o texto. A vida
impõe a forma e a forma revela o meio.
O que se questiona na Formgeschichite é que ela fixou a atenção na comunidade primitiva e subestimou o
papel dos evangelistas considerando-os como simples
compiladores, apresentando assim os evangelhos como
um aglomerado de fragmentos. O seu mérito foi trazer
um método rigoroso para a análise dos evangelhos, e o
meio para se chegar pelos estudos dos textos até o meioambiente que eles nasceram, só que a Formgeschichte
exagerou na ruptura entre Jesus e o Cristo, como também no poder criador da comunidade primitiva, pois estudando o meio sociológico da comunidade, esqueceu
seu comportamento interior desconhecendo o papel dos
evangelistas.
143
As pesquisas da Formgeschichte têm como ponto
de partida a comunidade pós-pascal, mas será que a
história do cristianismo começou com a fé pascal e que
essa fé é responsável por toda tradição cristã? Käseman
combateu esta idéia e afirmou que a continuidade de
tradição é coisa não apenas possível, mas altamente
provável. Bultmann achou que existe não apenas uma
continuidade de lembranças, mas uma verdadeira continuidade de tradição, incluindo a transmissão de uma
mensagem e de uma atividade. Porém para Bultmann
entre a comunidade antes e pós-pascal, há uma descontinuidade real porque a fé intervém como elemento novo,
criador da nova comunidade. Para ele é a fé que caracteriza o começo de uma comunidade e a fé cristã só começou depois da Páscoa. Mas será que a fé no Cristo
pós-pascal só foi possível porque existia uma fé nele
antes da páscoa?
Schurmann explorou o período pré- pascal com o
método da Formgeschichte e distinguiu ali um sitz im
leben externo constituído pelas ações visíveis da comunidade (liturgia, missionária, catequética) e o outro interno constituído pelas relações interpessoais que uniam
entre si os membros dessa comunidade na profissão da
mesma fé. É de se notar que a Formgeschichte estudou
só o sitz im leben externo e negligenciou o interno, contudo são esses laços internos que constituem os elementos motores aptos a suscitar, manter e garantir a transmissão fiel de uma tradição. Jesus formou uma comunidade com discípulos escolhidos, estes o seguiram e
creram nele. Os discípulos partilharam suas vidas, tornaram suas testemunhas, tiveram fé em suas palavras,
viveram em sua intimidade, ficaram fascinados por seus
ensinamentos e ações. Tudo isto não caiu no esquecimento deles, aliás, eles conservaram o tesouro de suas
palavras com respeito, guardando-as inalteradas. Esta
144
fé em Jesus explica a possibilidade não apenas de uma
tradição, mas a fisionomia própria desta tradição. Jesus
foi para eles mais do que um mestre, ou um sábio, foi
sim a revelação de Deus, o maior dos profetas, um líder.
Por isso, eis a importância dos discípulos em conservar
sua mensagem, mais do que a forma literária em seu
conteúdo original. Assim, a comunidade íntima de Jesus
e dos discípulos, a adesão dos discípulos à personalidade prestigiosa de Jesus, a autoridade de sua palavra única e decisiva, constituem o sitz im leben interno suficiente para explicar a continuidade efetiva de uma tradição das palavras e gestos de Jesus.
Para Schurmann Jesus pregou e propôs sua mensagem com intenção de fornecer aos discípulos um instrumento adaptado em vista de uma atividade missionária a ser exercida não apenas depois da páscoa, mas enquanto ele estava vivo. Ele dirigiu um apelo particular
aos discípulos e isto implicou num compartilhar a missão. Assim a missão dos discípulos antes da páscoa
constitui um sitz im leben importante para compreender
a origem e o processo de transmissão da tradição evangélica.
Jesus deu às suas palavras um cunho particular
com a intenção de imprimi-las na memória dos discípulos. Basta lembrar a missão que deu a eles (Mc 6,7). Ele
os preparou para a missão e estes participam de sua
missão e depois prestam contas do ocorrido. Nesta missão eles anunciam o Reino, convidam à penitência. Portanto, Jesus forneceu-lhes o material para a pregação e
assim houve uma tradição constituída antes da Páscoa.
Outro fator para explicar a formação e transmissão de
uma tradição foi a vida em comum dos discípulos, os
quais deixaram as próprias famílias para dedicarem-se
inteiramente ao Reino.
145
Por isso a origem e a tradição dos Logia de Jesus
começaram antes da Páscoa, através do próprio convício
com Jesus. O iniciador da tradição foi o próprio Jesus
conforme atestam (1Jo 1,1ss; Lc 1,2; At 1,21-22). Assim, pela comunidade pré-pascal tem-se acesso a Jesus. Se a tradição apoiasse só no pós-pascal a história
de Jesus não se apoiaria sob um dado histórico, mas
seria uma gnose. Com a páscoa Jesus foi melhor identificado com a propagação. A Páscoa não é uma bomba
atômica que destruiu tudo, mas uma chama que tudo
iluminou.
O mérito de Schurmann é ter aplicado a Formgeschichte ao estudo pré-pascal distinguindo o Sitz im leben
interno e externo.
Jesus influenciou como nenhum outro personagem a vida da humanidade a ponto de dividir a história
em antes e depois dele, tornando se um marco divisor
para a história. Esse judeu que viveu pouco mais de
trinta anos numa periferia do Império Romano, marcou
profundamente os últimos vinte séculos da história humana em todas as suas latitudes; seja religiosa, política,
cultural, artística... exercendo uma influência sem precedentes nos costumes e na ética.
A história teria sido diferente sem a sua presença,
de forma que é difícil imaginar os últimos vinte séculos
da história da humanidade sem a presença do cristianismo. Sem Jesus no cristianismo tudo teria sido diferente, pois o que teria pintado um Rafael, Michelângelo,
Ticiano, Murilo ou Velásquez? O que teria sido a composição de um Bach? O que teriam escrito um Dante, ou
um Tomás de Aquino?
Sem Jesus como seria hoje a Europa? E o mundo
ibero-americano sem a presença da cruz dos conquistadores? Como seria hoje a história sem as conquistas
146
missionárias do cristianismo ou sem as Cruzadas, as
Inquisições?
O mundo teria sido diferente, pois muitas das culturas e literaturas não teriam chegado até nós. Podemos
imaginar como seria a nossa sociedade ocidental sem as
milhares de pessoas formadas ou influenciadas pelas
escolas e as universidades católicas no mundo inteiro?
Como seriam as leis e o direito no mundo sem o cristianismo? E a influência da ética nos costumes? Como não
levar em conta a doutrina cristã sobre o sexo, o divórcio,
o aborto, a pena de morte, a eutanásia...?
Jesus foi a figura mais paradoxal, poderosa e enigmática nos últimos vinte séculos; basta dizer que em
seu nome se pregou o amor universal e que também em
seu nome se assassinou, se manipulou. Pelo seu nome
milhares de pessoas se imolaram e um terço atual da
humanidade acredita neles e segue os seus ensinamentos. Tudo isso surgido de um pequeno grupo que acreditou na chegada de um Salvador e depois esta crença foi
cultivada pelas primeiras comunidades cristãs através
dos apóstolos e dos discípulos, embora Jesus tivesse
sido morto numa cruz.
20. A JUDÉIA ANTES E DEPOIS DE JESUS
Israel só completou sua independência no ano
129 aC quando venceu os Selêucidas que reinavam na
Palestina e os Macabeus que lideraram uma revolta e
assim fundaram a dinastia dos Asmoreus. Nos anos
103 - 76 aC a rivalidade entre os saduceus, homens da
classe alta influenciada pelo helenismo e aliados aos
sacerdotes do Templo de Jerusalém contra os fariseus,
anti-helenizantes provocou uma guerra civil.
Em 63 aC Roma invadiu a Palestina, ocupando o
Templo sob o comando de Pompeu e assim a Judéia
147
tornou-se Província de Roma. Em 48 aC os Romanos
nomearam Antípater como governador da Judéia e em
31 aC coroaram Herodes, um monarca cruel e detestado que matou sua mulher, seus filhos, sua sogra e o
cunhado. Além disso insultou a religiosidade dos judeus construindo Templos pagãos e um hipódromo para lutas de gladiadores em Jerusalém. Apesar de tudo
era bom administrador e fez obras reconhecidas tais
como: o Porto de Cesaréia, a fortaleza de Massada, a
restauração do Templo, e outras obras significativas.
Quando Jesus nasceu Herodes governava, e naquele ano houve 2.000 crucifixões na Judéia. Neste
tempo os judeus eram divididos em quatro grupos: Saduceus, que formavam a elite dos sacerdotes que dominava o Templo; Fariseus que eram populistas e propunham um judaísmo orientado pelos rabinos do povo;
Essênios, monges austeros e separados e Zelotas, radicais que pregavam a violência e a revolta contra Roma.
Neste contexto os judeus esperavam com ansiedade a manifestação do Messias para libertá-los dos
Romanos; com a vinda do Messias para eles viria o fim
do mundo e o reinado de Deus na terra; de fato, os profetas perambulantes anunciavam a vinda do Messias e
o fim dos tempos e os zelotas, não se conformavam com
a dominação romana, estes eram uma espécie de bandidos. Entre os anos 26-36, Pilatos governava em nome
dos Romanos e no ano 30 mandou crucificar Cristo.
Em 37 o Imperador Calígula mandou levantar uma sua
estátua no Templo e provocou os judeus. Em 64 os zelotas iniciam a rebelião, sendo afastada pelo General
Vespasiano que antes de atacar Jerusalém passou o
comando para seu filho Tito, o qual no dia 28 de agosto
do ano 70, arrasou Jerusalém e o Templo, matando milhares de judeus. Em 73 a revolução dos judeus era a148
inda acesa, quando 960 judeus suicidaram-se na fortaleza de Massada para não se tornarem prisioneiros dos
Romanos.
Em 132 Shimon Bar Kosib auto proclama-se
messias, denomina-se “Filho da Estrela” e lidera uma
revolta que durou três anos, mas os Romanos acabaram com tudo sob o comando do General Severo que
arrasou mil povoados e matou milhares de judeus. Assim os Zelotas perderam a influência e os rabinos assumiram a liderança. Só em 138 com o Imperador Antonio Pio, o Império de Roma foi mais suave e o judaísmo rabínico começou a expandir-se. A esta altura o
cristianismo era mais popular.
21.
COMO O POVO VIA JESUS?
Como o povo via Jesus? Podemos afirmar que a
partir do momento em que Jesus deixou Nazaré e começou falar nas Sinagogas, curando e acolhendo os desamparados, tornou-se um personagem de interesse
público e seu nome tornou-se famoso (Mc 6,14). Ele
passa a ser tido como o profeta (Mt 21,9-11). O povo o
tinha como profeta (Mt 16,14), um dos antigos profetas
que ressuscitou (Lc 9,19), um grande profeta (Lc 7,16),
um profeta poderoso em obras e palavras (Lc 24,19).
“És um profeta..”, disse-lhe a samaritana (Jo 4,19). “Este é o profeta que deve vir ao mundo”. (Jo 6,14). “O profeta” (Jo 7,40). O próprio Jesus faz menção à sua função
profética “um profeta só é desprezado em sua pátria...” “
...não é possível que um profeta morra fora de Jerusalém” (Lc 13,33). Há um total de 20 textos em que Jesus
e sua obra são interpretados mediante o recurso ao modelo “profeta”.
Jesus é visto como profeta pelas multidões porque
realiza os sinais do Êxodo como o dom do pão corres149
pondente ao maná e o da água viva, como Moisés tinha
dado água do rochedo (Jo 6,14; 7,40). Ele dá cumprimento à promessa de Deuteronômio 18,15-18; (Lc
24,19; At, 3,22; 7,22).
O povo via Jesus também Mestre, pois ele ensinava nos lugares públicos, seja nas Sinagogas, no pátio do
Templo, aos sábados (Mc 1,21; Jo 6,59; 7,14; 18,20). Às
vezes ensinava ao céu aberto (Mt 5,2), ao longo do mar
(Mc 2,13; 4,1), nas praças (Lc 13,26); ensinava aos discípulos e multidão (Mc 2,13; 8,31; 9,31). Ele ensinava
como quem tem autoridade e não como ensinava os escribas (Mc 1,22; Mt 2,28; Lc 4,32. 36); está acima do
protótipo de sabedoria (Salomão) (Mt 12,42). Segundo a
tradição rabínica os escribas eram os sucessores dos
sábios bíblicos, portanto, Jesus coloca-se acima da instituição docente judaica. Podemos afirmar que os dados
evangélicos baseados nos critérios de historicidade fazem supor que a imagem de Jesus como mestre, assim
como profeta, mergulhe suas raízes nas condições da
atividade histórica de Jesus. Ele não foi um simples
“rabbî”, ou seja, que fez uma escola para tornar-se
“mestre”, mas é um carismático e profeta, cujo modo de
ensinar assemelha-se mais a João Batista e ao mestre
fundador da comunidade de Qumrân e não ao grupo
dos escribas dos judeus.
Jesus é conhecido como Cristo (Christòs em grego
é Messias – Mashîah em hebraico ou Meshikha em aramáico). Jesus não atribuía para si este título, são os
discípulos e multidão que o chamam de “Christòs” (Jo
1,41; 4,25; Mt 16,16; 22,42; 26,63; 27,42). Portanto, no
contexto histórico Jesus é tido como Messias e até Paulo assim se refere ao falar dele (I Cor 15,3-5). Da mesma
forma devemos considerar que a sua morte na cruz revelou o caráter público, religioso e político que a sua
vida assumiu aos olhos da autoridade Romana, e por
150
isso o seu título na cruz de “Rei dos Judeus”, evoca a
ideologia do messianismo régio. O Salmo 17 evoca a
vinda do Rei, Filho de Davi, para que “reine sobre Israel”, “para abater os chefes injustos...”. O messianismo
referia-se à restauração religiosa, social e política de
Israel, cujo modelo era o reino davídico, se bem que havia também a idéia de um messianismo mais heterogêneo como por exemplo entre os fariseus. Além da restauração nacional, o Messias tinha também papel religioso de eliminar os pagãos e os ímpios e proporcionar a
observância integral da lei e a pureza do culto. Já entre
os saduceus a ideologia messiânica não gozava de muita simpatia a insurreição. Podemos concluir que a tradição evangélica mergulha suas raízes no contexto histórico da atividade de Jesus, proclamador do Reino,
condenado à morte como perigoso mestre e profeta que
catalisava em torno de si a esperança messiânica.
A tradição crista dá a Jesus também o título de
“Filho de Deus”. Paulo insiste na proclamação de Jesus
como Filho de Deus (I Ts 1,10; Gl 1,16; 2,20; Rm 1,3-4).
Como pode Jesus num contexto religioso de rígido
monoteísmo ser chamado de Filho de Deus? Este título
ocorre 12 vezes em Mateus, 06 em Marcos, 08 em Lucas, 04 em Atos dos Apóstolos e 10 em João. Jesus é
chamado também com títulos correspondentes como
“Filho Amado” (Mt 3,17); “Filho bendito” (Mt 26,63; 27,
40-43); “Filho do Altíssimo” (Mc 3,11); “Filho único de
Deus” (Jo 3,18; 10,36); “Filho” (Mt 21,37-38; Mc 13,32;
Lc 10,22). Podemos, portanto concluir que a profissão
de fé da comunidade é concorde em afirmar que Jesus é
o “Filho de Deus”. No ambiente judaico do século I chamavam-se “filhos de Deus” os seres celestes, ou seja, os
anjos (Gn 6,2) também o povo e a comunidade, objetos
da eleição de Deus (Ex 4,22; Dt 14,1; Os 11), os reis (2
Sm 7,14; Sl 27). Em todos estes casos este título era
151
entendido em sentido metafórico para indicar uma relação peculiar com Deus. Da mesma forma entre os rabinos, os mestres famosos, piedosos e carismáticos eram
tidos como “filhos de Deus” (Livro dos jubileu 1,24-25).
Jesus nunca se auto proclamou “Filho de Deus”
eram os outros que se dirigiam a Ele com este qualificativo. Entretanto, os textos o definem assim em virtude
da maneira coerente e relacional filial dele com Deus
que o chama de “Aba” (Mc 14,36). Esta maneira de Jesus se apresentar é carregada de um novo significado
diferente daquele dos modelos bíblicos e do uso lingüistico do meio judaico de então, o que explica também o
áspero conflito com os representantes das instituições
judaicas que o condenaram à morte.
Dentre os vários títulos evangélicos para designar
a figura de Jesus o mais acentuado é “Filho do homem”
(Nios tou Antropou). Este título está presente nos evangelhos 82 vezes: 14 vezes em Marcos, 30 em Mateus, 25
em Lucas, 13 em João. Esta forma é posta na boca de
Jesus, fora duas exceções (Lc 24,7 e Jo 12,34). Esta
expressão nos evangelhos jamais é um título atribuído a
Jesus, ou seja, não se encontra a expressão na boca de
Jesus “Eu sou” o “Filho do homem”, ou na boca de terceiros: “Tu és o filho de homem”. Geralmente esta expressão está ligada a “Anuncios” ou instruções sobre a
paixão dirigida aos discípulos (Mc 8,31; Mt 17,22; Lc
9,44; Mc 14,21; Lc 22,22; Mt 26,2-24). Para alguns estudiosos esta expressão deriva de um mal entendido
surgido em virtude de uma tradução literalista da expressão idiomática (bar (‘e) nash) que no aramáico da
Galiléia significava simplesmente “Eu” ou “um homem
como Eu” (Mt 5,11).
22.
O PERFIL DE JESUS
152
Jesus era solteiro mesmo se para a sua cultura
de então era algo impensável. Como pregador na Palestina proclamou-se Messias, o que para os judeus era
blasfêmia. Fez 31 milagres dos quais 17 curas e 6 exorcismos. Para os judeus a doença era devido ao pecado e
a cura era monopólio divino. No ano 30 entrou em Jerusalém num burrinho, cumprindo a profecia de Zacarias, foi saudado pelo povo e foi ao Templo. Caifás, sumo sacerdote, ordenou sua prisão no Getsêmani, e ele
diante do Sinédrio, e do Conselho dos Sacerdotes do
Templo, reafirmou a sua missão divina. Foi condenado
no pretório de Pilatos na presença de Caifás na sextafeira (A Sexta-feira Santa surgiu no dia 07/04/30) e foi
crucificado no Gólgota, com 36 anos.
Qual deve ser o tipo de Cristologia no lugar social da América Latina? Deve ser uma Cristologia que
leve em conta o lugar social em favor dos oprimidos,
dos subnutridos, dos desempregados, dos explorados,
dos doentes, dos sem escolas e moradia, etc. Em suma,
deve ser uma Cristologia diante de uma situação de pecado social que exija uma mudança com a práxis de
amor engajado. Desta forma, a posição de Jesus diante
do “status quo” do seu tempo, adquire hoje relevância.
A cristologia neste sentido deve ser pensada e vivida de
maneira que signifique a libertação econômica e política
dos oprimidos.
As imagens de Cristo agonizantes e moribundos
neste contexto opressor são “Cristos da impotência interiorizada dos oprimidos”(Assmann). Desta forma, a
Cristologia da libertação deve privilegiar o Jesus histórico sobre o Cristo da fé, justamente porque o Jesus
histórico viveu um programa libertador no meio dos
conflitos. Este Jesus histórico exige uma transformação, ou seja, uma conversão que se traduza na mani153
festação e na realização da utopia da libertação estrutural e escatológica, que se traduza na presença do
Reino no meio de nós (Lc 17,21).
No primeiro aparecimento público de Jesus na
Sinagoga de Nazaré Jesus proclamou a utopia do ano
da graça (Lc 4,16-21) onde Deus através dele tomou
partido dos que sofrem. Desta forma a práxis de Jesus
é entendida como historificação daquilo que significa o
Reino, onde os seus milagres são “Semeion”, sinais (Lc
1,20) do amor do Pai pelos marginalizados. Assim entendida, a práxis de Jesus não tem a estrutura da religião da época, mas é libertadora profética, onde os critérios para a salvação não estão na ortodoxia, mas na
ortopraxis, baseados no amor. O Deus apresentado por
Jesus é cheio de infinita bondade (Lc 6,35) não o Deus
da Torá, e o acesso a Ele se faz através do pobre.
Jesus baniu as estratificações sociais e religiosas
(judeus estrangeiros, leis e ignorantes, puros e pecadores...) e declarou bem-aventurados os pobres estabelecendo um novo tipo de sociedade na solidariedade, no
perdão, na misericórdia e submetendo a lei ao serviço.
Basicamente a conversão que Jesus ensina é de atitudes práticas na produção de relações modificadas em
nível pessoal e social, será por ela que o Reino torna-se
presente; desta forma a boa nova de Jesus torna-se
conflitiva e é boa só para quem se converte.
Por causa de sua praxis Jesus morreu não compactuando-se com os poderosos, mas permanecendo
fiel à sua missão; por apresentar um Deus diferente
daquele do “status quo” religioso, desmascarando a hipocrisia, morreu acusado de subversor diante do Estado. Por fim, a sua ressurreição é a plenitude de todo
processo libertador, onde ele continua entre os homens
animando a luta libertadora e todo o que processa-se
como libertação neste mundo. Com isso a nossa vida
154
aqui está sob o signo da realização do Reino escatológico através do seguimento de Cristo que inclui o anúncio da utopia do Reino e a tradução desta utopia em
práticas libertadoras.
Jesus Cristo é a resposta de Deus à condição
humana. Mas por que o homem não é feliz? Por que
não consegue se relacionar? Por que para ter paz, precisa da guerra? Dos mais de 3.400 anos de história da
humanidade, mais de 3.170 foram de guerras e os restantes foram de preparação para ela, embora o homem
tenha a ânsia pela felicidade e da paz. Jesus surge pregando esta utopia, “O reino chegou crede na boanova...” (Mc 1,14; Mt 3,17; Lc 4,18s); sua atuação é de
libertação, conforme respondeu a João Batista (Mt
13,3-5). Ele inicia transformando a realidade não só
combatendo o pecado, mas em tudo o que o pecado
significa para o homem e na sociedade. Jesus anuncia
um ano de graça o que para Ex 23,10-12; 21,22-6 significa um ano onde todos deviam sentir-se irmãos, onde as dívidas seriam perdoadas, os escravos livres, as
propriedades devolvidas. Este ideal nunca chegou por
causa do egoísmo e por isso, tornou-se uma promessa
para os tempos messiânicos (Is 61,15). Jesus coloca-se
como realizador desta utopia (Mt 8,16-17); Lc 7,11-17;
Mc 5,41-43).
O reino que Jesus anuncia não é a libertação desse ou daquele mal, mas engloba todo homem e a sociedade, não está ligado a um lugar, mas está dentro do
homem (Lc 17,21) é preciso assumi-lo. Este Reino expressa-se na intervenção de Deus iniciada, mas não
acabada, por isso Jesus ensina a pedir o Reino (Lc
11,2), onde no futuro o tempo do mundo pecador acabará (Mt 19,28), os sofrimentos acabarão (Lc 20,36), os
mortos ressuscitarão (Lc 11,5) e os últimos serão os
155
primeiros (Mt 10,34). Mas a participação neste Reino
exige a adesão a Jesus.
Flávio Josefo narra nas suas “antigüidades judáicas” que os judeus dos anos 100 aC a 10dC tinham a
preocupação de “Libertar-se de toda sorte de dominação
dos outros, a fim de que Deus somente fosse servido”.
Desde o exílio de 587 aC os judeus viveram praticamente sem liberdade, então a literatura apocalíptica
surgem com o objetivo de inspirar-lhe confiança numa
saída para o futuro com a entronização do absoluto senhorio de Deus, tendo a restauração da soberania davídica. Daí o tema Reino de Deus ser central e ter uma
conotação política onde o Messias devia vir para instaurar o Reino de Deus. Diante disso os fariseus pensaram que a observância minuciosa de leis apressaria a
vinda do Reino. Já os essênios se refugiaram em Qunrân para purificação e observância da lei e os zelotas
pensavam que com a guerrilha e violência provocariam
a intervenção salvadora de Deus, por isso tinham o lema: “Só Javé é Rei e só a Ele serviremos”. Em vista disto contestavam tudo que vinha de Roma. Da mesma
forma, os apocalípticos faziam cálculos de semanas e
de anos para determinar o tempo dos acontecimentos
salvadores.
O messianismo e a apocalíptica eram os meios
adequados para Jesus comunicar sua mensagem e revelar que era o Filho de Deus, contudo Ele destacou-se
das expectativas messiânicas do povo, não alimentou o
nacionalismo judeu, não se rebelou contra os romanos
e não fez nenhuma alusão à restauração do rei Davídico, embora o povo assim o fez na sua entrada em Jerusalém (Mc 11,10) e na inscrição do Cruz INRI (Lc
15,26), assim como os próprios discípulos esperavam
um Messias libertador (At 1,6; Lc 24,21). Neste ponto,
Cristo decepciona a todos.
156
Cristo superou as tentações do messianismo político, pois seu Reino apresentou-se frágil e sem aparato,
como um grão de mostarda (Mt 13,31s), ou como o
fermento na massa (Mt 13, 22s).
1. Jesus Cristo o Libertador da condição humana
O tema da pregação de Cristo foi o Reino de Deus,
ou seja, de uma situação nova, de um mundo repleto
de Deus; uma revolução global e estrutural da velha
ordem promovida por Deus. Para participar desta nova
realidade, a exigência é preciso aderir a ele ( Lc 12,8-9).
Ora, isto significava:
1ª Conversão com a mudança no modo de pensar
e agir, ou seja, uma revolução interior. Por isso quando
iniciou sua pregação pede conversão (Mt 3,2; 4,17).
Pede portanto um modo novo de existir, com a ruptura
do passado (Lc 12,51-52), pede de ter a coragem de abandonar os bens (Mt 10,37) de arriscar a própria vida
(Lc 17,33). Para esta nova situação todos são chamados, mas muitos rejeitam (Lc 14,16-24), muitos não
passam pela porta estreita (Lc 13,24), pois exige até o
abandono dos mais próximos (Lc 9,59s). Esta deve ser
uma decisão pensada como pensa um construtor de
uma torre (Lc 14,28-32); exige tornar-se criança (Lc
18,17), ou seja, dependente, nascer de novo (Jo 3,3).
Portanto, o ensinamento de Jesus produz uma revolução no modo de pensar e de agir.
2ª Uma libertação da consciência oprimida, onde
a lei era absoluta, inclusive em alguns círculos teológicos afirmavam que Deus nos céus ocupava-se durante
o dia com horas de estudo da lei.
O judeu era oprimido pelo fardo da lei (Mt 23,4),
por isso Jesus modifica as prescrições da lei como a
pena de morte para adúlteros (Jo 8,11) e os polígamos
(Mc 10,9). Rompe com a observância do sábado (Mc
157
2,27) e da pureza legal (Mc 7,15). Sua lei é o amor (Mt
5,44).
Cristo não é contra nada, mas a favor do amor,
ele não é um anarquista, basta lembrar a sua posição
contra o divórcio estipulado por Moisés (Dt 24,1) onde o
marido podia divorciar-se por qualquer coisa não agradável na mulher; Jesus não permite isto (Mc 10,9).
3ª Procurando atitudes de um homem novo na vivência do amor radical expresso não só para aquele
que mata, mas também para aquele que prejudica o
irmão (Mt 5,22); para aquele que comete adultério no
coração (Mt 5,28); na disposição de dar também o manto (Mt 5,39-40). Tudo isso para Cristo não é uma nova
lei, mas uma atitude de amor que supera a lei.
A pregação de Jesus com sua exigência de conversão não atinge só as pessoas, mas também as instituições; basta lembrar os fariseus que observam toda
lei ao pé da letra. Estes não eram maus, pois pagavam
os impostos (Mt 23,23), procuravam adeptos (Mt 23,15)
não eram ladrões, adúlteros, injustos (Lc 18,11) jejuavam e davam dízimo (Lc 18,12), entretanto não praticavam a justiça (Mt 23,23). Por isso Jesus vai com os
marginalizados, conversa com as prostitutas (Mc 7,2430) come com um ladrão, Zaqueu (Mt 11,19), conversa
com mulheres, relativiza as autoridades (Mt 20,25),
justamente porque estes estavam mais abertos para
ouvi-lo não tinham nada a perder, porque a mensagem
dele não incomodava, como incomodava aos fariseus
(Mt 5,43-48), os quais procuravam-lhe armadilhas (Mt
22,15-22) procuram matá-lo (Mc 3,6; Jo 5,18) e acusam-no (Mt 12,10).
É evidente que o mundo de então como se apresentava, precisava da mudança através do amor, da vivência da fraternidade, onde as questões fundamentais
da vida nem a lei, nem as tradições, nem a religião
158
substituíssem o homem. Por isso mesmo o filósofo pagão Celso do sec. III via nos cristãos homens sem pátria
e sem raízes que se colocavam contra as instituições
divinas do Império e pelo modo que eles viviam levantavam, segundo este filósofo, um grito de revolta (Foné
Stáseos), não porque eram contra os pagãos e idólatras, mas porque eram a favor do amor indiscriminado
para com todos. Por isto os cristãos provocaram sem
violência uma revolução social e cultural no Império
Romano, formavam um “Tertium genus” um Terceiro
gênero de homens diferentes dos romanos (1º gênero) e
dos bárbaros (2º gênero).
2. Jesus de extraordinário bom senso, fantasia criadora e originalidade.
A mensagem de Jesus é de radical libertação do
homem e manifesta um extraordinário bom senso notado por todos, onde para cada situação tinha-se uma
palavra exata, e sabia distinguir o essencial do secundário. Suas palavras atingiam o objetivo com determinação direta. “Amai vossos inimigos” (Mt 5,44); “Não
julgueis”(Mt 5,34); “Não saiba a tua mão esquerda o que
tua mão direita fez” (Mt 6,3).
Ele tem o estilo de um profeta, surge como profeta
(Mc 8,25), mas apresenta-se como rabino, embora diferente destes, pois ele aceitava o que um rabino de então
não aceitava (pecador, mulheres, crianças...). Seus ouvintes entendem sua linguagem simples (Mt 5,14; 6,34;
6,26-27). Não fala coisas incompreensíveis, nem ensina
uma nova moralidade, mas fala de coisas que os homens já tinham, mas não compreendiam. De fato sua
regra de ouro sobre a caridade: “Tudo o que quiserdes
que os homens vos façam, fazei-o vós a eles”, já era ensinada séculos antes dele, tais como estas: “Trata os
outros assim como queres ser tratado” (Sócrates 400
159
aC); “O que não desejas para ti, não faças aos outros”
(Confúcio 470 aC) ; “O que odeias não faças a ninguém” (Mahabharata – 400 aC); “Guarda-te de jamais
fazer a outrem, o que não quererias que te fosse feito”
(Tb 4,15); “Não faças aos outros o que não queres que te
façam a ti” (Hillel). Portanto, Jesus não dizia coisas novas e surpreendentes, por isso com razão disse Santo
Agostinho: “A substância daquilo que hoje a gente chama de cristianismo já estava presente nos antigos, nem
faltou desde o início do gênero humano até que Cristo
viesse na carne”.
Jesus manda amar os inimigos porque tanto amigos como inimigos são filhos do mesmo Pai que fez o sol
nascer para todos (Mt 5,45). Manda fazer o bem para
todos porque se fizermos o bem só por recompensa que
mérito há nisso? (Lc 6,33). Proíbe a poligamia porque
no inicio não foi assim (Mc 10,6). Coloca-se acima do
sábado porque o homem é mais que um animal (Mt
12,11-12) Deve-se confiar em Deus porque sua Providência é maior (Mt 10,31; Mt 7,11).
Jesus diante do mundo é realista e tem uma atitude de compreensão e não de censura. Vê a natureza
na sua realidade criacional falando do sol e da chuva
(Mt 5,45); do vento (Lc 12,54-55); dos pássaros (Mt
6,26); dos lírios (Mt 6,30); da figueira (Mt 13,28); da colheita (Mc 4,3s); dos espinhos (Lc 12,16-21); da terra
que produz (Lc 12,16-21); da ovelha perdida (Lc 15,1);
do homem do campo (Mc 4,3s); dos trabalhadores desempregados (Mt 20,1s).
Jesus era alguém de sentimentos profundos, relaciona-se com as pessoas abraçando as crianças (Mt
9,36) abençoando-as (Mc 10, 13-16); admira-se da fé de
um pagão (Lc 7,9); da sabedoria de um escriba (Mc
6,6); comoveu-se (Lc 7,13); sentiu compaixão (Mc 6,34);
sentiu a ingratidão (Lc 7,44-46); a tristeza (Mc 3,5); fi160
cou nervoso (Jo 2,15-17); desabafou (Mc 8,12; Jo
14,9); viveu a amizade com Lázaro (Jo 11,11-23); com
Marta e Maria (Mt 21,17; Lc 11,38-42); com algumas
mulheres (Lc 8,3); foi ungido por uma mulher (Mc 14,35); conversou com a samaritana (Jo 4,75)... Portanto
nele existe tudo o que é autenticamente humano; sentiu fome (Mt 4,2); a sede (Jo 4,7); o cansaço (Jo 4,6); a
vida insegura (Lc 9,58); chorou (Lc 19,41); sentiu tristeza e medo (Mt 26,37-38)...
Ele afirma-se dizendo: “Eu” e quando ensina diz;
“Eu, porém vos digo” (Mt 5). O seu ensinamento não conhece medo, não discrimina ninguém, seja pecadores,
paralíticos, doentes (Lc 10,29-37; 7,36-40; 6,24; 15,2;
Mt 9,10-11; Lc 13,10-17; Mc 10,46-52).
Conhece os pensamentos íntimos (Mc 2,8); sabe
do pecado do paralítico (Mc 2,5); do estado da filha de
Jairo (Mc 5,39); do homem possuído pelo demônio (Mc
1,23s). Jesus foi portanto original não porque disse coisas novas, mas porque tudo que disse é cristalino e de
bom senso. Ele derrubou os muros da separação entre
o sagrado e o profano, do legalismo, das convenções,
dos sexos, do homem com Deus (Ef 3,14-18); nele “apareceu a bondade e o amor humanitário de Deus” (Tt
3,4). Por isso o cristão não está mais sob a lei (Rm
6,15), mas “sob a lei de Cristo (I Cor 9,21) e é livre (I
Cor 9,19). Ele desritualizou a piedade, desteolizou a religião, secularizou os meios da salvação fazendo do outro o elemento determinante para salvação (Mt 25,3146). Em suma, Cristo é em palavras de Dostoiewski esta profissão de fé: “Creio que não existe nada de mais
belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril
e de mais perfeito que Cristo; e eu o digo a mim mesmo,
com um amor cioso, que não existe e não pode existir
mais do que isso: se alguém me provar que o Cristo está
161
fora da verdade e que esta não se acha nele, prefiro fica
com Cristo a ficar com a verdade”.
Diante deste perfil rico e poliédrico vem-nos a
pergunta: É possível escrever uma vida completa sobre
Jesus?
Devemos concordar que sobre Jesus se escreveu
mais do que sobre qualquer outro personagem histórico
desde o seu nascimento. Esta é uma tarefa muito difícil;
de fato não é fácil encontrar um biblista sério que pudesse afirmar que sim. Existem muitos estudos baseados na Sagrada Escritura sobre Jesus e uma infinidade
de livros; basta pensar que somente a biblioteca do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, possui mais de um milhão de obras sobre Jesus. Igualmente pode-se dizer do
Instituto Bíblico de Jerusalém.
Estudiosos vêm se dedicando há muito tempo para descrever Jesus, e sobre Ele encontramos inúmeras
facetas, desde um revolucionário, até um guerrilheiro.
Hoje com o progresso dos estudos e da arqueologia, foram realizados grandes aprofundamentos sobre a Palestina no tempo de Jesus e com isto podemos conhecer
melhor o tempo em que ele viveu, assim como seus hábitos religiosos e rituais. Mas apesar de tudo isto esta é
uma tarefa sempre muito desafiadora.
Diante deste interesse por Jesus, será por isso que
Ele não desapareceu da história como os demais profetas? Podemos afirmar que no tempo de Jesus muitos se
apresentaram como profetas ou Messias e faziam também coisas portentosas, mas por que Jesus foi diferente? A resposta é porque Jesus é o Filho de Deus, seus
discípulos quando compreenderam isto transmitiram a
sua personalidade através das primeiras comunidades
cristãs guiadas por eles, as quais viveram uma fé profunda na pessoa de Cristo apesar das contradições e as
perseguições. Estas convicções sobre Jesus baseadas na
162
fé das primeiras comunidades cristãs foram-nos transmitidas ao longo dos séculos.
Apesar de tudo podemos afirmar que Jesus era
um judeu e que foi educado na cultura judaica. Foi um
judeu inconformista e crítico que fazia milagres não para
realizar prodígios, mas por compaixão e para mostrar
sua divindade. Jesus queria uma mudança profunda na
sociedade judaica e na religião hebraica; Ele queria
Deus próximo dos pobres e dos marginalizados. Por tudo
isso ele foi considerado um subversivo político e social.
3. Jesus enviado do Pai na concretização do seu Reino.
O ministério de Jesus converge para a proclamação
do Reino de Deus. O centro de sua pregação é sempre o
Reino "Completaram-se os tempos, esta próximo o Reino
de Deus..." (Mc 1,15; Mt 4,17; 9,35). O Reino de Deus
não se refere a nenhum território concreto, mas ao poderio da ação divina no mundo para transformá-lo em
justo, fraterno e sadio. É algo que vai acontecendo (Mc
9,12). Todos esperavam a vinda do Reino; os fariseus
com a observância da lei, os essênios no retiro no deserto, os zelotas pela revolução. Para os "pobres" o Reino
indicava justiça (Is 11,3-5; 32, 1-3; Sl 72,4.12-14). Por
isso, para Jesus o Reino é para os pobres (Lc 6,20), os
pequenos (Mt 5,19), as crianças (Mc 10,14). Jesus não
se limitou a anunciar o Reino, mas procurou agir para
fazer acontecê-lo. Ele fez exorcismo, "sinal de que o Reino chegou" (Mt 12,28). Ele promove a solidariedade, aproximando-se dos marginalizados, defendendo-os.
Condena os egoístas que não se solidarizam, chama de
néscio o rico agricultor que deleita com a abundância de
colheita (Lc 12,16-21), condena o rico epulão que não
partilha (Lc 16,19-31), chama de malditos quem não
compartilha as necessidades (Mt 25, 41-45 ), coloca em
163
luz a dificuldade do rico entrar no Reino dos céus (Lc
18,24).
Para poder entrar e viver neste Reino, precisa conversão (Mc 1,15), voltar-se para o verdadeiro Deus. Exige
um grande esforço pessoal, fazer violência (Mt 11,12),
carregar a cruz (Mt 10,38), estar disposto a perder tudo
para conseguir a pedra preciosa (Mt 13,45-46), o Reino
está na frente da própria família (Mt 10,37). Este Reino é
para todos, entretanto, muitos estão atarefados e recusam o convite (Lc 14,16-24). Portanto, o Reino de Deus
vai se realizando aos poucos, mediante a conversão, na
medida em que as pessoas mudam radicalmente suas
mentalidades, suas escalas de valores, sua estima pelo
dinheiro, mas tudo isto Jesus apenas não preza para
formar um grupo fechado, isolado nos próprios valores,
pois os que vivem a dinâmica do Reino devem ser "Luz
do mundo, sal da terra" (Mt 5,13-14), como fermento (Lc
13,21), onde toda a realidade deve ser transformada,
como uma semente que vai crescendo aos poucos com
vigor (Mc 4,30-35) que cresce junto com o joio (Mc
13,24-30).
Para Jesus o Reino é destinado aos pobres, sua
vinda põe fim aos privilégios (Lc 6,24-25) "Ai de vós...”. O
Reino não é resultado de aplicação e vivência ao pé da
letra religiosa, nem o resultado de uma prática de culto,
de piedade ou de sacrifícios. Não é o Reino do poder,
pois ele mesmo recusou o poder terreno (Mt 4,8-10), e
fugiu quando o povo queria aclamá-lo rei (Jo 6,15). Disse que seu reino não é deste mundo (Jo 18,36), seu reino não se identifica com as estruturas do mundo, mas
está dentro delas. Neste novo Reino o Deus de Jesus é
conflitivo, pois para Jesus o Templo não é mais o lugar
para encontrar Deus, pois ele encontra-se nos mais carentes e necessitados. Deus não é um Deus dos observantes, mas dos pecadores, por isso muitos verão em
164
Jesus um homem que engana o povo (Jo 7,12-13), um
louco possuído pelo demônio (Jo 10,19-21), um sinal de
contradição (Lc 2,34-35). Diante de Jesus precisa decidir-se, ele provoca divisão (Lc 12,51-53). Quem não está
com ele, está contra ele (Mt 12,30). Para uns ele é pedra
viva (1Pd 2,4), pedra angular (Ef 2,20), para outros pedra de escândalo (Rm 9,33).
Por tudo isso, Jesus foi condenado como blasfemo
porque apresentava um Deus diferente da religião oficial, um Deus não enclausurado no Templo, com leis minuciosas, que contentava-se com sacrifícios de animais.
O Deus de Jesus é amigo dos pecadores (Lc 7,36-50),
não condena a adúltera (Jo 8,1-11), os publicanos e
prostitutas são colocados na frente dos piedosos fariseus (Mt 21,31), o samaritano mal visto é proposto como
exemplo e não os sacerdotes e levitas (Lc 10,30-37). A
alegria dos anjos nos céus é por um pecador convertido
(Lc 15,7), o publicano é bem-visto por Deus (Lc 18,1014). A esmola da viúva agrada mais que as grandes somas dos ricos (Lc 21,1-4).
Jesus foi condenado como blasfemo (Mt 26, 65-66),
porque invés de dizer para olhar para o céu e descobrir a
Deus, mostra-o no meio dos homens, na vida diária e
profana. Foi condenado como rebelde político, porque
sua concepção de Deus incluía o anúncio do Reino de
Deus. Diante disto, constata opressores e oprimidos e
vê que esta não é a vontade de seu Deus. Denuncia que
há pobreza porque os ricos não compartilham, há ignorância porque os levitas se apossaram da chave da ciência, há opressão porque os fariseus impõem cargas pesadas e os governantes atuam despoticamente; Ele ataca
esta hipocrisia. Jesus foi condenando porque estava solapando as bases da concepção política dos dominadores.
165
O Deus de Jesus é diferente não no plano doutrinal, pois teoricamente os opositores a Jesus estavam de
acordo com os predicados de Deus (Deus é bom, único,
misericordioso), mas isso não significava estar de acordo
sobre o conhecimento real de Deus. Portanto, a posição
entre Jesus e seus adversários estava na ação.
Para Jesus todos tinham direito à vida plena e não
apenas um grupo privilegiado.
Durante a vida de Jesus, sobretudo na vida pública, sua consciência de ter sido enviado do Pai foi contínua; "não vim por mim mesmo, mas aquele que me enviou
é verdadeiro" (Jo 7,28).”Tu me enviaste ao mundo" (Jo
17,18), os discípulos o reconheceram a partir do momento em que têm consciência que Jesus foi enviado.
"Estes conheceram que Tu me enviaste" (Jo 17,25), pois
foi "O Pai quem me enviou” (Jo 5,23-24.30; 6, 38-39). Jesus é o canal para Deus comunicar-se, ele transmite a
vontade do Pai (1Jo 17,8; 15,15 ). É aquele que ordena o
que falar (Jo 12,49-50). Ele fez a vontade do Pai (Jo
5,30). Sua palavra tem autoridade porque procede do
Pai, ele é o missionário da transparência do Pai.
Como enviado do Pai, Jesus foi conhecendo cada
vez mais o seu Pai: "Assim como o Pai me conhece, eu
conheço o Pai" (Jo 10,15). “O Filho faz o que vê fazer o
Pai; e tudo o que o Pai faz, fá-lo também semelhantemente o Filho. Pois o Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que
faz; e maiores obras do que esta lhe mostrará, para que
fiqueis admirados.” (Jo 5,19-20). Por isso, Jesus tem
uma nova experiência de Deus, tudo na vida de Jesus
(pensamentos, atos...) encontra-se animado pela realidade Deus.
O Deus de Jesus não é aquele dos adoradores oficiais, submetido aos rituais, mas um Deus próximo e familiar, ao qual se recorre com a confiança de uma criança, é o Deus que procura o pecador, que vai atrás da o166
velha perdida, que se alegra com a conversão. Por isso,
ele tem uma atitude filial perante Deus. Ele o descreve
como seu Pai e deve-lhe afeto e obediência e tem consciência que o Pai deu-lhe uma missão para cumprir.
Pela primeira vez encontra-se uma invocação ao Pai
feita por uma pessoa concreta no ambiente Palestino (A
invocação de Pai, no Antigo Testamento, referia-se sempre a paternidade divina sobre todo povo de Israel Jr
31,9; Is 63, 16). Jesus chama a Deus de ABA (Paizinho),
um diminutivo carinhoso pertencente à linguagem infantil, doméstica. Os evangelhos põem 170 vezes esta
expressão nos lábios de Jesus e embora a palavra Abá
em Aramáico aparece uma vez em Marcos (14,36), os
estudiosos afirmam que sempre que os evangelistas usam a palavra grega "Pater" estão traduzindo a palavra
aramaica Abá. Esta expressão revela a profundidade de
relação com Deus.
Este relacionamento íntimo com o Pai, traduzia-se
em gestos concretos de alegria e confiança: "Oh Pai eu te
dou graças porque me ouvistes, eu sei que sempre me
ouves" (Jo 11,41-42). Digno de menção é a confiança de
Jesus expressa na oração sacerdotal (Jo 17). Ele manifestou também a confiança em Deus, durante a sua agonia no horto das Oliveira. “Faça-se a tua vontade" (Mc
14,36). A comunhão de Jesus com o Pai expressa a imagem da bondade do Pai, embora “A Deus ninguém viu"
(Jo 1,18), em Jesus Deus se fez visível, pois "Ele é a imagem do Deus invisível" (Cl 1,15). "Quem o vê, vê o Pai"
(Jo 14,9). “Ele é o único caminho para chegar ao conhecimento de Deus, "se me conhecêsseis, conheceríeis também o Pai" (Jo 14,6-7). Experimentar Jesus é experimentar Deus, ele é o sacramento do encontro com Deus,
o único mediador "um é o mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo" (1Tm 2,5). Em Jesus é-nos comuni167
cada a presença amorosa e clemente de Deus e nele experimentamos a proximidade de Deus.
Seu relacionamento com o Pai manifestou o amor
do Pai, pois sua experiência é um contínuo permanecer
no amor do Pai (Jo 15,10). Ele participa plenamente da
vida e conhecimento do Pai (Jo 1,18 ; 5,19-20). Por isso
Jesus tornou-se o portador do amor do Pai aos homens,
nele "apareceu a bondade de Deus, nosso Salvador, e seu
amor para com os homens" (Tt 3,4), mostrando assim a
ternura e a solidariedade de Deus. O Deus que se revela
em Jesus é um Deus que comove-se com a miséria humana (Lc 15,20). O comportamento de Jesus é reflexo do
agir do Pai; ele se comove diante do enterro do filho único de uma viúva (Lc 7,12-15), tem piedade dos cegos (Mt
20,34), dói-lhe a fome do povo (Mt 15,32), ou o seu desamparo (Mt 9,36), tem compaixão dos enfermos (Mt
14,44), chora por Lázaro (Jo 11, 33.35.38) e sobre Jerusalém (Lc 19,41-42). Jesus é o servidor de todos "o Filho
do homem veio não para ser servido..." (Mt 20,28); "Estou
no meio de vós como quem serve" (Lc 22,27). Abre-se aos
outros, chega ao ponto de às vezes não ter tempo para o
descanso (Mc 6,31-33) e nem mesmo para alimentar-se
(Mc 3,20). Ele recebe a todos que a ele se achegam, come com os pecadores (Mt 9,10-11), acolhe os desprezados (Mt 10,29-37) e as prostitutas (Lc 7,36-50), aceita o
convite dos fariseus (Mt 23,13-37), come com ricos (Lc
19, 1-10). Ele é tudo para os outros; mistura-se com cegos, os paralíticos, os leprosos, etc. Lava os pés dos discípulos (Jo 13,3-5).
Jesus manifesta a misericórdia do Pai, convida os
pecadores e os publicanos à mesa (Lc 14,16-24), transmite uma nova imagem de Deus com suas parábolas do
Filho Pródigo, da Ovelha Desgarrada e da Moeda Perdida. Ele mesmo afirma que veio chamar os pecadores à
conversão (Lc 5,32), perdoou a adúltera (Jo 8,11); o po168
bre paralítico (Mc 2,5-11); os seus inimigos na cruz (Lc
23,34) e morreu para nos perdoar "Isto é meu sangue
derramado para remissão dos pecados" (Mt 26,28; Cl
1,19-20; 1Jo 2,1-2). Ele se solidariza com os marginalizados que eram chamados de "Pobres" ('Am ha' arets),
que em aramáico significa "O povo da terra". Na Palestina a divisão de classes ocorria conforme a atitude religiosa de cada um. Apenas uma minoria conhecia e cumpria a lei, os demais eram desprezados, considerados
ignorantes, um nada. Entre estes estavam os cobradores
de impostos, os pastores, os tecelões, os barbeiros, os
açougueiros, os curtidores de pele, as prostitutas, além
dos mendigos, dos escravos e dos ladrões. Para os sacerdotes estes eram uma "corja que ignoram a lei, são
uns amaldiçoados" (Jo 7,49). "Nascidos todos em pecado"
(Jo 9,34). Para os essênios os cegos, os paralíticos, os
coxos, os surdos... não podiam ser admitidos na comunidade. Jesus se solidariza com estes "fez-se pobre"
(2Cor 8,9), não tendo um lugar para reclinar a cabeça
(Mt 8,20), sendo amigo dos cobradores de impostos, das
prostitutas, dos leprosos, das viúvas, dos pagãos, etc.
Rompe as convenções sociais, não respeita a divisão de
classes, não teme contrair as impurezas legais, preocupa-se com os doentes, os aleijados, os possessos e mistura-se com os desacreditados.
Esta sua opção para os pobres é tão importante que
ela se torna o distintivo de sua missão, "os cegos vêem,
os surdos ouvem, os coxos andam...” (Mt 11,4). Ele mesmo se hospeda na casa de Simão, o leproso (Mt 26,5).
Vai ao encontro dos samaritanos desprezados pelos judeus e considerados hereges (Jo 4,39-42), louva o gesto
de agradecimento de um samaritano (Lc 17,11-15) e
mostra o samaritano como exemplo a ser seguido (Lc
10,30-37). Jesus tem compaixão dos marginalizados (Mt
11,28), anima-os, comunica-lhes a especial predileção
169
de Deus (Lc 6,20). Para Ele os últimos serão os primeiros (Mt 20, 1-16), os pobres das encruzilhadas participam da festa (Mt 22,1-10), acolhe os fracos, os indefesos, os desesperados...
Esta atitude de Jesus era criticada pelos judeus
"justos", basta lembrar quando Jesus chama Mateus e
vai comer em sua casa, recebe logo a reação: "Come com
cobradores de impostos e pecadores" (Lc 5,30). Estes
murmuram também quando vai à casa de Zaqueu (Lc
19,5-7), taxam-no de comilão e beberão, amigo de publicanos e pecadores (Mt 11,19). Dizem que ele é um
criminoso (Lc 22,27), um impostor (Mt 27,63), enganador do povo (Jo 7,47), pecador (Jo 9,24), possuído por
demônio (Jo 10,20), porque era um escândalo afirmar
que os pecadores eram mais benvisto por Deus que os
piedosíssimos fariseus. (Lc 18,9-14 ; Mt 21,31). Por isso,
Jesus justifica-se diante dos que o criticam "não são os
sadios que necessitam de médicos...” (Mc 2,17), "os pecadores... os precederão no Reino de Deus" (Mt 21,2832). Compara-os com vinhateiros rebeldes contra o dono
da vinha (Mt 20,1-16). Justifica que Deus é pai bondoso
(Lc 15, 11-32 ). Deus é bom e tem compaixão (Mt 20, 116).
4. Jesus, homem de oração.
A intimidade de Jesus com seu Pai se mostra também na oração. Jesus pertenceu a um povo que sabia
rezar, apesar da oração naquele tempo ser muito formal. Ele participava do culto sabático e rezava na comunidade (Lc 4,16). Conhecia bem as escrituras. Rezar
nas refeições era coisa normal (Mt 14,19; 15,36; 26,26).
Ele era também homem de oração pessoal (Mt 4,1-11 ;
27,46 ; Mc 15,34 ; Lc 23,46). Ele rezava nos momentos
de decisão: na eleição dos doze (Lc 6,12-13), antes de
170
fazer um milagre (Mc 29 ), rezava na solidão (Mc 1,35;
6,46; 14,32; 5,16; 6,12). Rezou no Getsêmani (Mc 14,3536 ), no deserto (Lc 4,1-13), na cruz (Mt 27,46). Falou
sobre a oração, sobre sua eficácia, "Pedi e recebereis" (Jo
16,24). Ensina que o Pai sempre dá coisas boas (Mt
7,11; Lc 11,5-13). Desmascarou alguns tipos de oração
"Não multipliqueis as palavras... (Mt 6,7-8); "Não sejais
como os hipócritas que gostam de rezar de pé nas sinagogas...” (Mt 6,5-6). Não tendo-se por "justos e desprezados os outros" (Lc 18,9), ou como os escribas "que simulam longas orações...” (Mc 12,38). Pediu que rezasse
com o coração reconciliado com o irmão (Mt 5,23-24).
Jesus no relacionamento com os seus discípulos é
apresentado na tradição evangélica como mestre ou rabi, o que confirma a sua função magisterial. Ele ensinava nas Sinagogas, no recinto do Templo e ao ar livre;
este é um dado histórico, visto que depois da ressurreição Jesus é proclamado como Senhor. Ele perambulava
na Galiléia e Judéia seguido de um grupo distinto dos
seus parentes e da multidão anônima; este grupo é denominado de discípulos (Mathetai), ou também apóstolos, ou ainda os doze. Estes têm um relacionamento especial com ele. Alguns são originários de Betsaida da
Galiléia (Jo 1,44; 12,21) e de Cafarnaum (Mc 1,29); são
pescadores de Tiberíades, são publicanos, simpatizantes dos grupos empenhados na reforma religiosa e restauração nacional (Simão Cananeu, Judas Escariotas) e
até Pedro Barjonas é tido como um hipotético membro
deste grupo (ele tinha uma espada no momento da prisão de Jesus). Os discípulos formavam, portanto um
grupo heterogêneo, provenientes da classe média, alguns autônomos, outros empregados e alguns até casados como Pedro (Mc 1,30).
Jesus chamou seus primeiros discípulos Pedro,
André, Tiago, João a segui-lo e a tornarem-se pescado171
res de homens. Os discípulos levavam uma vida comum
a do mestre, ouvindo-o e imitando-o, reuniram-se em
torno Dele não para estudar a lei, mas para compartilhar a missão com ele. Segui-lo exigia radicalidade, por
isso eles recebiam instruções, uma espécie de vademécum para a missão (Mc 6,6-13). Dentre os doze discípulos existia também um grupo de mulheres (Lc 8,13) e alguns discípulos simpatizantes (Jo 6,60-66).
Durante o seu ministério Jesus realizou muitos
milagres, por isso a imagem que os evangelhos apresentam dele é inseparável de uma moldura taumatúrgica
feita de curas, expulsões de demônios, multiplicações
de pães e peixes, ressuscitações... Embora isso, a tradição extra-evangélica silencia sobre a atividade taumatúrgica de Jesus, nem mesmo Paulo faz referências. As
fontes judaicas, embora atestam a lembrança prodigiosa de Jesus, são vistas com reservas por serem tardias
e a autenticidade destas é discutida.
Quanto a credibilidade histórica das narrativas
dos milagres de Jesus, deve-se recorrer a metodologia
da crítica histórica e literária. Diante desta a afirmação
do exorcismo de Jesus (Mt 12,28) no contexto de discussão com os judeus remonta com grande probabilidade a Jesus. Quanto à resposta de Jesus aos discípulos de João Batista (Mt 11,3-6): “Ide e contai a João o
que vós ouvis e vedes: os cegos recuperam a vista...”, é
possível que seja uma redação que reflita o modo de
pensar e exprimir da comunidade cristã ao representar
a figura do Messias como: “Aquele que deve vir” (Is
26,19; 29,18-19; 35,5-6;61,1).
Em conclusão, os evangelhos dão fé da existência
de uma tradição na qual se conservam algumas palavras de Jesus que pressupõem a sua ação taumatúrgica
sob forma de exorcismos e curas, contudo a documen172
tação assegura o mínimo de credibilidade histórica de
seus milagres.
A convicção de que Cristo é Filho de Deus emerge
de seu modo de falar e agir. Ele recusa honrarias (Jo
6,14-15 ); ele amigo dos pobres e ensina com autoridade (Mc 1,22). Seu modo de pregar é diferente daquele
dos profetas do Antigo Testamento, pois eles falavam em
nome de Deus. "O Senhor me disse", "Oráculo do Senhor",
invés disso Jesus diz de sua própria autoridade, tem o
"Eu enfático", "Eu ordeno". "Eu vos digo", "Eu te ordeno",
"Eu quero" (Mc 2,11; Lc 7,14, Mt 8,3). Estas são expressões que não encontram analogia no Antigo Testamento.
Jesus se coloca no centro da mensagem e exige adesão a
ela em nível superior àquela que liga os membros de
uma mesma família. Salva-se quem aceita, a sua Palavra (Mc 16,16), a sua pessoa (Mt 10,32-33). Acolhe-lo é
acolher o Pai (Mc 9,37), e desprezá-lo é desprezar o Pai
(Lc 10,16). Ele se coloca como Juiz no final (Mt 25,3146), acima de Jonas e Salomão (Mt 12,41-42), acima do
Templo (Mt 12,6), acima dos anjos (Mc 13,27).
Jesus contesta o valor da tradição do judaísmo que
regulava o cumprimento da Lei divina. Ele cura em dia
de sábado (Mc 3,1-5 ; Lc 13,10-17), permite aos apóstolos recolher trigo para se alimentarem (Mc 2,23-28). Dizse Senhor do sábado (Mc 2,28), comporta-se diferente
diante das abluções (Mc 7,1-23). Sente-se Superior à lei
de Moisés, proibindo não apenas juramentos falsos (Mc
30,3), mas qualquer juramento (Mt 5,34) . Moisés permitia o divórcio (Dt 24,1), ele o exclui (Mc 10,2-12). Ele
acrescenta algo a mais, como no caso da proibição de
adultério, acrescenta o pensamento desonesto (Mt 5,28).
Na proibição do homicídio, acrescenta o ódio (Mt 5,2124). Abole a lei do Talião (Ex 21,23-25; Dt 19,21), (Mt
5,38-40). Perdoa os pecados de Zaqueu (Lc 19,1-10); da
mulher adúltera (Jo 8,3-11); do bom Ladrão (Lc 23,43 ),
173
da pecadora na casa de Simão (Lc 7,36-50); do paralítico
(Mc 2, 1-12). Se Jesus não tivesse convencido de sua
divindade, não poderia comportar-se assim. Portanto
ele deixou claro por palavras e gestos que é o Filho de
Deus.
Em suma, podemos afirmar que o comportamento
de Jesus suscitava pergunta sobre sua identidade.”
Quem é este?” (Mc 4,41) “De onde vem?” Alguns dos
seus comportamentos suscitaram a questão de sua origem. Basta lembrar a sua autoridade diante da lei. Para
os judeus a lei do Sinai é a realidade Sagrada e intocável, ela contém a divina e imutável vontade de Deus revelada por Moisés. Jesus diante da Lei aceitou certos
pontos, mas criticou e corrigiu outros (Mc 2,27), repouso sabático, a indissolubilidade do matrimônio, na Lei
do Talião, a pureza legal... E ao fazer isto Jesus não
justificou com nenhum raciocínio teológico, nem invocou a autoridade de um legislador famoso, mas falou
em nome próprio se identificando com a Palavra de
Deus. Ele diz: "Eu porém vos digo” ... Posiciona-se acima de Moisés, deixa de ser um Rabi que recebe a sua
autoridade só de Moisés e coloca-se no lugar de Deus.
Atribuir autoridade superior a Moisés era algo impensável, isto suscitava escândalo e medo na multidão,
por isso a multidão ficava com admiração diante dos
seus ensinamentos (Mc 1,22-27 ; 2,12) e frente a isso
ninguém ousava perguntar quem ele era (Mc 1,22).
Jesus procurava relacionar-se com os pecadores,
comia com eles e oferecia-lhes em nome próprio o perdão (Mc 2,7), algo que só Deus pode fazer (Lc 7,49). Por
isso é tido como blasfemador (Mc 2,7). Ele tem plena autoridade sobre os espíritos imundos, tem a consciência
de que é mais forte que satanás (Mc 3,27), suscita temor
e fascínio operando milagres. (Lc 8,25).
174
O comportamento de Jesus era questionante também na relação entre Ele e o grupo de discípulos. No
judaísmo os encarregados da interpretação e ensino da
lei de Moisés eram os doutores da lei que tinham escolas
e faziam discípulos. Assim, mestre e discípulos viviam
juntos alguns anos, até que o discípulo fosse diplomado,
tornando-se Rabi e tivesse os próprios discípulos. Jesus
também era Rabi e tinha discípulos, porém não tinha
estudado em nenhuma escola rabínica (Jo 7,15). Ele
ensinava com autoridade, não apoiando seus ensinamentos na autoridade de um famoso Rabi, nem sob a
sombra de Moisés, a lei nem fazia parte, entretanto o
discípulo sabia que era discípulo (Mt 23,8). Esta originalidade é ainda mais clara no sentido de que não era o
discípulo que escolhia o mestre, mas vice-versa e ao escolher fazia exigências duras como deixar a família, os
bens, viver uma vida nova (Lc 9,60). O discípulo se ligava existencialmente a ele, dependia dele e experimentava
na proximidade com ele a presença de Deus.
Outra maneira diferente do comportamento de Jesus foi quanto a atribuição de uma função única para si
em relação ao plano de Deus e sobre a humanidade.
Ele apresenta-se como o que anuncia a aproximação do Reino de Deus e o inaugura (Mt 12,28). Este reino chega associado à sua pessoa e ocupa o lugar central de sua mensagem, pois não é possível chegar a
Deus sem a comunhão com Ele (Lc 12,9). Ele não só
anuncia a salvação, mas é a salvação em pessoa;
Deus está próximo porque ele se encontra presente Nele, entra em contato com Deus e seu Reino, Nele se encontra a graça de Deus e seu juízo, ele é o Reino, o amor
de Deus. Ele é mais que Jonas, mais que Salomão (Mt
12,41-42). Faz tudo isto sem arrogância, sem buscar o
poder, a fama, a riqueza, pois vive um estilo de vida
humilde sendo pobre e não tendo casa (Lc 22,27).
175
A sua missão ele a desempenhou com segurança.
Sua palavra como a dos escribas nunca se limita a uma
explicação das escrituras, elas têm caráter imediatista;
ele sabe de modo inequívoco o que Deus quer e o que
anuncia. Não é a Sagrada Escritura a fonte última de
sua convicção, do conhecimento da Palavra de Deus e de
sua missão. Ele não apela para nenhuma visão ou revelação pessoal, mas encontra-se diante de uma intuição
imediata, ou diante de um conhecimento de Deus por
conaturalidade (Dupont).
Por fim o seu modo de rezar impressionava os discípulos, pois pela relação filial que cultivava com Deus,
ele falava com Deus como se falasse com o Pai (Kasper).
Chama Deus como em "meu Pai" e "vosso Pai", visto que
tinha uma consciência de estar numa relação íntima
com Deus. Ele revela um modo seu todo novo de entender Deus. Vivia a relação filial na obediência, uma obediência por antonomásia (Fl 2,6-11). A experiência que
tinha com Deus era a fonte de sua autoridade diante da
lei, das respostas que deixava estupefata as multidões e
tudo isto o fazia como alguém totalmente desraizado do
seu próprio eu, numa atitude de serviço. Ele pertencia a
este mundo, mas em meio a ele era totalmente um outro
(Bornkanm).
23.
O HOMEM JESUS
Depois da ressurreição veio a pergunta: Quem é
afinal Jesus de Nazaré. A comunidade primitiva usou
mais de 50 nomes, ou títulos para defini-lo, somente o
título Cristo é empregado 500 vezes, Senhor 350; Filho
do Homem 80; Filho de Deus 75 e Filho de Davi 20, além dos denominativos como profeta, mestre, justo, santo, bom, Salvador... Esta busca da individuação do sig176
nificado e realidade de Jesus de Nazaré foi denominada de Cristologia.
Desde o início o modo de agir de Jesus em nome
de Deus especifica a consciência de quem Ele é. Basta
lembrar que Ele falava de forma diferente sobre Deus a
ponto de suscitar para os judeus uma blasfêmia (Mc
2,7; Jo 5,18). Ele agia perdoando os pecados, modificando a lei (Mc 2,7; Lc 7,49); chamando um grupo de
discípulos para aderir a Ele (Lc 12,8-9); fazendo exigências (Lc 14,26-27.33); curando doenças (Mt 8,16-17);
operando milagres (Mt 12,38); suscitando admiração
(Lc 2,47; 4,22-23; Mt 2,12; Mt 7,27-28); tendo autoridade (Lc 4,31); tendo sua fama espalhada por todos os
lados (Mt 4,24); todos queriam ouvi-lo (Mc 3,7-8; Lc
8,37).
Alguns escandalizavam dele (Mt 13,57), pois era
um simples filho de carpinteiro (Mc 6,3); um beberrão
(Mt 11,19); um blasfemo (Mc 2,7); um possesso (Mc
3,20-23); um subversivo (Lc 23,2); um impostor (Mt
27,63); um herege (Jo 8,45). Tudo isso dá notas de uma
cristologia negativa, devido às suas atitudes.
Alguns admiravam-se dele chamando-o de médico
(Lc 5,17; Mt 8,17), Rabi (Mc 9,5; 11,21) não como um
biblista do Templo (Mt 7,29; 5,21-26-27.30.33-37), ou
como um profeta (Mt 21,11; Lc 24,19). Ele tinha a
consciência de ser mais que um profeta (Mt 12,41), ou
o Filho de Davi (Mt 1, 2-17; 9, 27).
Mas como Jesus entendia a si mesmo? Ele possuia uma consciência clara de que tinha uma relação
única com Deus e como seu Filho, embora nunca tivesse utilizado a expressão “Filho de Deus”. Só os demônios (Mc 3,11; 5,7), as vozes celestes no batismo e
transfiguração (Mc 1,11; 9,7) e Pedro (Mt 16,16s) afirmaram ser Ele o Filho de Deus. Jesus usou duas vezes
a expressão “Filho” (Mc 13,32 ; Mt 11,27) mas este títu177
lo não possuía conotação messiânica, contudo para João virá indicar a relação íntima do Filho com o Pai (Jo
5,18; 10,30; 19,7), mas tudo foi elaboração teológica do
evangelista. Da mesma forma, a expressão “Filho do
Homem” aparece nos sinópticos ou num sentido das
esperanças apocalípticas (Mc 8,38 ; 13,26; 14,62), ou
num contexto de parusia, mas de sofrimento, de morte
e de ressurreição (Mc 8,31; 9,31; 10,33), ou ainda com
o poder de perdoar os pecados e de “Senhor do sábado”
(Mc 2,10; 2,28), mas tudo isso foi trabalho cristológico
da comunidade primitiva que à luz da ressurreição, identificou Jesus com o Filho do Homem. O mesmo vale
para título de Messias ou de Cristo, o qual no tempo de
Jesus se revestia de três sentidos:
a) rei libertador político;
b) Como um sumo sacerdote da casa de Aarão;
c) Como Filho do Homem vindo sobre as nuvens
com poder.
Jesus não se identificou com nenhuma dessas figuras e a confissão dele diante do Sinédrio (Mc 14,61)
exprime a fé da comunidade primitiva como verdadeiro
libertador, assim como a confissão de Pedro em Cesaréia (Mc 8,29) é expressão da fé comum da comunidade que Pedro em nome desta exprimiu após a ressurreição. Não são os títulos que criaram a autoridade de
Jesus, mas sua autoridade que criaram os títulos.
A ressurreição foi uma reviravolta, desencadeou
um processo cristológico, ela radicalizou a pergunta e a
admiração dos discípulos: Quem é Jesus? Por isso os
primeiros cristãos tomaram títulos e imagens de seu
mundo cultural seja judeu ou grego e ampliaram o horizonte de compreensão de Jesus Cristo. Assim, para a
comunidade palestinense Jesus é o Cristo, o Messias
esperado para trazer a salvação (Lc 24,26) e entronizado como Messias- Cristo pela ressurreição (At 2,36;
178
2,20-24; 3,13-15; 5,30-31). Já para os judeus-cristãos
da diáspora, Jesus e o novo Adão e Senhor; estes influenciados pelo mundo helênico invocavam Jesus como
Senhor, que desempenha funções divinas, que rege sobre o Cosmos e os homens (I Cor 1,2; II Cor 5,17; Rm
10,13; Rm 5,12-21). Por fim, para os cristãos helenistas, Jesus é o Salvador, a cabeça do Cosmos, o Filho unigênito de Deus. Para estes com a cultura grega, o título Salvador dizia muito, pois o Imperador era considerado o Salvador. Por isso, Jesus é o Salvador do mundo
(Jo 4,42; I Jo 4,14); é o Filho de Deus (Rm 8,3); o Senhor Absoluto (Flp 2,6-11; Cl 1,15-17); o cabeça (Cl
2,9); é tudo em todos (Cl 3,11).
Alguns títulos cristológicos que referenciamos e
outros mais não lembrados (princípio e fim de tudo, a
porta, o pão verdadeiro, a água, o bom pastor, a paz, o
poder de Deus, a glória de Deus, o sim de Deus, o esplendor do Pai, o cordeiro imaculado, a pedra, o maná... decifram a figura de Jesus que os apóstolos conheceram e exaltam o homem Jesus, assim como fundamentam sua autoridade e soberania.
O significado do nome de Jesus, do hebreu Yehoshua, abreviado na linguagem coloquial para Yeshua
(Ye) e forma abreviada do nome próprio hebreu de Deus
(YHWH) e Shua palavra hebraica que significa salvação
ou também do latim salvamento (saúde, bem estar).
Portanto, Yeshua significa Deus é salvação, saúde, bem
estar.
Jesus foi o proclamador, Jesus aponta sempre não
para si próprio, mas para Deus... os discípulos não são
chamados a pregar a pessoa de Jesus, mas sua mensagem. Devem pregar o centro que Yeshua pregou e (arrependimento e perdão dos pecados) (Lc 4,18). Para Lucas Jesus não é o caminho, mas aquilo que ele ensinou.
179
Na fonte Q “as palavras de Jesus”, um dos escritos
mais antigos ou talvez o mais antigo da cristandade, um
documento inserido entre Mateus e Lucas, Yeshua, não
se torna o proclamado, mas o proclamador. Jesus é o
meio de salvação, mas não por intermédio de sua morte
redentora que não é mencionada na Q, mas pela revelação do Reino e do caminho para participar deste Reino”(Ivan Havener, Y the sayinjs of Jesus, Wilmingtor,
Michael Glazier, 1187 pg 71). Por isso a salvação encontra seguindo aquilo que Jesus ensinou.
O nosso conhecimento sobre Jesus histórico tem
de basear-se no Kerigma, numa análise crítica do texto
querigmático, embora poucos cristãos estariam dispostos a proclamar as afirmações de Nicéia (325) ou de
Constantinopla (381).
Para compreendermos aquilo que Jesus dizia, temos que compreender suas declarações dentro dos padrões e categorias do perímetro judaico. Não fazer isso,
seria conferir o nosso significado estrangeiro às suas
afirmações e atos ao invés de extrair deles o significado
que desejam nas pessoas. Faríamos “Eiseigesis” ao invés de “Exegeses”.
Jesus era judeu praticante, não aboliu a Torá, mas
aperfeiçoou-a (Mt 5,17). No tocante ao cumprimento da
lei pode-se descrever Jesus como “Judeu da reforma”, o
judeu mais influente e radical que o judaísmo jamais
produziu. Jesus interpretou para o dia-a-dia a Torá,
sua halakkot se encontra encrostada no Evangelho. Ele
aplicou a lei à vida diária, moldou as regras de conduta,
isto é halakkot. Jesus foi halaquista. No tempo de Jesus
a interpretação e aplicação da Torá passava por grandes
e contínuas transformações.
Os rabis tinham a expressão para designar as decisões haláquicas que ia além das exigências da Torá.
Jesus foi um hasid, isto é, alguém cuja filosofia de vida
180
foi não se satisfazer com o mínimo de conduta, mas foi
além da letra da lei, ele praticou o hased, o amor altruístico, a benevolência; ele praticou o “hasede” na sua
vida diária. Teve uma vida extraordinariamente especial, por isso ele é a quintessencialmente judeu.
A significação de que Yeshua estava na sua humanidade e não na sua masculinidade foi afirmada pelo
Concílio de Nicéia (325): “Et homo factus est” (se fez
humano), e não “et vir factus est” (se fez masculino), por
isso a imagem de Jesus nos evangelhos reflete os traços
psicológicos masculinos e femininos. Antes de tudo observemos que dividir diversas características humanas
em masculino e feminino como se as mulheres tivessem
uma série delas e os homens outras, é cientificamente
infundado. Presumia-se que o homem seja sensato e
tranqüilo e as mulheres pessoas de sentimentos e emoções; os homens firmes e agressivos, as mulheres mansas e pacificas; os homens defensores da justiça, as
mulheres da misericórdia; os homens têm orgulho e autoconfiança, as mulheres humildade e recato; os homens provocadores, as mulheres que necessitam de segurança...
Jesus foi sensato e tranqüilo. Quando foi intimado a dar um parecer se era lícito pagar imposto a César:
“Dai a César....” (Lc 20,20-26). Quando queriam precipitá-lo do pináculo (Lc 4,28-30) sua reação foi de calma.
Sentimental e emotivo – na ressurreição do filho
da viúva de Naim. Ele agiu com sentimento e diante de
Lázaro morto ele chorou (Jo 11,33-36).
Firme e agressivo – diante de Pedro disse: “Afastese de mim satanás...” (Mc 8,33). Em outros momentos
foi firme: “Vim trazer fogo” (Lc 12,49); “A espada” (Mt
10,34); “Só os violentos conquistam o Reino dos Céus”
(Mt 11,12); Ele denuncia a hipocrisia, chama os fariseus
181
de raça de víboras (Mt 23,13,33). Expulsa os vendilhões
(Mc 11,15-17).
Meigo e pacífico – usa a imagem feminina da galinha para descrever a si próprio (Lc 13,34); “Sou manso
e humilde....” (Mt 11,28-30); amante da paz (Lc 7,50;
10,5-6; 6,29).
Justiça e misericórdia – veio para cumprir a lei
(Mt 5,17-19); no fim do mundo os justos brilharão (Mt
13,41-43; Mt 25,31-33.46) Não condenou a mulher adúltera (Jo 8,7). Proclamou bem-aventurado os misericordiosos (Mt 5,7); pediu o perdão (Lc 6,36-37); ensinou
perdoar sempre (Mt 18,21-22; Lc 15,20-24); a amar os
inimigos (Mt 5,43-44; Lc 23,33-34).
Auto confiança – “Deixa-a . Por que a molestais?
Ele me fez uma boa obra...”. (Mc 14,6-9); “Eu vos digo se
eles se calarem, as pedras gritarão” (Mt 21,8-10); “O Filho do Homem estará sentado à direita de Deus TodoPoderoso”(Lc 22,67-70).
Diante de Pilatos: “Meu Reino não é deste mundo ...
“Eu sou Rei...” (Jo 18,33-37; 19,10).
Humildade – “Aprendei de mim que sou manso e
humilde de coração...” (Mt 11,29). “Todo aquele que se
humilhar será exaltado” (Lc 14,7-11; 18,9-14).
Recato - quando deres uma esmola,... quando jejuares... (Mt 6,1-6).
Responsável pela segurança – “Quem vem a mim
nunca terá forme” (Jo 6,35); “Não leveis alforje” (Lc 10,4);
“não preocupeis com o que vestir” (Lc 12,22).
Necessidade de segurança – “As raposas do céu
têm suas tocas...” (Lc 9,58); “Meu Deus... porque me abandonaste” (Mc 15,34).
Organização – “a toda cidade onde ele iria passar”
(Lc 10,1); “senteis em tronos, para julgar as doze tribos
de Israel” (Lc 22,30).
182
Nossa fé em Cristo passa necessariamente pela
sua humildade. Nosso encontro com ele é o encontro
com um Homem. Para muitos Jesus é um ser extraordinário, onde a sua humanidade evapora-se. Jesus não
partilhou a existência humana. Dotado de toda perfeição parece um pré-fabricado, um pródigo. Desde os
tempos apostólicos teve dificuldade de aceita-lo como
Homem, tinha aparência de Homem. João combateu
esta heresia (I Jo 4,2-3).
Entretanto, nada de humano lhe é estranho. Tinha fome (Mt 4,2), sede (Jo 18,28), dormia (Mc 4,37),
chorava, tinha amigos (Jo 11,3) não ignora a morte (Mt
20,18-19; Lc 12,50), sentiu medo (Mc 14,34), tinha sentimentos (Mt 26,38).
Era homem do povo, um carpinteiro (Mc 6,3) que
viveu num país ocupado por estrangeiros, dominado por
zelotas. Jesus não foi zelota, mas teve um seu discípulo,
Simão, o Cananeu. É provável que outros tinham sido
zelotas, por exemplo Judas, o qual traiu Jesus após
constatar que Jesus concebia de modo diferente a função messiânica. A questão é que Jesus esteve em contato direto com a questão zelota. As aspirações mais ardentes do zelotismo pareciam se concretizar em Jesus.
Sua entrada triunfal em Jerusalém foi ocasião que os
inimigos encontraram para denuncia-lo aos romanos
como um zelota e serviu para fortalecer o entusiasmo
messiânico tão inflamado. De fato, Lucas resume em
três as acusações que os judeus fizeram de Jesus ao
tribunal de Pilatos: um revolucionário, proibia de pagar
impostos a Roma, e fazer-se Rei (Lc 23,2).
Jesus era um homem surpreendente, todos admiram suas palavras, não tinha freqüentado escolas (Mt
22,23; Mt 21,24-25). Gostava do silêncio, freqüentava
sinagogas e o Templo, mas não oferecia sacrifícios. Surpreendia os judeus com a maneira com que tratava os
183
pecadores (Lc 7,36-50; Jo 8,1-11) Hospedou-se na casa
de Zaqueu (Lc 19, 1-10).
Quanto à sua divindade Jesus jamais falou “sou
Filho de Deus” ou “Sou Deus”, assim como não insistiu
em sua messianidade. Entretanto os evangelhos o chamavam Filho de Deus (Mc 1,1). Filho de Deus para o
Israelita tinha um sentido quase banal. A Sagrada Escritura o atribui aos anjos (Sl 29,a; Jo 2,1), ao povo de
Israel (Ex 4,22; Os 11,1), ao Rei (Sl 89,27 e também ao
Messias (Sl 11,7).
Nenhum personagem é tão falado, estudado e
lembrado em vida e depois da morte como Jesus . Nenhum livro foi exposto tanto à crítica quanto os Evangelhos que falam Dele e é a sua fonte principal.
Sua vida foi singular e um parodoxo, tentam matá-lo quando ainda criança de berço, o perseguem durante a sua vida pública, respondem com pedras à sua
lógica, e por fim pregam-no numa cruz, para Dele livrar-se, mas o temem também quando morto e colocam
estupidamente os guardas no sepulcro para o guardarem.
Depois de sua morte, no curso de 20 séculos,
uma soma ininterrupta de inimigos continuou a perseguição sempre mais refinada, atormentando e perseguindo os seus seguidores, renegando o seu evangelho,
suas obras. Mas depois de 20 séculos Ele continua em
nosso meio como um sinal de contradição. Por que?
Porque junto com o número de seus perseguidores. Existem também um grupo sempre mais crescente de
amantes apaixonados, de Sua pessoa e de sua mensagem, que vivem e morram por ele em todo o mundo. A
mesma coisa se dá com o seu evangelho, todas as anatomias e sofisticações da crítica não conseguiram dilacerá-lo.
184
Hoje assistimos infelizmente com o coração triste
uma crise de fé, uma indiferença quanto ao seu ensinamento que também é presente entre seus seguidores
e que se tornou uma práxis. Trata-se da fé Nele que é
sacudida pela crise do pensamento. Mas esta crise de fé
tem seus precedentes já no passado, abrindo-se abre no
século XVIII, onde a preocupação dos autores deste período era de eliminar da vida de Jesus o elemento sobrenatural e reduzí-lo a um mito (Strauss), de tê-lo como um homem de alto sentimento moral (escola liberal),
como um pregador da paternidade e Deus e da fraternidade (Harnack), como um homem encantador (Renan),
ou como um obssessionado do fim do mundo (Scheweitzer).
Mas depois de um itinerário aventuroso de 20 séculos a crítica confirma substancialmente a doutrina
católica sobre a pessoa de Jesus e seu Evangelho. Portanto , o Jesus Praedicans e o Christus Praedicatus, o
Jesus de Nazaré é o Cristo kerigmático, é uma mesma
realidade. Podemos, portanto ter os evangelhos como
documentos históricos, para encontrar o Cristo, cuja
existência é também atestada por fontes profanas bem
notáveis: tais como: Svetonio, Plinio, Flavio Josefo e sobretudo Tácito que nos seus Anais insere Cristo na história de Roma com tais afirmações: “O autor desta denominação (cristãos), Cristo sob o imperador Tibério foi
condenado ao suplício pelo procurador Poncio Pilatos...”.
Por isso mesmo Schwietzer disse que de “poucas personalidades do mundo antigo possuímos tantas notícias e
discursos, seguramente históricos quanto a de Jesus”.
Mas a prova mais verídica da historicidade de Jesus é a Igreja uma instituição de 20 séculos. Esta revolucionou o mundo, criou um direito, uma mística, uma
arte admirável, uma cultura, uma civilização que se encarnou em todas as raças e sobre toda a terra. A Igreja
185
e o cristianismo fazem parte das civilizações de quase
todo o mundo, também se em alguns lugares existem
perseguições aos cristãos. Isto demonstra não só a existência histórica de Jesus, mas também a sua presença
operante nos séculos.
Os textos referem-se as origens de Jesus afirmando a sua mãe e o seu o pai, o lugar de nascimento, a
sua profissão e a descendência de Davi. Segundo Mateus (2,19-23) seus pais moravam em Belém e depois do
Egito foram para Nazaré. Já o evangelista Lucas (2,17.39.51) diz que moravam em Nazaré e que Jesus nasceu em Belém devido ao recenseamento. Tudo isto explica-se quanto as exigências cristológicas e catequéticas de ambos evangelistas. Segundo a tradição comum
atestada pelos sinóticos, Jesus é o “Profeta de Nazaré”
da Galiléia e esta é a sua pátria. Também João (1,43)
confirma sua origem nazarena.
Quanto a profissão e o estado civil de Jesus os
evangelhos afirmam que Ele é o “Filho de Carpinteiro”
(Mc 6,3; Mt 13,55). O termo grego “Tekton”, exprime que
ele era um artesão e com isso ele esclarece que não pertencia à categoria dos mais pobres. Possuía uma certa
cultura, pois tinha freqüentado a Sinagoga de Nazaré,
era celibatário certamente inspirando-se na figura profética de Jeremias que com sua condição era um sinal
para os de seu tempo (Jr 16,1-13).
O que nos surpreende nos evangelhos é a ausência quase total de preocupação biográfica, apenas Lucas
e Mateus supre um pouco esta lacuna com os relatos de
sua infância, mas Jesus chega à idade adulta e ao exercício de seu ministério sem que ninguém soubesse de
sua excepcionalidade. João inicia sua vida pública em
concomitância com João Batista, colocando a sua missão inseparável de João Batista, o pregador da justiça e
da piedade e com seu batismo de purificação dos peca186
dos e que foi condenado à morte por Herodes. João Batista propunha um banho de imersão na água para obtenção do perdão dos pecados na expectativa do juízo
escatológico eminente.
João, cognominado de “baptistes”, com sua pregação de caráter ético – religioso e com o rito do batismo
por imersão, tornou-se o ponto de convergência de um
movimento popular que despertou as suspeitas de Herodes Antipas que por motivo de precaução mandou
prendê-lo e depois matá-lo. Ele com estilo ascético pregava no deserto o juízo de Deus que ameaçava os impertinentes, como a árvore que tem o machado nos pés.
A conversão que pregava tinha como símbolo de compromisso o banho nas águas. João declara-se não o
Messias, nem Elias, mas uma lâmpada que arde por
tempo breve (Jo 5,33). Ambos, Jesus e João, desempenharam atividades batismal contemporaneamente (Jo
3,24).
João Batista tinha um grupo de discípulos (Mc
2,18) e não é improvável que Jesus depois do batismo
tenha feito parte do seu grupo na Pérsia e depois separou-se com a prisão de João, Jesus iniciou sua missão
(Mc 1,1-15) não com o batismo, mas com o gesto de
libertação, e João ao ouvir as “obras de Cristo” enviou
seus discípulos para perguntar-lhe se era ele o Messias
(Mt 11,2-3). Jesus recebeu o batismo de conversão de
João (Mc 1,9-11; Jo 1,32-34), porém o seu batismo tinha um significado “penitencial” (Mt 3,6; Mc 1,41; Lc
3,3). Os evangelistas obviando este problema, acentuaram mais a descida do Espírito Santo, sobre Jesus, habilitando-o para a sua missão. Com o batismo deu-se
uma guinada na vida de Jesus, pois a partir daí ele deixou Nazaré, a sua vida escondida e iniciou a missão de
profeta, anunciando o “Reino de Deus”, ou “o Reino dos
Céus”, ou seja, que a soberania e o domínio de Deus na
187
terra está presente, e não no Templo (I Cr 29,11-12),
que é Deus que se manifesta e intervém em favor de seu
povo e que Ele é a manifestação poderosa e gloriosa da
presença salvífica de Deus. A partir deste acontecimento Jesus atualiza Deus presente na história (Mt 12,28;
Lc 11,20), visto que até João era a lei e os profetas, desde então é anunciado o Reino de Deus (Lc 16,16; Mt
11,12-13). De agora em diante Deus é o protagonista da
história. “O Reino de Deus está no meio de vós” (Lc
17,20-21), ou seja, o Reino não é mais objeto de cálculos, pois já está ali a presença e a ação de Deus, Jesus é
uma realidade presente. Jesus não só anuncia a presença do Reino de Deus, mas também confirma a sua
pessoa e a atualidade do Senhorio de Deus, ou seja,
Deus está presente a partir de então porque Jesus está
atuante com gestos poderosos em favor dos homens, ele
mesmo é o protagonista e não só o anunciador. Com ele
deu-se portanto uma guinada decisiva nas promessas
bíblicas e nas expectativas judaicas.
Afirmamos que Jesus foi em tudo semelhante ao
homem, exceto no pecado, o que isso significa? Significa
que compartilhou a sorte de todo homem nas alegrias e
sofrimentos físicos e morais, inclusive a morte. Que foi
infinitamente superior a todos os homens no domínio da
vida moral e na intimidade com o Pai e na santidade.
Que embora sendo verdadeiro homem, se distingue dos
outros homens em certos aspectos como: nascimento
virginal e poder de operar milagres.
Jesus foi semelhante a nós em tudo, salvo no que
era necessário segundo o desígnio de Deus, para que ele
pudesse cumprir sua missão de salvador. Isto implica
que tinha uma santidade perfeita e um conhecimento
pleno e total no plano de Deus e de seu mistério.
A esta altura resta-nos perguntar: qual era o saber
de Jesus? Até pouco tempo os teólogos pensavam que
188
Jesus em sua vida terrena sabia tudo, tanto o presente,
o passado como o futuro. Conhecia todas as ciências,
técnicas, etc. Conhecia todos os pensamentos e nada
ignorava, e quando demonstrava não saber algo é porque disfarçava para poder nos ensinar. Hoje com os estudos se afirma que Jesus foi um homem completo e
como todo homem não conhecia tudo, mas sempre esteve em atitude de busca de aprendizagem, e que teve dúvidas, tentações, etc. A humanidade de Jesus não foi
uma comédia, ele cresceu em sabedoria (Lc 2,52). Assumiu com sua encarnação a lei do amadurecimento
humano, todas as conseqüências com exceção do pecado (Hb 4,15). Se não fosse assim sua morte não teria
sido verdadeira. Ele viveu sua humanidade mais profunda que nós, pois viveu a intimidade com o Pai. Jesus teve dúvidas, tentações, ignorou o dia do juízo, teve
medo da morte, foi instruído pelo seu Pai, viveu sua cultura, portanto ele passou por um processo histórico de
aprendizagem. Tudo isso porque tinha a consciência
humana, não era cópia de sua consciência divina.
Contudo, Jesus teve em sua vida momentos particulares de experiências excepcionais de abertura ao mistério das coisas, recebeu o conhecimento profético para
desenvolver sua missão, teve um conhecimento único
do mistério de Deus. Assim, afirmamos que Jesus tinha
dois tipos de saber: um adquirido na cultura de sua época e outro profético que o capacitava de cumprir sua
missão salvífica.
Ao contemplar Jesus como Homem e Deus, será
que poder-se-ia individuar o seu aspecto físico? Na verdade não temos uma imagem ou pintura de Jesus,
mesmo porque no seu tempo era proibido reproduzir
rostos. Como sabemos, no início do cristianismo Jesus
foi representado por símbolos, tais como: um peixe, um
pastor, ou um cordeiro. Hoje estudiosos estudam uma
189
das provas mais importantes do corpo de Jesus que é o
santo sudário, o qual encontra-se guardado na catedral
de Turim na Itália. Este é um pano de linho que mede
4,36m por 1,1m e apresenta duas imagens do mesmo
homem em tamanho natural uma de frente e outra de
costas. Pelos estudos este homem que tem as marcas de
crucifixão, mede 1,81m de altura e deveria pesar aproximadamente 77 quilos. Têm bigodes e barba comprida.
Trata-se de um documento científico e curioso sobre o
qual foram feitos inúmeros estudos e se escreveram incontáveis livros sobre o assunto. Este pano de linho foi
estudado até pelo Jet Propulsion Laboratory da Nasa, e
submetido aos mais modernos testes computadorizados.
O sudário é curioso apesar de ser contestado por
alguns homens da Ciência, porque a dupla imagem está
em negativo, mas aparecem positivo na primeira fotografia que foi feita em l898. Apresenta também informações
tridimensionais e segundo os testes químicos a imagem
nele impresso não contém nenhuma tinta. A imagem
apresenta feridas nas mãos, nos pés e no flanco esquerdo. Tem também feridas na cabeça que lembram a coroa
de espinhos. É portanto, a imagem de um homem crucificado.
O importante é admitir que estudiosos afirmam
que podemos hoje esboçar uma imagem física de Jesus
mesmo se as diversas fisionomias de Jesus que hoje encontramos surgiram ao longo dos séculos pelas mãos
dos artistas, foram conseqüências de vários momentos
da história. Por exemplo, as pinturas onde Jesus aparece glorioso, como um super-homem, é reflexo da religião
no tempo dos Imperadores romanos no século IV. A partir da idade média, quando a religião se aproximou mais
do povo sofrido, aconteceu o contrário, e assim Jesus é
apresentado como sofredor que desperta sentimento de
compaixão.
190
Hoje é consenso de que Jesus deveria se parecer
com um judeu típico do seu tempo, ou seja, sem cabelo
loiro nem olhos azuis. Na verdade a imagem de um Jesus de cabelo loiros e olhos azuis, é conseqüência da
pintura dos artistas, e embora no ano 800, Epitáfio, um
monge de Constantinopla, afirmou que Jesus media
1,70 m e que tinha cabelo loiro e levemente ondulado,
com suas sobrancelhas negras. Porém todas essas informações foram obtidas nos escritos apócrifos.
24. JESUS CONCEBIDO DENTRO DE UMA FAMÍLIA
Os pais de Jesus, conforme os evangelistas relatam, eram José e Maria, e seus familiares moravam em
Nazaré. Ele viveu a vida de adolescente e jovem juntamente com seus pais, sendo educado por eles e a eles
obedecendo. Embora os evangelistas falam dos irmãos
de Jesus, deve-se entender que esta expressão significava os seus parentes mais próximos, particularmente
primos. Naturalmente os chamados evangelhos apócrifos, ou seja, textos considerados não fidedignos e portanto não incluídos nos chamados livros canônicos ou
oficiais da Igreja, relatam várias coisas sobre Jesus e
com um certo exagero. Estes têm muita fantasias apresentando Jesus como um menino com poderes mágicos
que fazia prodígios e certos milagres. Apresentam José
como sendo um viúvo que casou-se com Maria já em
idade avançada etc. Naturalmente muito da piedade popular cristã tem influência dos apócrifos, tais como: o
nome dos três reis que visitaram Jesus em Belém: Melchior, Gaspar e Baltazar, assim como o episódio da Verônica que no caminho do Calvário que enxuga com lenço branco o rosto ensangüentado de Jesus e neste fica
impresso a figura do seu rosto. O mesmo pode-se dizer
191
sobre o nome dos dois ladrões que foram crucificados
com Jesus: Dimas, o bom, e outro à sua esquerda, Gestas, o mal. Também o soldado romano chamado Longino, assim como os nomes dos pais da Mãe de Jesus: Joaquim e Ana.
Os apócrifos foram escritos entre o século II e século IV dC. Portanto depois que os evangelhos canônicos
tinham sido escritos e relatam fatos da infância de Jesus, da vida de José, o pai de Jesus e de Maria sua mãe.
Graças a eles como por exemplo o evangelho da Natividade de Maria, sabemos alguma coisa sobre Maria, a
sua infância e de sua família, naturalmente tudo com
muita fantasia e desprovido de autenticidade histórica.
Os apócrifos influenciaram bastante a arte e a literatura inspirando pintores e literatos, tais como: Dante
com sua obra “Divina Comédia” e Milton com sua obra
“Paraíso perdido”. É graças aos apócrifos que hoje a arte
apresenta José como sendo um velho de barba branca e
com um cajado florido na mão representando a sua eleição como esposo de Maria.
A perícope da anunciação do Anjo à Maria é uma
das mais belas e também mais complexas do Evangelho. O Anjo Gabriel anuncia à Maria que ela será virginalmente Mãe de Deus. Mas já então Deus tinha preparado Maria para esta missão; ela já tinha experimentado o ter “agradado” (Kekaritoméum) a Deus, sob a influência da graça este é o sentido de “Gratia plena”. O
passivo perfeito de “Kekaritoméum” indica uma ação
passada da graça sobre Maria; ela já tinha sido orientada interiormente para um evento futuro ainda desconhecido; tinha experimentado em si um profundo “desejo de virgindade (Santo Tomás) esta era a “graça para
a virgindade” (São Bernardo). Assim Maria já tinha sido
preparada para ser Mãe Virgem.
192
Nos versículos 1, 31 o texto grego diz: “Eis que
conceberás no ventre”, os exegetas omitem a palavra
ventre, com a desculpa que é redundância, pois a mulher concebe no ventre. Mas para Lucas esta palavra
tinha um significado importante, pois ele compreende
que o Anjo anuncia à Maria que ela conceberá integralmente “no ventre”, será completamente interior.
Lucas, como Mateus (1,23) evoca Isaías (7,14) “Eis que
a Virgem conceberá no ventre e dará à luz...”, Lucas apresenta o Anjo num diálogo com Maria, portanto, na
segunda pessoa e não na terceira pessoa (à Virgem) (ele
fala de Virgem em 1,27). O verbo em Lucas também é
diferente, pois ao invés de dizer “terá no ventre” como
Isaías e Mateus, Lucas usa: “Conceberás no ventre”.
“Conceber no ventre” é uma fórmula paradoxal,
única em toda Bíblia. Para falar de concepção no AT
usa-se as fórmulas “receber no ventre” (Gn 28,1; 22;
Is 8,3) com referência ao homem do qual a mulher recebe o sêmen no ventre, ou também usa-se “Ter no
ventre”, depois da relação sexual do homem e a mulher,
indica depois de ter recebido do homem, assim expressa que a mulher já estava grávida (Am 1,3). Para Lucas
estas duas fórmulas não serviam, pois sabia que Maria
havia dito: “Não conheço homem algum” (1,34). Portanto Lucas utilizou a fórmula “conceber no ventre”. Para
Isabel, Lucas usa conceber, mas sem a palavra “no ventre” (1,24; 1,36). Lucas usa para Maria duas vezes “conceber no ventre” (1,31; 2,21).
Por que Lucas usa o verbo “conceber” como usa
para outras mulheres para manter o realismo físico de
uma concepção corporal autêntica e não mística. Usa
depois “no ventre”, para indicar que esta concepção física devia ser integralmente interior “no ventre”, sem
qualquer penetração de fora de qualquer sêmen viril.
Esta concepção interior devia ser realizada por uma po193
tência real, não física, mas espiritual, ou seja: pelo Espírito Santo (1,35) e portanto virginal.
Na verdade com a concepção virginal Jesus encarnou-se no seio de Maria, mas era necessária a sua
encarnação? Por quê?
Por que Deus se encarnou em nosso meio assumindo a condição humana? A resposta é porque Deus é
amor e o amor é fonte de perfeição e de auto-difusão.
Por isso, Deus manifestou para a humanidade o seu
amor não só na criação, como também na filiação divina
e por fim na encarnação de Jesus Cristo onde realizouse a sua máxima comunicação de amor aos homens,
onde ele quis que a própria humanidade, unida ao Filho
encarnado, se tornasse instrumento de redenção. Estava
na linha da ação amorosa de Deus que, além de criar, e
de falar aos homens pelos profetas, também enviar sua
Palavra ao mundo feito carne (Hb 1,1). Portanto a encarnação era conveniente ao plano de Deus-amor.
Além de ser conveniente no plano de Deus, a encarnação também era segundo Santo Anselmo (+1109)
também necessária, porque segundo ele, Deus quis que
os lugares deixados pelos anjos rebeldes fossem ocupados pelos homens, mas isto não era possível sem uma
reparação prévia do pecado e o homem sendo incapaz de
satisfazer ou de prestar reparação a Deus, sendo que o
pecado foi de proporções infinitas, era necessário uma
reparação de valor infinito. Ora, isto quem podia fazer
era somente o próprio Deus feito homem, portanto era
necessário a encarnação. Para Santo Anselmo a criação
foi efetuada por pura graça e sem o mérito do homem,
mas a redenção foi realizada por pura graça contra todo
e qualquer mérito do homem. A posição de Santo Anselmo é boa, mas enfatiza muito o aspecto jurídico da
redenção, a qual se coloca como um débito a ser reparado por causa do pecado. Além disso a bíblia insiste so194
bre a gratuidade da encarnação, a qual foi um ato livre
da vontade de Deus (Ef 1,5-10). Deus também podia ter
concedido perdão ao homem sem a encarnação de Jesus
Cristo.
Outros autores enfatizam a necessidade da encarnação afirmando que Deus devia ter feito o melhor
mundo possível, este inclui certamente o dom do homem-Deus. Porém, este argumento é fraco, portanto
devemos dizer que a encarnação não é necessária por
necessidade absoluta, pois Deus tinha outros recursos
para perdoar o homem, mas podemos afirmar que a encarnação era necessária relativamente ou seja sob alguns aspectos: Era o melhor meio para restaurar a dignidade humana, tendo o seu Filho assumido tudo o que
é do homem divinizando-o. A encarnação também era o
melhor meio para provocar-nos à prática do bem. E por
fim, esta nos ensina o valor da natureza humana e do
mundo que nos foi criado.
Mas, por que Deus quis a encarnação? Por causa
do pecado do homem, como nos ensina o credo “por nós
homens, e por nossa salvação... encarnou-se”. Desta
forma podemos afirmar que o pecado no mundo deu ocasião para a encarnação e para a redenção; contribuiu
para manifestar melhor o amor Deus de aos homens. “Ó
feliz culpa”, lembramos na liturgia do sábado Santo. O
Concílio Vaticano II afirma: “O Filho Unigênito de Deus
foi enviado ao mundo pelo Pai, a fim de que, feito homem,
remisse todo o gênero humano e assim o regenerasse e o
unificasse” (UR 2/GS 45).
Outros teólogos como o franciscano João Duns
Scotus (+1308) e a escola franciscana, afirmam que Jesus Cristo é de tal excelência no plano de Deus que,
mesmo que não tivesse havido o pecado, o Filho de Deus
teria se encarnado, ou seja, o Verbo encarnado estava
previsto e predestinado antes de todas as criaturas, em
195
particular antes do pecado do homem. Se não tivesse
havido pecado, o Verbo encanado preencheria as funções de mestre dos homens e rematador de toda obra do
Pai, mas dado o pecado, o Verbo se fez também o redentor dos homens. Esta afirmação é fundamentada sobretudo em Cl 1,16: ”Tudo foi criado por Ele e para Ele”.(conferir também 1 Cor 8,6). Embora este pensamento possa ser aceitável, ele não tem fundamento na
Escritura e na Tradição.
O certo é que Deus na plenitude do tempo enviou
seu Filho (Gl 4,4). Esta era uma época da história em
que os homens estavam profundamente marcados pelo
pecado, os pagãos entregues à idolatria, aos vícios e
paixões e os judeus marcados pela hipocrisia e politicamente dominados pelos romanos, divididos em facções
(Fariseus, Saduceus, Herodianos, Zelotas...). Em suma,
todos estavam debaixo do pecado (Rm 1,16-32; 2,23; Gl
2,3,22). Tudo isso indica que o homem recebeu a salvação gratuitamente, sem mérito próprio, não porque o
homem seja bom, mas porque Deus o ama; a salvação
foi iniciativa absoluta e soberana de Deus, ”Ele nos amou primeiro” (Jo 4,19).
Por que Jesus ocupa lugar central na fé cristã?
Por que Jesus Cristo e para quê? Qual foi o intuito de
Deus ao condicionar sua auto-comunicação com os homens à encarnação histórica e à morte na cruz de Jesus? Por que Deus colocou Jesus no centro do seu desígnio de salvação? Que lugar o evento histórico de Jesus Cristo ocupa na história da salvação, pela qual Deus
desdobra seus desígnios na história?
O cristianismo vivido pelos cristãos não é o Cristo,
mas Jesus Cristo, sua pessoa e sua obra ocupam o centro da fé. Ele detém na fé cristã, um lugar central e único que nenhuma outra tradição religiosa atribuiu a seu
fundador. Para os muçulmanos, Maomé o profeta pelo
196
qual Deus se comunica. No budismo, Gautama aparece
como o iluminado aponta o caminho e nesse sentido é o
mestre. Para o cristão, o próprio mistério de Jesus Cristo e não apenas a sua mensagem, constituem o centro
da fé. O cristianismo não é pois uma religião do livro,
como o o islanismo, mas a revelação de uma pessoa - o
Cristo. Jesus Cristo ocupa o centro da fé cristã, ele é o
mediador o único entre Deus e os homens. Ele é o Salvador universal. Sendo o Cristo a própria salvação, a
Igreja se define como “Sacramento” de Cristo.
Atribui-se a Santo Anselmo a idéia de que a redenção da humanidade pecadora exige que se faça justiça a Deus. É a tese da “satisfação adequada”. Como a
ofensa contra Deus foi de certa maneira infinita, somente Jesus Cristo, homem Deus, poderia repará-la. Assim,
a encarnação se tornava necessária para a redenção da
humanidade. Criando-se assim com uma imagem jurídica do mistério da salvação, como que para aplacar um
Deus irritado. Santo Tomás evitando esta concepção, viu
na encarnação uma razão de conveniência. A encarnação nesse sentido, não era necessária para a salvação da
humanidade, mas convinha que seu Filho encarnado
fizesse, como só ele poderia fazer, às exigências da justiça e merecesse a salvação da humanidade. Portanto,
Jesus Cristo estava no plano divino destinado para a
redenção, podendo-se afirmar que se o gênero humano
não devesse ser salvo do pecado, a encarnação teria acontecido. Seria reduzir Jesus Cristo à sua função redentora imaginar um mundo só acidentalmente cristão.
A tese escotista afirma que desde os primórdios do
mistério da criação, Jesus Cristo ocupava o pensamento
divino. Como diz São Paulo, ele é o coroamento o princípio de inteligibilidade do cosmos. Não foi portanto pelo
pecado dos homens e pela necessidade de sua redenção
que se operou a encarnação. Ainda que não tivesse ha197
vido pecado, Jesus teria se encarnado para arrematar a
criação de acordo com o plano divino.
25. OS RELATOS DA INFÂNCIA DE JESUS
Cada título cristológico é fruto de uma longa reflexão teológica. Da mesma forma, os relatos da infância de Jesus têm uma teologia sofisticada e pensada até
nas minúcias. Estes textos são os mais recentes, surgiram quando já havia uma reflexão teológica sobre Jesus e sobre o significado de sua morte e ressurreição,
assim como dos seus milagres e dos seus títulos.
Quanto mais se medita sobre Jesus mais se descobre o
seu mistério e mais se remonta para as origens; assim
Marcos que escreveu por volta de 67-65; afirma que
com o batismo Jesus foi ungido pelo Espírito Santo e
proclamado o Messias, já Mateus que escreveu por volta de 80-85 ensina que Jesus desde o seu nascimento é
o Messias esperado, aliás, desde Abraão (Mt 1,1-17).
Lucas que escreveu o evangelho nesta mesma época,
proclama que Jesus desde o Natal em Belém é o Messias, o Filho de Deus, e a história o acompanhou desde
Adão (Lc 3,38). Por fim João que escreveu pelos anos
100 responde que Jesus é o Filho de Deus preexistente
(Jo 1,1-14).
Portanto, com a experiência da ressurreição, os
apóstolos releram e reinterpretaram toda a vida de
Cristo e com isso muitas luzes do AT tidas como proféticas foram jogadas em Jesus. Desta forma, os relatos
da infância têm a finalidade de mostrar aos cristãos
quem é Jesus. Com a ressurreição de Jesus a história
entrou em seu ponto Ômega porque a morte foi vencida
e o homem entrou na esfera divina.
198
Em sua genealogia Mateus quer provar que Jesus
é descendente de Davi e para isso ele coloca José descendente de Davi, esposo de Maria, o qual dá o nome a
Jesus, tornando-se juridicamente seu pai e com isso
inserindo-o em sua genealogia davídica e desta forma,
realizando-se a profecia de Isaías (7,14). Lucas realça a
concepção de Jesus por Obra do Espírito Santo não para explicar o processo biológico da concepção, mas para
relacionar Jesus com outras figuras libertadoras do AT
que por força do Espírito Santo foram instituídas em
suas funções (I Sm 10,6s; 16,13s ; Jz 3,10; 6,34; I Rs
19,19). Para Lucas a virgindade pessoal de Maria é secundária, o importante é a concepção virginal de Jesus,
ou seja, ele destaca não o caráter virginal, mas o sobrenatural da concepção, a qual foi virginal para poder
ser sobrenatural e não sobrenatural para ser virginal.
Da mesma forma, o nascimento de Jesus em Belém é um trabalho teológico do evangelista Lucas (Lc
2,6-7). Se Jesus é Filho de Davi então deve nascer em
Belém segundo a profecia (Mq 5,1). Outrossim, a presença dos pastores no relato (Lc 2,8-20) é para indicar
que a boa-nova foi endereçada aos pobres, pois os pastores formavam a classe desprezada e de profissão impura; eram marginalizados.
O mesmo deu-se em Mateus 2 onde tem-se uma
reflexão teológica no estilo dos Midraxes (historização
de uma passagem da Escritura). Para Mateus Cristo é
o Messias que realizou as profecias (Is 60,6; Sl 71,10s),
as quais diziam que viriam a Jerusalém os reis e também nações para adorar o Messias. Com isso a estrela
de Judá era um motivo conhecido no tempo do NT. Além do mais, acreditava-se que pelo nascimento de de
Abrão, de Isac e de Moisés apareceu uma estrela ao
céu; acrescenta-se a isso que desde os tempos de João
Kepler os cálculos astronômicos mostravam que nos
199
anos 7 aC acorreu uma grande conjunção de Júpiter e
Saturno na constelação de Peixes. Ora, este fato não
deve ter passado desapercebido na época, mesmo porque Júpiter para a Astronomia helenista era considerado o rei soberano do universo e Saturno designava o
astro dos judeus, assim como a constelação de Peixes
estava relacionada com o fim do mundo. Ocorrendo a
conjunção destes astros, os magos do Oriente que decifraram o curso dos astros, deram a seguinte interpretação: No país dos Judeus (Saturno) nasceu um rei soberano (Jupiter) dos fins dos tempos (peixes). Assim, Mateus vê o cumprimento em Jesus e faz igualmente um
paralelismo perfeito entre Moisés e Jesus, pois para ele
Jesus é o novo Moisés libertador.
Então tudo é conto? Não, mas somos nós que erramos quando queremos ver os evangelhos numa perspectiva diferente daquela dos evangelistas, sobretudo
porque os evangelhos da infância não são históricos,
mas anuncio e pregação, onde os ditos da Sagrada Escritura foram assimilados, trabalhados e colocados à
serviço da fé. Portanto, deve-se levar em conta o gênero
literário.
Dá para concluir pelo pouco que se pode apanhar
dos relatos da infância que Jesus viveu os seus primeiros trinta anos em Nazaré ao lado de Maria e de José,
trabalhando na oficina com José. Na verdade, Jesus Filho único, não tinha outros irmãos e o que os evangelistas (Mt 13,55 e Mc 6,3) relatam sobre os irmãos de Jesus, tem uma explicação. Uma delas é que o aramaico,
língua que os judeus falavam no tempo de Jesus, era
pobre em vocábulos; portanto a palavra aramaica e
também a hebraica ah, significava não somente filhos
dos mesmos pais, mas também os primos e até os parentes mais distantes. Da mesma forma, também a tradução grega do Antigo Testamento realizada em Alexan200
dria, no Egito entre 250 e 100 aC, utilizou a palavra grega adelphós; irmão, embora o grego possuísse vocábulos
próprios para o significado de primo e sobrinho. O linguajar do grego dos LXX, que conserva seu fundo semita
influiu profundamente na linguagem dos escritores do
Novo Testamento.
Para São Jerônimo (+ 420), os irmãos de Jesus
eram primos do Senhor. O Protoevangelho de Tiago datado do primeiro século, afirma que os irmãos de Jesus
eram filhos de São José, o qual era viúvo quando casouse com Maria, mas não devemos esquecer-nos que este é
um escrito apócrifo e portanto fantasioso.
Há uma objeção quanto ao que afirma Lucas: "Maria deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o em faixas
e deitou-o numa manjedoura” (Lc 2,7). Devemos notar
que o termo primogênito não significa que Maria tenha
tido outros filhos após conceber Jesus, pois em hebraico
a palavra bekor (primogênito) podia designar simplesmente bem amado, pois o primogênito é aquele dos filhos no qual durante certo tempo se concentra todo o
amor dos pais. O primogênito era para os hebreus alvo
de especial amor por parte de Deus e devia ser consagrado ao Senhor nos seus primeiros dias (Lc 2,22). A
palavra primogênito podia também ser sinônimo de Unigênito. Também no documento Antigüidades Bíblicas relata que a filha de Jefté ora é dita primogênita, ora unigênita para significar a bem amada. Da mesma forma,
fora de Israel o menino que não tivesse irmãos nem irmãs mais jovens, podia ser chamado de primogênito, é o
que atesta uma inscrição contida num sepulcro judaico
datada do ano 5 aC e descoberto no ano de 1920 onde
se lê que uma jovem mulher chamada Arsinoé morreu
“nas dores do parto do seu filho primogênito”. Portanto
no modo de falar de Mateus (Mt 1,25) primogênito quer
201
indicar apenas o filho antes do qual não houve outro, e
não necessariamente aquele após o qual houve outros.
II. PARTE
26. JESUS NA ORIGEM DA CRISTOLOGIA (do Jesus
pré-pascal ao Cristo pascal)
Precisamos reconhecer o papel decisivo que a ressurreição de Jesus e a experiência pascal dos discípulos
representam para a fé cristológica. Estas assinalam o
seu ponto de partida, pois os discípulos não alcança202
ram, antes da páscoa, uma verdadeira fé cristológica, o
que não significa que não tivesse nenhuma fé em Jesus,
mas foi somente depois da ressurreição que eles atingiram a plena fé em Jesus como o Messias e Filho de
Deus. Não é que a experiência pascal deva ser entendida
como uma experiência de conversão dos discípulos, mas
o fato de ver em Jesus ressuscitado, e que se manifestou
eles, certamente foi objeto de suas transformações.
Na verdade, a experiência da ressurreição de Jesus, fez com que os discípulos passassem da “Jesulogia”
para a “cristologia”. Portanto, eles fizeram um itinerário
de baixo para cima, que vai do encontro pessoal com
Jesus à descobertas do Cristo. Assim sendo, na origem
da cristologia, estão as obras e as palavras de Jesus, ou
seja, toda a sua missão e a sua existência humana.
Durante a sua missão, Jesus apresentou uma idéia nova e original do Reino de Deus. Para ele a manifestação do reino era a Boa-Nova e para pertencer a eles
é necessário a conversão: “Cumpriu-se o tempo e o reinado de Deus aproximou-se...” (Mc 1,15). Este Reino cumpre se na sua pessoa: “Hoje, esta escrituras se realizou
para vós...” (Lc 4,21). Este Reino é como uma semente
que precisa se desenvolver. Ele se caracteriza na liberdade, fraternidade, pois a justiça, opondo-se portanto,
ao legalismo opressor dos escribas, da hipocrisia dos
fariseus e da exploração do povo pela classe sacerdotal.
Este é oferecido preferencialmente aos pobres, aos que
são vítimas de estruturas injustas e que sofrem condições desumanas (Lc 6,20). É portanto, de modo surpreendente, a maneira com que Jesus se relaciona com o
Reino de Deus. Ele garante que o Reino, ou seja, o próprio Deus, irrompe no povo, graças a ele, à sua vida e
missão, à sua pregação e a atividade. Neste reino ele ensina com autoridade singular, que supera a de Moisés
(Mt 5,21-22; Mc 10,1-9). Neste reino, Jesus é o filho
203
predileto e o exemplo mais notável disso é a forma nunca vista de invocar Deus como seu pai, chamando de
"Abba".
A instauração do Reino de Deus fez com que Jesus
encontrasse durante o seu ministério inúmeras oposições levando-o a prever a sua morte violenta como um
destino inevitável. Por isso ele se identificou como o
“Servo de Deus” (Mc 10,45). A morte violenta que Jesus
previa, ele a aceitou não como uma simples e inevitável
conseqüência de sua missão profética, mas como uma
derradeira expressão de seu amor, e como o ápice de
sua pró- existência. Para os discípulos, a morte de Jesus
na cruz foi uma experiência terrível, ainda mais porque
eles esperavam que com suas ações libertar dia Israel
(Lc 24,21). O que podiam esperar eles de seu mestre sepultado? Se Jesus não tivesse ressuscitado dos mortos,
o cristianismo seria apenas um grupo de amigos de Jesus, uma recordação de seus ensinamentos e na melhor
reprodução possível de seus exemplos. Desta forma, o
cristianismo não constituiria uma Boa-Nova para a humanidade, mas apenas uma moral elevada. Ser cristão
não consiste em venerar um mestre falecido, nem em
manter sua memória viva, ou ainda em praticar a sua
doutrina; ao contrário, significa crer que Jesus está vivo
porque ele ressuscitou e por isso está no nosso meio agindo pelo seu Espírito. A ressurreição de Jesus é o fundamento da fé cristã e o marco inaugural da cristologia
do Novo Testamento.
27. O DESENVOLVIMENTO DA CRISTOLOGIA NO
NOVO TESTAMENTO
Com a ressurreição de Jesus inicia-se a chamada
cristologia explícita, a qual tem início com a pregação
204
querigmática cristã através do processo de reflexão sobre o mistério de Cristo que, principiando por uma cristologia "de baixo", chega progressivamente a uma cristologia “do alto”, ou seja, partindo dos mistérios da vida de
Jesus desde o seu nascimento humano, e chega até a
sua pre-existência. Não possuímos acesso direto aos inícios da cristologia da Igreja apostólica, e isto porque os
escritos mais antigos do Novo Testamento são dos anos
50 dC, ou seja, de aproximadamente vinte anos após a
sua morte e ressurreição.
Nas Cartas de Paulo e também nas Cartas pastorais encontramos o primeiro Kérigma da Igreja (I Cor
15,3-7; Rm 1,3-4; 1 Tm 3,16; Hb 6,1...). Nestes e em outros textos encontramos as características importantes
do Kérigma primitivo, tais como: o mistério pascal da
morte e ressurreição de Jesus que constitui o centro do
Kérigma, a ressurreição de Jesus não separada de sua
morte, assinalando a sua entrada no estado escatológico
e na exaltação como Senhor. Os sermões missionários
de Pedro e de Paulo, em Atos dos Apóstolos (2,14-39;
3,13-26; 4,10-12...), dirigidos sobretudo os judeus, demostram com clareza a cristologia do primeiro Kérigma.
Estes discursos lembram a ação do Espírito Santo, de
que eles são testemunhas, da qual isto aconteceu segundo as Escrituras... Trata-se, portanto de uma cristologia baseada na ressurreição e glorificação de Jesus, a
qual é uma ação de Deus sobre Jesus constituído-o Senhor e Cristo em favor da humanidade. A ressurreição
de Jesus é o acontecimento salvífico e definitivo de
Deus; por ela o pecado e a morte foram vencidos. Com
ela Jesus entra no fim dos tempos, realiza a esperança
escatológica entrando em na glória final. Com ela Jesus
atingiu a própria perfeição (Hb 5,9).
O que Deus fez a Jesus foi em favor dos homens;
para todos os títulos que exprimem a dignidade adqui205
rida por Jesus como ressuscitado estão relacionados a
nós; Ele é o Senhor de todos (At 10,36); Ele é o nosso
Cabeça e Salvador (At 5,31). Com a sua ressurreição foi
inaugurada a chegada definitiva da salvação. É o Senhor
ressuscitado que salva. Portanto, com a ressurreição de
Jesus, nasceu a cristologia explícita, porque nela encontramos o estágio inicial de uma reflexão ordenada sobre
o significado de Jesus Cristo para a fé cristã. Foi com a
ressurreição que se deu o ponto de partida de todas as
afirmações sobre Jesus; com isso podemos dizer que a
primeira cristologia nasceu “de baixo”, porque partiu da
realidade humana de Jesus, transformada pela ressurreição, e não da pré-existência do Filho de Deus que se
fez homem. A verdadeira identidade de Jesus para os
primeiros cristãos foi revelada por Deus em sua ressurreição. Afirmamos também que a cristologia do Kérigma
primitivo é, essencialmente soteriológica, ou seja, seu
ponto central reside na salvação dos homens. Ela consistia numa reflexão sobre Jesus, contemplado em suas
funções em nosso favor. Só mais tarde, ela se transformará em cristologia "ontológica", buscando uma reflexão
sobre Jesus como ele é em si mesmo e sua pessoa na
relação com Deus.
A cristologia do Filho de Deus na narrativa da infância (Lc 1,32) diz apenas que menino nascido de Maria
veio de Deus e será chamado "Filho do altíssimo". Não
fala portanto de uma filiação eterna e divina de Jesus
em sua preexistência. Não se toca na questão ulterior da
origem eterna de Jesus como Filho de Deus, como vemos em Paulo (Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef 1,3-13) e sobretudo no Prólogo do evangelho de João (1,1-18).
28. O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO DOGMA
206
1. Desenvolvimento histórico do dogma cristológico
Pretendemos agora analisar o desenvolvimento da
cristologia pós-bíblica, ou seja, fazer uma análise de como evoluiu o dogma cristológico ao longo dos Concílios
da era Patrística. No Novo Testamento a afirmação de
que Jesus Cristo, graças à sua morte e ressurreição deu
a salvação para os homens, foi fundamental e por isso, a
afirmação de sua identidade pessoal como Filho de Deus
era necessária. Este mesmo enfoque soteriológico da
cristologia continuou na reflexão cristológica pós-bíblica,
onde a função salvífica de Jesus continuou sendo o ponto central para a descoberta de sua pessoa. Nesse sentido os primeiros Padres da Igreja afirmavam claramente:
“Ele se fez homem para que fôssemos divinizados”; “Tomou para si o que era nosso, para que participássemos
do que era dele”. Os Padres falam ainda de “admirável
comércio", efetuado entre o Filho de Deus encarnado e a
humanidade. Santo Atanásio, no século quarto, assim
escrevera:” Sendo Deus, fez-se homem para nos divinizar. O Verbo fez-se homem, para que fôssemos divinizados”.
O docetismo, corrente já presente nos tempos apostólicos e contra a qual a cristologia do Novo Testamento, especialmente a de João, reage veementemente
(1Jo 1,1-2), foi a mais antiga ameaça para a integridade
do mistério de Cristo, pois procurava reduzir a existência humana de Jesus à meras aparência e ou a uma teofania sob forma humana. Tratava-se do reducionismo
gerado pelo pensamento helenista que achava inconcebível o envolvimento pessoal e real de Deus com a realidade humana. Naturalmente e os Padres da Igreja reagi207
ram contra essa heresia e afirmavam que em Jesus
Cristo a carne humana tornou-se o eixo da salvação.
Podemos dividir o desenvolvimento do dogma cristológico nos primeiros séculos em três períodos correspondentes as três formas distintas de reducionismo cristológico. A primeira forma de reducionismo atingia a
realidade e a integridade da existência Jesus Cristo. A
resposta a esse docetismo veio do próprio Novo Testamento e dos primeiros Padres da Igreja, como Irineu e
Tertuliano. Na segunda forma, o reducionismo cristológico visava à condição divina de Jesus, ensejando heresias como o adocianismo, o sabelianismo, o arianismo e
outras. Contra tais tendências os dois Concílios ecumênicos, o de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381), que
foram ao mesmo tempo cristológicos e trinitários, afirmaram tanto a verdadeira dignidade do Filho de Deus,
igual ao Pai com a inteireza da existência humana. A
terceira forma de reducionismo cristológico girou em
torno da união misteriosa concretizada em Jesus, de
condição divina e de condição humana. Esse mistério de
unidade, mas com distinção causou heresias opostas.
Umas, mantendo a distinção, sacrificavam a união, como o Nestorianismo; outras, sustentando a unidade, negavam a distinção, como o Monofisismo. Essas heresias
foram condenadas pelo Concílio de Éfeso (431) e de Calcedônia (451).
2. Os Concílios Cristológicos
a) O Concílio de Nicéia
Este acontece, sobretudo no contexto da negação
por parte de Ário, Patriarca de Alexandria (+336), de
que o Filho de Deus fosse de natureza igual ao Pai. Afirmar a divindade do filho preexistente parecia contradizer tanto o monoteísmo da bíblia como o conceito filo208
sófico da unicidade absoluta de Deus, por isso, Ário,
servindo-se de alguns textos do Antigo Testamento, especialmente Pr 8,22 passou a ensinar que o Filho de
Deus foi ‘gerado’, mas entendendo-o no sentido específico de “feito”, “criado”. Assim, o Filho seria inferior ao
Pai. Na realidade, seria um intermediário entre Deus e o
mundo e não mediador entre Deus e a humanidade, unindo-a em sua pessoa à divindade. O Filho para Ário,
não seria realmente homem, porque a carne assumida
pelo Verbo não constituía, nem podia ser, uma humanidade verdadeira e completa.
Em resposta à afirmação de Ário, o Concílio de Nicéia afirmou que a filiação divina, atribuída pelo Novo
Testamento a Jesus Cristo deve ser entendida no sentido estrito. Afirma a categoria bíblica do “unigênito” do
Pai, acrescentando a explicação que ele é “da substância” do Pai, gerado por, não feito, “da mesma substância
do Pai”. Afirma que em Jesus Cristo o Filho de Deus não
só “fez-se carne”, mas também “fez-se homem”. Se não
há a “humanização” do Filho de Deus, estava em jogo a
salvação da humanidade por Jesus Cristo. Se não fosse
nem verdadeiro homem nem verdadeiro Deus, como
queria Ário, não seria capaz de trazer a salvação para a
humanidade, pois “Ele se fez homem, para que fôssemos
divinizados”.
O Arianismo representava uma helenização do
conteúdo da fé cristológica da igreja e o Concílio de Nicéia deselenizou este perigo. Ele ressalta que Deus se
autocomunicou pessoalmente, na existência humana do
homem Jesus e que esta ocorreu entre as três Pessoas,
no mistério da vida íntima de Deus.
b) O Concílio de Éfeso
Tanto neste Concílio como em Nicéia, o problema
era como entender a divindade de Jesus Cristo, mas em
209
perspectivas diferentes. Em a Nicéia pergunta é se Jesus
é verdadeiramente o Filho de Deus. Em Éfeso, ao contrário, coloca-se a questão em que sentido e de que modo o Filho de Deus se fez homem em Jesus Cristo. Neste
Concílio Nestório de Antioquia, depois Patriarca de
Constantinopla, partindo com a tradição Antioquena do
homem Jesus, questionou o modo como ele se teria unido ao Filho de Deus. Nestório se recusou atribuir ao
Verbo de Deus em pessoa as vicissitudes de sua existência humana. Particularmente o fato de o homem Jesus
ter sido gerado não poderia referir-se ao Filho de Deus e,
por conseguinte Maria não poderia ser chamada “mãe de
Deus” (Theotókos), mas apenas “Mãe de Cristo” (Kristotókos). Surgia assim, dois sujeitos distintos: o Verbo de
Deus de um lado, e Jesus Cristo outro. Nestório rejeitava portanto o realismo da encarnação, declarando aparente e irreal a humanização do Verbo de Deus. Para ele
é real a humanidade de Jesus, que só aparentemente
pertence ao Verbo de Deus. Portanto, o homem Jesus
não seria idêntico ao do Verbo de Deus feito homem,
nem o Verbo se teria tornado homem em pessoa. Contra
Nestório, Cirilo de Alexandria argumenta que o símbolo
de Nicéia atribui, de modo pessoal, ao Filho de Deus, o
filho único do Pai, pessoalmente identificado com Jesus
"que por nós, homens, e para nossa salvação, desceu,
encarnou-se, fez-se homem, sofreu, ressuscitou no terceiro dia e subiu ao céu".
Cirílo aclara para Nestório o verdadeiro sentido da
encarnação do Filho de Deus, afirmando que o Verbo de
Deus uniu em si a humanidade de Jesus “segundo a
hipóstase”. Não foi a uma união por conjunção, onde se
via Jesus como personificação do Verbo de Deus, mas
identidade real e concreta entre o Verbo e Jesus. Não o
sentido que a natureza do Verbo tenha se transformado
na carne do homem Jesus, mas no sentido de que o
210
Verbo de Deus assumiu nele, pessoalmente, a carne
humana. Entre o Verbo e o homem Jesus há um único
sujeito concreto e subsistente. Mas será que o mistério
da união hipostática não chega a despersonalizar o homem Jesus do ponto de vista humano? Se a pessoa do
Verbo Deus assumiu a natureza humana, não terá privado Jesus de uma individualidade humana singular,
concreta e original? Para a filosofia moderna, o conceito
psicológico de pessoa, é visto como um centro subjetivo
de consciência e de vontade. No caso da união hipostática e Jesus Cristo, temos uma só pessoa ontológica, a
saber, a do Filho de Deus que se fez pessoalmente homem, mas isso deixa intacta a personalidade do homem
Jesus, entendida no sentido psicológico, como centro
humano de consciência e atividades. Portanto, a humanidade de Jesus não é “despersonalizada”. Ao assumir a
humanidade de Jesus, a Pessoa do Verbo não faz uma
“despersonalização”, mas uma "impersonalização", visto
que a pessoa do Filho de Deus se comunica e se estende
à humanidade de Jesus de uma forma tal que o Filho se
torna verdadeiramente homem. Na verdade, o Verbo de
Deus se tornou realmente pessoa humana em Jesus. A
encarnação do Filho de Deus é uma humanização verdadeira. O Filho de Deus se apropriou de todas as características da pessoa humana, viveu uma existência
histórica e humana. Na pessoa de Jesus o Filho de Deus
experimentou, pessoalmente, o que é a vida humana.
Por isso, o mistério da “união hipostática” é o mistério
da humanização de Deus. Em Jesus homem, Deus assumiu face humana (Jo 14,9). Jesus Cristo é “Deus humanizado” e não “homem divinizado”. Em virtude da
encarnação de Jesus, sua humanidade é a do Filho de
Deus. Ele é filho também como homem. Com a encarnação a história se fez história de Deus.
211
c) O Concílio de Calcedônia
Éfeso explicou significado da encarnação em termos da "União Hipostática". Assim, ressaltou a unidade,
mas prescindiu da distinção entre divindade e humanidade. É nesse ponto, que Calcedônia irá completar Éfeso. A problemática de Calcedônia centra-se na questão
da humanidade de Jesus, ou seja: se eu Verbo de Deus
assumiu em si a natureza humana, o que acontece a
essa natureza, no processo de união? Mantém-se em
sua realidade humana ou é absorvida pela divindade do
Filho de Deus?
Na polêmica, entra em questão Êutiques, monge
de Constantinopla, que admitia que Cristo provém de
duas naturezas, mas sem permanecer em duas naturezas após o processo da união. Para ele, essa união foi
como uma “mistura”, em que o humano foi absorvido
pelo divino e consequentemente, Cristo é “consubstancial” conosco, na humanidade. Para ele, em Cristo há
uma única natureza, já que a natureza humana se diluiu na divina. Ora, se esta é absorvida pela divindade do
Verbo Jesus, realizada a união, não é mais verdadeiramente homem, desfazendo-se a realidade da encarnação. Neste contexto, o papa Leão Magno afirma a unidade de Cristo: “Ele nasceu com a integra e perfeita natureza de verdadeiro homem e verdadeiro Deus, completo
(como Deus e como homem)...” afirma também as duas
naturezas com suas características: “Preservadas a propriedade de uma e de outra, elas se unem numa só pessoa”; e ambas completam, em comunhão mútua, o que é
próprio de cada uma.
A definição de Calcedônia (451) toma como ponto
inicial a união da divindade com a humanidade em Jesus Cristo e estabelece a distinção das duas naturezas:
ele é consubstancial com o Pai, pela divindade, e conosco, pela humanidade. Acentua-se a consubstancialidade
212
de Jesus conosco, na humanidade. Afirma-se que o Filho Unigênito, é uno em duas naturezas “sem confusão
nem mudança” e “sem divisão nem separação”. Cristo
não é somente de duas naturezas como defendia Êutiques, mas também em duas naturezas. Portanto, a união hipostática do Verbo com o humanidade mantém a
alteridade da humanidade na mesma pessoa. A humanidade não é absorvida pela divindade, como queria Eutíques. A distinção das duas naturezas perdura e se
conservam as propriedades de cada uma delas (sem
confusão nem mudança). As duas naturezas não se justapõem apenas, como se fossem sujeitos subsistentes
distintos (sem divisão nem separação).
d) O II Concílio de Constantinopla
No ano de 553 realizou-se segundo Concílio de
Constantinopla. Este repeliu tanto da interpretação nestoriana, quanto a eutiquiana. Calcedônia tinha distinguido as duas naturezas, opondo-se a tendência monofisista de mesclá-las mas não articulou a relação entre o
unidade e distinção. O II Concílio de Constantinopla explica essa relação, referindo-se à união hipostática como
“união segundo a composição”, querendo dizer que o
Verbo de Deus se tornou um único sujeito concreto existente com sua humanidade, embora permaneça nele a
alteridade entre Deus e homem. Assim, Jesus Cristo é
uma pessoa que se compõe do divino e do humano e é
tão humana quanto divina.
Mas, as luzes do II Concílio de Constantinopla não
foram suficientes para evitar a possibilidade de uma interpretação monofisista da vontade e da ação humana
de Jesus. Neste contexto o Patriarca de Constantinopla,
Sérgio, fala de uma única operação teândrica em Jesus
Cristo. Ora, tal fórmula dava margem a um entendimento monofisista, como se a um só sujeito agente corres213
pondesse uma só modalidade de ação, de tal modo que a
ação humana viesse a ser absorvida pelo princípio divino de atividade; seria um mono-energismo. O mesmo
problema apareceu em relação à vontade de divina e
humana em Jesus Cristo. Diante disso, Sérgio de Constantinopla não falou de dupla vontade, mas de uma só
vontade em Jesus. Sua posição será denominada de
monotelismo. Neste sentido, corria o perigo novamente
sobre a autenticidade da humanidade de Jesus e a realidade da salvação da humanidade. Sem vontade e ação
verdadeiramente humanas, Jesus Cristo não seria realmente homem como nós. Sem a vontade humana poderia apenas executar uma série de atividades predeterminadas pela vontade divina. Nossa salvação não viria da
livre ação humana de Jesus.
Em 1649, o papa Martinho convocou o Concílio de
Latrão para condenar o monotelismo. Neste Concílio estabeleceu-se duas vontades naturais, a divina e a humana em perfeita consonância. Explicou-se que se há
em Cristo duas naturezas, há também duas vontades e
dois modos de agir, correspondentes a cada uma das
naturezas humanas, sendo ambas “intimamente unidas
no mesmo e único Cristo Deus”.
e) O III Concílio de Constantinopla
Este Concílio foi realizado no ano de 681 retomando a afirmação de Calcedônia das duas naturezas e acrescentando a ela a definição das duas vontades e das
duas atividades naturais em Jesus. Como em Calcedônia, frisa que as duas vontades e os dois modos de agir
estão unidos numa única e mesma pessoa, Jesus Cristo,
“sem separação, sem mudança, sem divisão, sem confusão”. Esclarece que não há oposição entre as duas vontades, porque a vontade humana conforma-se totalmente à vontade divina, pois “Em verdade, a vontade huma214
na movia-se a si mesma, embora sujeita à vontade divina... Cada natureza atua em comunhão com a outra o
que lhe é próprio, ou seja, o Verbo faz o que é do Verbo e
a carne, o que a da carne”.
É importante afirmar que como as duas naturezas, também as suas vontades não estão justapostas
uma à outra. O Filho de Deus é também homem, ele
tem o querer um ano. Na verdade, a vontade humana de
Jesus Cristo é a vontade que lhe é própria de modo pessoal, enquanto a vontade divina é comum na divindade
ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, tal como lhes é comum a natureza divina. Vale dizer que o axioma dos
monges monofisistas “um da Trindade sofreu”, o que
reafirma de forma equivalente a declaração do II Concílio
de Constantinopla que é tão correto quanto falar do
“Deus crucificado” J.Moltmann. Desde que o Filho encarnado vivenciou verdadeiramente a história humana e
seu fardo, inaugurou-se realmente uma história humana de Deus.
3. Avaliação e perspectivas
A cristologia do Novo Testamento foi uma interpretação da pessoa e do acontecimento de Jesus Cristo e
elaborada pela igreja apostólica à luz da experiência
pascal, inspirada pelo Espírito Santo. Ela é a norma perene e última para a fé da igreja no mistério de Cristo. O
dogma cristológico da igreja constitui interpretação ulterior e progressiva desse mistério realizada pela igreja
pós-apostólica, guiada pelo Espírito Santo e abonada
pelo magistério eclesiástico. Na verdade, o dado fundamental da própria igreja não é o dogma, mas as Escrituras, e este está baseado na bíblia. Por isso, toda forma
dogmática remonta ao Novo Testamento e não figura
215
como ponto de partida absoluto na reflexão da fé da igreja.
Na interpretação do dogma há uma interação recíproca de texto e contexto, que se completa no triângulo
hermenêutico formado por texto, contexto e intérprete. O
dogma cristológico terá sempre força normativa na tradição viva da igreja, dentro dos parâmetros do contexto
cultural em que historicamente, se estruturou e no qual
há de ser entendido.
Consideremos agora na cristologia os elementos
bíblicos por parte dos antigos escritores da igreja e a razão disso é porque eles estavam próximos da geração
dos apóstolos e dos primeiros discípulos, dos quais deviam ser autêntico os intérpretes e depois porque contribuíram para elaborar fórmulas teológicas ortodoxas
no meio de difíceis debates teológicos que deram ocasião
aos sete primeiros Concílios ecumênicos.
Os padres apostólicos foram aqueles escritores
que sucederam imediatamente os apóstolos tais como:
São Clemente de Roma (+100); Santo Inácio de Antioquia (+107); Pastor de Hermas... Estes enfrentaram algumas tentativas errôneas em seus tempos, na concepção do mistério da encarnação visto que para os antigos
o fato de Deus ter-se feito homem era algo tão grandioso, que tentaram negar a plena ou humanização de Jesus ou a sua divindade. Esta dificuldade aumentou
quando campeava um certo dualismo herdado da filosofia grega, que repudiava a matéria como algo mau em si
mesmo e por isto não se admitia que Deus pudesse ter
assumido carne humana com sofrimentos dores etc.
Desta maneira de pensar surgiram duas e heresias:
O Docetismo que afirmava que o Filho de Deus
teria assumido uma humanidade aparente e não teria
216
sido o verdadeiro homem. Esta posição foi defendida por
Cerinto.
O Ebionismo que defendia que Jesus foi meramente um homem, que sobre o qual, desceu a força de
Deus por ocasião do batismo; ele teria sido um profeta
reformador da lei de Moisés. Esta corrente de origem judaica defendia o monoteísmo.
Neste contexto surgiu Santo Inácio de Antioquia,
o qual com a sua cristologia defendeu a verdadeira humanidade de Jesus afirmando que Ele era da estirpe de
Davi, filho de Maria e que realmente nasceu, comeu e
bebeu, foi crucificado sob Pôncio Pilatos, morreu e ressuscitou dos mortos. Portanto, Santo Inácio professa a
encarnação verdadeira e a obra salvífica de Jesus.
Surgiu depois, no século II, o Gnosticismo que
valorizava e exageradamente o conhecimento como fator
de salvação. Contra esta maneira de pensar surgiu São
Justino (+165), que apresentou o Lógos, palavra que a
filosofia grega estimava muito, identificando-o com Jesus Cristo. O Lógos de Deus já se manifestava no Antigo
Testamento, preparando o mistério da encarnação. Contemporaneamente surge Santo Irineu (+202) que para
combater o gnosticismo, o qual admitia diversos senhores e regimes na história da humanidade, utilizou o tema Paulino da recapitulação de todas as coisas em Cristo (Ef 1,10) ensinando a existência de um só Deus Pai e
um só Cristo Jesus que recapitulou todas as coisas, tornando-se visível, ele que é invisível, e compreensível, ele
que é incompreensível, e homem, ele que é Verbo. Ele
assumiu tudo o que é de Adão para santificar e dar início a uma nova humanidade. Ele se encarnou e se fez
homem, recapitulando em si a longa história dos homens.
No século III surgiu uma nova heresia com duas
vertentes:
217
O Monarquianismo modalista, o qual ensinava
uma só pessoa em Deus, sendo o Filho e o Espírito Santo modalidades dessa pessoa (o Pai). Foi o Pai que padeceu na cruz, daí o nome também Patripassianismo. Um
dos principais defensores desta idéia foi Paulo Samósta,
o qual foi condenado no ano 268 por um Sínodo em Antioquia.
O Monarquianismo dinamista ou ebionita que
ensinava que somente o Pai é Deus e o Filho é um homem que recebeu a dýnamis, a força de Deus como ensinavam os ebionitas dos primeiros decênios. O fundador desta corrente foi Teódoto Bizâncio.
Contra essas heresias surgiu Tertuliano (+220), o
qual enfatizou a realidade da carne de Cristo afirmando
que se Cristo não sofresse a paixão, Ele seria um fantasma e assim seria destruída toda a obra salvífica de
Deus. Nega-se consequentemente a ressurreição de
Cristo quando se nega a sua carne e com isso a fé cristã
tornando-se vã. Outro defensor da fé neste período foi
Orígines de Alexandria (+254), o qual afirma que o Filho
de Deus assumiu a carne humana e se fez nosso mediador por amor aos homens e em obediência ao Pai. Ensina que o Verbo não assumiu uma aparência de homem
e nem apenas a carne humana, mas corpo e alma mediante os quais ele pôde padecer, e nem por isso perdeu o
seus atributos divinos. Ele se fez nosso Sacerdote e morreu na cruz, ressuscitado está à direita do Pai a interceder por nós. Explana, portanto satisfatoriamente a obra
salvífica de Cristo, considerando a sua morte com sacrifício de expiação perfeito e definitivo, abolindo sacrifícios
anteriores.
Com o surgimento do século IV houve muita agitação no plano teológico, pois com o Édito de Milão concedido pelo imperador Constantino no ano de 313, a Igreja começou a viver um período de paz o que possibili218
tou mais aprofundamento nas verdades da fé por parte
dos estudiosos e dos bispos. Neste e no século seguinte
os grandes debates teológicos foram em grande parte
inspirados pela escola alexandrina voltada mais aos
valores transcendentais e pela escola antioquena apontando mais para a interpretação literal das Escrituras e
voltada mais para os valores humanos.
A primeira controvérsia teológica deste século foi a
do arianismo tendo como representante Ário nascido
em 256 e ordenado sacerdote em Alexandria. Ele começou a ensinar a subordinação do Verbo ao Pai, dizendo
que Deus nem sempre foi o Pai; houve tempo em que ele
era somente Deus e o Verbo de Deus foi feito a partir do
nada; houve tempo em que ele não existia.O Verbo é a
primeira é a mais digna criatura do Pai. Este ensinamento tomou o nome arianismo ou subordinacionismo
ariano.
Contra esse ensinamento empenhou-se Alexandre, bispo de Alexandria, o qual condenou essa heresia
num sínodo em 318 com a participação de 100 bispos.
Mas Ário não se rendeu e foi portanto preciso o imperador Constantino convocar um Sínodo em Nicéia em 325
onde foi promulgada uma fórmula de fé rejeitando o ensinamento de Ário. O ensinamento professava a fé num
só Deus, Pai Todo-Poderoso, criador de todas as coisas
visíveis e invisíveis. A fé num só Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, o Unigênito nascido do Pai da substância
(ousía) do Pai, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, da mesma
substância (homooúsios) que o Pai. Por ele foram feitas todas as coisas, as do céu e as da terra.
A fórmula de fé proclama o Filho com a mesma
substância (homooúsios) do Pai, ou seja, a identidade do
Pai e do Filho entre si. O Filho procede do Pai e o Pai é o
princípio do qual procede o Filho. O Filho não é criado,
219
mas procede do Pai, da essência do Pai e não do nada.
Ele não é feito, mas nascido. Este Concílio afirmou portanto a distinção de pessoas e a identidade de natureza
entre o Pai e o Filho, onde o Filho é tido como Deus e
não inferior ao Pai.
Embora, o Concílio de Nicéia tenha feito um bom
trabalho, os debates teológicos sobre a identidade do
Verbo não cessaram e assim continuaram calorosos
confrontos teológicos onde alguns se serviram de sutilezas e professavam quase a mesma fórmula do Concílio,
mas negando contudo o seu ensinamento, pois ao invés
de utilizarem da palavra homooúsios (mesma substância), serviram-se da palavra homoioiúsios (semelhante
substância), e assim negavam a identidade de substância do Pai e do Filho.
Um dos representantes deste novo ensinamento o
foi Apolinário de Laodicéia, nascido em 310 e eleito bispo em 361. Este suscitou uma heresia conhecida por
Apolinarismo. Apolinário se perguntava: “Que tipo de
homem é Jesus Cristo se ele é o Verbo feito homem?” e
afirmava que a união de dois perfeitos não pode redundar em verdadeira unidade, mas sim numa justaposição, por isso se a divindade de Cristo é perfeita, o único
modo de salvar a sua unidade é admitir que a natureza
humana em Jesus está incompleta, ou carece de uma
alma racional. Para ele o Lógos fazia as vezes de alma
racional em Jesus e se Jesus tivesse uma natureza humana incompleta, não seria impecável, pois o livre arbítrio é princípio do pecado; assim Jesus não teria capacidade de realizar a nossa redenção.
Apolinário professava portanto que o Verbo de
Deus veio num homem santo como acontecia nos profetas, mas que o próprio Verbo se fez carne sem assumir
um intelecto humano sendo ele próprio o intelecto divino, imutável e celeste. Para ele o Filho não é duas natu220
rezas, uma adorável e outra não adorável, mas uma só
natureza; a do Verbo de Deus encarnada e adorada, juntamente com a carne dele numa única adoração. Ele criou uma expressão grega para expressar este seu pensamento desta forma: “Uma só é a natureza de Cristo, a
do Verbo de Deus encarnado” (Mia physis tou Theou Lógou sesarkoméne).
Apolinário foi condenado pelo sínodo de Alexandria em 362 e também pelo papa São Dâmaso em 377 e
382, e por fim o Concílio Ecumênico de Constantinopla I
em 381 confirmou a sua condenação. Este Concílio deu
ainda a seguinte motivação para a condenação: “O que
não foi assumido, não foi redimido”. Vale a pena também
lembrar a resposta de Santo Atanásio, bispo de Alexandria a Apolinário: “O próprio Verbo se fez carne, embora
continuasse existir na condição de Deus. Em favor dos
homens ele se fez homem segundo a carne e em Maria...
este Salvador não teve um corpo inanimado ou carente de
sentidos, nem um corpo privado de alma. Não era possível que existisse, no Senhor feito homem por causa de
nós, um corpo sem alma, pois por Ele foi realizada a salvação não só do corpo mas também da alma. Se as obras do Verbo Divino não tivessem sido realizadas mediante o corpo, o homem não teria sido divinizado e, viceversa, se as obras próprias do corpo não pudessem ser
atribuídas ao Verbo, o homem não teria sido resgatado
em sua integridade própria. Uma vez que o Verbo se fez
homem e assumiu tudo o que é da carne, as coisas da
carne já não são atribuídas ao corpo apenas, pois este foi
assumido pelo Verbo, que dignificou as coisas da carne”.
As palavras de Atanásio esboçaram um novo aspecto da
cristologia: a comunhão de propriedades, ou seja, que o
Verbo de Deus feito homem foi sujeito não somente de
obras divinas (milagres, ressurreição...), mas também de
obras humanas (sofrimento, a morte, dores...). Isso sig221
nifica que a natureza humana assumida pelo Verbo foi
causa instrumental das obras realizadas por Jesus. Atanásio esclarece ainda que “O Verbo se fez homem, e
não veio a um homem” o que exclui o adopcionismo.
No século V defrontamos com uma outra heresia
denominada de Nestorianismo tendo como representante Nestório nascido por volta de 381 na Síria. Foi
monge e sacerdote e depois, em 427, tornou-se bispo de
Constantinopla. Nestório começou a condenar uma devoção popular muito difundida entre os monges e os fiéis: a devoção a Maria, Mãe de Deus (Theotókos) e com
isso começou a pregar que Maria apenas era a mãe de
Cristo (Christotókos) proibindo que se dissesse que ela
era a mãe do homem Jesus Cristo (Anthropotókos), a
fim de evitar o perigo do adopcionismo. Nestório defendia que Maria não pôde dar à luz ao Criador, mas deu à
luz a um homem, um instrumento da Divindade. Ele,
portanto defendia a união moral de duas pessoas em
Cristo, como já tinha defendido esta idéia Teodoro de
Mopsuéstia + 428 e Deodoro de Tarso +393, os quais
ensinavam que em Cristo não havia somente duas natureza completas, mas também duas pessoas ou dois eu: a
do Verbo e a do homem e afirmavam a unidade das
mesmas no plano meramente moral, ou seja, que havia
uma complacência da pessoa doVerbo na pessoa do homem ou na habitação do homem Jesus e com isso não
se poderia atribuir ao Filho de Deus as propriedades da
natureza humana.
Nestório foi condenado pelo Concílio de Éfeso em
431 onde foi aprovada a carta de São Cirilo de Alexandria, tida como profissão da reta fé; esta professava:
“Não afirmamos que a natureza (physis) do Verbo se tenha transformado para tornar-se carne. Também não afirmamos que a natureza do Verbo se tenha transformado
para tornar-se um homem completo, constituído de corpo
222
e alma. Mas, professamos que o Verbo uniu a si no plano
da pessoa, uma carne animada por uma alma racional e
se fez homem de modo inexplicável e incompreensível, e
assim assumiu o título de Filho do Homem não por simples vontade ou benevolência, nem simplesmente porque
assumiu uma pessoa. Afirmamos, além disto, que, embora as duas natureza sejam diferentes uma da outra, elas
se uniram em verdadeira união, de tal modo que de ambas resulta um só Cristo e Filho. Isto não quer dizer que
desapareceu a diferença das natureza por causa da união, mas, sim, que a Divindade e a humanidade, por um
misterioso concurso em pról da unidade, constitui um só
Senhor e Cristo...Afirmamos que desde o seio materno o
Verbo se uniu à carne humana numa concepção carnal,
de tal maneira que tornou sua a geração carnal... e assim
os Santos Padres não hesitaram em chamar Theotókos a
Santa Virgem. Isto não significa que a natureza do Verbo
ou a sua Divindade tenha tido origem no seio da Santa
virgem, mas, sim, que foi gerado por ela o corpo santo,
animado e racional, ao qual se uniu a segunda pessoa, o
Verbo; em conseqüência, este foi gerado segundo a carne”
(Ds 250 - 251).
É importante salientar que natureza é aquilo que
faz algo ser aquilo que é; assim a natureza humana é ser
vivente racional. Com a definição de Éfeso ficou claro
que a natureza humana concebida por Maria virgem não
subsistia por obra de uma pessoa humana ou de um eu
humano, mas sim por obra da segunda pessoa da Santíssima Trindade. A união da segunda pessoa divina
com a natureza humana se deu no seio de Maria virgem,
desde o primeiro instante da concepção de Jesus. Ora
como toda mãe é mãe de uma pessoa e a pessoa que
Maria gerou é a segunda pessoa da Trindade unida à
natureza humana, Maria pode e deve ser dita Mãe de
Deus, não porque tenha gerado a Deus desde a eterni223
dade, mas porque no tempo gerou Deus feito homem.
Isto explica também a chamada comunicação ou comunhão de propriedades (koinonia ton idiomáton), ou seja,
um só sujeito, o eu divino do Verbo, era o responsável de
tudo o que Jesus fazia. Ele ressuscitava os mortos mediante a sua natureza divina, e sofreu a morte mediante
a sua natureza humana. Ao mesmo sujeito se atribuía
tudo o que o eu humano e divino Jesus fazia, pois a
pessoa que tudo sustentava era somente a do Verbo
Deus.
Por fim, em 433 foi assinada uma fórmula de fé
que definitivamente firmou a doutrina do Concílio de
Éfeso: “Afirmamos que o Jesus Cristo, Filho único de
Deus, é Deus perfeito e homem perfeito (composto) de alma racional e corpo, gerado pelo Pai antes dos séculos
segundo a Divindade, e nos últimos dias por nós e pela
nossa salvação nascido da virgem Maria segundo a natureza humana. Ele é consubstancial ao Pai por sua divindade, e é consubstancial conosco por sua humanidade.
Já que havia a união das duas natureza, professamos
um só Senhor, um só Cristo e um só Filho. Visto que compreendemos esta união realizada sem confusão de uma
parte com a outra, professamos que a Santa virgem é
Theotókos, pois o Verbo de Deus se encarnou e se fez
homem, desde o momento de sua concepção...”
Mas as controvérsias não pararam por aí e por isso surgirá uma outra heresia denominada Monofismo
afirmando que Cristo tinha duas naturezas, mas que por
causa da encarnação, se reduziu a uma só, pois a divina
teria absorvido a humana daí o nome e Monofisismo
(monos = um; physis = natureza). Diante disso, o corpo
de Cristo já não seria igual ou consubstancial ao nosso,
pois teria sido divinizado. O cabeça desta nova doutrina
foi o monge Eutíquio, de um mosteiro de Constantinopla, o qual passou a afirmar que a partir da encarnação
224
do Verbo, só ficava uma natureza em Cristo, a divina.
Eutíquio foi excomungado no Sínodo de Constantinopla
em 448, mas isto não foi suficiente sendo preciso convocar um outro Concílio geral para Éfeso em 449, contudo
este Concílio convocado pelo Imperador Teodósio II e
presidido por Dióscoro, proclamou Eutíquio ortodoxo
porque parecia fiel à Éfeso e contrário à Nestório. Diante disso, o papa Leão Magno condenou esse Concílio
como falso e foi convocado um novo Concílio ecumênico
para Calcedônia em 451, o qual teve a participação de
600 membros onde foi solenemente proclamado o mistério de Cristo com base na carta a de São Leão, a qual
proclamava: “As duas natureza guardam o que é próprio
a cada uma e se unem numa só pessoa. A humildade é
assumida pela majestade, a debilidade pela força, a mortalidade pela eternidade. Para saldar a dívida da nossa
condição humana, a natureza invulnerável se uniu à natureza para padecer, de modo que o mesmo e único mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, tal
como convinha à nossa restauração, pudesse morrer, por
um lado, e não morrer, por outro lado. Isso quer dizer: o
verdadeiro Deus nasceu em natureza de verdadeiro homem plena e perfeita, completo no que é seu, e completo
no que é nosso... cada natureza realiza... em comunhão
com a outra, o que lhe é próprio, a saber: o Verbo realiza o
que é próprio do Verbo, e a carne o que é próprio da carne. Deste modo, enquanto o Verbo brilha por seus milagres, a carne se submete aos ultrajes; e, assim como o
Verbo não perdeu a glória que ele tem igual com o Pai,
assim também a carne não abandonou a natureza própria da nossa linhagem...”.
Este texto reafirmou a consubstancialidade de
Cristo com o Pai e a consubstancialidade do mesmo com
Maria, resultando duas naturezas completas.
225
Mas muitos bispos tiveram dificuldades para aceitar a fórmula de Calcedônia e propuseram uma fórmula
sutil para continuar ensinamento do Monofisismo, daí
surgiram duas fórmulas:
- O Monoenergismo postulando que em Cristo haveria
um só princípio de operação ou atividade e este seria o
divino. Seu defensor foi o patriarca Sérgio de Constantinopla.
- O Monotelitismo, o qual atribuía a Jesus uma só vontade, tendo a vontade divina absorvido a vontade humana.
Estas duas doutrinas apresentavam perigos para
a fórmula de Calcedônia e diante disso o Imperador
Constantino IV propôs ao papa Agatão a convocação de
um Concílio geral para resolver o problema. O papa aceitou a idéia e elaborou uma profissão de fé, enviando-a
ao Concílio juntamente com representantes, e assim
realizou-se o Concílio de Constantinopla III nos anos de
680 - 681. O Concílio assim definiu: “Apregoamos duas
vontades naturais em Cristo e duas operações, sem divisão, sem confusão, sem separação, segundo a doutrina
do Santos Padres, todavia duas vontades não opostas
entre si... A vontade humana de Jesus segue sem resistência nem oposição, a vontade divina, à qual está sujeita, pois esta é toda - poderosa... assim como a carne de
Jesus é carne de Deus, assim também professamos que a
vontade natural própria da sua carne é do Verbo de
Deus...” (DS 556)
O Concílio de Constantinopla III colocou fim aos
debates Cristológicos e ficou cristalizada, desta forma
doutrina oficial da Igreja com a fórmula de Calcedônia,
ou seja, que em Cristo há duas natureza e uma só pessoa (divina).
226
29. MAIS UMA ÊNFASE SOBRE AS CONTROVÉRSIAS
CRISTOLÓGICAS
Ao falarmos de Jesus devemos pensar conjuntamente em Deus e no homem. A fé procura através da
teologia (Cristologia) entender Jesus como verdadeiro
Deus e verdadeiro homem. Não podemos falar sobre Jesus, mas a partir de Jesus, ou seja, tocados por sua realidade vivida na fé e no amor, e para poder falar a partir dele usamos palavras, instrumentos e modelos do
nosso mundo, a fim de entendermos que nossos conceitos não substituem o mistério, mas querem comunicálo dentro de nossa linguagem compreensível. Por isso
ao longo dos séculos a reflexão teológica acentuou, ora
mais Deus em Jesus em detrimento ao homem, ora o
homem em prejuízo de Deus. A ortodoxia se manteve
sempre dentro de uma tensão dialética, evitando os extremos até chegar em Calcedônia (451).
O primeiro grande problema teve origem no monoteísmo bíblico. Como garantir de forma compreensível a
divindade de Jesus? Por isso os ebionistas e docetistas
afirmavam que Jesus é Deus, mas que sua humanidade era aparente e por isso Ele não sofreu, e sua morte
foi ilusória. Outra corrente denominada Patripassionismo afirmava que Jesus é a encarnação do Pai, e que
ele que sofreu e morreu. Outra, o subordinacionismo,
afirmava que Jesus está na esfera divina, mas subordinado a Deus. O Arianismo afirmava que ele é o Lógos
junto a Deus, mas criado como primeiro dentre todos
os seres, pois Deus é único e não pode sofrer nenhum
comprometimento com o caráter divino de Jesus. Já o
Adocianismo afirmava a filiação divina de Jesus, mas
como Filho adotivo e não como Filho Eterno e Unigênito. Por fim, Ário afirmava que Jesus seria só semelhante a Deus e não igual a Ele em sua natureza. Nesta dis227
puta o Concílio de Nicéia afirmou o “Omodúsios”(igual)
e não “Oumoiousios” (semelhante) a Deus como queria
Ário e assim afirmou que Jesus é “Filho de Deus”, Deus
de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, nascido, não feito, da mesma substância do Pai,
pelo qual tudo foi feito o que há no céu e o que há na terra”.
Mas como se relacionam entre si as duas realidades, Deus e homem em Jesus? A escola de Alexandria, um centro cultural e filosófico de renome e de tom
platonista ensinou que o Lógos define o homem com ser
racional e lógico e em Jesus o Lógos teve sua máxima
encarnação; ele é tão profundo em Jesus que quem está diante dele, está diante de Deus mesmo. Deus se fez
homem para que o homem se fizesse Deus. Porém o perigo está em afirmar só a natureza divina, a qual absorve o humano de Cristo; assim Cristo teria apenas a natureza divina e uma só Pessoa, a do Verbo, posição defendida por Eutiques. Reduz-se desta forma o mistério
de Cristo. Também Apolinário de Laodicéia afirmava
que para haver uma unidade íntima e profunda entre
Deus e o homem em Jesus, é necessário que uma natureza seja incompleta e esta é a humana; assim o Lógos substitui o espírito humano, diminui o humano.
São Gregório Nazianzeno contestou esta idéia afirmando: “Aquilo que Deus não assumiu também não redimiu”.
Da mesma forma, outros nesta escola afirmavam que
pelo fato da encarnação, a inteligência humana fora
substituída pelo Verbo (Monoetismo), ou que foi a vontade humana (Monotelitismo) que foi substituída, ou
ainda que o princípio operativo em Jesus provinha só
do Verbo (Monergismo). Todas estas posições foram rejeitadas pela ortodixia porque viam a perfeição humana
em Jesus estaticamente.
228
Outra escola foi de Antioquia, esta influenciada
por Aristóteles. Também esta escola afirmava que duas
naturezas completas não podem unificar-se numa única. Dizia Teodoro de Tarso (+394) que a natureza humana e a divina não eram unidas em Jesus, mas agregadas uma na outra, cada qual permanecendo perfeita
em si mesmo, e por isso a união em Jesus não é íntima, mas acidental, dando em Jesus duas naturezas e
duas pessoas distintas. Diante desta afirmação, Nestório, monge e patriarca de Constantinopla passou a
pregar que Maria não é Mãe de Deus (Theotókos), mas
somente Mãe de Jesus (Antropotókos), ou (Cristotókos).
Ambas as escolas partiram do fato da encarnação
de Jesus, e a encarnação não é o ponto de partida, mas
de chegada. A escola de Alexandria ensinava portanto a
unidade em Jesus quanto à sua pessoa e não quanto
às naturezas. Por outro lado a escola Antioquena ensinava a dualidade real em Jesus, mas unicamente
quanto às naturezas e não quanto à pessoa. Por isso,
com Calcedônia (451) através da influência de Leão
Magno, chegou-se à fórmula Cristológica: “Um e o
mesmo Filho Nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na
divindade e perfeito na humanidade, verdadeiramente
Deus e verdadeiramente homem, com alma racional e
corpo, consubstancial ao Pai, segundo a divindade, e
consubstancial a nós, segundo a humanidade, sendo
em tudo semelhante a nós exceto no pecado” (Hb 4,15)
antes de todos os séculos, gerado do Pai, segundo a divindade, e o mesmo nos últimos dias, gerado da Virgem
Maria, Mãe de Deus, por nossa causa e por nossa salvação, segundo a humanidade. Um e o mesmo Cristo,
Filho, Senhor e Unigênito deve ser confessado, subsistindo em duas naturezas de forma inconfundível, indivisa e inseparável. A diferença entre as naturezas jamais fica suprimida por causa da união, antes, a pro229
priedade de cada natureza fica preservada, concorrendo
ambas para formar uma só pessoa ou subsistência.
Professamos Jesus Cristo não em duas pessoas separadas e divididas, mas um e o mesmo Filho Unigênito,
a Palavra de Deus, o Senhor Jesus Cristo, como os profetas antes professaram acerca dele e o próprio Jesus
Cristo nos ensinou e o credo de nossos pais nos transmitiu”.
Com esta fórmula mantém-se simultaneamente a
humanidade completa e a divindade verdadeira de Jesus sem divisão. A intenção do Concílio não foi doutrinal, mas soteriológica, ou seja, afirmou que se Jesus
não é Deus então não veio por ele a salvação, e estamos
em pecado. Se Jesus não é homem então não nos foi
dada a salvação. Se sua humanidade não é “de Deus”
então a divindade do homem não foi realizada plenamente e Jesus não é verdadeiramente Deus. Se sua
humanidade vinda “de Deus” não é verdadeira humanidade nem permanece humanidade, não é salvo em Jesus o homem, mas outro ser.
Para chegar a esta definição o Concílio utilizou as
palavras natureza e pessoa. Natureza divina designa
que aquilo que Jesus tem em comum com o Pai (Divindade) e em comum conosco (humanidade).
A natureza é compreendida como essência, mas o
portador destas duas naturezas é o Lógos de tal forma
que ele confere a unidade do único Jesus, uma unidade
tão íntima que as duas naturezas são atribuídas ao
Verbo e por isso podemos dizer: Deus nasceu, sofreu e
morreu ou Jesus Cristo Todo-Poderoso.
A pessoa (hipóstase) é o princípio de unidade do
ser, o modo de existir de Cristo pessoa divina. Para o
Concílio em Jesus subsiste apenas a personalidade divina e não a humana, sem com isso querer ensinar
que Cristo não tivesse um centro consciente, apenas
230
que isso não era considerado próprio da pessoa, mas
da natureza humana, pois o próprio da pessoa é ser o
sustentador de atos livres. Como pessoa eterna assumiu Ele para si a “pessoa humana” de Jesus, pessoa
não aniquilada, mas totalmente realizada não em si
mesma, mas no seio da Pessoa divina (uniãohipostática), assim o homem Jesus se definiu a partir
da Pessoa divina.
A fórmula de Calcedônia não toma em consideração a evolução de Cristo, pois hoje para nós natureza
tem um conceito dinâmico e não estático como era para
os antigos. A natureza do homem hoje consiste em dados físicos, psíquicos, a história, a sociologia... e pessoa
é essa natureza enquanto ela se possui a si mesma e se
realiza dinamicamente na comunhão. Por isso, a fórmula não leva em consideração a evolução em Cristo,
conforme nos atestam os sinóticos nem as transformações com a sua ressurreição.
A existência de Jesus foi totalmente voltada para
os outros e para o Grande outro (Deus), basta considerar o seu relacionamento e sua abertura com o povo
(pobres, pecadores, fariseus, mulheres, crianças, doentes...) e para com Deus chamando-o de Abbá. Jesus era
completamente vazio de si e repleto do Outro e para os
outros, faltava-lhe a hipóstase, o subsistir em si mesmo, o que não era imperfeição, mas máxima perfeição.
Por isso ele foi o homem por excelência porque a sua
radical humanidade foi conquistada pela entrega aos
outros e ao Outro. O seu viver verdadeiro é viver com o
seu eu, é um eco do tu e ressonância do Tu Divino.
Quanto mais o homem está no outro se torna eu. Ora,
Jesus-homem estava de tal forma em Deus, que se identificou com Ele e Deus estava de tal forma em Jesus-homem que se identificou com Ele. O homemJesus pode estar em Deus a ponto de sentir-se seu Fi231
lho, e aqui está a identidade pessoal de Jesus com o
Filho eterno, e pode de tal forma esvaziar-se de si (Fl
2,7) a ponto de tornar-se ele mesmo homem, e aqui está o sentido da encarnação.
Jesus homem não é o receptáculo exterior de
Deus, mas Deus mesmo que entra na história (Jo
1,14); Deus se torna e se faz devir e história com a encarnação de Jesus, por isso Deus vivido pelo cristianismo não é somente o Deus infinito, mas é o Deus que
se fez pequeno (Fl 2,7-8).
30. A PESSOA DE CRISTO
O caminho para o conhecimento de Cristo não é
pelas teorias em torno de suas duas naturezas, mas pela experiência da graça para nós; não importam os juízos metafísicos. Porém a pessoa e a obra de Cristo são
inseparáveis, por isso é necessário conhecê-lo. Quem
não conhece o mistério de sua pessoa não compreende
a sua obra como atesta Mateus 13,54. Por isso a revelação lança luzes tanto na pessoa como na obra de
Cristo. Melanchton diz: “Se ignoras para que fim Cristo
se encarnou e foi crucificado de nada te aproveita saber
a sua história”.
A pessoa de Cristo é que confere às suas obras
um valor universal e eterno. A pregação do Jesus histórico leva à fé. Os padres da Igreja combateram toda negação da divindade, assim como contra todo o ataque à
humanidade de Cristo, e isto não por interesse “ontológico” mas para defender a pureza do evangelho da salvação e pela obra de Cristo. A obra de Cristo é apreendida como obra do “vere Deus et vero homo”.
Ao que parece, devemos dizer que a intenção formal de Deus quanto a Jesus Cristo é inserir o dom de si
232
mesmo no gênero humano mais profundamente possível, na própria substância da humanidade, por ele chamada a partilhar de sua vida, ou seja, tornar a sua autodoação a mais total e imanente possível. A esta altura
a comunicação de Deus, sua plena autodoação à humanidade, reside precisamente na inserção pessoal do próprio Deus na família humana e na sua história, ou seja,
na encarnação do Filho de Deus. É a auto-comunicação
imanente de Deus, auto-comunicação criadora e reparadora.
Deus que no Antigo Testamento é descrito como
Deus dos homens tornou-se em Jesus Cristo o Deus
dos homens de modo humano “Cristo é Deus em forma
humana e homem em forma divina” (Schillebeeckx).
Também Martelet afirma que o motivo da encarnação
não é o pecado, mas a adoção. Na adoção o essencial
não é a redenção como tal, mas a deificação. Cristo veio
dar-nos a possibilidade de sermos Filhos de Deus. A encarnação é nossa adoção, enquanto nele fundamentada,
e desse ponto de vista nossa adoção é, por sua vez, a
encarnação de Cristo atuando em nós.
Mas por que Jesus Cristo? São João (3,16-17)
afirma que a vinda de Cristo ao mundo se apresenta
como ponto máximo do amor do Pai pela humanidade.
Os Padres da Igreja afirmam que “Ele se fez homem para
que fôssemos divinizados”. Por isso, assumiu tudo o que
era humano, pois, “O que não foi assumido não foi salvo". O “Admirável comércio” entre Deus e o homem em
Jesus Cristo, exigia que Jesus descesse até nós para nele nos elevássemos. A economia da salvação representa
por parte de Deus, o dom maior de si mesmo à humanidade.
Quanto ao tempo, com base na cronologia bíblica,
onde 4.000 anos separavam Cristo de Adão, os Padres
se perguntavam por que Jesus viera tão tarde e respon233
diam que a humanidade precisava ser preparada para
essa vinda.
Quanto ao espaço, ou ao lugar em que Jesus escolheu para se encarnar, considerando o pluralismo das
culturas e das tradições religiosas da humanidade de
hoje, dá a impressão que servindo-se de uma que determinada cultura (a de Israel), e que tenha recolhido o
legado de um acontecimento histórico de salvação, inserido exclusivamente numa tradição religiosa em especial, marginalizou-se por exemplo, outras tradições religiosas e culturas mais antigas. Porém, na mentalidade
dessas culturas, uma economia da encarnação, como a
entende o cristianismo não poderia aspirar ao universalismo. Podemos ainda sustentar a pretensão cristã de
universalizar o acontecimento Jesus Cristo diante das
outras culturas e tradições religiosas? Para K. Ranher a
tarefa mais urgente da cristologia hoje é demonstrar o
sentido universal e a dimensão cósmica do evento Jesus
Cristo, onde Cristo surgiu como vértice da história da
salvação e a cristologia, como sua mais precisa reformulação.
Uma cristologia cósmica deveria mostrar em primeiro lugar a dimensão cósmica da encarnação, ou seja,
o que significa Jesus Cristo não só para a salvação da
humanidade e da história, mas também de todo o universo. Nesse sentido o Pe. Teilhard de Chardin fala-se de
um processo evolutivo do mundo como “cristogênese”.
Nesta perspectiva, Cristo é considerado globalmente,
como o ponto propulsor da evolução cósmica, o fim que
atrai para ele mesmo. O Cristo cósmico age como causa
final que dirige todo o cosmos para seu fim último, até
que Deus seja “Tudo em todos”. O Cristo universal no
desígnio de Deus para toda a humanidade e todo o cosmo.
234
O Cristo está no centro do plano de Deus para a
criação e para a humanidade e o cosmos, está no centro
da história da salvação. Assim, a mensagem cristã está
aberta para todas as culturas, podendo se exprimir em
cada uma delas, embora não significa que possa se adaptar a tudo o que aparece nas culturas e nas tradições religiosas da humanidade. Sabemos que a experiência religiosa de Israel baseia-se inteiramente na aliança de Javé com seu povo e não em considerações filosóficas sobre a criação. É a partir da vigência desta aliança, que o mistério da criação divina penetra consciência
de Israel. É, desde o início, o mistério da salvação, ponto
de partida do diálogo salvífico de Javé com todos os povos. Essa reflexão progressiva que vai da aliança até a
criação, acompanha a longa caminhada de Israel na
descoberta do Deus único, caminhada que culmina no
monoteísmo, onde o Senhor é um sonho (Dt 6,4-5). No
centro dessa história figura a fé cristã e vige o evento
Jesus Cristo.
Hoje alguns teólogos distinguem as perspectivas
eclesiocêntrica, cristocêntrica e teocêntrica. Afirmando
outras três exposições a saber: o exclusivismo onde se
afirma a exclusividade da salvação por meio de Jesus
Cristo confessada na Igreja (Kraemer). Para ele o único
conhecimento válido de Deus é o cristão; o Deus dos outros é puro ídolo. Jesus Cristo é a condição para alguém
se salvar. "Fora da igreja não há salvação", posição esta
não condividida com a Igreja católica.
Alguns ensinam uma mediação construtiva da Igreja, que se acrescenta, embora não no mesmo nível, a
mediação necessária de Jesus Cristo. Outros mais próximos do linguajar neotestamentário, que nos apresenta
Cristo como mediador único, descrevem o papel da Igreja não tanto como em termos de mediação quanto de
presença, sinal, sacramento e testemunho (J. Schinel235
ler). “Jesus Cristo e a Igreja são meios constitutivos,
mas não exclusivos de salvação”; “Jesus Cristo, meio
constitutivo de salvação, e a Igreja, meio não constitutivo”. Parece difícil explicar como a mediação da Igreja, no
plano da salvação, poderia se estender para além de suas fronteiras. Enquanto essencialmente sacramental,
essa mediação se exerce pela palavra proclamada e pelos
sacramentos, abraçados por membros da Igreja, mas
não por fiéis de outras tradições religiosas.
Muitos autores recentes apoiam a mudança de
paradigma, ou seja, que se passe do cristocentrismo ao
teocentralismo, do inclusivismo ao pluralismo. Isto porque para alguns a pessoa de Jesus Cristo é vista como
não-constitutiva da salvação, mas sempre normativa;
para outros, não é nem constitutiva nem normativa. (Tillich defende a primeira posição e John Hick a segunda).
Quanto ao pluralismo teocêntrico, John Hick defende uma “Revolução Copernicana”, propondo uma
mudança de paradigmas da perspectiva cristocêntrica
tradicional para uma nova perspectiva teocêntrica. Essa
“Revolução Copernicana”, quer fazer compreender que
após tantos séculos afirmando que as demais tradições
religiosas giravam em torno do cristianismo como seu
centro, hoje se deve reconhecer que o eixo em volta do
qual giram todas as religiões, inclusive o cristianismo,
só pode ser Deus mesmo. Essa mudança de paradigma
implica necessariamente o abandono de qualquer posição privilegiada, seja do cristianismo, seja do próprio
Jesus Cristo. Também Knitter propôs a substituição do
paradigma teocêntrico pelo soteriocentrismo e também
pelo reinocentrismo. Todas as religiões oferecem a salvação e a libertação humana. Diferenciam-se entre si,
mas todas se dizem caminho de salvação para seus
membros. O critério para avaliá-las é como contribuem
para a libertação a integral da pessoa. Da mesma forma,
236
todas as religiões devem ser sinais da presença do Reino
de Deus no mundo, empenhando-se igualmente no seu
crescimento.
Em suma, a que responde melhor as três posições
é aquela do inclusivismo (defendida por K. Rhaner), onde se afirma que Jesus Cristo é a revelação decisiva de
Deus e o salvador absoluto; de outro lado, abre-se a porta ao reconhecimento sincero de manifestações divinas
na história da humanidade e nas diferentes culturas e
de elementos de graça no bojo das demais tradições religiosas para a salvação de seus adeptos. O Inclusivismo
defende que a salvação vem só de Deus em Jesus Cristo
e que a vontade salvífica de Deus é realmente universal.
Afirmar que o Cristo está no centro do plano de
Deus para a humanidade não significa alçá-lo a escopo
e fim para o qual tendem a vida religiosa e as tradições
religiosas de todas as pessoas. O escopo e o fim é sempre Deus Pai. Jesus jamais o substituía. Se Jesus Cristo
ocupa o centro do mistério, é porque foi constituído pelo
próprio Deus como mediador necessário, como o caminho que conduz ao Pai. Ele ocupa o centro, porque
Deus mesmo aí o colocou, e não os homens. Daí decorre que o cristocentrimo e o teocentrismo, na teologia
cristã, não parecem representar perspectivas que se opõem uma à outra, obrigando-nos a escolher uma das
duas. A teologia cristã é teocêntrica, porque é cristocêntrica e vice-versa.
Para concluir é importante ter em mente uma cristologia renovada no seu aspecto histórico, pessoal trinitário e soteriológico. Quanto ao aspecto trinitário devemos afirmar que Jesus é o Verbo e o Filho de Deus encarnado e que em sua humanidade se relaciona de forma pessoal com o seu Pai e com o Espírito Santo. Daí a
necessidade da construção de uma cristologia do Espírito, que enfatize a influência do Espírito Santo na vida
237
terrena de Jesus desde a sua concepção, por obra do
Espírito Santo até a sua ressurreição. Entre Jesus Cristo e o Espírito Santo não há duas economias de salvação, mas uma só: A economia cristopneumática, interdependentes e complementares. Por outro lado o cristocentrismo por sua natureza, é teocêntrico. Em Jesus
Cristo revela-se um Deus diferente, um Deus único que
falou e se comunicou pessoalmente, mas que na plenitude dos tempos falou pelo seu Verbo feito carne. Jesus
é a face humana de Deus, em Jesus, Deus se tornou:
“Deus para os homens de modo humano; tornou-se o
homem para os outros”.
31. O CONHECIMENTO HUMANO DE JESUS
Que tipo de conhecimento humano teve Jesus?
Conhecimento perfeito ou conhecimento limitado? Afirmamos que hipostaticamente unidas as duas naturezas
não se fundem. A natureza humana conserva se integralmente. Com isso, as perfeições da natureza divina,
no caso o conhecimento divino, não são comunicadas,
diretamente à natureza humana. Mas como as duas naturezas também não estão separadas uma da outra, o
conhecimento de Jesus é o conhecimento do Filho de
Deus. O estado quenótico da existência humana de Jesus deixa perceber a que a glória divina permanece recolhida em sua vida terrena, até a hora de sua glorificação.
Deixa perceber também que o Verbo, tendo assumido
plenamente a condição do gênero humano, com exceção
do pecado, participa de nossa situação, marcada por
sofrimentos e pela morte.
As perfeições humanas de Jesus são proporcionais ao seu estado quenótico e se prendem à sua missão. Para ver como a tradição apostólica entendeu a
238
humanidade de Jesus, é essencial retomar os evangelhos. Na realidade, eles não testemunham só as imperfeições do homem Jesus, mas também a suas limitações: certos conhecimentos, a tentação, a agonia no horto, o grito na cruz... Quanto aos conhecimentos de Jesus, a tradição evangélica relata sua extraordinária perfeição. Ele fala do Pai como alguém que está vendo (Jo
7,15). Conhece os segredos dos corações (Lc 6,8) precisa
o futuro, embora se deva tratar com cautela a predição
de sua morte e ressurreição. João diz que Jesus conhecia tudo (Jo 16,30) e Lucas afirma que Jesus era cheio
de sabedoria (2,40), embora afirme que Jesus crescia em
sabedoria (Lc 2,52.) e chegou a admitir desconhecimentos (Mt 24,36).
A teologia fala e de 3 espécies de conhecimento
humano perfeito e universal em Jesus: a visão beatífica
dos bem-aventurados no céu, o conhecimento infuso
(angélico) e o saber de experiência. Contudo os teólogos
não estão de acordo em admitir a visão dos bemaventurados em Jesus durante a sua vida terrena,
mesmo porque o Verbo se fez carne.
Qual a diretriz, no dogma cristológico, para solucionar o problema da psicologia humana de Jesus? O III
Concílio de Constantinopla apontou expressamente,
“Duas vontades naturais e duas operações naturais” em
Cristo; nenhum Concílio cristológico apontou algo parecido em termos de conhecimento duplo: o divino e humano. Mas a presença em Jesus de um conhecimento
humano faz parte da doutrina da fé, porque decorrente
da integridade da natureza humana. "Cada natureza realiza em comunhão uma com outra o que lhe é próprio,
ou seja, o Verbo opera o que do Verbo e a carne o que é
da carne”.
Não se pode provar que Jesus tenha tido a visão
beatífica na terra. Seu conhecimento íntimo do Pai, por
239
mais direto e imediato que tenha sido, não a supõe necessariamente. A verdade é que Jesus tinha experiência
pessoal e humana do Pai: “Eu e o Pai somos um” (Jo
10,30). Ele fala de uma experiência imediata de relação
profunda e pessoal com o Pai derivada de sua própria
vida divina. Um conhecimento e infuso ou profético dificilmente explicaria o caráter imediato íntimo desse relacionamento pessoal. Por conseguinte, é preciso garantir
que Jesus nesta vida, teve “visão imediata” do Pai. Isso
na verdade, fazia parte do conhecimento humano subjetivo que Jesus possuía de sua filiação divina, sobre o
qual antes se falou. Subjetivamente, Jesus estava consciente de sua identidade pessoal de Filho.
Jesus também teve o conhecimento adquirido pela experiência durante a sua vida; trata-se de um saber
naturalmente limitado, não total, pois ele aprendia com
o povo, com os acontecimentos, com a natureza, com a
experiência etc.
De tudo o que estava relacionado à missão de Jesus, não se pode descartar alguma ignorância real. É
sobretudo a propósito do dia do juízo que se coloca essa
questão, onde Jesus afirma que não conhece “o dia” (Mc
13,32). Alguns Padres da igreja como Atanásio e Cirilo
de Alexandria, admitiram que Jesus desconhecia “o dia”.
Outros, como Jerônimo e João Crisóstomo, ensinaram
que ele sabia, mas confessava não o saber, porque não
era sua missão revelá-lo. Para Agostinho, sendo o não
saber conseqüência do pecado, Jesus não poderia ignorar nada. Outros padres enfim, entenderam que Jesus
sabia e, ao mesmo tempo não sabia. Na visão beatífica
que abarca tudo, ele sabia; mas não sabia no sentido de
que, não lhe cabendo revelar seu conhecimento, não o
traduzia em linguagem comunicável e dessa forma Jesus teria confessado a sua ignorância. Se o dia do juízo
não constava na missão reveladora de Jesus, não era
240
preciso que o conhecesse e então, simplesmente não o
conhecia. É preciso afirmar contudo, que pelo conhecimento infuso e profético, Jesus conhecia tudo o que
precisava saber, em sua missão reveladora e salvífica.
Jesus sabia, sem erro algum, tudo quanto interessava à
sua missão .
Outra questão que podemos lembrar é aquela da
fé de Jesus; e muitos teólogos afirmam que Jesus viveu
uma verdadeira vida de fé. Na verdade, a fé não deve ser
concebida como a adesão à verdades reveladas, mas no
sentido bíblico, como a entrega confiante e pessoal a
Deus. A carta aos Hebreus (5,7-9) fala que Jesus durante a sua vida terrena rezou. Nesta oração está representada a vida de fé para Jesus em seus aspectos mais
trágicos e profundos: a luta na busca da vontade do Pai
e na submissão a ela.
32.
A HUMANIDADE DE CRISTO
A Igreja primitiva incluiu no credo a profissão de
fé “vere homo”. Ela poderia reservar para um plano secundário a confissão de Cristo como verdadeiro homem, certo de que Cristo é Deus e de que só Deus poderia salvar o homem. A igreja poderia muito bem não
dar lugar para o humano, mas ao invés defendeu a
humanidade de Cristo com igual ardor com que defende sua divindade. Por quê? Por fidelidade à Sagrada
Escritura, a qual diz: “o Verbo se fez carne” autêntica
em tudo exceto no pecado. A igreja não se contentou
em repudiar o erro de Ário, mas também condenou o
docetismo que afirmava apenas um corpo aparente,
não carnal em Cristo, idéia esta defendida por gnósticos entre os quais Marcion. Houve também um docetismo mais sutil que não afirmava que o corpo de Cristo
241
era mera aparência, porém deixava a sua humanidade
incompleta. Hoje ninguém nega a humanidade de Cristo.
O docetismo via uma radical impossibilidade de
genuína união entre Deus e o homem, isto devido ao
dualismo metafísico. Para o docetismo é impossível o
Lógos unir-se com a carne humana, e se João tivesse
falado que o Lógos “se fez espírito humano” assumindo
a união como uma parte humana mais elevada e mais
próxima de Deus, até que os docetistas poderiam aceitar, entretanto para ele é impossível a união do divino
e da carne e assim não se admitia a união hipostática,
e consequentemente dá ao corpo de Cristo uma aparência; como um fantasma humano. Para o docetismo
o homem deve ser livre do terrestre, do carnal, que é
fonte de pecado, por isso o divino encarnar na matéria
humana é contradição. Marcion viu em Gal 4,4 “nascido de mulher”, uma interpretação de texto, pois Cristo
veio salvar o mundo, mas alheio à criação e à carne,
por isso o seu corpo é aparência, disposto a sentir, a
agir e a padecer como homem, mas com a aparência de
homem sem a substância da carne.
Inácio denunciou este erro, confirmando a autenticidade da encarnação e a veracidade da carne de Cristo, assim como a realidade de sua morte. Ele afirma:
“Alguns pretendem que Jesus sofreu só em aparência...
Se Cristo sofreu apenas em aparência, de que proveito
me será carregar as algemas e ir lutar contra as feras
do erro?...Negar sua carne, significa blasfemar contra
ele e atentar contra a salvação do Senhor”. Também
Tertuliano combateu fortemente o docetismo e Irineu
destacou a veracidade da carne de Cristo.
Posteriormente houve um outro tipo de docetismo
mais refinado onde os erros foram mais difíceis de serem definidos e portanto mais perigosos. Este não ne242
gava a natureza humana de Cristo, mas a diminuía e
até mutilava-a e a tornava inautêntica. Esta surgiu com
Apolinário e o Monofismo. Apolinário concordou com a
definição de Nicéia que condenou Ário, mas ensinou
que o Verbo fazendo-se carne não assumiu o espírito
humano, mas apenas o corpo humano, com isso o monofisismo fez uma síntese das duas naturezas em uma
única natureza divino-humano, onde a natureza humana divinizada é absolvida pela supremacia do divino
de Cristo de modo que não é possível falar em veracidade e perfeição da natureza humana. O “vere Deus”,
absorve o “vero-homo”.
Não faltou quem em consonância com este pensamento pensasse que em Paulo houvesse vestígios de
docetismo. Paulo opõe pneuma-espiritual e carne, indissoluvelmente ligado pelo pecado e não impede que o
homem carnal possa tornar-se homem espiritual pelo
batismo. Assim Bakel ensina que Paulo devia considerar a carne de Cristo como um elemento que contrariava este homem pneumático. Ele baseia-se em Rm 8,3:
“Deus enviou o seu Filho na semelhança da carne pecaminosa...”e Fl 2,7: “Tornando-se em semelhança de homens”. Com isso, segundo Bakel, Paulo encara o docetismo sem medo. Entretanto devemos lembrar que Paulo escreveu que “Cristo nasceu de uma mulher...” (Gl
4,4).
Portanto no NT não há vestígios de docetismo, aliás, é contra ele, basta lembrar 1Jo 4,2s onde João reprova os falsos profetas com suas doutrinas que negam
a encarnação, a idéia escandalosa do Filho de Deus,
Salvador sofrer a degradação do contato direto com a
matéria.
O docetismo é antagônico com os evangelhos, os
quais até após a ressurreição não mudam o homem
Jesus “Porque vos perturbais... vede minhas mãos e
243
meus pés, sou eu mesmo apalpai... um espírito não tem
carne nem osso...” (Lc 24,38s), Jesus pede algo para
comer, o que expressa uma tração realisticamente antidocetista. Jesus ressuscitou e precedeu os discípulos
na Galiléia (Mt 28,7; Mc 16,7), para Tomé que duvidou,
o ressuscitado pede que coloque o seu dedo em suas
feridas (Jo 20,27), as mulheres abraçaram os pés de
Jesus ressuscitado (Mt 28,9) e Jesus sopra sobre os
discípulos (Jo 20,23), impõem-lhes as mãos (Lc 24,50).
João relata a realidade da ressurreição com verbos sensoriais “nossas mãos apalparam-no...” (1Jo 1,1); não
foi, um contato casual. Portanto mesmo depois da ressurreição é visível a humanidade de Jesus “comemos e
bebemos com ele depois que ressurgiu dos mortos” (At
1,4 ; 10,41). O próprio Paulo diz: “Se Cristo não ressuscitou vã é nossa fé...” (1Cor 15,17s).
Cristo é o homem Jesus que teve sua origem histórica como Filho de Davi (Lc 2; Gl 4,4); ele experimentou a fome, a sede, o cansaço, o sono, a tristeza, a angustia, o sofrimento. Convinha que ele se tornasse semelhante aos seus irmãos (Hb 2,17-18). Como criança
cresceu e se fortaleceu (Lc 2,40-52).
Quando excluímos qualquer ignorância relativa
ao presente, ao passado e ao futuro de Cristo, devemos
admitir que sua alma gozava de onisciência divina devido a união com a inteligência divina. Cristo teve uma
ciência adquirida e progressiva; aquela própria dos homens e foi sujeito ao aprendizado. Cristo possuía, como
ensina Tomás de Aquino, a visão plena e perfeita de
Deus desde a concepção, e isto explica-se pela união
hipostática. Po isso, em Cristo não houve a fé, pois
desde o momento da concepção viu perfeitamente a
Deus e a sua essência, já que a fé é a garantia das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se vêem (Hb 11,1).
244
Para a teologia protestante não há separação entre a natureza divina e humana unidas hipostaticamente em Jesus e por isso ela aceita a fé e a contemplação em Cristo; ele acreditou e esperou. O católico
Van Der Meer baseando-se na Sagrada Escritura, reconhece o autêntico desespero de Cristo, as suas dores, o
abandono e o seu sofrimento. Também Romano Guardini afirma o realismo dos sofrimentos de Cristo e que
ele “desceu, numa forma inconcebível, às profundezas
do inferno”. Assim a nossa salvação está ligada indissoluvelmente à veracidade da natureza humana de Cristo.
Tanto Caifás como Pilatos com o seu ecce homo,
exprimem segundo a Igreja, que Jesus é o verdadeiro
homem escarnecido que deve morrer por nós, que sendo igual a Deus assumiu a condição de servo para nos
salvar.
33. A PSICOLOGIA HUMANA DE JESUS
O III Concílio de Constantinopla instigou a reflexão cristológica da Igreja para os problemas da psicologia humana de Jesus ao afirmar que no mistério do sofrimento, paixão e morte de Jesus, ele se submeteu à
vontade do Pai com um ato autêntico de vontade humana. Alguns teólogos fazem a seguinte objeção: se a pessoa ontológica do Filho de Deus é comunicada à humanidade de Jesus e, consequentemente, existe pelo ato de
ser do Filho, não será, então, impessoal sua humanidade e, em última análise, real sua existência humana?
Negando em Jesus uma pessoa humana, não se torna
ele real? Em que sentido se pode falar de Jesus como
pessoa humana?
Na verdade, uma pessoa “Divino-humana” é uma
que é também verdadeiramente humana e no sentido
245
interior de que o Filho de Deus feito homem usufrui, atualiza e desenvolve uma genuína personalidade humana. Assim escreve W. Kasper: a afirmação da humanidade de Jesus e, por conseqüência, o ato de unificação
máxima constitui essa natureza em sua autonomia criatural. Em forma humana, ou seja, de modo a garantir a
liberdade humana e a autoconsciência humana, a humanidade de Jesus está, assim unida hipostaticamente
ao Lógos. Justamente porque ele não é senão o Lógos, é
também no Lógos e por meio dele uma pessoa humana.
E vale também afirmação vice-versa: a pessoa do Lógos é
a pessoa humana.
Pode-se fazer também a seguinte pergunta: o modelo cristológico tradicional de uma pessoa em duas naturezas não teria, de fato, desconsiderado a humanidade
autêntica, histórica e concreta de Jesus? Diante desta
pergunta P. Schoonenberg afirma que não seria Jesus
uma pessoa divina a assumir a natureza humana, mas
uma pessoa humana em que Deus em seu Verbo está
de forma plena, presente e atuante. Desse modo, o dualismo aparente da cristologia das duas naturezas ficaria
superado e a condição divina de Jesus recolocada onde
o Kérigma primitivo a focalizou, ou seja, não além e acima de sua existência humana, mas dentro dela.
1. A unidade psicológica e a autoconsciência de Jesus
A unidade ontológica da pessoa de Jesus Cristo
pressupõe sua unidade psicológica. Como conceber unidade psicológica em Cristo? Qual o centro de referência
de suas ações humanas? Se em Jesus não há pessoa
humana, como fazer da consciência humana o centro de
referência? É bom lembrar que o III Concílio de Constantinopla afirmou que em Jesus há uma vontade e uma
246
atividade autenticamente humanas, sem oposição a
vontade divina, antes perfeitamente sujeita a ela. Por
outro lado, as duas vontades e ações não podem ser vistas como paralelas e nem se pode dizer que a vontade
divina atue hegemonicamente, regulando e determinando de um modo manofisista, uma vontade o humana
passivamente manipulada. Então, como conciliar a iniciativa autêntica da vontade humana de Jesus e sua
submissão moral à vontade de Deus?
Em Jesus não há duas linhas de ação paralelas
nem uma ação teândrica, derivada da fusão das duas
ações e vontades. É preciso afirmar que as duas vontades constituem uma unidade orgânica, em comunhão de
bens subordinação. Os atos humanos são genuínos,
mas são atos humanos do Filho de Deus. O Verbo de
Deus somente fazendo-se homem que se tornou também
algo a menos do que é em si mesmo (K.Ranher), assim
também suas ações humanas são algo a menos do que
as divinas. Contudo, como Jesus é, em pessoa, o Verbo
encarnado, do mesmo modo seus gestos humanos são
pessoalmente, gestos do Filho encarnado.
Partindo da cristologia do “homo assunptus” da
escola antioquena Déodat, concebeu o diálogo entre Jesus e Deus como um "duelo de amor" entre Jesus homem e Deus trino. Embora o “homem assumido” não
fosse uma pessoa humana, porque "acrescentado ao
Verbo, o ego humano de Jesus permanece plenamente
autônomo. O “homem assumido” encontra Deus trino
num “duelo de amor”. Seiller ensina que a união hipostática não atingia a psicologia humana de Jesus. O
“homem assumido” age como se fosse pessoa humana.
Ele é o sujeito plenamente autônomo dos próprios atos,
sobre os quais o Verbo de Deus não exerce a mínima
influência. A obra Seiller de foi posta no Index em 1951,
porque, concedendo o ego humano de Jesus como sujei247
to autônomo, não salvava a unidade da Pessoa divina
ontológica.
O teólogo Galtier defendeu que Jesus, homo assumptus, embora não sendo uma pessoa humana, tinha
um ego psicológico humano, isto é, um centro de referência de seus atos humanos. O ego inserido nas palavras de Jesus nos evangelhos não se referia à Pessoa
divina do Verbo, mas exprimia a personalidade humana.
Ademais, como a natureza humana de Jesus é completa,
ela possui naturalmente uma consciência humana pela
qual, já que a consciência pertence à natureza, a natureza humana de Jesus faz se intencionalmente presente
a si mesma, em suas ações humanas. Portanto, os atos
e as experiências humanas de Jesus reportam-se a um
centro humano psicológico e empírico. Resumindo, segundo Galtier, existe em Cristo um ego humano psicológico e sua natureza humana goza de plena autonomia,
sendo que, pela visão beatífica, Cristo tem conhecimento
objetivo de sua identidade divina.
Outro teólogo, Pe. Parente afirma que não existe
nenhum ego humano psicológico como centro de referência das ações humanas de Jesus. O ego presente nas
sentenças evangélicas é, diretamente à Pessoa divina.
Pela união hipostática, a natureza humana não só se
auto-expropria substancialmente, como é também comandada e guiada hegemônicamente pelo Verbo em todas as suas ações. Ela é assim, inteiramente heterônoma. O Cristo possui consciência de sua pessoa divina.
Nesta linha pode-se afirmar que a consciência
humana de Jesus não é a natureza em sua autopossessão intencional, mas a pessoa divina, ontológica,
e isso porque a consciência é o ato da pessoa na natureza e por meio da natureza. Por isso o centro último de
referência dos atos humanos de Jesus é a Pessoa divina
do Verbo. O ego dos enunciados evangélicos de Jesus é,
248
o Verbo de Deus em uma consciência humana. O ego de
Jesus dos evangelhos é o Verbo, mas precisamente enquanto consciente, de maneira humana, em sua humanidade. O ego humano de Jesus é, na realidade, nada
mais que o prolongamento, da auto-consciência humana
do ego da pessoa do Verbo. O Verbo, sem tal centro humano de referência não poderia estar cônscio de suas
experiências humanas como verdadeiramente suas.
A natureza humana de Jesus, porque hipostaticamente unida ao Verbo, é toda expropriada, ontológicamente, em ordem à pessoa. As ações humanas de Jesus são, realmente ações do Verbo Deus. Ele é quem age
nelas, exercendo sua causalidade pessoal. Mas essa expropriação total quanto à pessoa não diminui em nada o
senso de responsabilidade e de iniciativa de Jesus.
Justificar pela visão beatífica o conhecimento que
Jesus tinha de sua divindade é tese que não convence
por diversos motivos. Primeiro porque a consciência por
parte de Jesus de sua própria identidade pessoal, seria
inferior que os homens têm ordinariamente. Uma pessoa
tem conhecimento subjetivo e não apenas objetivo da
própria identidade. Por fim, como se verá depois, a visão
beatífica de Jesus, durante sua vida terrena, é uma suposição gratuita, não explicada pelo Novo Testamento.
Uma explicação a partir de baixo nos leva a considerar o homem Jesus subjetivamente consciente da
própria divindade por sua consciência direta com a união hipostática. Vale dizer, a união hipostática invade a
esfera consciente do homem Jesus. Portanto, o ego usado por Jesus dos evangelho, se refere à pessoa do Verbo,
enquanto autoconsciente, de maneira humana.
Uma outra explicação a partir do alto inverte a
perspectiva. Não se questiona como pode o homem Jesus saber que é Deus, mas como Filho de Deus sabe que
é homem. Ao assumir a natureza humana e, com ela,
249
uma consciência humana, o Verbo de Deus torna se autoconsciente de maneira humana. O centro referencial
dessa tomada de consciência é a pessoa divina. O Verbo
que, assumindo a natureza humana, estende sua força
até a consciência humana de Jesus. Portanto, a consciência humana do Filho de Deus é o prolongamento da
consciência humana do mistério da união hipostática. O
ego hipostático do Lógos torna-se autoconsciente na natureza e na consciência humana. O ego é a pessoa divina humanamente cônscia. É o ego humano do Verbo.
Concluindo, pode-se afirmar que a pessoa e única
divina do Verbo é em Jesus, autoconsciente de modo
humano, o que supõe a existência nele de um ego humano psicológico. A consciência humana é própria do
Verbo, enquanto a divina é comum às três pessoas da
Trindade. Na vida divina e intra-trinitária emerge de
uma consciência do nós, com três centros focais de
consciência. Ao contrário, a autoconsciência humana de
Jesus instala uma relação dialógica “eu-tu” entre o Pai
e o Verbo encarnado.
Não é fácil traçar o perfil psicológico da personalidade de Jesus, entretanto, fundamentando-nos nos
evangelhos, podemos concluir alguns aspectos de sua
personalidade os quais não se enquadram nos esquemas
dos profetas e dos Messias do seu tempo. Juan Arias
afirma que a religião judaica que Jesus professava na
qual estava tão arraigada a idéia do sacrifício, da culpa,
da expiação dos pecados, do castigo de Deus a seu povo,
da perseguição, da humilhação, se colocava como uma
espécie” psicólogo da felicidade”. Da mesma forma, nessa sociedade de miseráveis, de marginalizados, de pessoas marcadas por doenças e possessões demoníacas,
num povo oprimido pelo império romano e portanto passível de falta de esperança; numa sociedade onde a pessoa humana não tinha qualquer importância, sobretudo
250
a mulher e a criança, onde existia a escravidão e o povo
era oprimido pelo peso da lei, onde os privilegiados oprimiam e eram despóticos, Jesus se coloca como “o profeta do impossível”.
Jesus era um grande conhecedor da psicologia
humana e compreendia não apenas as dores externas,
mas também as internas das pessoas. Ele lutou para a
felicidade de todos, não foi um masoquista, Ele queria a
cura de todos, não queria o sofrimento de ninguém. Não
foi um asceta e afirmava que não queria sacrifícios e sim
misericórdia. Suas parábolas eram carregadas de símbolos cheios de felicidades e por isso pregava a simplicidade da vida, o desapego das coisas terrenas, a confiança
na Providência Divina como os pássaros no céu.
34. A IMPECABILIDADE DE CRISTO
Se Cristo é verdadeiramente homem não deveria
participar da natureza pecaminosa do homem? Pode-se
eximi-lo do pecado? Pode-se reivindicar sua impecabilidade absoluta? Como conciliar a sua impecabilidade
com sua paixão? Diante destes questionamentos afirmamos que Cristo não pecou; basta examinar a sua vida e o seu comportamento diante das tentações. Os
textos bíblicos sobre a santidade de Cristo são abundantes: “Aquele que não conhece pecado...” (2Cor 5,21).
“Ele não cometeu pecado...(1Pd 2,22). “Nele não existe
pecado”(1Jo 3,5). “Cristo morreu, o justo pelos injustos”
(1Pd 3,18). “Tu és o Santo de Deus”(Jo 6,69). “O Santo
que de ti há de nascer” (Lc 1,35)... “Tu és o Santo de
Deus” (Mc 1,24). “Quem de vós pode acusar-me de pecado?” (Jo 8,46). Ele foi acusado de transgredir a lei, o
sábado por causa da interpretação legalista (Jo 7,23).
Seu alimento é fazer a vontade do Pai (Jo 4,34).
251
Por que Jesus batizou-se (Lc 3,21), já que o batismo de João era para remissão dos pecados? (Mc
1,4). João afirma-lhe não ser digno de batizá-lo, no entanto Jesus responde-lhe que é preciso cumprir toda a
justiça. (Jesus também circuncidou-se e foi apresentado no Templo ...). Jesus batiza-se não porque era tradição, mas por desígnio especial de Deus. Ele sem qualquer privilégio ele entra e toma parte do povo pecador,
embora sem pecado, para solidarizar-se conosco. Ele
batizado é revelado como o Cordeiro que carrega os pecados do mundo. Embora Filho de Deus suportou o
sofrimento, aprendendo a obedecer. “Jesus, nos dias de
sua vida mortal...”(Hb 5,7). Jesus teve que aprender a
obedecer? Seu aprendizado na obediência não se refere
a uma evolução ética na sua vida, mas sim a uma maturação, “No
cumprimento da função cristológica”(Grosheide), ou seja, cada dia Jesus compreendia
mais a sua missão; sua obediência provém portanto de
uma realidade dinâmica. Diante disso compreendemos
a sua angústia no Getsêmani e também sua obediência
(Mc 14,36). Cristo aprendeu a obediência neste caminho de dores, e esta foi um aprendizado na sua genuína natureza humana.
A Sagrada Escritura narra as tentações reais de
Jesus (Mc 1,12) no deserto. Mas não foram somente
estas, pois existiram outras: “vós sois os que tendes...
(Lc 22,28). Toda sua vida foi partilhada de tentações:
“Afasta-te de mim satanás... (Mc16,22-23); ele foi tentado em todas as coisas “Temos nele um pontífice... (Hb
4,15). Sendo que foi tentado, será que ele possuía a impecabilidade? Windisch afirma que se Cristo não pecou
não se deve a uma impecabilidade de natureza, mas à
vontade de resistir ao mal.
Scheiermacher aceitando a impecabilidade e perfeição absoluta de Cristo, afirma que o desenvolvimento
252
de Cristo deu-se sem luta, “porquanto não é possível
que alguma luta interior ocorra sem deixar vestígios”.
Os evangelhos demonstram que a santidade de
Cristo não suprime as emoções e as angústias, nem o
seu desejo de glória já desfrutado junto do Pai, mas não
aparece jamais a relutância em afastar o cálice e a vontade do Pai. Ele afirma que a vontade do Pai seja feita.
“Meu Pai, se é possível... (Mt 26,39-42).
A teologia, tanto católica como protestante, afirma que a impecabilidade de Cristo decorre da união
hipostática. “A união pessoal de Jesus com o Verbo Divino constitui como que uma santidade substancial”
(Philips). “A impecabilidade de Cristo deriva da impecabilidade de Deus” (Winkler). Cristo só poderia ter pecado por oposição livre contra a vontade de Deus o que é
impossível porque o conteúdo da vontade de Deus é a
vontade do Verbo. Para Schmaus Cristo embora dotado
de vontade humana, ele não é um Eu humano, mas um
Eu divino, e o eu divino é o responsável por todas as
iniciativas de Cristo. Para Krupper, “em Cristo houve a
possibilidade de pecar, mas porque ele revestiu-se não
de uma pessoa humana, mas só de natureza humana,
nunca houve nele um eu humano que pudesse realizar
tal possibilidade de pecar. Cristo é o Filho de Deus, é um
com o Pai, cumpre sempre a sua vontade, por isso é absurdo afirmar a pecabilidade de Cristo”, diz Bavinck;
admitir a pecabilidade de Cristo é negar a união hipostática. Já para Vogel (protestante) a impecabilidade de
Cristo não tem nada a ver com a impecabilidade divina,
não é uma impecabilidade metafísica, mas contingente,
ligada à vontade de nos dar nele o Salvador sem mácula.
Diante das tentações de Cristo no deserto, as
quais estavam relacionadas com sua missão messiânica, Cristo não podia furtar-se ao caminho do sofrimen253
to porque não podia desistir de seu amor para salvarnos, assim alguns teólogos procuram explicar a santidade de Cristo pela disposição de seu ato redentor de
sua decisão de beber até o fim o cálice.
O Concílio de Éfeso (431) afirma: “Anátema seja
quem disser que Cristo se ofereceu em sacrifício também
por si mesmo e não exclusivamente por nós”. E o Concílio de Calcedônia (451), ensina que “Cristo se fez semelhante a nós em tudo exceto no pecado”.
O evangelista Lucas (2,52) afirma que o “Menino
crescia em sabedoria, idade e graça diante de Deus e
dos homens”. Deus não assumiu a humanidade em
abstrato, mas o homem concreto e historicamente condicionado. Deus foi assumindo a natureza humana de
Jesus na medida e que esta ia se manifestando e desenvolvendo e da mesma forma a natureza dinvina de
Jesus foi revelando a divindade na medida em que
crescia e se desenvolvia. Jesus-Menino revela Deus na
medida das possibilidades de perfeição que cabem a
um menino, o mesmo se diga das demais fases da vida
de Jesus. As tentações de Jesus indicam que ele passou pelas várias crises que marcam a vida humana, e
com isso pelas amarguras, embora os evangelhos jamais relatem as queixas das agruras de sua existência.
Jesus agraciado por Deus era alguém que percebia com
sensibilidade a proposta de Deus e a correspondia.
Quanto mais Deus se comunicava, mais Jesus se autodoava a Ele e o exemplo máximo disto foi na cruz.
Embora Jesus vivesse em nossa carne mortal (Gl
3,13; Rm 8,3) e fosse testado como nós (Hb 4,15; 9,14),
permaneceu sem pecado (II Cor 5,21; I Jo 8,46); nascido de mulher (Gl 4,4), foi feito por nós pecado (II Cor
5,21). Sua impecabilidade provinha não de uma qualidade especial de sua natureza, mas de sua íntima e ininterrupta união com Deus. A partir de Santo Agosti254
nho começou argumentar que Jesus não só não pecou
como também não podia pecar porque foi concebido pelo Espírito Santo sem pecado, ademais a união hipostática, segundo a qual a pessoa divina do Verbo é portadora dos atos humanos de Jesus, exclui qualquer sombra de pecado.
A impecabilidade é a forma negativa de exprimirmos a união de Jesus com Deus e de Deus com Jesus.
A santidade é a qualidade daquele que está em Deus e
o pecado é o fechamento sobre si a ponto de excluir
Deus, por isso a impecabilidade de Jesus consiste na
situação fundamental de ser diante de Deus e unido a
ele. Nele faltava por obra do Espírito Santo, o núcleo
degenerador de todos os atos humanos. Jesus assumiu
a história de pecado humano, o homem no seu nó de
relações para todas as direções, um nó emaranhado e
torcido na sua vida consciente como no seu inconsciente pessoal e coletivo. Segundo a psicologia dos complexos de Jung, cada homem assume em si e carrega em
seu inconsciente toda a história das experiências bem
sucedidas e frustradas que a psique humana fez desde
as suas origens mais primitivas animais e cósmicas;
cada qual, a seu modo é a totalidade. O Verbo tornando-se homem assumiu toda esta realidade contida na
psique humana pessoal e coletiva, positiva e negativa e
ativou os arquétipos da positividade, especialmente o
arquétipo self (Selbst – arquétipo de Deus).
Ora, isto possui uma enorme importância para
nós, pois a partir dele podemos vislumbrar quem e como cada um de nós somos, pois como Jesus cada homem está aberto ao infinito, ao amor plenificado, não
só queremos conhecer Deus, mas possuí-lo.
35. A LIBERDADE HUMANA DE JESUS
255
O III Concílio de Constantinopla definiu duas vontades e duas ações naturais unidas em Jesus “sem separação, sem mudança, sem divisão, sem confusão”.
Mas o Concílio não explicou como a vontade e ação divina e humana se congraçavam na pessoa única de Jesus
e qual era a autonomia desfrutada pela vontade e pelas
ações humanas dele em relação a vontade divina .Já afirmamos que as ações humanas de Jesus são as mesmas do Filho de Deus que exerce sobre elas a causalidade própria da pessoa. Afirmou-se também que a natureza humana determina e específica os atos humanos de
Jesus, que, embora pertençam a pessoa do Filho de
Deus, continuam verdadeira e integralmente humanos.
Na verdade, pode-se e deve-se atribuir à vontade humana de Jesus certas perfeições, mercê de sua identidade
pessoal de Filho de Deus. É o caso da ausência de pecado e da inclinação para o pecado, ou seja, da concupiscência. Mas a pessoa divina de Jesus não impede que
nele haja alguma tentação verdadeiras, menos ainda, a
fraqueza humana, desânimo, medo, tristeza...
O princípio chave para uma avaliação teológica
das perfeições e das limitações da vontade humana de
Jesus, como também de seu saber humano, é que o Filho de Deus assumiu todas as conseqüências do pecado
que poderia sumir, inclusive os sofrimentos e a morte.
Mas, como conciliar a ausência de pecado em Jesus, falando radicalmente, sua impecabilidade teológica, com o
fato da tentação? E ainda, a ausência de pecado e impecabilidade com a liberdade humana genuína?
Jesus era isento de pecado. O Novo Testamento
afirma a ausência de pecado em Jesus (Hb7,26; 1Pd
1,18; 2,22; 1Jo 3,5). O mesmo diz o Concílio de Calcedônia como doutrina de fé referindo-se a Hb 4,15. Da
mesma forma, o 11º Concílio de Toledo (675) e o Concílio
256
de Florença (1422) definiram que Jesus nasceu sem pecado original. É doutrina de fé também que Jesus não
possui a concupiscência conforme diz o II Concílio de
Constantinopla (553). Quanto à intrínseca e absoluta
impecabilidade de Jesus, trata-se de um theologumenun
e não propriamente de verdadeira doutrina de fé. É uma
dedução teológica do mistério da união hipostática: se
ele viesse a cometer pecado, o autor do ato seria Deus, o
que é uma contradição. Contudo, devemos notar que a
ausência de pecado de Jesus e a sua impecabilidade não
o tornam imune à tentação, isto é comprovado claramente pelos evangelhos: Mc1,12-13; Mt 4,1-11; Lc 4,113; Hb 2,18.
Outro ponto a ser considerado é se Jesus foi passível de sofrimentos corporais. A esse respeito a Carta
aos Hebreus (4,15; 2,17-18; 5,8) afirma que sim. O
mesmo é a afirmação do I Concílio de Latrão (649) e
também é confirmado pelo IV Concílio de Florença. Do
sofrimento moral de Jesus há claras evidências nos evangelhos (Lc 22,43-44), onde relata que Jesus foi tomado de angústia. A angústia constitui um dos episódios misteriosos da vida de Jesus. Diante do sofrimento
Jesus busca a vontade do Pai. Mateus e Marcos falam
de tristeza até a morte (Mt 26,38; Mc 14,34). Lucas observa que o suor de Jesus se tornou como coágulos de
sangue (22,44). Portanto, podemos afirmar que Jesus
experimentou a angústia e a tristeza, vivenciou conosco
de forma dilacerante o medo despertado pela morte iminente. Aqui indica o estado de quenose que ele viveu. Se
a visão beatífica era incompatível com o sofrimento humano, a visão imediata de Deus não. Jesus tinha consciência de que sofria como Filho e que devia sofrer apesar de ser Filho (Hb 5,8).
Em Jesus certas atividades humanas suas são
expressões humanas do poder salvador de Deus, como
257
no caso dos milagres que ele operou. Em todos esses
acontecimentos, o ato humano da vontade de Jesus representa o veículo do poder divino de curar e libertar.
Mas, como Jesus realizou seus milagres? Não pedindo a
Deus que em seu poder infinito, efetivasse obras de cura
e salvação. Tampouco como o operaram de forma milagrosa os profetas, apelando à intervenção divina. Com
Jesus, os seus milagres nascem do exercício de sua própria vontade humana “Eu quero, sê purificado” (Mc
1,41). Ele realiza milagres por um ato de sua vontade
humana e não pela súplica que dirige a Deus. Sua vontade humana é eficaz, porque expressão humana da
vontade divina.
Devemos considerar também que a liberdade humana de Jesus não pode ser contestada. O III Concílio
de Constantinopla afirma que a vontade humana de Jesus continuou igual após a união hipostática. Jesus
desfrutou autêntica liberdade de escolha, no que tange à
seqüência de ações voltadas ao melhor cumprimento
possível de sua missão. A tradição evangélica registra
por exemplo, sua mudança de estratégia no decorrer da
vida pública depois da crise do ministério da Galiléia.
O problema da liberdade humana de Jesus surge
quando se pondera que lhe incumbiria realizar uma ordem divina incontornável, a saber, sua paixão e morte.
Na realidade, esta ação conseqüência natural do contraste inevitável entre a missão a que devia fidelidade e
as forças opostas a ele. Nem Deus quis diretamente a
morte de seu Filho na cruz. Foi, antes, a fidelidade de
Jesus à sua missão salvífica que o levou a esse extremo.
Mas, permanece o fato de que a morte na cruz seria na
lógica do plano amoroso e salvador de Deus para a humanidade. Essa realidade revelou nas profundezas do
auto-esvaziamento de Jesus, o amor intenso e incontido
de Deus pela humanidade. Nesse sentido é correto dizer
258
que no desígnio divino, Jesus devia morrer crucificado.
O Novo Testamento afirma que Jesus devia obedecer ao
Pai em particular na sua paixão e morte.
A essência da liberdade deve ser posta na autodeterminação; nesta está a dignidade da pessoa, é com ela
que a pessoa se torna aquilo que é. Santo Tomás afirma
que: “O domínio que a pessoa tem sobre o seus atos” é o
que constitui a liberdade. Ela exige uma responsabilidade pessoal. A pessoa é responsável por suas ações enquanto realmente, procedem de sua a autodeterminação. A perfeita liberdade cresce em proporção direta à
autodeterminação da vontade para o bem. Podemos dizer que a liberdade humana de Jesus é perfeita. Sua
vontade coincidiu perfeitamente com a do Pai. Tudo o
que decidia num ato autêntico de autodeterminação,
harmonizava, infalivelmente com a vontade
divina.
Sempre que surgia alguma exigência da vontade de
Deus, Jesus se decidia por ela. A sua vontade humana o
estimulava para a ação pessoal, exercendo a própria autodeterminação não por causa de uma inspiração divina,
suportada a contragosto, mas por um impulso pessoal.
A visão do Pai não era para ele uma realidade a impedir
sua auto-decisão, mas sim a meta que atraia e cuja intuição conduzia para a autodeterminação completamente esclarecida. Jesus se declara que oferece sua vida espontaneamente e com liberdade perfeita: “ninguém me
tira a vida, mas por mim mesmo dela me despojo... Este
é um mandamento que recebi do meu Pai” (Jo 10,17-18).
36. A DIVINDADE DE CRISTO
A Igreja tirou das Escrituras sua fé na divindade
de Cristo com a consciência das exigências monoteístas
e dos perigos de idolatria. Ensina que Cristo é vere
259
Deus et vero homo, repeliu o Docetismo ensinado que é
“consubstancial ao Pai”, mas não faltaram ataques à fé
na divindade de Cristo, embora não negando as qualificações de Cristo, ele foi ao longo da história considerado um “quase-Deus”, através do qual Deus se revelou
de modo especial, ou um “simples homem”, através do
qual a revelação divina nos veio. O liberal Van Holk,
declara: “Sou cristão porque acredito que o Cristo é o
caminho da verdade através da vida”, mas aceitava o
Cristo só no seu aspecto humano ele “é o Emanuel, na
intencionalidade salvadora do Evangelho, que parte de
Deus”, um exímio portador da força espiritual, não é
um homem comum. Muitos admitem o Cristo como o
“Ungido de Deus”, portanto não admitem a encarnação
de Deus nele. Falam do Filho, da sua divindade, mas
sem ligação com o dogma trinitário, ou seja, Jesus não
é a segunda pessoa da Santíssima Trindade; não o têm
como “Vere Deus”.
Para o NT o Cristo é o Lógos que se fez carne, que
estava eternamente com Deus e era Deus. Para ele elevam-se hinos de louvores e os anjos o adoram. Pedro
confessa que é “Filho de Deus”, Tomé adora-o como
“Meu Senhor e meu Deus”, Paulo fala dele como “adorável na eternidade”. A comunidade apostólica expressa
adoração à sua pessoa expressa de mil maneiras a sua
incomparável exaltação e glória. Ele é: “O Verbo Eterno”;
“O Santo de Deus”, a “Luz do mundo”, o “enviado de
Deus”, o “cumprimento da profecia”. Os primeiros cristãos referem a sua encarnação, paixão, morte, ressurreição e exaltação, que ele conhece o Pai e o Pai o ama
e conhece, e quem não honra o Filho, não honra o Pai
que o enviou, que ele é o enviado do Pai, que tem a vida em si mesmo como a tem o Pai (Jo 5,26). Que ele é o
Verbo (Jo 5,36s), e tem a glória junto do Pai, antes do
mundo existir (Jo 17,5). Que desceu do céu (Jo 3,13).
260
Que é o pão descido do céu (Jo 6,32s) e que sem a fé
não se pode conhecer quem Ele é vem e de onde veio
(Jo 7,28). Que ele veio da parte do Pai (Jo 7,28s).
Portanto, o NT aponta a preexistência e sua eterna origem.: “Antes que Abraão fosse eu sou” (Jo 8,58);
ele ultrapassa as categorias do tempo. A revelação mostra portanto que Cristo é verdadeiro Filho de Deus consubstancial ao Pai, luz da luz. Ele mesmo afirma: “Eu
sou” (Jo 8,24) é sua auto-revelação, o “Eu sou” de Cristo, absoluto e sem predicado, tem a mesma força do
“Eu sou Javé” (Dt 32,39). Ele não é um mero profeta,
um super-homem; Ele é Deus: “Quem me vê, vê o Pai”
(Jo 14,9). Portanto, a divindade eterna de Cristo transparece em todo o evangelho através de seu autotestemunho. Quem ouve a Sagrada Escritura sem preconceito e com fé, não pode pensar em Cristo como um
“quase-Deus”, pois o “Eu sou” de Cristo é a expressão
de sua plena identidade divina.
Jesus se auto-proclama Filho de Deus, coisa que
para os judeus monoteistas é uma blasfêmia, um atentado contra Deus e, por isso afirmam que ele merece
morrer (cf. Jo 5,17-18; 10,33); de fato, isto o levou à
morte (Jo 19,7).
Jesus reivindicou para si a sua divindade única e
incomum, declarou-se “vere Deus” e nem os escárnios e
os sofrimentos o afastaram desta convicção. Seus atos
mostravam a sua divindade, ele de fato perdoava os pecados, prerrogativa só de Deus (Is 43,25; 44,22); ele
perdoou o pecador paralítico (Mc 2,10); ele anunciou a
João que é o Messias (Mt 11,2s) fazendo alguns se admirarem disso (Mt 9,8)
Ele é o unigênito do Pai (Jo 1,18); chama Deus de
“Meu Pai”; é portanto o Filho único do Pai, o bem amado. Portanto, a visão global da Escritura tira toda
tentativa de desvirtuar e subestimar o Cristo diante de
261
sua filiação divina, ou admitir uma Cristologia Adocianista.
A fé da comunidade primitiva não foi projeção da
própria subjetividade, mas resposta à revelação de
Cristo, pela ação do Espírito Santo, e quem nele crê é
bem-aventurado (Mt 11.6; 16,17). Ele é exemplo a ser
imitado (Fl 2,6s ; 2 Cor 8,9).A comunidade reconhece
sem a pretensão de uma “Ontologia especulativa” que
ele é Deus (Col 1,16s; 2,9; Hb 1,3). Cristo não é o quase-Deus, um genuíno representante de Deus entre nós.
Os teólogos liberais serviram-se de alguns textos
para afirmarem que Cristo é menor que o Pai, negando
assim a consubstancialidade divina de Cristo e aceitando a doutrina subordinacionista. Eles afirmaram
Cristo menor que o Pai baseando-se na frase: “Meu Pai
é maior que eu” (Jo 1,28), mesmo Cristo tendo muitas
vezes declarado a sua união com o Pai (Jo 10,30) e a
sua relação peculiar com o Pai: “Estou no Pai e o Pai
em mim” (Jo 10,38); “Quem me vê, vê o Pai”(Jo 14,15).
Cristo reconhece que foi enviado (Jo 4,34; 5,24; 5,30) e
declara-se obediente ao Pai (Jo 4,34). Declara também
que o seu alimento é fazer a vontade do Pai e que veio
em nome do Pai. Ele antes de operar milagres dava graças ao Pai. Afirmando: “Quem crê em mim, crê não em
mim, mas naquele que me enviou”. “Eu não falo por mim
mesmo, mas o Pai que me enviou, esse tem me dito o que
dizer”. Diante dessas declarações muitos tomaram estes textos para afirmar a inferioridade de Cristo em relação ao Pai, e assim acham que a divindade de Cristo
não merece consideração por motivos bíblicos. Mas estes liberais nunca valorizaram os textos sobre a revelação de Cristo, em seu conjunto, mas o tomaram isoladamente fazendo acomodações especulativas. Assim, se
consideramos que Cristo diz: “...pois o Pai é maior que
eu” (Jo 14) esse “ser maior” do Pai esta dentro de um
262
contexto especial, ou seja: do Cristo humilhado pela
paixão que irá para o Pai que o há de glorificá-lo; ressalta a sua humilhação em destaque contra a sua exaltação posterior. “Embora sendo Filho, aprendeu a obediência” (Hb 5,8), este “embora” não indica contradição
entre a divindade e a sujeição de Cristo, mas sim o reconhecimento da sua verdadeira divindade e da sua
encarnação.
Cristo veio como mediador e assumiu a carne,
sob a lei (Gl 14,4). Somente faltando à regra áurea da
interpretação, regra chamada por Orígines de “Analogia
da fé”, ou seja, de interpretar através do conjunto das
Escrituras e nunca através de fatos isolados, é que se
poderia chegar a uma visão unilateral da cristologia
liberal.
Mas se Cristo é Deus, não corre-se o risco do
monoteísmo? Os unitários afirmam que a fé na divindade de Cristo sacrifica a unidade e unicidade de Deus.
Também os judeus acusavam Jesus de blasfemo ao fazer-se igual a Deus. O monarquianismo também tentou
fazer prevalecer a unidade de Deus sem dar lugar para
a divindade de Cristo professando uma cristologia adocianista. Cristo sempre defendeu energicamente o monoteísmo, mas sempre assumiu as funções divinas,
ocupando o lugar de Deus, mas não pondo Deus de
lado; a sua dignidade não suplanta a dignidade do Pai,
ao contrário, a reivindica. Portanto para a Igreja a fé na
divindade de Cristo não pode ser desligada da fé na
Trindade.
37.
A CONSCIÊNCIA MESSIÂNICA DE CRISTO
Para a Samaritana Jesus afirma ser o Messias esperado (Jo 4,25-26), é o próprio Jesus atribuiu-se o título de Filho e Deus. (Jo 5,25 ; Mt 16,16-17; Jo 10,30-38).
263
Para muitos a idéia de sua divindade teria nascido do
entusiasmo dos discípulos, por meio de uma pretensa
ressurreição que com o tempo foi absorvida pela Igreja.
Estes afirmam que a tendência de divinizar as grandes
personalidades era muito difusa na antigüidade, basta
lembrar que os Faraós eram considerados seres divinos,
e deuses depois da morte. Também Alexandre Magno foi
divinizado e muitos Reis atribuíram a si o título de Kírios, Soer. Para os defensores da tese da atribuição da
divindade de Cristo deve-se levar também em consideração o fato de que só João afirma que Cristo é Deus.
Mas será que tem fundamento afirmar que o Cristo
foi divinizado pelos seus discípulos? Devemos afirmar
que não, pois o cristianismo desenvolveu no ambiente
judaico, ora o povo hebreu professava a fé num único
Deus ao qual ninguém podia comparar-se nem competir. "Não pronunciará o nome de Javé em vão". (Ex 20,7)
O judeu substitui o nome de Javé por "Altíssimo, Bendito”, Deus é zeloso (Ex 34,14).
Além disso o Império Romano concedeu aos judeus
certos privilégios em relação à religião, tais como o repouso sabático a dispensa do serviço militar... Neste
clima como podia nascer a idéia de Cristo-Deus? Por outro lado, jamais aconteceu na história que um hebreu
tenha adorado outro hebreu, nem Abraão, nem Moiséis,
nem Davi e nem Salomão, ao contrário, afirma-se suas
fraquezas. Por que então o obscuro carpinteiro de Nazaré que morreu na cruz, haveria de ser divinizado? Outra
consideração a ser feita ainda é que o espaço de 70 anos
após sua morte, era muito pouco tempo para transformar um falecido profeta numa divindade. Basta o exemplo de Buda que morreu em conceito de santidade, mas
que demorou aproximadamente 500 anos para ser reconhecido pelos seus fiéis. Aliás, 20 anos após sua morte,
fala-se de Cristo como Filho de Deus (ITs 1,9-10), tam264
bém a carta aos Coríntios (ICor 1,9) escrita em 57 fala
de Cristo, Filho de Deus, assim como (2Cor 1,19; 6, 1220 e Rm 5,10). São Paulo fala ainda da natureza divina
de Cristo (Fl 2,6) imagem do Deus invisível, (Cl 1,1516), Deus Salvador (Tm 2,23), Deus bendito pelos séculos (Rm 9,5).
Quem formulou por primeiro a idéia da divindade
de Cristo foram os responsáveis pela Igreja, os quais todos eram palestinenses piedosos e de personalidades
como Paulo, fariseu, educado na escola de Gamaliel...
(At 22,3). Além do mais sabemos que na Igreja existiam
divisões (ICor 1,11-12), assim como tensões, mas nenhuma contradição sobre o fato de ser o Cristo Filho de
Deus, pois esta era sempre uma verdade admitida por
todos. Por fim, no ambiente em que surgiu o cristianismo era difícil anunciar um Cristo religioso e não político,
salvador de todos.
38. AS PROFECIAS CRISTOLÓGICAS
Nos séculos anteriores a Jesus Cristo os judeus
em suas escrituras tinham uma série de vaticínios concretos, a respeito do Messias e com características especificas concernentes a Ele. Na versão do AT elaborada pelos 70 feita do hebraico para o grego e que terminou dois séculos antes do nascimento de Jesus encontram-se vaticínios messiânicos completos como lemos
hoje na Bíblia. Os judeus são os nossos arquivistas sobre a via de Jesus Cristo, e os documentos que conservam para nós remontam 15 séculos aC. São uma série
de profecias e cada uma delas descrevem um traço ou
uma circunstância do Messias vindouros, tudo convergindo para a pessoa do Messias. De fato, no Antigo Testamento a vinda do Messias foi anunciada com a nitidez
265
descrita hoje pelo Novo Testamento. Eis alguns exemplos:
O Messias virá e nascerá da estirpe de Abrão (Gn
22,18 ; 26,4); Descendente de Isac (Gn 26,4); Descendente de Jacó (Gn 28,14); Descendente da Tribo de Judá
(Gn 49,8); O descendente da Família de Davi (Sl 88).
O Profeta Ageu consolou os Judeus ao voltarem
da Babilônia afirmando que um novo Templo seria edificado e nele penetraria o Messias (Ag 2,7). Também o
Profeta Malaquias disse que o Messias viria para um
segundo Templo (Ml 3,1). Da mesma forma, Miquéias
disse que o Messias nasceria em Belém (5,2) e Isaias
predisse que o Messias doutrinaria especialmente a
Galiléia (9,1-2); Já Zacarias predisse a venda do Messias por 30 moedas.
Também os Salmos afirmaram que o Messias seria despojado de sua túnica e esta dividida pelos soldados (Sl 21,19); que morreria com os pés e mãos transpassados pelos cravos (Sl 21,17); que na cruz sofreria
suplício da sede com a língua seca como telha (SL 2,16);
que receberia uma esponja embebida em vinagre (Sl
68.22); que seria escarnecido (SL 21,7).
Foram previsões concretas no tempo e no espaço
e não simplesmente conjecturas. Foram profecias feitas
a distância de séculos; predições de profetas que receberam o dom do vaticínio contra a própria vontade (Am
3,8; Jr 20,7-9). Estas profecias foram todas cumpridas
na pessoa de Jesus Cristo, o Messias esperado. Jesus é
da estirpe de Abraão e descendente de Isaac. Da estirpe
de Isaac descendeu Jacó, da estirpe de Jacó descendeu
a tribo de Judá, e da família de Davi descendeu Jesus o
Messias, tudo como foi previsssto pelos profetas. Com o
Messias deixou de existir o cetro de Judá como anunciara Jacó, e em Belém como previu Miquéias, nasceu
Jesus. Ele entrou no segundo Templo como previu A266
geu. Templo que depois foi destruído como disse Malaquias. A Galiléia foi o lugar principal de suas atividades;
lá Ele acolheu a adúltera, a samaitana, Zaqueu, Madalena e o ladrão... Ele foi vendido por 30 moedas como
disse Zacarias sendo apontado como malfeitor e condenado à morte, sendo açoitado, esbofeteado e cuspido,
como predisse Isaias oito séculos antes. Foi despojado
de sua túnica, a qual foi dividida; teve seus pés e suas
mãos cravados; teve sede e foi saciado pelo vinagre. Portanto, as profecias a respeito dele são de rigorosa exatidão, tão rigorosas que parecem cópias exatas do original histórico; são tão categóricas e ricas em detalhes
que jamais teriam sido fruto da mente humana.
A vinda do Cristo foi o cumprimento do AT (Lc
24,25ss). O AT é um livro repleto de Jesus Cristo e o NT
não pressupõe uma cissão do AT (2Cor 3,14s), ele é
completado pelo AT. No AT vemos relacionado o nascimento de Cristo com várias profecias, dentre as quais:
Is 7,14; Os 11,1; Zc 13,7; Is 53,9; em Cristo cumpre-se
o AT (Ml 3,1; Sl 109,8; Mq 5,1; Sl 34,21; Sl 22,19).
Embora alguns trechos da Sagrada Escritura não
digam respeito à linha messiânica diretamente, não podemos afirmar que há partes da bíblia desligadas da
cristologia. Não podemos ver na bíblia apenas uma enumeração desconexa de testemunhas que apontam
para o Cristo, pois cairíamos na superficialidade ou
perderíamos a visão cristológica do AT. Ou o AT está
denso de Cristo, ou os autores do NT aplicaram o AT a
Cristo arbitrariamente, cometendo uma falsificação histórica.
O NT proclama o cumprimento da promessa da
vinda do Messias (Lc 4,21; At 13,32-33; Hb 1,1). O NT
está cheio do AT não como evocação histórica, mas como plenitude de revelação, que completa e ilumina o
AT. O NT retira o véu que encobre o AT e torna harmo267
niosa a figura do Rei-Messias. Rejeitar o AT, faria de
Cristo uma figura totalmente desligada do background
em que Deus e sua justiça atuava alternativamente
com sua ira, seu amor, sua santidade e com as culpas
humanas.
39.
A UNIÃO HISTOSTÁTICA
A fórmula do Concílio de Calcedônia (451) ensina
que Jesus tem duas natureza (divina e humana) unidas
entre si hipostaticamente, ou seja, que subsistem numa
só e mesma pessoa. A natureza é essência na medida
em que é princípio do agir; a natureza humana só existe
em pessoas; é a pessoa que faz subsistir a natureza
humana. Mas em Jesus a subsistência da natureza humana não era devida a uma pessoa humana, mas sim, à
segunda Pessoa da Santíssima Trindade; esta se tornou
pelo mistério da encarnação, o sujeito responsável pelas
ações de Jesus. A segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que desde eternidade subsistia na natureza divina
com o Pai e o Espírito Santo, passou, pela encarnação, a
subsistir na natureza humana em Maria Virgem, não
perdendo contudo o que é de Deus (poderio infinito, ciência universal...). Este tipo de união entre a natureza
humana e a natureza divina chama-se hipostática. O
catecismo da Igreja católica (§ 470) afirma que com encarnação a natureza humana foi assumida não absorvida: a natureza humana de Cristo pertencia à Pessoa Divina do Filho de Deus, que a assumiu. Tudo o que ele é
e tudo o que ele faz como homem, tem por sujeito uma
das pessoas da Santíssima Trindade.
Sendo Jesus verdadeiro Deus e verdadeiro homem, compreende-se que, antes da encarnação no seio
de Maria, Ele já existia consubstancialmente com o
Pai; ele preexistia. Para o mundo grego, onde foi inici268
almente dirigida mensagem cristã, era inconcebível a
noção de um Deus que entra do mundo da história dos
homens, pois os deuses não se misturavam com o homem; disto entendemos por que os antigos cristãos encontraram dificuldades para aceitar a autêntica noção
da encarnação e procuraram dar outras explicações para o “escândalo” do Deus feito homem. Para a filosofia
grega a divindade, para não se contagiar, devia permanecer alheia à história dos homens. Entretanto a doutrina oficial da igreja através da profissão de fé afirma que
Jesus não é simplesmente um homem exemplar ou um
representante de Deus, mas antes de tudo é o próprio
Filho eterno de Deus que por obra do Espírito Santo se
encarnou no seio da virgem Maria e se fez homem, fazendo-se semelhante a nós em tudo, menos no pecado,
sendo ele definitivamente o Deus- conosco, o único mediador entre Deus e os homens (1Tm 2,5).
De todo fundamento dessa doutrina cristológica
fica afirmado que o Filho de Deus subsiste eternamente
no mistério de Deus, distinto do Pai e do Espírito Santo;
afirma-se assim a verdade da Santíssima Trindade e
também que o Espírito Santo procede eternamente do
Pai do Filho. “Como um só é o verdadeiro Deus... Pai e
Filho e Espírito Santo: três pessoas, mas uma única essência... o Pai que não procede de ninguém, o Filho que
procede somente do Pai, e o Espírito Santo que procede
igualmente de ambos, sempre sem início e sem fim” (Concílio do Latrão-DS 800).
A doutrina da Igreja afirma que Jesus é verdadeiro
homem e em particular os evangelhos testemunham e
provam esta verdade. Os testemunhos bíblicos a respeito da verdadeira humanidade de Jesus são bastante claros e numerosos: “O Verbo se fez homem e habitou entre
nós” (Jo 1,14). Jesus assumiu a carne humana tornando-se homem, portanto assimilando a precariedade e a
269
fraqueza humana; com o seu nascimento do seio de Maria foi-lhe dado carne humana (Gl 4,4). Jesus experimentou o cansaço, a fome, a sede, sofreu dores, morreu... (Lc 2,40; Mt 4,2; Jo 4,6;).
Em Jesus cada uma das duas naturezas exercem
o que lhe é próprio, em comunhão uma com outra; ao
Verbo realiza o que é próprio do Verbo; e a carne, o que
é próprio da carne. Esta verdade a teologia e explica como sendo comunhão de propriedades, ou seja, que em
Jesus cada uma das duas natureza é a fonte de suas
atividades próprias. A natureza humana come, dorme,
cresce em sabedoria e a idade, sofre, morre e não só
compartilha o pecado dos homens. A natureza divina
realiza as atividades próprias de Deus, como os milagres, o perdão dos pecados... Visto que a natureza divina
não se reparte, devemos dizer que em Cristo o Pai e o
Espírito Santo estão presentes, pois a única natureza
divina também é deles. Todavia o fato de encarnar-se, a
natureza humana recebida de Maria não é realizada pelas três Pessoas, mas somente pelo Filho.
Assim, temos que todas as ações de Cristo é da
segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Quando as
mãos de Cristo tocavam um doente para curá-lo, era a
pessoa do Filho que o tocava mediante a sua humanidade. As ações de Jesus resultantes da comunhão de propriedades são chamadas teândricas (Théos = Deus;
Aner, Andrós = homem) ou também divino-humanas.
Desta forma Jesus tinha ações exclusivamente divinas
que ele executava com o Pai e o Espírito Santo (Jo 5,17)
ou em sentido estrito, onde a sua natureza humana cooperava como instrumento da divindade (Mc 2,5; Jo
20,22). Em decorrência disso a sua natureza humana se
tornou causa eficiente da salvação e da santificação dos
homens; as graças divinas que o Filho de Deus comunicou à humanidade não foram realizadas somente na na270
tureza divina, mas também na natureza humana de Jesus.
Por causa da união hipostática decorre-se a impecabilidade de Jesus; pois se Jesus pudesse pecar deveremos dizer que Deus podia e pode pecar, o que é um
absurdo. Jesus foi absolutamente fiel Pai, mas isto não
quer dizer que ele não podia ser tentado como homem
(Mc 1,13) e ser submetido a duras provas entre as quais
aquela da agonia no horto das Oliveiras (Mt 26,38s). Ele
foi aprovado em tudo como nós, menos no pecado (Hb
4,15), mas nem por isto pecou porque foi obediente ao
Pai, e se tivesse pecado não teria sido o mediador da
nossa salvação. Jesus era livre e tinha possibilidade de
fazer o mal, portanto de desobedecer ao Pai, mas não o
fez porque a liberdade é um meio e não um fim; ela nos
possibilita a praticar a vontade de Deus de modo responsável e espontâneo e sem coação. Liberdade de arbítrio não é a arbitrariedade e nem necessariamente cair
em pecado. Jesus foi livre e usou da sua liberdade para
se entregar generosamente à vontade do Pai (Lc 22,4144).
40. JESUS SABIA QUE ERA DEUS
Para responder essa pergunta uma comissão teológica internacional composta de teólogos de várias partes do mundo nomeados pelo papa com o objetivo de estudar questões candentes da teologia publicou um texto
com esse teor: “A vida de Jesus atesta a consciência de
sua relação filial com o Pai. O seu comportamento e as
suas palavras, que são as de servidor perfeito, implicam
uma autoridade que supera a dos antigos profetas e que
pertencia a Deus, que ele chamava Meu Pai . Ele tinha
271
consciência de ser o Filho único de Deus, e neste sentido,
de ser Ele mesmo o Deus”.
“Jesus sabia qual era a finalidade da sua missão:
ao anunciar o Reino de Deus e torná-lo presente na sua
pessoa, nos seus atos e na suas palavras, a fim de que o
mundo fosse reconciliado com Deus. Livremente ele aceitou a vontade do Pai: dar a própria vida pela salvação de
todos homens; ele sabia ter sido enviado pelo Pai para
dar a própria vida em favor de muitos”
“Para realizar a sua missão salvífica, Jesus quis
reunir os homens em vista do Reino e convocá-los em torno de si. Em conseqüência, Jesus realizou fatos concretos
que, tomados em seu conjunto, só podem ser interpretados como a preparação da igreja que havia de ser constituída definitivamente por ocasião dos acontecimentos da
Páscoa e de Pentecostes. Era, por conseguinte, necessário
afirmar que Jesus quis fundar a Igreja.”
“A consciência que Cristo tem, de ser enviado pelo
Pai para a salvação do mundo e para a convocação de
todos os homens no povo de Deus, implica, de modo misterioso, o amor a todos homens, de tal modo que todos
podemos dizer: o Filho de Deus me amou e se entregou
por mim (Gl 2,20).
É convicção dos teólogos que o evangelista João
não apresentou uma elaboração teológica da fé nas comunidades, ou seja, não utilizou o gênero literário midraxe da literatura judaica, onde se atribuía aos grandes
personagens da história de Israel palavras e ações anacrônicas que refletiam as convicções próprias dos autores do midraxe (Jonas, Tobias, Ester). João não escreveu
um midraxe teológico, mas apresentou os atos e ensinamentos de Jesus tais e quais. No final do século I eram muitos os cristãos principalmente provenientes do
judaísmo que negavam o mistério da encarnação e con272
sideravam Jesus como o Messias prometido apenas como um homem. Face a isso João qualificou de anticristo os que negam a realidade da encarnação, isto é, da
divindade de Jesus (1Jo 2,22-23 ; 4,2-3 ; 2 Jo 7 )
Santo Irineu, discípulo de Policarpo, o qual foi discípulo de João, diz que o evangelho foi escrito para combater a heresia de Cerinto, o qual negava o mistério da
encarnação, e também para combater os Ebionitas que
consideravam Jesus como um homem. O próprio João
diz, que escreveu estes sinais que se acredite que Jesus
é o Filho de Deus (Jo 20,30-31). Com isso João procurava fortificar a fé dos batizados e convencê-los de que Jesus era verdadeiramente Deus.
O mesmo dirá Mateus (9,6) quando Jesus curou o
paralítico e o próprio João (14,11) ao afirmar: "Credeme, eu estou no Pai e o Pai esta em mim. Crede ao menos, por causa destas obras." Para João, Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus e o retrato que ele traçou de
Jesus, de seus atos e de suas palavras é substancialmente conforme a realidade histórica de que Jesus era
Deus e sabia que era. João tira esta convicção da vida,
das ações e dos ensinamentos de Jesus e escreveu para
ensinar aos cristãos esta verdade.
Nos primeiros cinco séculos do cristianismo não se
questionou se Jesus era Deus, pois a convicção era de
que sim. Porém, o questionamento veio sobretudo quando se começou a colocar o problema da ignorância de
Cristo, diante das controvérsias cristológicas do Arianismo e do Nestorianismo. Contribuiu para isso o texto
de Marcos (13,32) no qual Jesus diz que ninguém conhece o dia e a hora do juízo final, mas somente o Pai. A
partir deste texto os arianos começam a negar ser Jesus
igual ao Pai. Da mesma forma, os Nestorianos começam
negar que Jesus e a segunda pessoa da Trindade sejam
a mesma.
273
Diante deste texto surgiram duas interpretações: a
primeira é de que Jesus, enquanto homem, não ignorava
o dia do juízo, mas ignorava-o enquanto enviado de
Deus porque não fazia parte das realidades que ele tinha que revelar e a segunda enfatiza que Jesus enquanto homem não conhecia a data do último dia, mas conhecia enquanto Deus. Portanto, neste trecho de Marcos, Jesus revelava o seu conhecimento humano.
Para os Padres, a Igreja era passiva que Jesus era
um com o Pai não enquanto homem, mas enquanto a
sua natureza divina, em vista disso no ano 553 o Papa
Vigílio condenou os Nestorianos afirmando que se alguém disser que Cristo ignorou os acontecimentos futuros ou do juízo final, ou que Jesus só pode saber que lhe
revelou a divindade habitando nele como em outro (outra pessoa) seja Anátema (Ds 419). Por isso, Jesus conheceu tudo porque é Deus, e como homem possui esta
ciência divina em razão da unidade de sua pessoa divina, Deus feito homem, ou seja, Jesus enquanto homem
em virtude da ciência divina conhece o que Deus conhece.
No ano 500 São Fulgênico respondeu a um certo
Fernando de Cartago que lhe propusera a questão: Será
que a alma de Cristo tem conhecimento pleno da divindade que assumiu? Será que o Filho de Deus por sua
humanidade, conhece sua divindade da mesma maneira
que o Pai, o Filho e Espirito Santo se conhecem? São
Fulgêncio respondeu sim à primeira pergunta e não à
segunda . A alma de Cristo sendo criada tem um conhecimento de criatura; Deus incriado tem conhecimento
infinito . Jesus em sua humanidade conhece tudo que
Deus conhece, mas não com a mesma profundeza infinita, assim Jesus com sua inteligência humana conhece
plenamente sua divindade, mas não com plenitude idêntica à sua inteligência divina idêntica à sua natureza
274
divina. Por isso, Jesus sabia que era Deus, mas esta ciência tinha fonte imediatamente na sua inteligência
humana. Gregório Magno (600), por fim afirma que Jesus conhecia o dia do juízo final em sua natureza humana, mas não a partir de sua natureza humana.
Os teólogos procuraram responder a pergunta que
os Padres deixaram sem solução: Como a ciência divina do Verbo é comunicada à humanidade de Cristo? Para os Padres, Jesus tinha plenamente à sua disposição o
conhecimento, a ciência propriamente divina do Filho de
Deus. Para eles, esta ciência se exprimia por uma boca
de homem e em conceitos e idéias humanas produzidos
por uma inteligência humana, ou seja, esta ciência divina transitava pela inteligência humana. Mas como? Os
teólogos da Idade Média tentarão resolver distinguindo
três níveis de conhecimento humano em Jesus: O conhecimento adquirido que todo homem possui; o conhecimento que têm os eleitos no céu com a visão beatifica;
a ciência infusa do tipo dos profetas que é transmitida
pela revelação divina.
Que Jesus tenha possuído como todos os homens
uma ciência adquirida que progredirá com a idade, Lucas 2,52 sublinha. Quanto a visão de Deus como os eleitos do céu, os textos de João (1,18 ; 6,46 ; 8,38) conferem. Quanto a ciência infusa, Jesus declara-se um profeta (Mt 13,57 e Lc 13,33). Portanto, se Jesus sabe que é
Deus, só pode sabê-lo por sua inteligência humana. Para São Tomás isto se dá mediante a visão beatífica que
os eleitos gozam nos céus, onde ele vê Deus, sua unidade, a Trindade das Pessoas Divinas, e vê-se também
unido à segunda pessoa da Trindade.
Os teólogos do século XX puseram a questão: Qual
era a maneira pela qual Jesus sabia que era Deus? Para
responder, afirmaram que se Jesus tivesse só a ciência
275
adquirida, comum a todos os homens, Jesus seria Deus,
mas não o saberia.
Devemos admitir que alguns obstáculos dificultam
a revelação do mistério de Jesus e dentre estes salientamos os seguintes: A mentalidade religiosa de então
que considerava como essencial a obediência à lei de
Deus promulgada por Moisés, e pouco inclinada a refletir sobre Deus e sua natureza; A mentalidade religiosa
moldada no embate com a idolatria e para a qual tudo
que não coincidisse com Dt 6,4 era idolatria;
A mentalidade religiosa estruturada pelo pensamento escatológico apocalíptico para a qual o fim de
tudo era eminente. Em vista destes pontos a revelação
do mistério de Jesus devia ser progressiva e passada
pelo filtro da mentalidade dos discípulos. Além do mais,
Jesus embora sendo Deus, não se identificava com
Deus e também confessava o monoteísmo da fé de Israel
(Dt 6,4; Mc 12,29). Por isso, numa primeira etapa Jesus,
de sua pessoa e de seus ensinamentos revelará não tudo
aquilo que poderia ser compreendido, mas tudo o que
podia ser aceito e assimilado sem erros, considerando a
mentalidade de então. Num segundo estágio ele formará
o grupo de discípulos, os quais atraídos pela sua personalidade, se encontrarão num pré-julgamento favorável
que permitirá aceitar algum ensinamento que lhes pareça chocante e que ainda não compreendam. Num terceiro estágio selecionará dentro desse grupo dos discípulos
alguns privilegiados aos quais poderá confiar uma doutrina mais elevada.
Podemos portanto, precisar que Jesus primeiramente procurara ensinar publicamente através de suas
pregações e já aqui encontrou resistência sendo acusado
de blasfemador pelo povo porque se fazia Deus (Mt
26,65; Mc 14,64; Lc 22,71). A blasfêmia consistia em
fazer-se como Deus, e em perdoar os pecados (Mc 2,7;
276
Mt 9,3). Na literatura bíblica os reis pagãos eram acusados de usurpar as prerrogativas de Deus (Ez 28,2; 2Mc
9,12), o que caracterizava algo muito sério. Se com isso
não bastasse, Jesus coloca-se acima de Moisés com o
direito de modificar a própria lei (Mt 5,21-27.31.33-38).
Ele utiliza a expressão: “Eu porém vos digo...”, a qual
não tem nenhum paralelo no AT. Jesus não afirma como
Moisés em Dt 6,1 “são estes os mandamentos, as leis e
as ordens de Javé...” Nem como os profetas: “Assim fala
Javé...”, mas dispõe da lei e da tradição, interpretandoa, corrigindo-a, igualando-se a Deus. Ele exige que o
prefira em relação a seus pais e aos próprios filhos (Mt
10,37).
Portanto, quando Jesus falava a um vasto auditório
manifestava que tinha com Deus um vínculo de proximidade, superior aos outros enviados e que dispunha de
um poder que pertence a Deus como o de perdoar os
pecados. É de se notar que somente uma vez Jesus se
designará como o Filho de Deus (Mc 12,6-8).
A progressiva revelação da divindade de Jesus ele o
fez partindo das multidões, de fato os evangelistas servem-se da a expressão "dizia às multidões", "dizia aos
discípulos". (Mt 11,7; Mc 7,14; Lc 5,3; 7,9; Mt 9,37;
10,1; 15,32). Na primeira parte de seu ministério na Galiléia, Jesus dedicou-se principalmente às multidões e
somente depois dirige-se aos discípulos (Mc 13,32; Mt
24,36; Mt 11,25-27; Lc 10,21-22). Nas palavras dirigidas
somente aos discípulos revela o mistério de sua relação
com o Pai, tendo com Ele uma relação de intimidade e
de proximidade, uma proximidade acima dos anjos do
céu, pois Ele conhece o Pai como o Pai conhece o Filho.
Entre Ele e o Pai existe uma intimidade que não tem nenhuma analogia na relação dos homens com Deus, pois
chama Deus de Abá (Mt 11,25).
277
Por fim um grupo de privilegiados contam com a revelação íntima da divindade de Jesus, a exemplo dos
três discípulos no Monte Tabor. Experiência que depois
se fortificou com a experiência da ressurreição, por isso
após a Páscoa nas comunidades cristãs, a atitude do fiel
para com Jesus ressuscitado era idêntica à do judeu em
relação a Javé; Jesus é invocado como Senhor, e o nome
do Senhor aplica-se não mais a Javé, mas a Jesus (At
2,21). O fiel se converte ao Senhor Jesus e não mais a
Javé (At 9,35), crê nele como se crê em Javé (At 3,36).
Jesus é o Senhor perante o qual todo joelho deve dobrar
(Fl 2; 6,11). Portanto se reconhece a divindade de Cristo, e não só a divindade, mas também a sua preexistência (cf Fl 2,6-7; 1Cor 8,6; 2Cor 8,9). Desta forma, a fé na
preexistência e divindade do ressuscitado, é presente
nas comunidades cristãs, em menos de 20 anos após a
Páscoa. Ressaltamos que nessa época começava a evangelização do mundo pagão, e o influxo dos cristãos de
origem pagã era desprezível, logo a idéia da divinização
de Jesus nasceu no meio judeu. Ora, o meio judeu era
contra uma semelhante doutrina, portanto tal doutrina
só pode ter vindo de Jesus que a ensinou e que Deus
confirmou com a ressurreição. A crença proclamada após a ressurreição sobre a divindade de Jesus foi corroborada pela vinda do Espírito Santo (Jo 16,12-13;
14,25-26), pois a semente depositada por Jesus caiu
num solo não apto para acolhê-la e fazê-la germinar,
para tanto foi necessário a Páscoa e o Pentecostes (DV
19).
41. JESUS POSSUÍA TODAS AS PERFEIÇÕES
O Concílio de Calcedônia afirmou em Jesus uma
só pessoa dotada de todas as perfeições da natureza divina, porém por volta do ano 450, Temístio começou a
278
ensinar que Cristo não somente assumiu as fraquezas
corporais, mas também que sofreu as limitações do espírito e por isso foi sujeito à ignorância como todos os homens. Disto surgiu a corrente chamada agnoeta (agnoia
= ignorância). Para fundamentar essa teoria afirmou-se
que Jesus disse ignorar a data do juízo final (Mc13,32).
Diante disso o papa S. Gregório I procurou afirmar que
Jesus como homem, sabia a respectiva data do juízo final, mas não sabia pelas luzes da natureza humana, e
sim, por revelação divina.
No século XIII, teólogos como Santo Alberto Magno
(+1280), São Boaventura (+1274) e São Tomás de Aquino
(+1274), atribuíram a Jesus um amplo saber. Jesus com
efeito, além da onisciência que possuía como Deus, terá
tido em sua natureza humana a ciência da visão, própria dos justos que gozam no céu e que consiste na intuição de Deus face a face; a ciência e difusa que os
místicos recebem e que revelava a Jesus todos os desígnios do Pai e o desfecho de sua missão; e por fim a ciência adquirida derivada do uso progressivo dos sentidos e do raciocínio de Jesus.
Os teólogos admitem que Jesus é possuidor da
ciência experimental, onde Ele como homem possuía
as faculdades de conhecimento comuns a todos homens
e delas fazia uso: “Jesus crescia em sabedoria...” (Lc
2,52), e possuía também a ciência infusa esta não adquirida pelo estudo ou pela experiência, mas por comunicação direta com Deus; com isso Jesus devia conhecer
o desígnio do Pai e o desfecho de sua missão: “Eu falo o
que vi junto do Pai” (Jo 8,38). Podemos dizer que Jesus
tinha o plano de Deus ora placidamente em sua consciência, ora imerso no fundo do seu inconsciente; ele utilizava a ciência infusa segundo as necessidades da pregação; podia também impedir, de conformidade com a vontade do Pai, que certos temas se tornassem presentes na
279
sua consciência e assim se explica as palavras de Jesus
a respeito do juízo final (Mc 13,32). Não era do desígnio
do Pai que Jesus nos revelasse a data do juízo final, por
isso Jesus dizia ignorá-la, não fazendo o uso consciente
da noção que a respeito Ele trazia em seu inconsciente.
Além destas duas ciências, alguns admitem que Jesus
tinha também a visão beatificação, mas esta não influencia sobre a sensibilidade de Jesus para não excluir as
possibilidades da dor e do sofrimento no momento da
agonia.
Mas, sendo Jesus verdadeiro Deus e verdadeiro
homem, será que como homem em sua consciência psicológica ele sabia que era Deus? Os teólogos respondem
que Jesus tinha uma só pessoa; que era divino e que
encarnando-se, sua pessoa nada perdeu do que era seu
e do que possuía eternamente, por isso Jesus conhecia
tudo o que Deus conhece. Em suma, Jesus sabia que
era verdadeiro homem, que vivia como verdadeiro homem e também sabia que subsistia pela subsistência da
segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Os textos do
Novo Testamento mostram que Jesus sabia ser o Filho
de Deus; e isto manifestou-se pela primeira vez aos 12
anos quando Ele foi encontrado no Templo (Lc 2,46-49).
42. O MISTÉRIO CRISTOLÓGICO COMO UNIDADE
DA PESSOA DE CRISTO
Não basta dizer que nos encontramos diante de
um mistério da encarnação, pois a revelação de Jesus
não suprime o mistério, mas o acentua. Cristo encarnado revestiu-se da humildade mais desconcertante e
mais distanciada da glória divina; Paulo afirma que
Cristo assumiu nossa carne pecaminosa. Deus revelou-se em Cristo encobrindo-se sob o véu da carne. O
280
Cristo na carne é de fato, o Cristo incógnito que obriga
à decisão da fé. Cristo encarnado-se ligou-se aos que
não possuíam nobreza; a sua vinda na carne é uma revelação paradoxal (Barth), pois ao revelar-se, escondese.
Cristo é “vere Deus et vere homo”, e o sujeito deste mistério é a sua pessoa. Por isso Calcedônia definiu
que a união pessoal das duas naturezas, humana e divina de Cristo se realizou “asynchytôs, atreptôs, adiairetôs, achoristôs”, ou seja: “inconfundível, imutável, indivisível e inseparável”; ambas conservando seus respectivos atributos. Sendo duas naturezas não se admite
duas pessoas (hipostasis), mas um único sujeito de atribuição para todas as ações de Cristo. Em Cristo portanto, são duas naturezas unidas hipostaticamente, ou
seja, duas naturezas na unidade de uma só Pessoa.
Existe portanto uma autêntica e indissolúvel união entre ambas as naturezas na Pessoa Divina; a humanidade é penetrada pela divindade. Por isso em Cristo dá-se
“communicatio idiomatum” (comunicação dos atributos
ou propriedades), ou seja, a comunicação das propriedades humanas ao Filho, à Pessoa. Com isso tanto a
natureza divina como a humana de Cristo conservam
seus atributos respectivos (para a divina a infinitude, a
onipotência, a onisciência, a onipresença e para a humana a corponeidade, a carnalidade, a transitariedade,
a passividade, a mortalidade... Todos os atos de Cristo,
são atos da única Pessoa do Verbo encarnado, assim a
obra salvífica de Cristo é realizada segundo suas duas
naturezas, não é portanto “Teopasionismo” afirmar as
dores e a morte de Deus vivo Jesus Cristo devido a hipostática. Da mesma forma Maria é “Theotókos” como
definiu Éfeso e reafirmaram Calcedônia e Constantinopla, e não “Christotókos” como afirmava Nestório com
sua propensão em separar as duas naturezas de Cristo,
281
tendo Maria somente mãe da natureza humana de
Cristo.
A “communicatio idiomatum” não é algo estático e
abstrato, mas uma realidade dinâmica e viva do Verbo
e de todas as suas iniciativas. Com a união hipostática
os atributos de ambas as naturezas de Cristo convém à
Pessoa de Jesus Cristo. “Embora Deus e Homem, Cristo
não é dois, mas um único Cristo... em virtude da unidade de pessoa” (Atanásio).
43. A NATUREZA HUMANA E NÃO A PESSOA HUMANA DE CRISTO
A personalidade (Anhypostasia) de Cristo prejudica a autenticidade da natureza humana de Cristo?
Será que a natureza humana de Cristo não precisa de
hipóstase, ou seja, de personalidade própria? Será que
ele não é despojado de um elemento essencial qual é a
Pessoa?
Althaus afirma que a “Anhypostasia” é um atentado contra a autêntica unidade de Cristo, contra a veracidade da encarnação e deixa inexplicado o seu ego
humano que crê e reza, que é tentado e agoniza; coisas
todas impróprias do Verbo.
Barth defendendo a “Anhypostasia”, afirma que
Deus é o único sujeito de encarnação, a única Pessoa Agente. Tanto católicos como protestantes defendem a
“Anhypostasia” e entendem-se que a natureza humana
de Cristo não pode estar num só momento fora do Lógos, assim a realidade da natureza humana é a realidade do Senhor agente. Sem a “Anhypostasia”, afirmase a dupla existência em Cristo, como Lógos e como
homem, o que leva inevitavelmente ao docetismo ou ebionismo. Pela “Anhypostasia” queremos afirmar que a
carne do Cristo existe pelo Verbo, sendo este o próprio.
282
O homem Jesus Cristo tira a sua existência exclusivamente da existência do Filho eterno de Deus; com isso
não se quer que a natureza humana de Cristo não tenha individualidade; a carne de Cristo não é impessoal,
mas foi elevada na existência pessoal do Filho de Deus
(Tomás de Aquino, Calvino, Barth...). Assim, a humanidade de Cristo não foi desvalorizada mas elevada.
A natureza humana de Cristo é individual com
suas propriedades, porém sua humanidade não possuía nele (Cristo) uma existência própria e pessoal ao lado
do Verbo, mas foi preparada pelo Espírito Santo para a
união com o Verbo, para que ela pudesse representar
no Verbo encarnado toda humanidade e que Cristo
pudesse ser o mediador de Deus para os homens. Portanto, a natureza humana de Cristo formada em Maria
e de Maria, não existia em momento algum por si mesma, mas foi unida com o Filho, desde o primeiro instante da concepção.
Com a “Anhypostasia” não se desfigura a estrutura-homem de Cristo, mas explica-se a união do “vere
homo” ao Verbo. A doutrina da “Anhypostasia” é fiel à
Calcedônia (Cristo vere Deus et vere homo). A “Anhypostasia” é um repudio a toda forma de adocianismo e de
nestorianismo. Ela significa: “aquilo que não subsiste
por si e segundo a sua própria personalidade, e “enhypostasia” aquilo que subsiste em outra hipóstase, ou
participa da personalidade do outro” (Quenstedt).
44. O SABER E A FÉ DE JESUS
Até pouco tempo os teólogos pensavam que Jesus
em sua vida terrena sabia tudo, tanto o presente, o passado como o futuro. Conhecia todas as ciências, técnicas, etc. Conhecia todos os pensamentos e nada ignora283
va, e quando demonstrava não saber algo é porque disfarçava para poder nos ensinar. Hoje com os estudos se
afirma que Jesus foi um homem completo e como todo
homem não conhecia tudo, mas sempre esteve em atitude de busca de aprendizagem, e que teve dúvidas, tentações, etc. A humanidade de Jesus não foi uma comédia,
ele cresceu em sabedoria (Lc 2,52). Assumiu com sua
encarnação a lei do amadurecimento humano, todas as
conseqüências com exceção do pecado (Hb 4,15). Se
não fosse assim sua morte não teria sido verdadeira.
Ele viveu sua humanidade mais profunda que nós, pois
viveu a intimidade com o Pai. Jesus teve dúvidas, tentações, ignorou o dia do juízo, teve medo da morte, foi
instruído pelo seu Pai, viveu sua cultura, portanto ele
passou por um processo histórico de aprendizagem. Tudo isso porque tinha a consciência humana, não era cópia de sua consciência divina.
Contudo, Jesus teve em sua vida momentos particulares de experiências excepcionais de abertura ao mistério das coisas, recebeu o conhecimento profético para
desenvolver sua missão, teve um conhecimento único
do mistério de Deus. Assim, afirmamos que Jesus tinha
dois tipos de saber: um adquirido na cultura de sua época e outro profético que o capacitava de cumprir sua
missão salvífica.
Alguns não admitem que Jesus tivesse fé, pois pensam que estava sempre vendo Deus como os bemaventurados no céu. Contudo, Jesus foi um autêntico
crente em Deus. A carta aos Hebreus (12, 1b –2a) fala:
"Corramos com perseverança para o combate que nos
cabe, de olhos fitos no autor e consumada fé, Jesus". Para esta afirmação, Jesus é o modelo perfeito dos crentes, aquele que levou a fé à perfeição, experimentando-a
nas vicissitudes de sua vida. Com sua fé ele viveu a obediência e a esperança no dia a dia.
284
Certa vez os discípulos pediram-lhe para curar um
epiléptico dizendo: “Se podes tem piedade para conosco
e nos ajuda" e Jesus disse: "Se podes ... tudo é possível
para quem crê" (Mc 9; 19,22- 23). Fé que é confiança em
Deus, na sua onipotência (Mc 5,21-43; 7,24-30; Lc
17,11-15). Fé para Jesus é entrega incondicional ao Pai,
aceitação de seu plano, confiança e abandono nele.
45.
OS MILAGRES DE JESUS
Jesus operou milagres? Antes de tudo para poder
falar em milagres, a ciência requer o cumprimento de
três condições: 1. Fato real, ou seja, é preciso que o fato
seja averiguado com exatidão, pois freqüentemente alguns relatos tidos como milagres não passam de fantasia popular. 2. Fato real que as ciências naturais contemporâneas ao fato não possam em absoluto explicar, ou seja a Igreja aceita apenas os milagres que são
passados pelo crivo da análise crítica objetiva e severa
da ciência, para aceitar um milagre. 3. Fato histórico e
inexplicável pela ciência ocorrido em contexto que
possa merecer a resposta Deus, ou seja, não basta ser
um fato portentoso, pois o milagre sinal, deve ser inserido no âmbito de diálogo entre Deus e as criaturas. Muitos fatos portentoso podem ser explicados pela parapsicologia, principalmente quando se trata de doenças funcionais ou nervosas, resultantes de bloqueios psicológicos.
Os milagres realizados por Jesus eram a autenticação de sua pregação (Mt 11,2-6; 20,27s). Os milagres
ocupam um lugar importante nos evangelhos e os ensinamentos de Jesus estão ligados a estes sinais. Somente
no evangelho de Marcos os milagres representam 47%
do seu total. Isto quer dizer que seus milagres não tives285
sem uma base histórica, não poderiam merecer tanta
consideração pelo evangelista e sendo que os milagres
foram realizados perante as multidões, e se estes não
fossem fatos reais, teriam sido facilmente desmentidos,
contudo nem mesmo os inimigos de Jesus podiam negar
que ele fazia obras portentosas.
Na verdade os milagres de Jesus vêm atestados
por várias fontes ou testemunhos, há portanto o critério
de múltiplo testemunho. Os milagres não podem ser
reduzidos às concepções do judaísmo, pois o modo como
Jesus efetuava os milagres contrastava com modo de
proceder dos profetas do Antigo Testamento, pois estes
realizavam feitos extraordinários, mas sempre em nome
de Javé; ao contrário Jesus fazia os milagres em seu
próprio nome; há portanto o critério da descontinuidade. Os milagres de Jesus estavam em perfeita harmonia com a sua pregação e todos seus gestos ou palavras
estavam em íntima conformidade com a sua época e o
seu ambiente lingüistico, assim como com o ambiente
geográfico, social, político e também com os ensinamentos fundamentais referentes ao Reino messiânico; há
portanto o critério de conformidade. Diante do conjunto de feitos que Jesus realizava, havia uma explicação
que iluminava-os e justificava-os. Basta constatar o entusiasmo do povo por Jesus, o reconhecimento de que
ele era profeta, a fé dos apóstolos na sua menssianidade, a decisão dos judeus de eliminar Jesus porque seus
milagres punham em xeque seus prestígios, a pregação
dos apóstolos que dava ênfase aos seus milagres, a fim
de apresentá-lo como o Messias, Filho de Deus; portanto
há o critério de explicação necessária. Por fim, a maneira como os evangelistas apresentam os milagres de
Jesus é simples, Jesus não fazia milagres para representar um show; há portanto o critério do estilo de Jesus.
Estes cinco critérios, aplicados pelos críticos aos mila286
gres de Jesus, levam a concluir em favor da autenticidade histórica dos mesmos.
Sabemos que durante o seu ministério Jesus realizou muitos milagres e por isso a imagem que os evangelhos apresentam dele é inseparável de uma moldura
taumatúrgica feita de curas, expulsões de demônios,
multiplicações de pães e peixes, ressuscitações... Embora isso, a tradição extra-evangélica silencia sobre a atividade taumatúrgica de Jesus, nem mesmo Paulo faz
referências. As fontes judaicas, embora atestam a lembrança prodigiosa de Jesus, são vistas com reservas por
serem tardias e a autenticidade destas é discutida.
Quanto a credibilidade histórica das narrativas
dos milagres de Jesus, deve-se recorrer a metodologia
da crítica histórica e literária. Diante desta a afirmação
do exorcismo de Jesus (Mt 12,28) no contexto de discussão com os judeus remonta com grande probabilidade a Jesus. Quanto à resposta de Jesus aos discípulos de João Batista (Mt 11,3-6): “Ide e contai a João o
que vós ouvis e vedes: os cegos recuperam a vista...”, é
possível que seja uma redação que reflita o modo de
pensar e exprimir da comunidade cristã ao representar
a figura do Messias como: “Aquele que deve vir” (Is
26,19; 29,18-19; 35,5-6;61,1).
Em conclusão, os evangelhos dão fé da existência
de uma tradição na qual se conservam algumas palavras de Jesus que pressupõem a sua ação taumatúrgica
sob forma de exorcismos e curas, contudo a documentação assegura o mínimo de credibilidade histórica de
seus milagres.
Muitos falam dos milagres de Jesus como invenções
nascidas com tendência de atribuir fatos poderosos a
personagens do passado, ou devido a mentalidade miraculista daquele tempo. Porém naquele tempo a tendência de atribuir milagres as personagens famosos não
287
era tão intensa, basta lembrar que a João Batista e ao
Mestre da Justiça dos essênios não foram atribuídos
nenhum milagre. A Igreja narra os milagres sem o sensacionalismo dos apócrifos, além do mais, Jesus negou
fazer a milagres espalhafatosos, negou publicidade, não
pedia divulgação e nem recomendava a divulgação. Ele
de seus milagres curou o surdo-mudo fora da multidão,
assim como o cego de Betsaida (Mc 8,23-26 ). Na ressurreição da filha de Jairo não permitiu a multidão estar
presente (Mc 5,39ss).
Portanto, os milagres de Jesus não são fatos da
fantasia popular e não são de narrações fantásticas. Para Marcos os milagres são gestos da força do Filho de
Deus, para Lucas são obras de misericórdia, para Mateus têm valor didático e para João importa o seu significado (multiplicação dos pães, transformação da água
em vinho ...).
Os milagres nos evangelhos estão bem fundamentados historicamente, pois eles se encontram em toda
tradição evangélica e são narrados com a costumeira
simplicidade dos evangelhos. Estes estão relacionados
com a atividade de Jesus, a qual sem os milagres tornase incompreensível porque a multidão o seguia embora
não compreendendo sua mensagem (Mt 11,16-24). Sem
os milagres e sem a ressurreição fica incompreensível a
fé da Igreja primitiva em Cristo. Além disso fonte não
cristã como a do historiador Flávio Josefo fala de Jesus
como "Autor de Obras Extraordinárias” como um tramaturgo. De João Batista ele não fez nenhuma menção da
extraordinariedade, portanto, não havia o costume de
atribuir milagres a todas as personalidades religiosas.
No Talmud da Babilônia lê-se: "Jesus de Nazaré foi pregado na cruz, na vigília da Páscoa, porque praticava o
curanderismo e transviava Israel", a mesma acusação
que faziam os judeus. Também Justino por volta do ano
288
160 conta em seu diálogo com Trifão que "os judeus ousavam chamar Cristo de Mago". O que importa é que os
milagres tiveram valor para Jesus... “os cegos recuperam
a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados, os
surdos ouvem, os mortos ressuscitam..." (Mt 11,3-6).
Os milagres são para Jesus sinais de que o Reino
de Deus já chegou, são sinais do amor salvífico, da compaixão. Os evangelistas narram que Jesus curava por
compaixão (Mc 1,41), como quando multiplicou os pães,
ou no fato da ressurreição do filho da viúva de Naim (Lc
7,13). Eles manifestam o amor de Deus. São sinais dos
tempos messiânicos, pois Ele realiza milagres em virtude
do Espírito de Deus (Mt 12.28), e não reconhecer isso é
para Jesus blasfêmia contra o Espírito Santo (Mt 12,31).
Jesus declara-se com o poder de perdoar e demonstra
isto operando milagres (Mc 2,10-11). As obras que ele
realiza dão testemunho do Pai que o enviou (Jo 5,36 ; Jo
10,27).
Para muitos milagres de cura deve-se excluir a hipótese de sugestão por se tratar de doenças orgânicas,
como a cura do leproso (Mc 1,40s) ou dos dez leprosos
(Lc 17,12), assim como também do cego de nascimento
(Jo 9,1), do surdo (Mc 7,32), da mulher do fluxo de sangue (Mc 5,25s). As curas do servo o Centurião (Mt 8,513) e do filho do funcionário real ( Jo 4,46-54) se realizaram à distância e imediatamente.
Entre os milagres tantos milagres realizados por
Jesus temos particularmente a ressurreição da filha de
Jairo (Mc 5,21-43) do filho da viúva de Naim (Lc 7,1117) de Lázaro (Jo 11,17-44), onde tornou-se impossível a
sugestão. Há também os milagres na natureza como da
tempestade (Mc 4,35-41) da pesca milagrosa (Lc 5,1-11)
da mudança da água pelo vinho no casamento (Jo 2,111), da multiplicação dos pães, etc...
289
Muitos chegaram a pensar que os milagres de Jesus são pura ficção, que foram inventados com finalidades apologéticas. Não resta dúvidas que muitos milagres
tiveram também uma conotação apologética, contudo,
mesmo os estudiosos mais críticos não duvidam que os
milagres são um dos aspectos mais autênticos da atividade de Jesus. Ele realizava prodígios que um mortal
não podia realizar. Ele curava leprosos, cegos, coxos,
mudos, surdos, endemoniados, paralíticos... Os milagres
de Jesus eram a prova de que a sua missão de anunciador do novo Reino estava se manifestando e com isso,
ele revolucionava os velhos esquemas e tornava crível
sua doutrina. Os milagres que Jesus realizava suscitava
admiração e até medo; ele ressuscitou mortos, multiplicou pães e peixes, dominou a natureza e por isso foi até
acusado, como por exemplo no livro Talmude, de ser um
mago e que praticava a feitiçaria.
46.
JESUS PERANTE SUA MORTE
O que podemos dizer sobre o sentido da morte de
Jesus? Será que Ele tinha consciência de sua morte?
Pode-se concluir pelas narrações dos Evangelhos, que
para Ele o seu trágico fim não constitui um final inesperado de sua missão, ele tinha consciência que isto era
necessário, basta analisar os Evangelhos que freqüentemente utilizam neste contexto o verbo “deî”, que quer
dizer “precisa; é necessário” (Mt 16,21; Mc 8,31 ; Lc
9,22; 17,25; 22,37; Jo 3,14; 12,24; At 17,3). Também os
apóstolos utilizaram a afirmação “O Messias devia sofrer
e ressuscitar”, e que tudo tinha acontecido segundo as
escrituras “Katà Tàsgraphàs (I Cor 15.3s; At 17,25).
O projeto de Jesus ficou marcado pela conclusão
dada na sua morte de cruz. Sua morte escandalosa na
290
cruz fazia parte do plano do Pai, ele “devia” passar pelo
sofrimento para entrar na glória. Deus “entregou” o seu
Filho em sinal de amor e penhor pelo perdão e reconciliação dos homens; é a suprema revelação de seu amor
redentor. Com sua morte Jesus mereceu para os homens o perdão. Mas se era esse o plano de Deus, Jesus
tinha consciência de seu fim violento? Pode-se dizer que
sim devido às suas posições e opções antilegais e anticonstitucionais diante dos judeus (observância do sábado, pureza legal). Quem transgredia o sábado segundo a lei mosáica devia ser condenado à morte (Ex 31,14;
35,1-2; Nm 15,32-36). Esta era a mesma condenação
para quem praticava magia (Lv 20,27), e os dirigentes
judeus consideravam a atividade exorcista de Jesus
como obra demoníaca (Mc 3,22). Também a sua interpretação da lei fazia com que fosse suspeito, assim como a sua familiaridade com os pecadores. Por isso, para
os defensores da ortodoxia o comportamento de Jesus
configurava-se como grave e um perigoso desvio religioso. Além disso a sua ameaça contra o Templo não passou desapercebida pelo Sinédrio e entrou no processo
Romano (Mc 14,58s). Sua oposição aberta aos dirigentes judeus faz-lhe prever um processo penal, assim como também a morte violenta de João Batista era outro
indício, já que era opinião do povo que suas atividades
estavam vinculadas às de João no Rio Jordão (Mc 6,1416; 8,28). Tanto é verdade que ao saber da morte violenta de João, Jesus retirou-se na clandestinidade (Mt
14,13) e até os fariseus lhe avisaram do perigo que corria (Lc 13,31).
O fato é que Jesus na véspera de sua morte, exprimiu através de um contexto convival com os discípulos a sua firme adesão que inspirou toda a sua atividade
histórica, ou seja, o Reino de Deus (Mc 14,25; Lc
22,16). Diante da perspectiva de sua morte Jesus revela
291
aos discípulos sua paixão, morte e ressurreição (Mt
16,21; Mc 8,31; Lc 18,31). Jesus é consciente que veio
para dar a sua vida para o resgate de muitos (Lc 22,26),
uma alusão ao servo sofredor de Isaías (Is 52,13-53,12),
assim, a sua morte em um sentido redentor. Desta
forma Jesus enfrenta a sua morte sob o pano de fundo
dos profetas rejeitados e mortos, como conseqüência da
infidelidade de Israel, não como um acidente desagradável, mas como um sinal do pecado na história do povo de Deus. João vê a morte de Jesus como opção de
fidelidade e auto-doação como o pastor que dá a vida
por seu rebanho (Jo 19,11-14). Jesus vê em sua morte o
cumprimento da vontade salvífica do Pai, por isso Ele
deve cumpri-la (Lc 18,31; 22,37). Por isso, Jesus teve
consciência do seu destino em relação às suas opções
pelo Reino.
Com que esperança Jesus enfrentou sua morte?
Ele tinha ressuscitado uma jovem, um jovem e Lázaro,
Ele que compartilhava a fé na ressurreição, a qual começou fazer parte do credo hebraico desde o período
dos Macabeus (Dn 12,2; II Mc 7,1-23), com sua morte e
ressurreição Jesus tem esperança que o Reino de Deus
se concretiza (Mc 14,25; Lc 22,30), pois toda a sua vida
foi vivida em cumprimento do Reino de Deus, eis a razão de Jesus dizer na ceia : “Isto é meu corpo”, o pão,
dom da vida, e o sangue derramado, confirmam o valor
de sua doação realizada em situação externa, com sua
morte violenta.
Será que a morte de Jesus teve uma conotação
política? Tácito, historiador Romano do século II, menciona a condenação de Jesus por Pilatos sob o reinado
de Tibério (Annales XV, 44). Também Flávio Josefo nas
Antigüidades Judaicas do fim do século I, refere à condenação de Jesus. Fora dos 4 evangelhos o mais antigo
credo cristão afirma que Jesus “morreu por nossos pe292
cados segundo as escrituras, foi sepultado e ressuscitou
segundo as escrituras”. (I Cor 15,3-4), também encontramos em Gálatas 3,1-13, e Hebreus 13,12 ou ainda
em Atos dos Apóstolos 2,23; 10,39; 13,27-29, onde diz
que Jesus padeceu fora da porta da cidade.
Todos os relatos da paixão incluem acréscimos e
retoques redacionais feitos pelos evangelistas com fins
apocalípticos dando assim com cada um dos evangelistas uma fisionomia particular. Desta forma, o perfil de
Marcos é de tipo catequético e perenético: vê Jesus
Messias e Filho de Deus que deve ser seguido no caminho da cruz. Já o de Mateus é cristológico e eclesial;
coloca Jesus como o Justo inocente, o Messias e Filho
de Deus rejeitado pelo povo de Israel. Lucas tem uma
perspectiva histórica e salvífica, com sabor parenético e
apresenta Jesus como o Salvador e Mártir, modelo dos
cristãos. João por fim, vê na paixão a “glória” de Deus, a
exaltação de Jesus como Rei e Messias. Portanto, embora a preocupação catequética e parenética, assim como
aquela apologética e polêmica, tinham sido introduzidos
nos relatos nada desabona que a crucificação de Jesus
é um fato histórico por causa das autoridades judaicas
(Sinédrio).
Os evangelistas relatam que havia uma conspiração contra Jesus, de fato os sinópticos relatam o plano
dos sumos sacerdotes de prender e matar Jesus
(Mc10,1-2; Lc 22,1-2; Mt 26,3; Jo 11,47), tudo isso capitaneado por Caifás (Jo 11,47-48). Enquanto Jesus
agia só na Galiléia, feria a suscetibilidade dos fariseus,
mas quando começou agir em Jerusalém os sumos sacerdotes tiveram que tomar providências. De fato Jesus
agia ali com mais cautela e até procurou a clandestinidade (Jo 10,40), afinal Jesus tinha já entrado em Jerusalém aclamado por admiradores provenientes da Galiléia, fato que teve um matiz popular nacionalista e mes293
siânico, acontecimento este que se deu numa festa anterior à Páscoa, ou seja, na festa dos Tabernáculos ou
das tendas, quando se celebrava com procissão ao
Templo com “bastões enfeitados, ramos verdes e palmas” nas mãos (II Mac 10,7; 12,13). Foi nesta ocasião
que Jesus afrontou os vendedores do Templo. A partir
disso a decisão de matar Jesus foi tomada, e Jesus neste ínterim passou a hospedar-se na casa de qualquer
amigo de confiança (Mc 11,11-19), daí o papel de Judas
para capturar Jesus. Contudo a retribuição de 30 moedas não foi o fator preponderante da atitude de Judas,
embora os evangelistas colocam o fato como cumprimento das escrituras como uma advertência aos membros das comunidades, porém é verdade que Jesus incluiu no seu plano homens livres, sem ceder à sua mentalidade nem fanatizá-los, a tal ponto que um dos seus
íntimos podia separar-se dele e traí-lo.
A conspiração contra Jesus levou à sua prisão; de
fato o relato da paixão inicia com sua prisão (Mc 14,43;
Jo 18,3; Lc 22,52) acompanhados de Judas, dos guardas, dos sumos sacerdotes e dos fariseus. Naturalmente
os soldados de que fala João não seriam enviados por
Pilatos que nem ao par dos fatos estavam (Jo 18,29-30),
mas sim eram os guardas do Templo, ou adidos ao serviço do Sinédrio. O episódio do corte da orelha de Malco (Jo 18,10) explicita a condenação de Jesus a auto
defesa armada, e a atitude de Jesus de livremente aderir à vontade de Deus (Mt 26,54). Dificilmente a comunidade teria inventado este episódio, assim como também a deserção dos apóstolos.
Na seqüência da prisão desencadeou-se o processo de Jesus, o qual foi condicionado a influências de
caráter religioso, espiritual e ideológico. Alguns autores
defendem a plena responsabilidade dos judeus neste
caso e Pilatos um mero instrumento manobrado pelos
294
dirigentes judeus, outros invés, defendem que a única
autoridade competente responsável foi Pilatos e não os
judeus. Alguns admitem que a acusação a Jesus foi de
caráter político, e por isso a participação aos judeus teria sido apenas informal em vista de entregar o réu a
Pilatos, contudo outros sustentam a iniciativa dos judeus na prisão e realização do processo tendo o sinédrio
como tribunal supremo na sua condenação, e o papel
de Pilatos teria sido de dar execução ao plano dos judeus, acusando-o ao governador, visto que o Sinédrio
não tinha poder de decidir penas capitais.
Naturalmente olhando nas fontes dos evangelhos
temos que levar em conta a perspectiva catequética e
apologética e também polêmica, contudo é consenso de
todos os autores e historiadores é que Jesus, Fundador
do movimento cristão, foi condenado à morte de cruz
em Jerusalém sob a administração de Pilatos por volta
do ano 30 da era cristã (Tácito). Da mesma forma os
historiadores aceitam como seguro o título INRI (Jesus
Nazareno Reis dos Judeus) na cabeça da cruz (Mc
15,26), e por fim os historiadores também aceitam que
a autoridade judaica desempenhou um papel no processo que conclui com a condenação de Jesus.
De fato é indubitável a presença de Anás e Caifás,
a reunião do conselho dos sacerdotes, escribas e anciãos, o interrogatório de Jesus e depois entrega-o a Pilatos, Judas que devolve o dinheiro aos sumos sacerdotes
e se enforca e os judeus que acusam Jesus diante de
Pilatos, Jesus é interrogado, é enviado a Herodes e depois devolvido, a proposta de sua troca por Barrabás, o
povo pede a crucifixão de Jesus, a sua flagelação e entrega para ser crucificado e a zombaria dos soldados.
O que se pode concluir que o Sinédrio, como supremo tribunal judaico sob administração de Roma, tinha o direito e a competência para tratar as causas ca295
pitais, mas não podia executar a sentença, pois esta era
de direito do governador, por isso o Sinédrio reuniu-se
de manhã para procurar testemunhas e provas de acusação a Jesus. O episódio da destruição do Templo anunciada por Jesus, não é prova contra Jesus, este Logion remonta a Jesus, mas foi lido numa interpretação
cristã face as acusações judaicas aos cristãos, do não
cumprimento da profecia (Mc 14,58). Jesus não responde aos falsos testemunhos, pois seu comportamento se
pauta no modelo do “justo”, do servo sofredor (Is 53,7).
Também a pergunta do sumo sacerdote: “Tu és o Cristo,
o Filho de Deus Bendito?” (Mc 14,61) teve uma formulação cristológica elaborada pela tradição cristã e a conclusão de que Jesus ao dar a resposta blasfemou, também não condiz com a verdade já que se esperava o
Messias, portanto é uma releitura de todo o “processo”,
o que significa que todo o relato do processo seja uma
criação do evangelista, visto que no processo existem
dados atestado pela tradição tais como: a presença de
Jesus depois de sua captura diante do Sinédrio, a reunião do Sinédrio pela manhã e a decisão e levar Jesus a
Pilatos, portanto a conotação de um “processo judaico”.
Se houve um processo judáico, necessariamente
houve também um processo romano para condenar Jesus o qual, foi entregue a Pilatos, coisa que também Tácito confirma. Teria Pilatos ratificado a condenação do
Sinédrio ou teria articulado um outro processo que encerrou-se com a condenação? Certamente Pilatos teria
levado em conta os aspectos políticos da acusação do
Sinédrio para proceder um interrogatório suplementar
chegando à conclusão de que Jesus teria merecido a
condenação capital. Diante de Pilatos as autoridades
judaicas acusavam Jesus de sublevador, impedindo o
povo de pagar o tributo a César e afirmando ser Rei (Lc
23,2). Todo o motivo da condenação está então na sua
296
pretensão messiânica como ameaça para a soberania de
Roma na Palestina.
Os evangelistas relatam que Jesus é inocente desta acusação com sabor político, e Pilatos mesmo deu-se
conta deste complô por “inveja” (Mc 15,10) e por isso
por três vezes confirma que não encontrava nada que
merecia dar-lhe a morte (Lc 23,22) e até a proposta de
trocá-lo por Barrabás indica que Jesus não representava ameaça ao governo de Roma. Quando Pilatos propõe
a troca de Jesus por Barrabás, os chefes sublevam o
povo para convencer Pilatos de não fazer isso; por fim
Pilatos, não que emitiu uma sentença, cede à pressão
do povo (Mc 5,15; Mt 27,24-25).
Será verdade esta versão dos evangelistas sobre o
processo de Jesus perante Pilatos? Sabemos algo de Pilatos segundo fontes provenientes de Flávio Josefo em
suas obras “A guerra judaica” (75-79 dC) e “Antigüidades Judaicas” (93-94 dC), as quais o mencionam entre
os anos 26 a 36, o qual logo no início de seu governo
provocou a reações dos judeus com atitudes escassas
de sensibilidade política, assim como mandando introduzir em Jerusalém na calada da noite medalhões com
efígies do Imperador que faziam parte das insígnias militares, violando a tradição religiosa judaica e o estatuto
da cidade e depois de dar demonstração de sua força
mandou retirar as insígnias.
Também Folin em sua obra “Legatio ad Caium”
descreve que Pilatos mandou expor no palácio de Herodes uns escudos dourados que traziam referências ao
culto do imperador, o que suscitou a reação imediata
dos judeus que pediram-lhe a remoção ameaçando-lhe
que mandariam uma delegação de protesto a Roma.
Diante disto Pilatos mandou retirar os escudos. Portanto, Pilatos era de natureza inflexível, arrogante e duro,
temia um recurso dos judeus com medo que viesse à
297
tona suas violências, torturas, rapinos, crueldades, execuções. Ele fora um ex-militar da ordem eqüestre enviado por Roma numa região quente que requeria tato e
capacidade política, porém ele era ambíguo, um homem de duas caras, subordinado, submisso e servil para com o Imperador e superiores; chamado para Roma
sob ordem do legado da Síria, Vitélio viajou sem nenhuma objeção. Era incapaz de ir ao encontro do povo
judaico, se bem que mantinha uma certa harmonia com
os grupos sacerdotais do Templo, como provam a construção do aqueduto de Jerusalém e a permanência de
Caifás no cargo de Sumo Sacerdote durante toda a sua
administração.
O perfil do processo contra Jesus relatado pelos
evangelhos não diverge muito a não ser na sua intenção
catequética e apologética. Pilatos, frágil e com medo de
ser chantageado e denunciado a Roma, então aceitou a
acusação de cunho religioso-político contra Jesus, por
ser cioso de seu poder, mandou executar Jesus, embora
a proposta de trocar Jesus por Barrabás ou enviá-lo a
Herodes marcam o seu estilo de procurar em querer livrar-se de situações embaraçosas.
Consolidado o processo, partiu-se para a execução da crucifixão e morte, a qual era precedida pela flagelação, onde o condenado era despojado e açoitado até
sangrar com o “flagelo”, o qual era provido de duas correias de couro grossas e largas tendo nas pontas duas
bolas de chumbo ou ossinhos de carneiro. A flagelação
entre os judeus era limitada a 39 golpes que laceravam
o corpo e debilitavam o organismo, não raro o condenando desmaiava. Juntamente com a flagelação os soldados zombaram de Jesus diante do motivo de sua
condenação: “Rei dos Judeus”. Por isso eles organizaram uma cena de investidura real colocando sobre Jesus um manto púrpura, sinal de realeza, e cingiram-lhe
298
a cabeça com uma coroa de espinhos imitando a coroação real e por fim imitaram a homenagem imperial com
a saudação “Salve , Rei dos Judeus” (Mc 15,16-11).
O episódio da burla da dignidade real de Jesus
foi transcrito em sentido cristológico e proposto com intenção parenética; seu senhorio é o anti-poder. Contudo
este episódio como outras foram relidos em chave cristológica e catequética o que não prejudica a credibilidade histórica.
Normalmente o condenado carregava a trave
transversal da cruz (o “patibulum”) até o lugar da execução onde se encontrava o tronco central da cruz, o
“stipes”. A execução devia acontecer com o máximo de
publicidade e em lugar ao alcance de todos, por isso escolhia-se lugares, tais como estradas, montes, anfiteatros, como em Roma no Monte Esquilino, e levava-se a
“floresta de cruzes” com um espetáculo macabro dos
abutres a comerem os cadáveres (Horácio). Da mesma
forma em Jerusalém havia o Gólgota, onde estavam fincados os postes para a crucifixão. O fato de Cirineu ter
ajudado a Jesus carregar a trave da cruz é verídico tendo em vista sua extrema fraqueza, o que prova também
a sua morte sobrevinda em poucas horas na cruz. Cícero chama a cruz do suplício mais “cruel e atróz”. O máximo e o vértice das penas infligidas a um condenado à
morte (In verrum XV 2,5.165.168.169).
Este tipo de condenação infame tinha chegado
aos romanos através dos cartigineses, mas era conhecido também pelos persas e fenícios. Para os catigineses
esta pena era reservada somente para os chefes militares e políticos culpados de revolta e traições, mas entre
os romanos era reservado para os delinqüentes das
classes humildes, os estrangeiros e os escravos. No período de agitação social e revoltas civis a cruz era empregada como instrumento de repressão, isto era muito
299
aplicado nas províncias do Império, em particular na
Judéia. Flávio Josefo e documentos de Qumrân confirmam que a crucifixão era aplicada antes dos romanos já
entre os asmorreus, mas foi com a presença militar de
Roma que as crucifixões se intensificaram na Judéia
culminando nos anos 66-7. Disto fala Flávio Josefo: “Os
judeus eram flagelados e, depois de terem padecido toda
sorte de suplício, antes de morrer, eram crucificados diante das muralhas (Bell V, 11,1 “Os prisioneiros capturados a cada dia eram cerca de 500 e mais, a tal ponto
que, devido ao número, faltavam espaço e cruzes para
as vítimas”. Somente Varo no ano 4 aC, crucificou nos
arredores de Jerusalém 2.000 rebeldes judeus.
Em 1968 foi descoberto em Giu’atha – Mitvtar,
perto do Monte das Oliveiras, os restos de um crucificado num cemitério da época, onde os ossos de um jovem
de 24-28 anos de altura 1,67 m que fora crucificado,
tinha os calcanhares ainda atravessados por um prego
de ferro de 17 cm, os pés foram pregados com um só
prego e uma tabuinha de acácia separava a cabeça do
prego do tornozelo e a tíbia direita tinha sido quebrada,
como golpe de misericórdia.
Pregada na cruz a pessoa vivia uma lenta agonia
entre os espasmos musculares e os sintomas de sufocação, por isso a morte vinha por asfixia quando o condenando não tinha mais forças para soerguer-se apoiando-se nos calcanhares pregados. Além do suplício, a
morte na cruz para os judeus era objeto da maldição de
Deus (Dt 21,22-23), a morte na cruz era a dessacralização radical da pessoa humana. O aspecto ignominioso da morte de Jesus na cruz é nomeado pela provocação dos transeuntes (Mc 15,29-32).
Os evangelistas sobrepõem a este cenário horripilante o juízo do Senhor (Mc 15,33; Mt 27,51-53) com a
ruptura do véu do Templo, a proclamação do centurião:
300
“Este é o Filho de Deus”, a presença amiga de Maria
Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, Salomé, a
Mãe de Jesus e o irmão de sua Mãe, Maria de Cléofas e
de João, o discípulo que Jesus amava (Jo 19, 25-26).
Constatada a morte de Jesus sobre a cruz, alguns
procuraram sepultar o seu corpo, por isso os quatro evangelistas relatam a sepultura de Jesus feita por José
de Arimatéia em seu próprio túmulo acompanhado de
algumas mulheres e de Nicodemos (Jo 19,39). A narrativa revela vestígios da releitura cristã numa chave catequética e apologética, com intuito de responder as
contestações da ressurreição de Jesus, afirmando que
Ele tinha mesmo morrido (Mc 15, 44-45).
Os corpos dos condenados eram deixados sobre a
cruz até que o cadáver fosse consumido por animais
selvagens, ou em caso de decomposição eram jogados
numa fossa comum. Porém, a legislação romana previa
também a entrega do corpo aos parentes contanto que
tivesse constatado a morte e fosse feito o pedido oficial.
A iniciativa da deposição e sepultamento do corpo
de Jesus foi de José d Arimatéia, um membro do Sinédrio, um homem bom que se tornou discípulo de Jesus. Os evangelhos dizem que o corpo foi envolvido num
lençol e deposto no sepulcro (Mt 27,59-60) e João salienta a quantidade de mirra e aloés levada por Nicodemos. O sepultamento foi às pressas por causa do repouso sabático.
Mateus lembra a iniciativa dos sacerdotes, chefes
e fariseus em pedir que Pilatos mandasse guardar o sepulcro de Jesus até a 3º dia por motivo de perigo de
furto do corpo pelos discípulos, os quais poderiam depois fazer a propaganda da sua ressurreição. Com a autorização de Pilatos os chefes dos judeus puseram selos
ao sepulcro e piquetes de guardas (Mt 27,62-66). O evangelista lembra ainda o desmaio dos guardas no mo301
mento da ressurreição e a tentativa de silencia-los com
suborno por parte dos dirigentes, naturalmente tudo
isso é intenção apologética para refutar a interpretação
de alguns judeus sobre a ressurreição de Jesus não ter
acontecido, contudo esta tentativa apologética de Mateus não foi totalmente inventada porque nos meios judaicos podia ser facilmente desmentida; ela reflete a intenção dos judeus de quererem mandar vigiar o túmulo.
Podia Jesus entrever o seu fim violento? Sim, em
vista da situação de suas opções de posições antilegais e
de confronto com a mentalidade judaica a propósito do
sábado e da pureza ritual. Conforme a Legislação Rabínica, transgredir o sábado merecia a morte. A mesma
condenação era para o blasfemador e para quem praticasse magia. A obra de Jesus era considerada demoníaca (Mc 3,22). Sua atitude era um grave desvio religioso
que valia-lhe o título de falso profeta, blasfemo. Jesus
tinha consciência de sua morte e deu um significado a
ela como sendo o profeta rejeitado (Lc 23,32s; Mc 12,19). Jesus se vê também como servo sofredor "o Filho do
Homem não veio para ser servido... e para dar a vida
em resgate..." (Mc 10,43-45). "Podeis beber o cálice que
bebo ou receber o batismo com que sou batizado?" (Mc
10,38)
47. O SIGNIFICADO DE SUA MORTE
Jesus ressuscitado para a comunidade é Jesus no
culme de sua doação na cruz. Para Paulo o que importa
é Cristo crucificado ( ICor 2,2) , o anúncio de Jesus ignomioso, maldito (Dt 21,23) ex-comungado foi escândalo
e loucura (ICor 1,22-23). Jesus sofreu o mesmo destino
dos profetas e ele mesmo reconheceu o seu destino (Lc
13,33). Nesta perspectiva Jesus morreu na sua legítima
302
missão, morreu pelos nossos pecados conforme o credo
de Paulo (ICor 15,3), ele carregou como servo os pecados, por isso a crucifixão está inserida na história da
salvação. Sua morte foi desígnio divino e não condenação (Mc 8,31), e este desígnio é para a salvação dos
homens, pois ele veio não para ser servido, mas para
dar a sua vida (Mc10,45). Seu corpo imolado, seu sangue derramado é em favor de muitos (Mc 14,24), isto é,
pelos pecados; sua morte tem caráter expiatório.
A expiação no mundo helenístico era o esforço do
homem, mediante o sacrifício, para influenciar a divindade, a fim de torná-la propícia, mas para a Sagrada
Escritura expiar é sinônimo de libertar os pecados, é
Deus quem expia como fala João (I Jo 4,10; 2,2 ; Hb
2,17) e em Jesus crucificado o homem encontra o perdão, a comunhão com Deus. Jesus não é um bode expiatório que substitui a nós, mas a solidariedade; ele fezse maldição, pecado e pobreza para dar-nos a riqueza
(Gl 3,13 ; IICor 5,21). Jesus morreu por nós para satisfazer a justiça divina ofendida, mas no sentido de que só
ele sem pecado pode realizar eficazmente a salvação e
estabelecer a unidade com o Pai. Ele foi colocado como
instrumento de propiciação com seu sangue (Rom 3,25).
O propiciotório era a tampa da Arca da Aliança onde
Deus perdoava ao povo seus pecados e que no dia da
expiação era aspergido com sangue.
Em conclusão afirmamos que na comunidade primitiva a reflexão sobre Jesus não é de tipo filosóficateológica , mas de fé. O ponto de partida é a relação atual com Jesus glorificado, profissão de fé que se traduzia em cantos, hinos, confissões de fé, doxologias... Não
é também uma Cristologia do tipo antológica, isto é, não
dava atenção para quem é Cristo em si mesmo, em seu
ser, mas é soteriológica, ou seja, vê o sinal salvífico particularmente na sua morte e ressurreição. O Helenismo
303
teve uma reflexão mais filosófica, mais voltada ao ser
de Jesus (Fl 2,6-11; Cl 1,15-20) ; Jo 1,1-18). Vê o Cristo
em total obediência à missão divina e sua relação com
o Pai. Naturalmente toda esta proclamação de fé em
Cristo tem um determinado aspecto de vida terrena de
Jesus como fundamento, como critério da própria interpretação da fé.
Naturalmente não podemos falar da divinização
progressiva de Jesus, um ato semelhante não se explica
no judaísmo. É inconcebível Paulo, judeu, divinizar outro judeu vivido poucos anos antes dele e além disso
morto na cruz. Os judeus recusavam divinizar o homem,
entretanto a Jesus o adoravam. Porque ele é Deus desde
sempre e isto foi manifestado pela ressurreição. É a contemplação do ressuscitado que abriu a fé à compreensão
daquilo que ele é desde a eternidade, a partir, porém de
sua figura histórica. Isto demorou tempo para ser explicitado, pois Jesus que era distinguido de Deus Pai, vem
compreendido como Filho, igual a Deus.
48. OS RESPONSÁVEIS PELA MORTE DE JESUS
Antes de considerar quem foram os responsáveis
pela morte de Jesus é necessário afirmar que Jesus não
foi um homem conservador do status quo; ele sempre foi
um homem de ruptura com sistema estabelecido, um
inconformista. Embora fosse um homem religioso, um
bom judeu, não poupou críticas à sua religião, contra as
leis que oprimiam as pessoas sobretudo os pobres. Ele
não foi amigo dos poderosos e nem da classe dominante.
Ele sonhava com o seu país livre da opressão e por isso
certamente não estava contente com o domínio dos romanos. Podemos dizer que ele foi muito mais do que um
304
agitador social; na verdade ele foi um pacifista, pregou
a paz, desmascarou as injustiças e a opressão. A sua
revolução não se baseava na força bruta ou nas armas,
mas se fundamentava em Deus que não faz acepções de
pessoas; uma revolução que devia começar por dentro
da pessoa. Sua revolução consistia na prática do amor,
“o maior tem de servir o menor”. Sua revolução era tão
profunda que procurava dar vez e voz para aqueles que
a sociedade desprezava: os doentes, os possessos, os
leprosos, as prostitutas, os mendigos, os pecadores...
era uma revolução completa e não apenas das estruturas sociais e políticas, mas também visava tocar o profundo da personalidade humana. Uma revolução que
incluía todos. Jesus propunha uma mudança radical na
sociedade judaica.
Quem são os responsáveis pela morte de Jesus?
Para responder a esta pergunta temos duas testemunhas provenientes de fontes não cristãs que indicam os
responsáveis pela sua morte. Tácito, um historiador,
referindo-se à repressão aos cristãos de Roma no ano
64, a atribui a Nero, o qual quis encontrar um bode expiatório para descarregar sobre este a acusa que o povo
fazia de haver provocado o incêndio em Roma. O historiador registra a existência em Roma do “Exitiabilis superstitio” dos cristãos, atribuindo a sua origem a um
certo Cristo, “que no tempo do Império de Tibério, foi levado à morte por ordem do procurador Pôncio Pilatos”.
Outra fonte não cristã é deve-se ao hebreu Flávio
Josefo, o qual atribui a Pilatos a condenação e morte de
Jesus, mas acrescenta que Pilatos recebeu uma denúncia por parte de alguns personagens que ele define como os “maiores dentre os nossos”.
Estas informações correspondem àquelas dos Evangelhos onde um papel determinante é atribuído aos
sumos sacerdotes, os quais juntamente com os “anciãos
305
do povo” depois de uma discussão com Jesus quanto ao
comércio no pátio do Templo. Nesta Jesus os acusa de
opositores do desígnio de Deus e preanuncia-lhes a
transferência do cultivo da “vinha”, que indica a herança espiritual de Israel, para um povo que a frutificará
(Mt 21,21-45). Depois deste incidente certos grupos começaram a pensar como prendê-lo, tanto é verdade que
fizeram uma reunião no palácio do Sumo Sacerdote Caifás para procurarem encontrar meios para prendê-lo e
matá-lo (Mt 26,3s).
Quem eram esses grupos? Eram os sacerdotes de
Israel que formavam uma casta fechada e que se passava por descendência. Os sumos sacerdotes que formavam a suprema autoridade, uma autoridade religiosa ao
lado da autoridade civil. No tempo de Jesus o sumo sacerdote era nomeado e até deposto pelas autoridades
romanas, conforme os interesses políticos do trono. Assim, este era um grupo muito influente de sacerdotes de
alto nível que aspiravam tornarem sumos sacerdotes.
O Evangelho de Mateus (27.62) coloca a responsabilidade pela decisão em matar Jesus, aos sumos sacerdotes e “anciãos”, e o evangelista Marcos (11,18.27)
acrescenta ainda os escribas. João (7,32; 11,47.57) coloca também os fariseus. Portanto, eram um grupo de
poder, de prestígio e de ricos, que exercitavam influência na vida dos hebreus. Muitos desses faziam parte do
Sinédrio, uma espécie de órgão de governo e ao mesmo
tempo da corte suprema de justiça.
Os escribas ao lado dos sacerdotes dedicavam ao
culto, ensinavam e interpretavam a lei. Os fariseus,
formavam uma espécie de partido religioso e até político; neste grupo encontravam também sacerdotes e escribas, que formavam a aristocracia religiosa pelo zelo
na fé e na aplicação da lei e pelo rigor de conceito de
vida.
306
Mas qual foi a participação do Sinédrio e do Governador Romano?
Sabemos que Jesus um personagem na sociedade
de Israel, era tido como perigoso, mas isso não dava
direito de eliminá-lo sem as conseqüências; precisava
proceder seguindo as normas da lei e aqui entram em
ação estes dois órgãos.
Para autoridade do Sinédrio era dada autoridade
cujas decisões tinham rigor de lei seja na Palestina que
nas comunidades espalhadas no Império Romano. Para
a sentença de morte, parece que o Sinédrio tinha que
ter ratificada a confirmação pela autoridade Romana.
Eis então que Jesus passa pelo Juízo da Corte Judaica,
mas é conduzido até o Procurador Romano.
Além destes os evangelhos colocam em cena entre
os responsáveis, a multidão (Mt 26,46; 27,25; Mc 12,12;
15,8-1). A multidão fazia os sumos sacerdotes temerem
na busca da morte de Jesus. Tratava-se esta de um
grupo instigado pelos sumos sacerdotes e anciãos. Ajunta-se à multidão a figura de Judas Escariotes, o
traidor, um dos doze. A figura de Judas é um mistério
já que não se sabe porque ele traiu Jesus. É um mistério porque parece que o seu pecado e danação serviram
para o cumprimento do desígnio divino. Ele aparece
neste caso como um bode expiatório que pagou para a
salvação de todos, coisa que não tem fundamento nos
Evangelhos.
49. POR QUE QUERIAM MATAR JESUS?
Se Jesus fazia o bem por que queriam prendê-lo e
condená-lo à morte?
Na verdade Jesus pregava a bondade, ajudava os
pobres, consolava os sofredores, era politicamente em
tudo inócuo. Olhando neste angulo não tinha razão pa307
ra eliminá-lo. Contudo não raro fica claro que Jesus tinha atitudes onde se comportava como Deus, se proclamava Deus. De fato, os Juízes do Sinédrio o condenaram dizendo que blasfemou. Jesus, entretanto sempre procurou não dar razão para esta acusa, além disso, parece não provável que num ambiente rigidamente
moralista, tivesse ostentado o seu ser divino para tornar
uma ocasião de acusa ou de condenação.
Além do mais as expectativas messiânicas para
Israel era de um messias político-militar para libertar o
povo da dominação romana e dar-lhe a liberdade política, a paz e o bem estar. Jesus, ao contrário desiludiu o
povo em suas expectativas, buscando simplesmente
uma renovação espiritual e moral para o homem.
Portanto, não é verdade que foi a pretensão de Jesus de ser Deus que provocou a hostilidade contra ele,
assim como também não é verdade que a desilusão do
povo diante de um Messias que não correspondia às expectativas, tenha levado ao seu processo.
Diante disto, então havia um motivo plausível para matá-lo? A questão de suas atitudes a respeito do
Templo de Jerusalém constitui um elemento forte. Basta lembrar que no processo diante do Sinédrio foi lembrado que Ele tinha proposto em destruir o Templo (Mt
24,1), acusa que os evangelistas esclarecem que era infundada. Todos os evangelistas relatam a cena de Jesus
no pátio do Templo expulsando os vendedores (Mt
21,12; Mc 11,15-17; Lc 19,45; Jo 2,13-22), os quais
trabalhavam neste local oferecendo um serviço aos peregrinos que vinham de longe e até do exterior, e tinham
necessidade de trocar moedas para comprar os animais
para o sacrifício. O pátio do Templo não era portanto
um lugar de silêncio para favorecer a oração dos devotos onde na sua área mais ampla podia entrar também
os pagãos. Além do mais o próprio Jesus tinha curado
308
doentes ali, e ali reunia os seus discípulos para instruílos.
Nesta cena os judeus pedem a Jesus com que autoridade ele fazia aquilo. A resposta de Jesus provocou
muito mais reação de protesto dos judeus, do que a
contestação do trabalho deles naquele lugar, pois com
isso Jesus colocou o sistema de culto de Israel em cheque. Jesus protestou contra o sistema vigente de culto.
De fato, para a samaritana afirmará depois que não seria mais necessário adorar a Deus em Jerusalém. Portanto, o protesto de Jesus no pátio do Templo deve ser
entendido dentro de toda a sua pregação, assim Jesus
não entendia a destruição do Templo, mas queria indicar que o culto do Templo estava superado, como de
fato os essênios, monges que viviam em Qumran, às
margens do Mar Morto, também afirmavam, pois para
eles o culto no Templo era corrupto e infiel e que o verdadeiro Templo de Deus estava na vida da comunidade
deles.
Além desta posição de Jesus quanto ao Templo de
Jerusalém devemos também levar em consideração suas atitudes em relação à lei mosaica. A nação hebraica
existia em força de sua lei, de sua Torah, pois esta existiu antes do povo possuir a terra. A posição de Jesus
diante da Torah, aprece em confronto com o que relatam os Evangelhos, contraditória, pois de um lado ele
proclama solenemente que não veio abolir uma vírgula
da lei, contudo, sabemos que nos textos cristãos fazem
parte apenas os dez mandamentos e nenhum dos 613
preceitos ensinados pelos Rabinos.
No Sermão da Montanha (MT 5, 18-48), há uma
série de citações do AT que depois contrapõem com os
ensinamentos de Jesus: “Ouvistes o que foi dito... Eu porém vos digo...”, aqui há uma interpretação mais rigorosa da antiga lei. Esta posição de Jesus em relação à lei
309
irrita o hebreu. Este “mas eu vos digo” de Jesus tornase para o judeu e para as autoridades algo intolerável.
Embora o relato do processo de Jesus não acena esta
posição oposta de Jesus, devemos dizer que em relação
a lei, deve ter incomodado fortemente as autoridades.
O preceito sabático contestado por Jesus, assim
como as prescrições quanto a pureza de alimentos não
foram fatores determinantes para a sua condenação?
Outra consideração no desenvolvimento do processo em condenação de Jesus é quanto ao sábado. Jesus afirma: “O Filho do Homem é o Senhor do sábado”.
(Mt 12,1-8; Mc 2,2328). Esta expressão “Filho do Homem” aparece na boca de Jesus, 84 vezes no NT, o que
para os exegetas trata-se de “ipsissima verba Jesu”. No
tempo de Jesus o personagem “Filho do Homem” era visto como um protagonista do juízo divino (Dn 7,9-14).
Portanto, essa questão do comportamento de Jesus em relação ao sábado, provocava os doutores da lei
e os fariseus. O sábado era dia sagrado de descanso
tanto para os homens como para os animais; não se
podia trabalhar, curar, etc., entretanto Jesus curou,
caminhou...
O povo hebreu era ciente de sua identidade, de
sua eleição divina, e tinha os seus rituais e suas regras
de pureza quanto aos alimentos e neste aspecto também Jesus conflitou com as autoridades judaicas, embora não tenha nem ele nem seus discípulos feito violações quanto a pureza dos alimentos. Encontramos entretanto discussões com os fariseus a respeito de numerosas abluções prescritas para tomar as refeições o que
escandalizava os fariseus (Mt 15,1-18).
E quanto a sua prática de acolhida aos pagãos e
pecadores?
Jesus com suas pregações pedia a Israel muita
coisa, quebrava paradigmas e procurou conduzi-lo para
310
uma nova e superior forma de unidade e de consciência
que os profetas já tinham anunciado. Com isso, Ele pretendia tornar universal o patrimônio da fé de seu povo o
que implicava em misturar-se com os pagãos, condividir
com eles a fé no Messias. Em outras palavras Jesus exigia que Israel se anulasse. Neste sentido ele abre-se
aos pagãos, pois entendia que colocar-se diante de Deus
não era questão de pertença étnica, mas de fé, tanto é
verdade que curou vendo a fé da Cananéia pagã (Mt
15,1-18). Advertiu que a vinha lhe seria tirada e elogiou
a fé do Centurião (Lc 7,1-10).
Jesus estava convencido que a história de Israel
estava chegando ao seu cumprimento e que era eminente a vinda do Reino, o qual exigia mudança pessoal de
vida. Ele tinha uma proposta revolucionária. Ele troca a
ótica das coisas, pois para a mentalidade e cultura de
então o destinatário do reino era quem observava os
mandamentos, Jesus vê esta prática como formalismo e
hipocrisia (Mt 23,13-29). Para o judeu instruído quem
não praticava a lei era maldito (Jo 7,45-49; 9). Jesus
vira de ponta cabeça as perspectivas do Reino: “Os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de
Deus” (Jo 8,1-11; Lc 7,36-4; Lc 17,11-19). Ele aceita ir
comer na casa de publicanos, pessoas desprezadas e
odiadas em Israel porque eram cobradores de impostos
para o Império Romano, além de pagãos; ele absolve a
mulher adúltera, deixa Madalena a pecadora enxugar
seus pés, encontra-se com os leprosos considerados os
mais impuros, aceita Levi um publicano como seu discípulo. Em suma estava continuamente rodeado de doentes, pobres, pecadores... De tudo isso ele era consciente, por isso disse: “Bem-aventurado quem não se escandaliza de mim”.
É evidente que os motivos dos conflitos entre Jesus e as autoridades judaicas foram graves e muitos.
311
Jesus também não foi um revolucionário para libertar
Israel da dominação Romana e também não pensava em
fundar uma nova religião, mas estava convencido de
que Israel como único povo depositário da aliança com
Deus estava terminado. Desta forma, Ele pedia a seu
povo de abandonar a própria identidade e diluir-se num
povo novo formado de todos os povos, fundado nele como enviado de Deus para a salvação do mundo. Diante
disso conclui-se que não faltaram razões para matá-lo.
Apesar de Israel ser dominado pelos Romanos, o
exercício da justiça funcionava, portanto Jesus passou
por um processo regular. Jesus submeteu-se a um interrogatório que segundo Mateus e Marcos deu-se na
casa de Caifás, juntamente com outros sumos sacerdotes, escribas e anciãos. João invés fala do interrogatório feito por Anás e depois Ele fora enviado a Caifás. João insinua que Anás queria obter de Jesus informações
sobre a sua presunta atividade secreta.
Então, qual foi a acusação verdadeira contra Jesus? A acusação verdadeira contra Jesus parece ser
aquela de ter projetado a destruição do Templo, onde
para Mateus, as testemunhas afirmam que Jesus tinha
ostentado a capacidade de destruir o Templo e para
Marcos que Ele teria declarado a sua intenção de destruí-lo, mas tanto para um como para o outro evangelista, as declarações eram falsas. Entretanto, Jesus tinha
colocado em discussão a função e o valor do Templo em
relação ao novo que ele estava anunciando e realizando
com sua pessoa e sua obra. Na narração do processo
estes são os únicos testemunhos contra Jesus, embora
o testemunho decisivo, o próprio Jesus deu à pergunta
de Caifás se ele era o Messias, o Filho de Deus, contudo, certamente o sumo sacerdote com tal título não entendia certamente a uma pretensa autodivinização de
Jesus, já que a expressão “Filho de Deus” era um modo
312
comum para designar os santos, o rei, e sobretudo o
Messias. Jesus diante do Sinédrio assinou a sua condenação ao declarar-se ser o juiz apocalíptico que julgará
a história citando Daniel (Mt 26,63ss), declarou-se o
Filho do Homem, o Messias enviado por Deus. Uma
blasfêmia para Caifás que rasgou suas vestes.
Constatada a blasfêmia para o Sinédrio, este conduz Jesus ao Procurador Pôncio Pilatos (Mt 27,1). O Sinédrio não deu a sentença de morte, mas o acusou perante a autoridade do Procurador Romano, alegando
que Jesus devia morrer porque era um revolucionário
que instigava o povo. Lucas transcreve que a acusação
de Jesus alega que Ele tinha promovido um movimento
de resistência fiscal, incitando a não pagar as taxas às
autoridades Romanas e que ao mesmo tempo, ele tinhase proclamado o Messias, duas acusações que incomodavam o Império Romano. A primeira acusação apresenta-se como falsa porque o próprio Jesus tinha declarado de dar a César o que é de César e a Deus o que é
de Deus. Portanto Pilatos leva em consideração somente
a acusação de sua pretensão de ser o Messias; de fato
os sinóticos colocam na boca de Pilatos a pergunta: Tu
és o rei dos Judeus? “,ao que Jesus responde-lhe: “Tu o
dizes”, uma resposta que deixou Pilatos certo da não
verdade da acusa, ao contrário, de sua inocuidade e por
isso busca uma tentativa para libertá-lo propondo de
soltá-lo ao invés de Barrabás. Não conseguindo tentou
ainda enviar a decisão para Herodes que tinha a jurisdição sobre a Galiléia, de onde era proveniente Jesus e
que naqueles dias de Páscoa encontrava-se em Jerusalém.
50. A CRUZ E A CRUCIFIXÃO
313
Por que Jesus morreu na cruz? A esta pergunta
todos respondem que ele morreu por nossos pecados,
para expiar os pecados da humanidade, para salvarnos. Ele, Filho Deus, tornou-se vítima dos pecados dos
homens. Deus, para salvar os homens sacrificou o seu
Filho. Por um puro desígnio divino, totalmente predisposto e realizado quase que independentemente dos fatores humanos que determinaram sua morte. Por um
simples cumprimento de uma profecia messiânica. Toda
esta visão sobre o caminho da morte de Jesus não considera os particulares dos fatos acontecidos, os protagonistas responsáveis pela sua morte, nem o quadro
social e político. Até Judas, o traidor, é considerado como uma vítima do plano divino, o qual contribuiu para
o acontecimento como um marionete.
Nesta visão os motivos pelos quais as autoridades
de Israel decidiram eliminar Jesus não contam nada, de
tal forma que quaisquer que fossem as causas de sua
morte violenta, qualquer motivo, não trocariam em nada
o sentido de sua morte. Bastaria reconhecer que sofrendo e morrendo ele cumpriu o desígnio de Deus para a
salvação da humanidade.
Os evangelistas não eram desta opinião, eles se
preocuparam até em narrar os detalhes das manobras
dos sumos sacerdotes no processo de sua condenação.
Portanto, não podemos compreender a morte de Jesus
vendo-a exclusivamente como a realização do desígnio
salvífico de Deus, independentemente das razões históricas que levaram a vida e a obra de Jesus para o seu
êxito tão dramático.
Se olharmos a paixão de Cristo sem um concreto
envolvimento dos fatos, sem razões determinantes, torna insignificante toda a vida humana de Jesus. Se Jesus não tivesse agido de uma forma tão forte de maneira a provocar o conflito com as autoridades, toda a sua
314
pessoa e obra ficaria obscurecida. Se a sua morte tem
sentido somente enquanto querida por Deus para a expiação dos pecados, e que Jesus não tivesse feito nada
para provocar o conflito com as autoridades e que simplesmente foi matado, a sua morte não teria tido o
mesmo significado e o mesmo valor. Não podemos aceitar que a encarnação de Jesus tenha sido o pressuposto
pelo qual a divindade teria se apresentado diante dos
homens o processo de expiação dos pecados, sendo ele
um ser humano divino que se imola para satisfazer as
exigências da justiça. Se é verdade a morte de Jesus,
devemos levar à sério os motivos pelos quais as autoridades de Israel chegaram à conclusão de matá-lo.
Os evangelistas referem, por ocasião do sepultamento de Jesus a panos utilizados e que após a sua ressurreição os discípulos constataram os panos no sepulcro, mas jamais poderiam ter pensado em propô-los para a veneração dos cristãos, imbuídos que eram do horror à cruz. Somente nos séculos V e VI apareceram os
primeiros crucifixos e só no século XIII desenvolvera a
devoção à Paixão de Cristo.
A crucifixão em Roma era aplicada para dos desertores e os ladrões. Sabe-se que os romanos chegaram
crucificar 500 judeus por dia em tempo de guerra. Sabese que a cruz era composta de dois paus, um vertical
fixado na terra (stipes crucis) e outro móvel que se fixava
horizontalmente e se chamava Patibulum. Geralmente
as cruzes em forma de T eram baixas, permitindo às feras atacarem os corpos dos supliciados.
Antes de crucificar alguém havia a flagelação, pois
era uma lei flagelar antes da execução. Esta se fazia com
varas de litones e amarrando o condenado numa coluna. Estas varas tinham nas pontas chumbo ou ossinhos
de carneiro, fato que provocava hemorragias e enfraquecimento ao supliciado. O número de açoites era de 40,
315
mas os fariseus contavam somente 39 golpes. O condenado levava a pé, desde o tribunal até ao lugar do suplício a haste vertical, que devia pesar aproximadamente
50 quilos. Se a condenação era feita com cordas, bastava enganchar o patíbulo e depois amarrar os pés, se
fosse com cravos, devia-se pregar primeiro as mãos do
condenado sobre o patíbulo, depois levantar o réu, enganchar o patíbulo e depois pregar os pés nos estirpes.
Para isto serviam-se de escadas ou de forquilhas.
Toda execução devia ser realizada legalmente com
um aparato militar, sob as ordens de um centurião, para
isso a escolta ia do tribunal ao lugar do suplício e nesta
estavam os carrascos. O exército devia fornecer guarda
aos pés da cruz para evitar que os amigos viessem arrebatar os supliciados da cruz. Em geral os cadáveres ficavam nas cruzes servindo de alimento para as aves e os
animais selvagens. Os corpos podiam ser solicitados pelas famílias para a sepultura, mas o juiz podia recusar
a autorização quando o condenado tinha cometido certos crimes. Muitos cadáveres eram atirados aos monturos de lixo. Só se permitia a entrega do corpo para sepultamento depois que o condenado recebesse um golpe
de lança no coração, este golpe era dado com a lança por
um soldado no lado direito do peito para assegurar a
morte.
Em Jerusalém Pilatos possuía a "Jus gladii", isto é,
o direito de vida e de morte e para decretar a morte era
preciso uma acusação. No caso de Jesus os sinedritas o
acusaram de incitar o povo à revolta, Pilatos porém em
sua rápida investigação não achou culpa nele para condená-lo. Então o acusaram de fazer-se Filho de Deus,
mas para Pilatos também isto não o convenceu, aliás
fez esforços para libertá-lo. Finalmente eles o acusam de
ter-se declarado Rei e se não o condenasse não seria amigo de César. A "rebelião contra César" inquietou Pila316
tos, dai a condenação foi automática por crucifixão, por
rebelião contra César. Antes da condenação, Pilatos ordenou-lhe a flagelação, mas isso fazia parte do processo.
Na flagelação se submetia os condenados a toda espécie
de zombaria e de maus tratos segundo a imaginação dos
carrascos. No caso de Jesus o motivo da realeza judaica
deu aos legionários do Império motivos de zombarias,
dai a coroa de espinhos, o manto vermelho e um caniço
a modo de cetro.
Como era o costume Jesus carregou apenas o patíbulo e não a cruz inteira, pois carregar a cruz segundo
os textos latinos e gregos eqüivale a expressão "carregar
o patíbulo". Pela expressão de Jo 19,17 "abraçando a
cruz", dá-se a idéia de que Jesus empunhou ele próprio
a cruz e esta não lhe foi amarrada com cordas aos dois
braços estendidos. Por outro lado o fato de Simão de Cirene ajudar a carregar a cruz indica que Jesus tinha o
patíbulo livre em seus ombros. Portanto, não é como a
arte representa Jesus carregando uma grande cruz e
Simão Cirineu só erguendo a extremidade inferior da
haste vertical atrás dele. Por outro lado, as chagas que
ficaram no sudário bem como as manchas, não se explicam a não ser pela fricção da cruz resvalando-se sobre
as costas. Jesus também não foi despido (nú) no trajeto
do calvário pelo fato dos romanos respeitarem os povos
a não transgredirem as leis pátrias conforme escreveu
Flávio Josefo. Amarrar os braços do condenado ao patíbulo evitava reações violentas do condenado. Os algozes
não fizeram isto com Jesus ao constatar sua serenidade
e mansidão e sim por ele estar debilitado após a flagelação.
A cruz de Jesus tratava-se da cruz mesmo, certamente da cruz "humilis", já que os pelourinhos usuais
ficavam fincados permanentes no Gólgota, além disso
deviam executar dois bandidos condenados pelo julga317
mento regular; tratava-se portanto de execuções regulares, e não teriam razão para fincarem em um tronco
mais alto para Jesus. A cruz tinha a forma de T como
eram normalmente as cruzes romanas.
É importante notar que Tácito, historiador Romano
do século II menciona a condenação de Jesus por Pôncio
Pilatos, assim como Flávio Josefo. Mas o mais antigo
credo cristão que fala que morreu por nossos pecados,
segundo as escrituras, foi sepultado e ressuscitou...
(1Cor 15,3-11). João fala de um complô do Sinédrio para
matá-lo (Jo 11,47-50), de fato quem tomou a decisão de
prendê-lo foram as autoridades do Templo que dispunha de um corpo de polícia. O motivo era sublevação (Lc
23,2). Pilatos achou que esta acusação era movida pela
inveja (Mc 15,10), por isso não encontrou nada de condenável nele (Lc 23,22) e quando o condenou declarouse inocente do sangue deste justo.
51. A CAUSA DA MORTE DE JESUS NA CRUZ
Pilatos admirou-se de que Jesus tivesse morrido
rápido e chamou o Centurião para confirmar, este disse
que sim, e então entregou o corpo a José de Arimatéia
(Mc 15,42). Jesus não ficou mais do que três horas sobre a cruz, mas os ladrões só morreram depois porque
lhe quebraram as pernas. Os condenados quando deviam ser sepultados eram retirados no mesmo dia da cruz,
ainda mais porque era véspera da Páscoa. Segundo Orígines, os condenados sobreviviam a noite toda e até o
dia seguinte. Relatos afirmam até três dias de sobrevivência dos condenados, alguns chegando até serem despregados ainda vivos. Flávio Josefo fala de quatro amigos seus que foram condenados durante o cerco de Je318
rusalém no ano 70, um que fora amarrado, fora resgatado com vida e sobreviveu, pois os amarrados agonizaram mais lentamente.
Jesus morreu mais rapidamente porque uma série
de fatores minaram suas forças físicas, basta lembrar
que na véspera, no jardim das Oliveiras, teve uma agonia espantosa em vista da previsão de sua paixão física,
onde ele mesmo fala de uma tristeza "tristeza mortal".
Ora, esta grave perturbação acarretou-lhe um fenômeno
em medicina que Lucas soube bem descrever; trata-se
de um fenômeno raro provocado por um grande abalo
moral seguido por uma profunda emoção e grande medo (Lc 22,42 ; Mc 14,33). Lucas (22,24) fala que o seu
suor tornou-se como gotas de sangue caindo; o texto em
grego diz Coágulo (Tromboi). O teólogo Lagrange traduziu como "glóbulos de sangue, que corriam até solo". Este
fenômeno na medicina é conhecido com o nome de "Hematidrose", o qual consiste numa intensa vasodilatação
dos capilares subcutâneos, os quais distendidos ao extremo, rompem-se em contato com milhões de células
sudoriparas espalhadas na pele, e esta vasodilatação
provoca intensa secreção das glândulas sudoríparas,
fazendo com que o sangue se misture com o suor e permeie todo o corpo, e o sangue em contato com o ar se
coagula e os coágulos sobre a pele caem por terra conduzido através do suor. Devido aos seus sofrimentos Jesus teve uma considerável redução da resistência vital
após esta hemorragia e a pele lesada ficou mais sensível,
dolorida e menos apta para suportar a violência e os
golpes como aconteceu até culminar na crucifixão. Todas estas hemorragias antes da crucifixão o debilitou
fazendo com que morresse mais rapidamente. Pensa-se
ainda na fraqueza pela fome e pela sede ocasionada pelo
abundante suor.
319
A causa determinante da morte de Jesus foi a asfixia acompanhada das câimbras, pois o paciente pregado
só podia ter o ponto de apoio nos pés fixados à haste da
cruz para soerguer o corpo e reconduzir para a horizontal os braços que ficavam com um abaixamento de 65º
graus com a horizontal. Com isso a tração sobre as
mãos diminuía e consequentemente diminuíam as
câimbras e por um pouco desaparecia a asfixia pela restituição dos movimentos respiratórios, depois com a fatiga, o crucificado era obrigado a ceder e a asfixia voltava, ou seja, toda a agonia se desenvolvia na alternativa
de abatimentos e soerguimentos de asfixia e respiração.
Jesus esgotado não prolongou esta luta por muito tempo.
52. OS SOFRIMENTOS DA PAIXÃO E A SUA MORTE
NA CRUZ
É verdade que os evangelistas narram os fatos
da tortura de Jesus, contudo, afirma-se que esse procedimento não era comum antes da condenação à morte.
Havia sim, o costume entre os soldados romanos de
zombar do réu depois de condenado à morte vestindo-o
por exemplo de palhaço ou de rei. Entretanto a narração dos evangelistas está perfeitamente de acordo com
as profecias bíblicas que diziam do futuro Messias escarnecido e torturado. Também é provável que Jesus
tenha sido preso no horto das Oliveiras não por uma
multidão armada, mas por uma corte de soldados romanos. Depois de uma denúncia dos guardas do Templo, que mandaram conduzi-lo ao Sinédrio, já que a acusação que pesava sobre ele era contra a sacralidade
do templo de Jerusalém.
O rosto de Jesus do lado direito com escoriações,
seu nariz deformado por fratura na cartilagem dorsal e
muitos vestígios do suplício pela flagelação em todo o
320
corpo e as pernas indicam que Jesus estava nú na flagelação. Também a coroa dom espinhos de um arbusto
comum na Judéia “zizyphus spina Christi”, os quais penetraram no couro cabeludo provocaram grande dor e
sangramento. O transporte da cruz através de um caminho acidentado e cheio de pedras provocava quedas e
escoriações nos joelhos, nas costas, assim como o
transporte do patíbulo ocasionou escoriações na clavícula e no omoplata.
Sabemos que a crucifixão nas palmas das mãos era
impossível ser realizada, pois se fosse sobre as palmas
não haveria nenhum ligamento transversal capaz de
suportar o peso do corpo, fazendo com que a resistência
ficasse apenas na pele, a qual não suportaria e se rasgaria. Experiências realizadas em cadáveres demonstraram que os pregos nas palmas das mãos rompem-nas.
Jesus não foi crucificado e amarrado por cordas nem
recebeu o sedile do estirpes, visto que este era colocado
para produzir o máximo do suplício prolongando a vida,
com ele, os condenados resistiam mais tempo a tetania
asfixiante, uma vez que a tração do corpo não mais se
exercia sobre as duas mãos. Jesus teve uma agonia
muito breve, o que confirma que Jesus não foi pregado
nas palmas, afirmação confirmada com experiências de
crucifixão de cadáveres, e com estudos de angulações no
sudário. Portanto, Jesus foi pregado na junta de flexão
de ambos os punhos. Seus pés foram, pregados com um
só prego na região próxima dos segundos espaços intermetatargianos, sendo ambos cruzados, o esquerdo na
frente e o direito aplicado diretamente sobre o lenho.
Pregado na cruz, o evangelista João (19,33s) relata que
de seu coração ferido pela lança do soldado saiu sangue
e água. O sangue veio do coração, e a água que é uma
serosidade, veio do pericárdio. O sangue mesmo no cadáver permanece líquido.
321
Constatada a morte de Jesus, tiraram o seu corpo
da cruz para sepultá-lo. Seus pés foram despregados do
estirpes e sem seguida, abaixou-se o patíbulo com o
corpo, sem despregar as mãos e segundo os especialistas o conjunto deve ter sido transportado por cinco pessoas; duas nas extremidades do patíbulo, duas sustentando o dorso com um pano e uma na altura dos calcanhares. O corpo foi envolvido no sudário no final do
transporte depois de serem despregadas as mãos e retirado o patíbulo e por fim sepultado. A essas alturas o
sábado iniciava-se para os Judeus, não podiam portanto
embalsamá-lo, lava-lo, ungi-lo com essências perfumadas e encerra-lo num tecido branco com aromas. Portanto não tiveram tempo para ungir o corpo de Jesus.
Os Evangelhos relatam que algumas mulheres foram
cedo no domingo, para fazer o sepultamento ritual definitivo com aromas conforme o costume judeu.
Por que Jesus foi combatido e levado à morte? Para os evangelhos as razões são: A sua popularidade entre o povo, o que causava inveja (Mt 11,18; Jo 4,11-3;
7,32-46); a acusa de subversão (Lc 23,2); a proibição
do pagamento ao Imperador (Lc 23,2). São também suas críticas que atingiam os fariseus (Mt 23); a Herodes
(Lc 13,31-32); os ricos (Lc 6, 24ss). Sua presença e
seus ensinamento se sobrepõem (Mc 3,2-5.17; Lc
13,13-17); porque falava com Deus em gestos tidos como blasfemos (Mc 2,7; Jo 8,58; 10,30), porque denuncia o formalismo (Mc 12,35-40; Lc 12,1). Ele desconsertava os fariseus (Lc 11,53; 4,36); colocava sua autoridade acima de Moisés (Mc 7,1-2); perdoava os pecados
(Mc 2,7; Lc 2,49); mostrava ao pecador a misericórdia e
não o castigo (Lc 15,7). Sua atuação provocava crise e
cisão (Jo 7,43; 9,16; 10,19); tornava-se um perigo para
os grandes e por isso decidem eliminá-lo exigindo dele
um atestado de boa conduta (Mc 7,5; 2,16-18.24); de322
pois procuram isolá-lo e difamá-lo (Mc 3,22; Mt 10,25)
e por fim procuram-lhe armadilhas (Mc 12,18-23;10,2);
expulsam-no da Sinagoga (Jo 2,22); procuram prendêlo (Mc 11,18); apedrejá-lo (Jo 8,59; 10,31) e liquidá-lo
(Mc 3,6).
Mas Jesus diante de tudo isso continua incomodando (Mc 12,13-17; Lc 3,13-17); escapa deles (Jo
8,59; 7,10) indo para outra região (Mc 7,24; 8,23; Jo
10,40; Jo 11,54); esconde-se (Jo 12,36; Mc 11,11-19;
Lc 21,37).
Jesus antes de sua morte passou por um duplo
processo: O religioso diante das autoridades judáicas e
outro político diante das autoridade romanas. Diante
de Caifás provavelmente Jesus foi condenando pela sua
posição liberal perante ao sábado (Mc 2,23s) ou por ser
falso profeta e expulsar demônios (Mc 3,22), porém o
resultado foi discordante entre os testemunhos (Mc
14,56). Outra gravíssima acusação foi de que ele afirmara que podia reedificar o Templo em três dias (Mc
14,58), mas também aqui houve discordância entre os
acusadores. Por fim Caifás o condena por blasfêmia (Mc
14,61-64) por se declarar Filho de Deus. Para a exegese
há uma pergunta? É um relato histórico ou uma profissão de fé da comunidade primitiva interpretada à luz da
ressurreição? É difícil dizer. O processo político diante
de Pilatos visou notificar a decisão do Sinédrio; neste
processo as acusações de ordem religiosa transformamse em difamações de ordem política, a fim de serem
ouvidos e acusam-no de subversor em toda Judéia,
desde a Galiléia (Lc 23,2-5). Sendo que afirmaram Galiléia, então Pilatos envia Jesus ao tetrarca Herodes que
também se encontrava naqueles dias em Jerusalém (Lc
23,6-12). Pilatos percebe que Jesus não é um revolucionário, talvez um ingênuo sonhador religioso, por isso
por três vezes tenta inocentá-lo (Lc 23,4.15-22) e Hero323
des fez uma tentativa malograda procurando salvar Jesus com a troca por Barrabás (Lc 23,17-25). Por fim Pilatos entrega-lhes para que o crucifiquem colocando a
inscrição em sua cruz: “Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum” (“Jesus Nazareno Rei dos Judeus”).
Segundo o costume romano a morte de cruz existia somente para escravos e rebeldes e era o castigo
mais bárbaro. Após serem flagelados, os condenados
deviam carregar a cruz até o lugar da execução onde já
se encontrava a parte vertical da cruz no chão, ali eram
pregados numa cruz em forma de T, onde ficavam por
horas ou até dias no sofrimento até que morriam por
esgotamento, asfixia, hemorragia... Jesus ficou na cruz
do meio-dia até às 15h00, expirando chamando Deus
de Abbá (Mt 11,27).
Jesus sabia que para libertar o homem devia pagar o preço de sua vida, assim como fizeram os profetas (Lc 11,47-51; 13,34; Mc 9,13). Também o filósofo
Platão tinha dito: “O justo será flagelado esfolado, amarrado e com fogo cegado. Quando tiver suportado
todas as dores, será cravado na cruz” ( Rep 2-5. 361 E).
A fé foi o modo de existir de Jesus, sua vida foi
pautada em Deus, foi um dizer sim radical a Ele e um
fundamentar-se Nele. Por causa de sua fé soube suportar a ignomia (Hb 12,2), as contradições e por isso caminhou consciente para Jerusalém a ponto de causar
medo aos discípulos (Mc 10,32). Tudo isso ele o fez de
modo consciente porque sabia de seu destino fatal,
porque profetizou seus sofrimentos (Mc 8,31; 9,31;
10,32-34) se bem que os exegetas são propensos a
pensar que estas profecias foram escritos diante da
formulação da fé e da novidade da ressurreição. Contudo devemos afirmar que Cristo tinha consciência de ser
o instrumento determinante para a vinda total do Reino. E que portanto estava nas mãos do Pai, que tinha
324
que receber um batismo (Lc 12,50), ou seja, passar por
grandes dificuldades, ou mesmo pela morte. Ele era
ciente de fazer a vontade do Pai, mesmo diante das tentações (Mc 14,36). Mas Jesus sabia de sua morte? Sem
dúvida ele sabia que no ambiente apocalíptico no qual
se encontrava o Reino só aconteceria após uma violenta
luta. Certamente não tinha certeza absoluta de sua
morte na cruz (Mc 15,34), mas pregado na cruz soube
com certeza que esta era a vontade do Pai quando então pronunciou: “Tudo está consumado” (Jo 19,30);
“Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23,46).
Diante da morte de Jesus os apóstolos fugiram
(Mc 14,27) e isso desde a sua prisão (Mc 14,27). Depois
de sua morte os discípulos voltaram para a Galiléia,
onde Jesus por primeiro lhes apareceu (Mc 14,28; Mt
26,32). Os discípulos de Emaús ficaram frustados com
sua morte (Lc 24,28). Ademais a morte na cruz era
maldição divina (Dt 21,23) e vergonha (Hb 12,2), por
isso, para a mentalidade judaica Jesus tinha sido abandonado por Deus, e assim não podiam acreditar
que Jesus crucificado era o Salvador.
Foi preciso a experiência da ressurreição, a partir
daí sua morte foi compreendida (At 2,23-36; 3,14-15;
4,10; 5,30); os discípulos compreenderam que Jesus
devia morrer (Mc 8,31; 9,31; 10,38; 10,45).
53. FORAM OS JUDEUS OU OS ROMANOS QUE MATARAM JESUS
A pergunta poderíamos fazê-la assim: foram os judeus ou os romanos que mataram Jesus? Na história,
desde o século II depois de Cristo, a culpa pela morte de
Jesus foi jogada nos judeus. A Igreja católica precisou
de muito séculos, ou seja, até a metade do século XX,
325
com o papa João XXIII para mudar a idéia de que os judeus foram os culpados pela morte de Jesus. Hoje é sabido que Jesus não foi condenado à morte e executado
pelos judeus, mas pelos romanos que naquele tempo
dominavam a Palestina. Sabe-se também que a pena de
morte a que Jesus foi condenado não era aquela que os
judeus usavam para infligir uma pena capital, pois eles
usavam penas como o apedrejamento, a decapitação, o
fogo e até o estrangulamento. A crucifixão era um suplício que os romanos daquele tempo reservavam para os
rebeldes políticos.
Outra razão para se afirmar de que os judeus não
foram os que condenaram Jesus à morte de cruz é de
que os tribunais judaicos da época tinham certa autonomia em questões legais com exceção dos crimes políticos, os quais eram reservados para as autoridades romanas. Segundo o evangelista Marcos, Jesus foi condenado pelo tribunal superior judeu, por delito de blasfêmia. O Sinédrio teria decretado que Jesus deveria morrer. Mas aqui vem a questão: o delito de blasfêmia era
castigado com a pena de apedrejamento e nunca de crucifixão. Outra questão: se o Sinédrio condenou Jesus
por blasfêmia, levando-o à pena de morte e se tinha o
poder para condená-lo, por que o enviou a Pilatos que
não julgava os casos de rebeldia religiosa? Por que Pilatos teria condenado Jesus à morte, se já o havia feito o
Sinédrio? A resposta para estas perguntas segundo muitos estudiosos é de que o evangelista Marcos ao escrever
o seu evangelho em Roma, onde os cristãos eram perseguidos, quis evitar jogar sobre as autoridades romanas o
peso da condenação à morte de Jesus. De fato, os evangelistas Lucas e João não falam de um julgamento de
Jesus perante o Sinédrio e nem de sua condenação por
esse tribunal.
326
54. COMO A FÉ CONCEBEU A MORTE DE JESUS
A fé cristã diz, por antiquíssima tradição, que Jesus morreu para o perdão dos pecados e para a salvação dos homens. Porém, os discípulos de Jesus tinham
consciência disso?
Sabemos que durante os acontecimentos de sua
prisão, condenação e morte, eles viveram uma profunda
perturbação, contudo pode-se afirmar que não tinham
uma “consciência teológica” do acontecimento. Para eles
este era um momento de escuridão e a reação foi a fuga. Pedro o negará, todos os discípulos, menos João, “o
discípulo que Jesus amava”, fugiram. Paradoxalmente
os únicos que parecem dar à morte de Jesus uma revelação divina, são personagens estranhos ao grupo de
Jesus; um dos dois ladrões pediu-lhe de ser acolhido no
seu Reino; o oficial romano que comandava a patrulha
responsável pela sua execução, faz uma verdadeira profissão de fé professando “verdadeiramente este é o Filho
de Deus” (Lc 23,39-43).
Não por nada o cenário de morte de Jesus é colocado pelos evangelistas com cores apocalípticas (Mt
27,45-54). Claro que muitos exegetas interpretam estas
narrações como reconstruções de intenções teológicas, e
não crônacas do evento; em todos os casos, disto tornase claro que os discípulos não tiveram uma imediata
percepção de fé do acontecimento da morte de Jesus.
Toda a consciência do mistério de sua morte deu-se após a ressurreição com a iluminação do Espírito Santo,
embora os discípulos estivessem com as portas fechadas “por medo dos judeus” (Mc 16,10; Jo 20,19). Os discípulos estavam vivendo, após a morte de Jesus, uma
situação de decepção quanto a um movimento que tinha lhes acendido as esperanças da era messiânica com
a libertação, basta constatar a atitude dos dois discípu327
los de Emaús, os quais caminhavam para este vilarejo,
sete quilômetros distante de Jerusalém, discorrendo
com o que havia acontecido com Jesus (Lc 24,13-35).
A viravolta de tudo foram as aparições de Jesus
Ressuscitado, primeiro às mulheres, depois aos discípulos, os quais até pensaram que era um fantasma (Mt
28,9; Mc 16,11-13). Após constarem a experiência do
ressuscitado, abre-se-lhes um novo horizonte e Jesus
parece-lhes pertencente ao espaço divino, o Espírito
Santo lhes ilumina (Jo 16,7), e reconhecem a sua vitória
sobre a morte. Ele é o Senhor, aquele que encontra-se
em nível máximo de poder, “à direita do Pai” (At 2,3436; 1Cor 5,24-26; 1Pd 3,22). Paulo o anunciará como o
Senhor (II Cor 5,16). Sua morte é a fonte do perdão de
Deus. Ele é aquele que tira os pecados (Rm 5,9; Ef 1,7;
Col 1,20; 1Cor 15,1-5). Ele expiou os pecados dos homens (Rom 2,5; 2 Cor 5,21; Gal 2,13). Ele tornou-se o
Redentor que resgatou o homem do pecado.
55.
A RESSURREIÇÃO DE JESUS
Jesus com sua presença no mundo revolucionou
o velho mundo instalando o Reino de Deus; contudo
morreu na cruz enterrando no início, as esperanças de
libertação dos discípulos. Mas a morte não foi a palavra
final, pois Deus o ressuscitou (At 2,23; 3,15; 10,39s), e
deu-se uma radical transformação, uma transfiguração
da sua realidade terrestre e não uma revivificação.
Romperam-se os grilhões da morte, (I Cor 15,55) e
deu-se a libertação. Se Ele não tivesse ressuscitado vã
seria a nossa fé (I Cor 15,14-15), seríamos tolos, mas
ao contrário abriu-nos as portas do futuro.
O que diz a exegese sobre a ressurreição de Jesus? Sabemos que desde o início eram presentes os relatos das aparições e do sepulcro vazio. Porém o sepul328
cro vazio não é para os evangelistas prova da ressurreição de Jesus, aliás este fato não só não provocou a fé,
mas gerou medo, de sorte que as mulheres fugiram (Mc
16,2). Maria Madalena interpretou o fato como roubo
do corpo do Senhor (Lc 24,11.22-24.34). Por isso, o sepulcro vazio torna-se um sinal ambíguo, sujeito a interpretações, dentre as quais a ressurreição. Somente
com as aparições, a ambigüidade é esclarecida e pode
ser lida pela fé como um sinal de ressurreição e assim o
sepulcro vazio torna-se um sinal que leva os discípulos
a refletir sobre a possibilidade da ressurreição, torna-se
um convite à fé; não é a fé na ressurreição. A fé na ressurreição é expressa na linguagem da época, colocando
a explicação na boca do Anjo: “Jesus de Nazaré ressuscitou...” (Mc 16,6). Não precisamos admitir um Anjo na
entrada do sepulcro, pois o Anjo substitui sobretudo
para o judaísmo pós-exílio, o Deus-Javé em sua transcendência manifestando-se aos homens (Gn 22,11-14;
Ex 3,2-6).
Portanto, foram as aparições que fizeram os discípulos exclamarem: “Ele ressuscitou” e isso não era visão subjetiva, produto da fé, mas aparições transsubjetivas. Quantas foram as aparições? É claro que os
textos sagrados refletem tendências de ordem apologética, teológica e cultural, porém em I Cor 15,5-8 é nos
indicado motivações e em Mc 16,18, temos apenas a
indicação do ressuscitado na Galiléia e em 16,9-20
condensa as aparições relatadas nos outros evangelhos, o que pode ser um acréscimo posterior. O evangelista Mateus (28,16-20) fala de uma aparição a outras
mulheres (28,8-10) esta é tida pelos exegetas como elaboração ulterior ao texto de Mc 16,7. Lucas (24,13-33)
refere duas aparições e João (20) relata três. Para os
exegetas tanto Marcos como Mateus concentram o interesse na Galiléia, já Lucas e João em Jerusalém, estas
329
aparições porém seriam as mesmas da Galiléia, transferidas para Jerusalém por motivos teológicos já que
Jerusalém possui um significado histórico salvífico de
primeira ordem (Sl 13,7; Is 2,3).
Como são estas aparições? São descritas como
presença real e carnal de Jesus, ele come, caminha,
deixa-se tocar, conversa, é confundido com o jardineiro,
ou com um pescador. Aparece e desaparece, atravessa
paredes (At 3,15; 9,3; 26,16; I Cor 15,5-8) são uma representações mais espiritualizantes da ressurreição e
isto se explica se considerarmos que a Páscoa de Cristo
numa interpretação mais antiga, foi concebida em termos de glorificação do justo sofredor (At 2,5; Fl 2,6-11;
Lc 24,26) visto num horizonte da apocalíptica. Mais
tarde sobretudo com os helenistas passou-se a questionar se o Jesus da glória era o mesmo que o Jesus de
Nazaré, então a comunidade, sobretudo em Lucas e João, passou a interpretar os acontecimentos do sepulcro
vazio e aparições na dimensão escatológica usando o
termo ressurreição, tendo o Cristo em sua realidade
terrestre corporal, com as chagas (Lc 24,39; Jo
20,20.25.29), comendo e bebendo (At 10,41; Lc 24,43),
aparecendo aos discípulos (Lc 24,13-35).
A ressurreição de Jesus foi um impacto para os
discípulos, pois sem ela eles não teriam pregado o crucificado como o Senhor, e nem morrido por ele. Trouxe
portanto uma reviravolta total nos apóstolos que tiveram um novo horizonte. Se antes dela eles tinham fugido para Galiléia (Mc 10,50) e Jesus fora tido com alguém abandonado por Deus (Gl 3,13), depois dela voltam a crer que ele é o Senhor (Mt 28,18; At 13,33; Rm
1,4); professam-no com coragem (At 2,23s); 3,15; 4,10;
5,30; 10,39) e proclamam que com ele começou o novo
céu e a nova terra (Mt 27,51-53; Rm 2,5; I Cor 15,45S;
II Cor 5,10).
330
A Igreja primitiva começou a interpretar a ressurreição como um plano escondido de Deus (At 2,23;
4,28). Ele devia morrer (Mc 8,31; 9,31; 14,41), havia
uma necessidade histórico salvífica da cruz; a morte foi
a forma externa do serviço de Jesus à humanidade (Mc
10,45); com sua morte fomos curados, recebemos a
comunhão com Deus, a expiação pelos pecados (Mc
14,24; Lc 22,20; Mt 26,28); a abolição da lei (Gl 3,13;
Ef 2,14-16).
Com a ressurreição Deus realizou o seu Reino e
Cristo é a “autobasiléia tou Teou” (Orígines). Com isso
abriu-se o caminho para a Igreja anunciar as realidades deste Reino. Com ela realizou-se a utopia do homens, ou seja, o cumprimento de seu princípioesperança que é a escatologização da realidade humana
com a introdução do homem em corpo e alma no Reino
de Deus, onde todos os elementos alienatórios foram
aniquilados (morte, dor, pecado) existindo agora a “Topia”, um lugar concreto com nossa ressurreição, ou
seja, com uma realidade humana repleta de Deus (I Cor
15,42-44), com o corpo todo inteiro (corpo – alma) como
pessoa em sua realização e comunicação com os outros, onde o homem transforma-se de carnal em espírito, ou seja, repleto de Deus e incorruptível (I Cor 15,5253). O corpo não é a soma física- química de células vivas, mas a consciência da matéria humana se manifestando no mundo. A matéria do nosso corpo se modifica
de tempos em tempos, contudo mantemos nossa identidade espírito corporal, o nosso eu.
Já na terra o homem-corpo é abertura para os outros e comunhão e doação..., com a ressurreição esta
capacidade chega ao máximo, pois com a ressurreição
o homem reveste-se de Cristo como criatura nova (II
Cor 5,17) estará em Cristo (II Cor 5,8 ; Fl 1,23; I Ts
5,10). Tudo o que está em germe no homem terá cará331
ter definitivo, com a morte o homem entra na definitiva
realização daquilo que ele semeou na terra, onde o seu
verdadeiro corpo personalizado pelo Eu; ele entra na
vida eterna.
A história de Jesus não se encerrou com a sua
morte, mas prossegue com o epílogo que é o ponto de
partida do cristianismo, ou seja, a ressurreição, e a documentação sobre o ressuscitado transborda dos quatro
evangelhos, vai para os Atos dos Apóstolos e para as
Cartas paulinas e escritos apostólicos e isso às vezes
como hinos, fórmulas e catequese.
Mas será a ressurreição de Jesus que gera a fé na
sua pessoa, ou a fé em Jesus que cria a sua ressurreição? Para Bultmann é a fé em Jesus que cria a sua ressurreição, por ser a ressurreição uma realidade de não
comprovação empírica.
Os primeiros testemunhos da ressurreição vêem
neste fato a razão de se reunirem depois de sua morte e
darem assim a expansão ao cristianismo. O mesmo se
diga de Paulo que testemunha a ressurreição com o encontro que teve com ele, já no ano 50 ele fala da ressurreição de Jesus aos de Tessalônica (I Ts 1,10), assim como alguns anos mais tarde a testemunhará para
os Corintos (I Cor 15,3-8.11). Neste trecho Paulo afirma
o valor salvífico da morte de Jesus, que ressuscitou e
apareceu aos discípulos; a Pedro, aos doze, a mais de
quinhentos irmãos e por último a ele, ex-perseguidor da
Igreja... Paulo salienta que Jesus Cristo é “Filho de
Deus” em virtude de sua ressurreição (Rm 1,4; 8,3234).Ele é Senhor (I Cor 12,3). Os textos paulinos sobre a
ressurreição de Jesus são fórmulas querigmáticas e catequéticas ou então profissão de fé, já os evangelhos
narram fatos: tais como o túmulo vazio e as aparições,
ou seja, narram experiências.
332
Os quatro evangelistas relatam o túmulo vazio gravitando as atenções em Maria Madalena e de outras
mulheres (Maria de Tiago e Salomé, Joana...), ou seja,
de um grupo de mulheres). Cada evangelista narra o
fato da ressurreição segundo sua perspectiva teológica,
Mateus menciona o terremoto e a pedra removida por
um anjo. Marcos e Lucas mencionam que a pedra estava removida, ou seja, remetem à ação de Deus. O ponto
central da cena do sepulcro são as palavras do ressuscitado “aquele que buscais ressuscitou”. Lucas menciona
dois homens: “Por que procurais entre os mortos aquele
que ressuscitou”? Mateus e Marcos mencionaram apenas um anjo. Para Marcos as mulheres temerosas não
dizem nada a ninguém, já para Mateus e Lucas, as mulheres executam tudo ao pé da letra. Para João, Maria
Madalena leva a notícia a Pedro e ao outro discípulo.
Paulo que teve as primeiras fórmulas querigmáticas da
ressurreição de Jesus, não menciona o sepulcro vazio,
isto significa que este é um pormenor não essencial à fé
e nem à mensagem da páscoa; o sepulcro vazio não é
prova da ressurreição.
Os dados históricos que servem de contorno à tradição do túmulo vazio são: a morte, a sepultura, a localidade emprestada por José de Arimatéia. Os indícios
que depõem a favor da credibilidade histórica da tradição do túmulo vazio são: o papel das mulheres na experiência do sepulcro, pois dificilmente uma narrativa para fins catequéticos teria colocado em cena mulheres
como testemunhos do sepulcro vazio, além disso, o anúncio da ressurreição não teria sido possível em Jerusalém, se o sepulcro conhecido pelos judeus não estivesse vazio. O relato de Mateus, quanto a acusação dos
judeus de que os discípulos teriam roubado o corpo de
Jesus, e para isso coloca o particular dos guardas no
sepulcro e do selo que os judeus mandaram colocar no
333
túmulo, assim como a tentativa de suborno aos soldados. Tudo isso, porém é tentativa apologética do evangelista para rebater a interpretação judaica do sepulcro
vazio.
No contexto da ressurreição estão também as narrativas de suas aparições que são fórmulas querigmáticas ou o testemunho dos apóstolos afirmam que Jesus
“apareceu”; “foi visto”; “foi revelado”, mas nenhuma descrição de Jesus ressuscitado. Paulo fala do “Corpo da
Glória” (Fl 3,21), “Espiritual” (I Cor 15,44). Os evangelistas falam do encontro do ressuscitado com os discípulos
no Monte da Galiléia (Mt 28, 16-20) e na Aldeia de Emaús (Lc 24,13-35). João relata o encontro com os discípulos e Tomé em Jerusalém (Jo 20,19-23.24-29) e no
lago do Tiberíades (Jo 21,1-14.15.23). Em tudo isso entra as tradições recolhidas pelos evangelistas e elaboradas segundo suas óticas.
56. A EXPERIÊNCIA “HISTÓRICA” DA RESSURREIÇÃO DE JESUS
Confrontando os dados da tradição primitiva nas
cartas de Paulo com os da tradição evangélica, saltam
aos olhos o papel privilegiado que representam a experiência pascal de Pedro e dos discípulos históricos de Jesus. O testemunho paulino ignora a presença de mulheres e a tradição do sepulcro, em compensação os evangelhos não referenciam a aparição de Jesus aos quinhentos irmãos e a Tiago. Da mesma forma, a reconstrução da ordem e sucessão cronológica e da topografia
das aparições não encontram respaldo na tradição paulina. O único dado mais preciso é a revelação de Jesus a
Paulo na estrada de Damasco (Gl 1,12.16-17) o que
concorda com At 9,3; 22,6; 26,12-13.
334
Os relatos não querem dar informações sobre a
ressurreição de Jesus, sobre o corpo e feição do ressuscitado, não descrevem a saída do túmulo, dizem
simplesmente que Jesus aparece, se revela, se manifesta, põe-se no meio, os discípulos o vêem, o reconhecem...
No caso de Jesus trata-se de um personagem histórico que os discípulos conheceram antes da morte acontecida em Jerusalém e em data precisa, e só eles tinham condição de reconhecer Jesus ressuscitado, mas
não foi só do reconhecimento de Jesus ressuscitado
como também crucificado. João e Lucas insistem na
sua corporeidade (ser, tocar, verificar), o que não deixa
de ter um caráter apologético diante do ambiente helênico, porém os evangelistas focalizam que o reconhecimento de Jesus não se fundamenta na constatação física, mas na sua iniciativa e sua Palavra, como dizia a
Escritura; esta realidade tornou-se o fundamento da
missão pós-pascal dos discípulos. O encontroreconhecimento de Jesus como ressuscitado, supõe
uma sintonia espiritual com o seu projeto de salvação,
por isso as aparições de Jesus ressuscitado não estão
ao alcance de todos, mas somente das “testemunhas
escolhidas por Deus” e dos “discípulos que escutam a
Palavra de Jesus e as observam” (At 10,40-41; Jo
14,22-24). Assim, a objeção de Celso ao testemunho
cristão da ressurreição indagando: quem o viu ressuscitado? “Uma exaltada dizeis vós, e talvez algum outro,
vitima do mesmo egoísmo, quer porque, devido a uma
certa predisposição, teria sonhado e, na medida do seu
desejo e da sua ignorância desvairada, teria sofrido
uma representação imaginária, o que já sucedeu a muitos outros, quer porque tenha querido impressionar os
demais com tal história, e com esta impostura, abrir o
caminho para os charlatães”.
335
57. O SIGNIFICADO DA RESSURREIÇÃO DE JESUS
Se mediante a experiência dos discípulos e do
seu testemunho, a ressurreição de Jesus entra para a
história humana, tem-se um novo significado a pessoa,
a obra e a mensagem de Jesus, assim como a missão
dos discípulos, bem como a história humana e o mundo
na perspectiva que este evento inaugurou.
A experiência da ressurreição, onde Jesus “apareceu”, “foi glorificado”, “exaltado”, “elevado”, mobiliza a
gama inteira da esperança bíblica que diante da morte
apela para a fidelidade de Deus. A experiência da ressurreição de Jesus não se esgota com a afirmação de
que ele é o projeto dos últimos tempos (Mc 6,14-16;
6,15; Mt 16,14), mas que Ele é o Cristo, Filho de Deus,
o Senhor. Dá-se o senhorio de Deus e a plena comunhão com o Pai.
A ressurreição de Jesus foi para os discípulos não
apenas a confirmação da autenticidade da experiência
com ele, mas é o ponto de partida. Eles que tinham deixado tudo vendo Nele a salvação e experimentado a proximidade de Deus, viveram a dúvida com a sua morte;
pois ficaram desiludidos. Mas a fé nasceu quando o viram ressuscitado e tiveram um contato novo com ele.
Este acontecimento constituirá o núcleo central da fé,
tanto é verdade que cerca de cinco anos após a sua morte, já estava formulado o credo mais antigo (ICor 15,3-5).
A certeza da ressurreição foi confirmada pelas aparições de Jesus e com isso se formularam outros credos
onde a morte e ressurreição de Cristo formavam o elemento principal (At 2,23-24 ; 3,15 ; 4, 10 ; 5,30 ; 10,3940 ; 13, 28-30). A partir daí o Cristo de que fala o Novo
336
Testamento será o Cristo ressuscitado e vivo presente na
comunidade. Ele não é visto como um personagem do
passado a ser lembrado, não se faz uma reflexão puramente histórica, mas uma reflexão de fé vivida na relação pessoal com ele.
O acontecimento pessoal é a origem da vida e o encontro com Jesus vivo e ressuscitado e este fato parece
até deixar por um momento a vida passada de Jesus,
sem importância. A experiência pascal é o ponto de partida da fé cristã e da reflexão sobre Jesus que se deu
nas comunidades judeu-cristãs da Palestina, compostas
de convertidos de diversas correntes religiosas; Farisaísmo, (At 15,5), de origem sacerdotal (At 6,7) de judeus
que só falavam grego (At 6,1-6) de judeus da diáspora e
de origem pagã. Assim, a fé se expressou em modelos de
pensamentos, mentalidades e culturas múltiplas. O modo de compreender Cristo foi pluralístico.
A realidade de Jesus ressuscitado assumiu logo
uma dimensão escatológica, juntamente com o dom do
Espírito Santo, considerado como dom característico do
fim dos tempos (At 2,17). Jesus ressuscitado é constituído como Senhor no trono à direita de Deus (Ef 1,10; At
2,34). Ele tornou-se o Cristo, o ungido; tornou-se sacerdote e profeta.
Para as comunidades helenísticas a compreensão
de Cristo é dada pela pregação de Paulo. Ele fala de
Cristo Filho de Deus da estirpe de Davi (Rm 1,3-4), como
profeta, de relação filial com o Pai e participa da atividade de Deus. O Cristo como Filho de Deus, tem supremacia sobre as potências cósmicas; está acima de toda potestade e majestade (Ef 1,20-21 ; Fl 2,6-11). Cristo é o
fim de toda criação (ICor 8,6) e nele reside toda plenitude (Cl 1, 15-20). Ele é o Senhor do Cosmos, a origem, o
centro, o fim do universo. O Senhor é Jesus (Rm 10,9).
Este título de Senhor foi forte nas comunidades helenís337
ticas, era o núcleo da profissão de fé. Ele é o Senhor dos
vivos e dos mortos (Rm 14,9). No Império Romano era
chamado de Senhor a divindade protetora do fiel. Para o
cristão no momento do batismo, professar Jesus seu
Senhor, era aceitar sua soberania, aceitar ser seu "escravo", era o inicio da nova existência. (ICor 7,22).
Enquanto a Palavra Filho de Deus apresenta Jesus
como aquele que vem de Deus, o título Senhor sublinha
a relação do ressuscitado com os crentes, a sua autoridade sobre a comunidade, pois é o Senhor presente na
comunidade que oferece a salvação. A presença do ressuscitado na comunidade Paulo, a expressa como formula "Em Cristo" (Rm 12,4-5). Afirmar que Jesus é o
Senhor significava tomar posição contra os "deuses e
senhores" aos quais o Império Romano prestava culto
(ICor 8,5-6). Além do mais, não se pode esquecer o culto
imperial, a divinização do Imperador Romano, o qual
tinha o título de Senhor. Para os cristãos só ao Cristo
deve-se o nome de Senhor (Fl 2,9-11).
A Ressurreição de Jesus é afirmada várias vezes no
Novo Testamento. Marcos é muito breve, limita a dizer
que algumas mulheres foram ao sepulcro de manhã viram-no vazio e tiveram a visão de alguns anjos. Os outros evangelistas são mais ricos em detalhes e falam do
sepulcro vazio e da aparição do ressuscitado. A fórmula
catequética mais arcaica sobre a ressurreição encontramos em 1Ts 1,9-10 escrita pelos anos 50-51. Outro
trecho fundamental é de 1Cor 15,3-8 escrito no ano 57.
"A ressurreição não é uma crença que se desenvolveu no âmbito da Igreja, é a fé através da qual a Igreja
mesma se formou, e um dado sobre o qual se fundou a
sua fé." Afirma o Teólogo Dood.
Os evangelistas afirmam que José de Arimatéia,
homem rico e membro do Sinédrio, fez depositar o cadáver em um sepulcro de sua propriedade (Mt 27,57-60;
338
Mc 15,43). Um sepulcro cavado na rocha, era propriedade de pessoas ricas. O túmulo era novo (Jo 19,41), de
fato não se permitia sepultar sentenciados num túmulo
já doado por outros porque seu corpo impuro, não devia
contaminar com seu contato os cadáveres dos homens
justos. Devia ser sepultado em túmulos comuns ou sepulcros vazios. Os evangelistas relatam que na manhã
de Páscoa algumas mulheres foram ao sepulcro e o encontraram vazio (Mt 28; Lc 24; Mc 16; Jo 20). Nestas
narrações existem algumas diferenças de nomes por terem sido transmitidas oralmente, contudo é importante
notar que os evangelistas não se fixam nos detalhes de
crônica. O valor histórico é relatado pelos quatro evangelistas e sobretudo em Marcos e Lucas estes não têm
intenção apologética, ou seja, a descoberta do sepulcro
vazio não é para eles a prova da ressurreição de Jesus,
mas constatação de um simples fato. Além do mais
quem fez a descoberta foram mulheres que não tinham
condições jurídicas de testemunhar. Outro dado é que
os cristãos começaram a considerar como festivo o dia
sucessivo ao sábado (1Cor 16,2; At 20,7), pelo motivo de
que neste dia se encontrou o sepulcro de Jesus vazio.
Por outra parte, como os discípulos podiam ter começado a pregar a ressurreição se o cadáver do mestre
estava no túmulo, e isto a começar por Jerusalém (At
2,14ss). Todos poderiam desmentir a pregação. É claro
que os opositores para negar a historicidade do fato inventaram que os discípulos tiraram o corpo do túmulo e
disseram que ele tinha ressuscitado (Mt 28,13-15); esta
calúnia do roubo do corpo de Jesus era repetida no
tempo de Justino (Diálogo com Trifão). Contudo é importante dizer que a hipótese de fraude é insustentável porque contrasta com a sinceridade da primeira comunidade cristã. Os discípulos não teriam tido a coragem de
um gesto assim. Como teriam tido a coragem de desafiar
339
as leis religiosas e civis de roubar um corpo? A lei romana defendia a inviolabilidade dos túmulos. Além do
mais, era proibido qualquer trabalho em dia de festa.
A história de Jesus não encerra com a morte na
cruz, mas tem um epílogo que é o ponto de partida de
todo movimento cristão, ou seja, a sua ressurreição. A
documentação sobre a ressurreição de Jesus transborda
do limite dos evangelhos encontrando-se em Atos dos
Apóstolos, nos escritos paulinos e apostólicos.
Jesus ressuscitado é a razão da agregação dos discípulos depois de sua morte. De fato o seu passado, a
sua morte trágica, sendo condenado como um agitador
perigoso, não contribuiu para o projeto ético-religioso.
Foi preciso a ressurreição, a qual teve como primeiros
documentos os escritos de Paulo (1Ts 1,10; 1Cor 15,38.11).
Todos os acontecimentos da morte de Jesus atravessaram os séculos graças à fé na ressurreição dele, a
qual para alguns não passou de um mito criado pelos
seus discípulos. Para os cristãos, porém a ressurreição
de Jesus é algo absolutamente verídico “Cristo ressuscitou verdadeiramente”. O convencimento dos discípulos
sobre a ressurreição de Jesus é muito antigo, “basta
lembrar os Atos dos Apóstolos quando cinqüenta dias
depois de sua morte, Pedro em plena Jerusalém pregava
a ressurreição e apontava os autores da morte de Jesus.
Não mais de 20 anos depois da ressurreição de Jesus,
Paulo escrevia aos Corintos (I Cor 15), a fórmula da fé
cristã onde professa que Jesus “ressuscitou ao terceiro
dia segundo das Escrituras”.
Flávio Josefo nos anos 90, refere que os discípulos
de Jesus, também depois de sua morte não abandonaram o discipulado porque eram convictos de tê-lo visto
ressuscitado para sempre. Da mesma forma, Plínio, o
jovem, escrevendo ao Imperador Trajano pelos anos 103,
340
descreve os cristãos como gente que se reúne para cantar “Hinos a Cristo como um Deus”.
Os apóstolos estavam convictos sobre a ressurreição de Jesus e pedem ao povo de acreditar nela, embora
Paulo soubesse que Jesus tinha sido condenado tornando-se “escândalo para os judeus” e “loucura para os
demais”.
58.
AS APARIÇÕES DE JESUS
Na manhã de Páscoa Jesus se manifestou vivo, aparecendo a Maria Madalena (Jo 20,14-17; Mt 29,9-10).
Apareceu durante o dia aos discípulos de Emaús (Lc
24,13-36; Mc 16,12), assim como a Pedro (Lc 24,34).
Oito dias depois apareceu a Tomé e aos doze (Jo 20,2629). Apareceu a Tiago (ICor 15,7). Apareceu as margens
do Lago de Tiberíades (Jo 21,1-14). Houve a aparição
coletiva aos doze dando-lhes a missão: "ide pelo mundo
inteiro..." (Mt 28,19-20; Lc 24,36-49; Jo 20,19-33). Da
mesma forma Paulo lembra a aparição aos doze (1Cor
15,56) e Lucas fala da aparição a Barsabás e a Matias
(At 1,21-33).
Como explicar que os discípulos antes da ressurreição no momento da prisão fugiram (Mc 14,50) e depois
da morte declararam ter perdido toda esperança nele (Lc
24,21) vendo ali um sinal de maldição, mas depois da
ressurreição se referiram corajosamente a ele, desafiando a opinião pública e as autoridades e proclamando-o
como salvador? A resposta vem de Pedro: "Este mesmo
Jesus ressuscitou-o Deus; e disto nós somos testemunhas" (At 2,32). A ressurreição exprime o sentido próprio
de sua nova fé e garante credibilidade. Se os discípulos
não tivessem visto Jesus ressuscitado não teriam sido o
341
que foram, não teriam dado impulso à pregação e tudo
teria terminado no Gólgota.
Mas tudo isto não teria sido uma alucinação coletiva? As alucinações são manifestações quase que sempre de sintomas de doença mental, ou também uma emoção intensa pode provocar formas alucinatórias em
pessoas normais. Porém os discípulos não esperavam a
ressurreição e quando Jesus apareceu tiveram dificuldade em acreditar. Não acreditaram nas mulheres
quando falaram do sepulcro vazio (Lc 24,11). Tanto é
verdade que Pedro foi verificar pessoalmente (Lc 24,12).
Eles imaginavam ver um fantasma (Lc 24,37) e só se
convenceram quando o viram comer. Tomé duvidou (Jo
20,24-29; Mt 28,17).
Além do mais na mentalidade de então, todo o insucesso, mal, ou doença, era sinal de castigo divino (Lc
13,2; Jo 9,2). Eis porque os discípulos perderam a esperança em Jesus, após a sua morte (Lc 24,21). Portanto, para uma alucinação o clima psicológico devia ser o
oposto. Para os apóstolos a ressurreição foi um fato e
não uma experiência subjetiva, eles são testemunhas de
Jesus ressuscitado, o qual que fala, anda, age, come
com eles (Lc 24,45-47; Mt 28,19). Mostra suas chagas
(Lc 24,39), convida Tomé a tocá-las (Jo 20,27), alimentase (Lc 24,41-43). Ele não é um fantasma. ( Lc 24,37-39).
A ressurreição é um fato histórico e meta-histórico,
ou seja, se por uma lado pertence à história, por outro
a transcende. É um milagre que tem a ação sobrenatural de Deus, com ela Jesus adquiriu nova vida, gloriosa
e imortal, diferente de Lázaro, pois sua condição era diferente dos outros mortais. Ele entra por portas fechadas (Jo 20,19-26). Desaparece improvisamente (Lc
24,31), não foi reconhecível à primeira vista (Lc 24,16;
Jo 20,14-16).
342
59.
O GÊNERO LITERÁRIO NA VIDA DE JESUS
Podemos dividir a história da vida de Jesus em três
períodos. O primeiro parte das origens sub-apostólicas
até a Idade Média, onde neste período não existem obras consideradas “Vidas de Cristo”, mas tentativas de
apresentar uma visão de conjunto de história evangélica. Nesta categoria estão o “Diatessaron” de Taciano
(sec II), “Os Cânones” de Eusébio de Cesária (sec IV) e
as “Evangelicae Harmoniae” de Vitor de Cápua. O segundo inicia-se na Idade Média quando surgiu a primeira vida de Cristo escrita por de Ludolfo de Saxônia em 1474 com o título “Vita Jesu Christi” com base
nos evangelhos e que teve 88 edições. Seguindo este
modelo outros lhe sucederam nos séculos XV a XVIII
com um pouco de devocionismo e um pouco de exegese.
Por fim, o terceiro período inicia-se no século XIX até
metade XX com um número excepcional de vidas de
Jesus. Algumas inspiradas nas ideologias das várias
escolas. Até Hegel escreveu “Vida de Jesus” (1795) enfocando-o como mestre de virtudes morais. Também Strauss em 1537 escreveu uma “Vida de Jesus” pautada
na filosofia hegeliana. Ernest Renan, professor de línguas semíticas escreveu em 1863, “Vida de Jesus” que
mereceu mais de 80 edições. O Jesus de Renan é fascinante e prega o amor e a liberdade. Ele não é visto como
Filho de Deus, mas como um personagem adorável.
Mesmo alguns exegetas da “história das formas” embora
afirmando ser impossível escrever uma “vida” de Jesus,
não renunciaram a propor uma síntese da figura, das
atividades e da mensagem de Jesus (Stauffer, Schwei343
zer, Bultmann, Debelius...). Dentre as vidas clássicas
de Jesus, algumas tiveram o cunho apocalíptico ou devocional (“Vita di Gesu” de V. Fornari; “Mistero del Cristo” de Ceccelli), e dentre estas sobressai a “Vita de Gesù
Cristo” de G. Ricciotti em 1941. Nesta obra o autor italiano antepõe mais de 200 páginas destinadas ao ambiente histórico – geográfico de Jesus demonstrando o valor das fontes e respeitando as interpretações racionalistas da vida de Jesus. A obra de Ricciotti marcou o fim
de uma época já que em 1943 a encíclica “Divino Afflante Spiritu” incentivou a pesquisa católica com os
instrumentos modernos da exegese, o que veio confirmar depois com o documento sobre a divina revelação,
Dei Verbum (1965).
III. PARTE
344
60.
O DEBATE HISTÓRICO SOBRE JESUS
O retrato de Jesus como nos é apresentado pelos
três evangelhos canônicos atravessou os séculos sem
retoques substanciais nem contestações. Foi o iluminismo cristão que ousou uma nova imagem de Jesus
diferente da tradicional e esta partiu de com Hermann
Samuel Reimarus (1694 – 1768) através de uma obra de
4 mil páginas sobre a reconstrução histórico científica
do cristianismo.
1. O Jesus dos iluministas
O pensamento de Reimarus foi conhecido através
da publicação de sete seus fragmentos pelo Filósofo Gotthold Efraim Lessing, o qual produziu uma explosão no
campo da pesquisa histórica sobre Jesus nestes últimos
séculos fazendo da vida de Jesus um objeto de cuidadosa pesquisa filosófica e histórica, pois Reimarus afirmava que numa investigação crítica sobre Jesus devia-se
“manter a distinção entre o que Jesus realmente fez e
ensinou em sua vida, e o que os apóstolos narraram em
seus escritos”. Ele ainda defendeu que Jesus teria propugnado em sua pregação uma revolta contra os Romanos, mas fracassou e caiu na cruz, mas os discípulos não
se conformaram com o fato e furtaram o seu corpo do sepulcro e propagaram a sua ressurreição transformando-o
num mestre espiritual e redentor da humanidade. Esta
publicação feita por Lessing sob o título “Fragmentos do
anônimo de Wolfenbuttel”, deu o início ao debate histórico-crítico sobre Jesus. Mais tarde em 1828 Eberhard Gottob Paulus com sua obra “A vida de Jesus”, sustentou
que a pessoa, a obra e o ensinamento de Jesus são válidos por si mesmos e não precisam ser abonados pelos
345
milagres que os discípulos em boa fé relataram, pois os
milagres de Jesus podem ser explicados sem recorrer a
forças sobrenaturais.
2. O Jesus da Escola de Tubinga – A pesquisa sobre
Jesus histórico depois disso teve o seu visor com o professor de Tubinga, David Friedrich Strauss que publicou
em 1835 o livro “A vida de Jesus criticamente elaborada”, a qual foi muito criticada, pois neste sustentava que
o mito é a chave interpretativa para encontrar o núcleo
histórico sobre Jesus, Mestre dos evangelhos. Com isso
ele dizia que era preciso remover os vestimentos simbólicos elaborado pelos primeiros cristãos que projetaram nos
evangelhos suas idéias religiosas sob forma de fatos
pseudo-históricos.
Neste clima sob o influxo da filosofia hegeliana,
vem depois Bruno Bauer (1809 – 1882) afirmar que Jesus
não é um personagem histórico, mas criação mística dos
evangelistas quando entre 1800 – 1855 publicou “Crítica
aos evangelhos e história da sua origem”, que influenciará muitos estudiosos holandeses, ingleses (J. M. Robertson), americanos (W. B. Smith) e franceses (L.Couchoud).
3. O Jesus da “Escola Liberal”
Um renovado impulso à pesquisa sobre Jesus histórico veio pelos estudos feitos para determinar o valor
das fontes que formam a base dos sinóticos. Os estudos
históricos – literário viram em Marcos e não em Mateus a
tradição mais antiga sobre Jesus, e esclareceram que o
que não existe em Marcos, mas que está presente em Mateus e Lucas, deve-se à fonte Quelle (uma coleção de sentenças atribuídas a Mateus na tradição do século II) como
afirmou Weisse e para Streter a origem de Marcos foi Roma, de Mateus foi Jerusalém, de Lucas foi Cesaréia e a
fonte (Quelle) em Antioquia.
346
Em base a estas duas fontes (Marcos – Quelle),
constatou-se que o anúncio central de Jesus é o Reino de
Deus, no sentido religioso moral não como realidade histórica ou apocalíptica. Desta forma, a “Escola Liberal” interpretou a mensagem de Jesus como um ideal éticoreligioso. Típico representante desta orientação foi o historiador do cristianismo Adolf Von Harnarck (1851 – 1930),
professor da universidade de Berlim, o qual afirma a credibilidade histórica dos evangelhos (graças ao trabalho
histórico – crítico do passado), mas afirma também que
“os evangelhos não são obra histórica, ou seja, não foram escritos para relatar simplesmente tudo o que aconteceu, mas são livros a serviço da evangelização”. O intento dos evangelistas era suscitar a fé na pessoa e missão de Jesus. Jesus é um grande iluminado e mestre de
religião e moral, centradas na paternidade de Deus e na
fraternidade humana (cf. seu livro “A essência do cristianismo).
4. Jesus na história das religiões.
Contemporaneamente a Harnack entra em cena
Johannes Weiss que esboça o retrato de um Jesus pregador do advento iminente do Reino de Deus, segundo o
esquema da apocalíptica judaica, onde o mal será debelado definitivamente e Jesus empossado como Filho
do Homem. Seguindo Weiss, veio Albert Schweitzer com
sua obra “Esboço da vida de Jesus” (1901). Este estudioso afirmava que o que é permanente e eterno em Jesus
é totalmente independente do conhecimento histórico e
pode ser compreendido só em virtude de seu espírito.
Da mesma opinião foi William Wrede com sua obra “O
segredo messiânico nos evangelhos” (1901) onde afirma
que a consciência messiânica de Jesus não é um dado
histórico, mas produto da comunidade cristã primitiva
347
à luz da ressurreição, portanto não se pode ter nenhuma idéia real da vida histórica de Jesus.
Diante disso os autores que se inspiram na história das religiões vêem Jesus que anuncia o Reino de
Deus como comunidade de amor e aos poucos reconhecido e venerado pelos discípulos como o Messias escatológico. Nesta atmosfera é compreensível o que disse
Kahler numa conferência com o título “O pretenso Jesus
da história e o Cristo Real da Bíblia” (1892): “O Cristo
vivo e o Senhor ressuscitado não é o Jesus histórico que
está por trás dos evangelhos, mas o Cristo da pregação
apostólica, de todo o Novo Testamento”.
5. O Jesus “histórico” no século XX
No final da 1ª guerra mundial alguns autores alemães deram uma guinada metodológica no estudo dos
evangelhos e isto deu bases para um novo exame da
questão do Jesus histórico. Em 1919 Karl Ludwig Schmidt num estudo intitulado “A moldura histórica de Jesus”, tentou reconstruir a tradição oral pré literária dos
evangelhos, a qual para ele formou-se no ambiente do
culto dando origem às “formas” das quais os evangelistas serviram, mas sem um quadro unitário preciso.
Conjuntamente Martin Dibelius com o seu estudo denominado “A história das formas do Evangelho”, afirmava que os evangelistas compilaram o material préexistente elaborado durante a pregação.
Dois anos depois Rudolf Bultmann publica “A história da tradição sinótica”, onde distingue dois ambientes histórico – culturais diferentes, nos quais foi elaborada a tradição pré- evangélica: As comunidades judeus
– cristãs da Palestina e as Helênicas. Diante disto Bultmann pergunta: “Até que ponto as exigências da vida
comunitária no culto e na pregação conservaram, interpretaram ou manipularam e criaram palavras e fatos a348
tribuídos a Jesus?” A resposta fica em parte condicionada pelos pressupostos ideológicos de cada autor, por
isso Bultmann mostrou-se cético diante das narrativas
evangélicas elaboradas em função da apologética.
Bultmann em sua obra “Novo testamento e mitologia : o problema da demitologização do anúncio cristão”
(1941) colocou a necessidade da demitização do Novo
Testamento, como exigência intrínseca do anúncio da
fé. Para ele o Novo Testamento apresenta o evento Cristo como acontecimento mítico; embora Jesus seja um
indivíduo histórico concreto, homem e filho de Deus.
Em 1956 Gunther Bornkanm com sua obra “Jesus de Nazaré” faz uma investigação sobre o Jesus da
história com o método da história das formas onde admitiu que o Jesus histórico estava ligado ao Kerigma e à
fé da comunidade primitiva.
Na década de sessenta Schmithals reafirma teologicamente vedada a investigação sobre o Jesus da história.
Em suma , numa visão panorâmica o Jesus “histórico” foi submetido a um processo de revisão e crítica
segundo os esquemas ideológicos e os instrumentos
culturais de que dispunham os autores e as escolas.
Assim, os iluministas e racionalistas procuraram recuperar o Jesus histórico real além das incrustações dogmáticas e míticas dos evangelhos e da tradição. A Escola Liberal viu Jesus como o pregador de uma ética elevada e de uma religião universal. Os comparadores das
religiões viram nele o profeta do Reino de Deus dentro
da visão apocalíptica. Finalmente para a história das
formas dos evangelhos conjugada com o existencialismo heideggeriano, Jesus correu o risco de volatizar-se
no Kerigma.
Depois da tempestade crítica desses dois séculos,
onde foram envolvidos a figura histórica de Jesus e os
349
evangelhos, não é mais possível um tratamento acrítico
dos textos. Estes dois séculos possibilitou-nos um patrimônio de dados que torna possível uma investigação
da figura e da obra de Jesus com instrumento adequados.
6. Jesus para os judeus
O filósofo judeu Martin Buber afirma que desde
criança percebeu Jesus como “seu irmão maior”. Outro
intelectual judeu, Ben Chorin, traçou Jesus na perspectiva judaica; ele fala da nova orientação judaica com
relação a Jesus como de um processo que tende a “reconduzir Jesus ao seu povo” e faze-lo “repatriar-se”, e
lembra a afirmação de um judeu: “Jesus é a alma da
nossa alma, como é carne de nossa carne. Então, quem
poderia separá-lo do povo judeu?”
Jesus no povo judeu é pouco lembrado no Mishna e
no Talmude, e às vezes a imagem de Jesus é depreciada
no ambiente onde a minoria era obrigada a viver em
ambientes cristãos. Na Idade Média no confronto entre
judeus e cristãos, Jesus foi combatido como não Messias com a alegação de que a divulgação de Jesus fora
obra dos seus discípulos. Eles criticavam os evangelhos
e alegavam que os judeus não podiam ser incriminados
pela morte de Jesus, pois ele fora condenado segundo o
direito vigente.
No clima deste debate distinguiram-se algumas figuras precursoras do ecumeninsmo: o filósofo e poeta espanhol Judas Halevi (1085 – 1135) e Moisés Maiomônides (1135 – 1204), assim como também depois Baruc
Spinoza (1632 – 1677) que viu Jesus como um excepcional homem religioso.
Com os éditos de tolerância aos judeus e o contato
com a cultura moderna e também o estudo dos textos
segundo o método histórico-crítico, a posição judaica
350
sobre Jesus mudou. Houve uma recuperação da pessoa
Jesus, sobretudo por parte de alguns intelectuais judeus que contribuíram muito para a redescoberta das
raízes judaicas da pessoa e obra dele, dentre os quais
Goldsmid Montefiore (1858-1938) que viu a novidade
em Jesus não em propor um novo projeto religioso e um
ensinamento ético diferente no ambiente judaico, mas a
intensidade de seu estilo profético e espiritual que lembrava os antigos profetas. Um outro judeu foi J. Klausner, estudioso do messianismo hebraico; ele escreveu o
primeiro livro sobre Jesus para os judeus valendo-se do
resultado da pesquisa histórico-crítica sobre os evangelhos. Ele se perguntou: Como pode Jesus que nasceu,
viveu, formou-se e trabalhou no judaísmo, ser rejeitado
pela maioria dos judeus? E explicou que Jesus é judeu
e nada há nele, no seu ensinamento ou no seu estilo de
vida que não se possa explicar pela tradição bíblica e
pelo ambiente judaico. Afirmou ainda que foi Paulo e os
cristãos helênico-pagãos que transformaram o judeu
Jesus em Cristo, em semi-deus, procurando a separação do judaismo. Klausner mostrou que Jesus é um judeu, nacionalista, observante, com todas as qualidades
e defeitos de um mestre judeu do seu tempo, como poderia ter sido Hillel. Os conceitos de Deus e do Reino de
Deus são apresentados com a fé e a esperança judaicas.
Há contudo algo em Jesus que se opõe ao judaísmo e
o torna estranho a ele; a sua singularidade religiosa e o
seu extremismo ético, pois ele proclama de modo absoluto que Deus é misericórdia e é comprometido com a
justiça. Jesus radicaliza a dimensão ética da religião e
a tal ponto que vê como supérfluas as observância rituais (pureza e impureza de alimentos, o sábado) e nisso
ele se separa dos judeus. Com isso Jesus, na proposta
do asceticismo, pobreza e celibato, representa o fim do
351
judaísmo como nação e religião, privando-o de sua força
vital.
Klausner afirmou ainda que a relação contraditória
de Jesus em relação a seu povo reúne-se no fato de
considerar-se Messias, e a convicção de que o Reino de
Deus já havia chegado. Isto o judaísmo não podia aceitar e nem o seu extremismo ético, o que deu origem à
idolatria, Jesus – Deus, e à degeneração moral. Klausner afirmou também que “o judaísmo pôs ao mundo a
religião cristã na sua forma original, como ensinamento
de Jesus, mas rejeitou a filha quando esta, num abraço
mortal, tentou sufocar a própria mãe”. Ele por fim explica que o sucesso que Jesus teve com os primeiros seguidores, os judeus, foi graças à sua personalidade fascinante e contraditória, e devido a maestria de seus ensinamentos.
A obra de Klausner sobre Jesus permanece uma pedra miliar na longa estrada que o judaísmo e o cristianismo percorrem separados. Também Shalom ben Chorin que estudou muito Jesus, viu Nele um mestre, como
a terceira autoridade ao par de Hillel e Shamai.
Outro judeu, Pinchas Lapide nascido no Canadá em
1922, considerou Jesus como autenticamente judeu
que compartilha da fé e da esperança judaica, do ideal
de seu povo; ele é o melhor fruto da tradição judaica.
Da mesma forma, David Flussner, judeu nascido em
1917, afirmou que o judaísmo é o contexto vital de Jesus que propõe um ensinamento ético-religioso conforme ao dos fariseus e sua novidade está na radicalização
das exigências éticas condensadas no preceito do amor.
Concluindo, podemos afirmar que a imagem de Jesus dada pela pesquisa judaica o define como um judeu
de origem, de formação e pelo projeto histórico éticoreligioso. É um Mestre reformador situado na linha dos
profetas clássicos. Ele compartilhou as esperanças
352
messiânicas e considerou-se Messias. Entrou em conflito em questão da observância da lei e em relação aos
pecadores. Foi condenado à cruz pela autoridade romana com a convivência da autoridade religiosa do Templo. Ele é um anel importante da tradição religiosa espiritual do judaísmo e não pode ser aceito por um judeu
como Messias e muito menos como Filho de Deus no
sentido cristão. Contudo, Jesus que há séculos foi motivo de divisão e hostilidade entre cristãos e judeus, começa tornar-se ponto de encontro e de união.
7. Jesus para os cristãos.
Há 20 séculos Jesus está ligado aos cristãos e a fé
proclama-o como o Cristo, Senhor e Filho de Deus, como é testemunhado pelo elenco oficial dos livros sagrados. A reflexão crítica sobre a fé em Jesus passou pelos
séculos através de debates e controvérsias até a profissão de fé cristológica dos Concílios de Nicéia (325) e de
Calcedônia (451), declarando Jesus Cristo Filho de
Deus e consubstancial ao Pai (Nicéia) e consubstancial
aos homens, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e
um só e mesmo Cristo, Filho Unigênito com duas naturezas, cada uma delas coexistente numa única pessoa.
Nesta plataforma de fé fundamentaram-se as reflexões cristológicas até hoje, onde os textos sagrados foram submetidos ao exame da razão crítica e histórica,
numa nova fase cristológica de perguntas à fé feitas pelo iluminismo e que levou a elaboração e aplicação do
método histórico – crítico na leitura do NT, obrigando a
Igreja rever suas posições da cristologia tradicional.
Disto decorre as perguntas: Quem é Jesus para o
homem de hoje? Qual o seu significado atual? Para tentar responder a estas perguntas os exegetas procuraram
alguns aspectos da cristologia relacionados ao Jesus
histórico levando-se em conta os ambientes culturais,
353
sobretudo, o norte – europeu e o latino–americano. Nestas áreas destacaram-se muitos teólogos, dentre os
quais os abaixo relacionados.
Karl Rahner, o qual procura acentuar a figura e a
mensagem do Jesus histórico colocando Jesus como o
ofertante da salvação definitiva e anunciando o Reino
que recebeu plena confirmação com a sua ressurreição.
Wolfang Parrenberg, coloca o fundamento da fé em Cristo não limitando à Igreja primitiva, mas abrangendo todo o Jesus histórico. Esta compreensão do Jesus histórico para ele se obtém a partir de sua ressurreição, que
é o cumprimento de suas palavras e a antecipação do
cumprimento escatológico da história da salvação. Jurgen Moltmann, postula as afirmações da fé em Jesus
não associadas a um modo artificial ao seu nome, mas
associada e condensada nos títulos cristológicos dados
pelos cristãos, e de conseqüência os cristãos devem
tornar viva e operante a fé em Cristo nas situações atuais de injustiça e morte, pois o Jesus crucificado desvendou o rosto de Deus. Walter Kasper, vê uma cristologia fundamentada nas interpretações das fórmulas de
fé primitivas baseadas na história de Jesus. Assim, a
investigação cristológica tem sua fundamentação na
história de Jesus terreno. Nos atos de Jesus pré- pascal
está implícita a cristologia pós-pascal. Hans Kung, concebe todo o programa cristão em torno da pessoa e obra
de Jesus; trata-se do Jesus histórico real e não um mito, cuja atividade histórica e mensagem podem ser reconstituídos com métodos críticos rigorosos baseados
em documentos historicamente aceitáveis. Desta forma,
o discurso para fundamentar o anuncio de Cristo ao
homem de hoje não só é possível e legítimo, mas necessário para eliminar suspeitas de projeção da fé mística.
Edward Schillebeckx, afirma que na mentalidade e cultura histórica modernas, a pesquisa feita de modo cien354
tífico é essencial para a fé, embora a pesquisa não fundamenta a fé, mas ela reúne dados para o crente acolher a ação salvífica de Deus. A práxis de Jesus é o
âmbito onde se revela a ação salvífica de Deus. O autor
atribui a investigação histórico – crítica sobre Jesus um
valor “teológico”. Christian Duquoc, valoriza a condição
humana-histórica de Jesus como revelação de Deus e
de seu projeto de salvação. Por isso, nada do que aconteceu com Jesus e consta nos evangelhos são anedotas,
ou exemplos edificantes, mas evento revelador de sua
personalidade e missão que posteriormente foi explicitado nos títulos cristológicos.
As sugestões oferecidas pela cristologia européia, foram reelaboradas de modo dinâmico e original nas sínteses sul-americanas em contato com a situação socioreligiosa deste continente, levando assim ao amadurecimento de uma reflexão sobre a fé com o nome de “Teologia da libertação”. Dentre os teólogos latinoamericanos, destacam-se sobretudo Leonardo Boff, com
sua obra “Jesus Cristo libertador” (1972), onde legitima
uma cristologia que parte dos cinco pressupostos que
caracterizam a situação latino americana: 1. O primado
da antropologia sobre a eclesiologia; 2. O primado da
utopia sobre a factualidade; 3. O elemento crítico sobre o
dogmático; 4. Do social sobre o pessoal; 5. Da orto práxis
sobre a ortodoxia.
Destas premissas nasce a síntese cristológica, cujo
centro é a história de Jesus, anunciando o Reino de
Deus como nova ordem das coisas, o qual tem uma dimensão presente e futura, espiritual e material. Jesus
lutou pela libertação, mas foi condenando como guerrilheiro, embora não tivesse uma linha de ação identificável com os zelotas e na ressurreição realizou-se a utopia
do Reino de Deus como libertação de alienação e da escravidão. Para Leonardo Boff existe uma certa seme355
lhança entre a situação da Palestina no tempo de Jesus
e a situação da América Latina (opressão, escravidão).
Neste contexto o Jesus histórico com sua práxis de libertação convida os cristãos (sobretudo latinoamericano) a se empenharem para a de libertação e a
transformação do mundo não obstante os conflitos que
isso acarreta.
Outro teólogo deste contexto latino-americano é
Jon Sobrinho, que em sua obra “Cristologia desde América latina, esbozo a partir del seguimento del Jésus histórico” (1976) propõe a pessoa de Jesus, sua pregação,
suas atividades, atitudes e sua morte como práxis de
libertação no Reino. Sobrinho assimila um pouco o teólogo Moltmann, aplicado ao contexto latino-americano,
onde se visualizam os traços evangélicos com o dinamismo de uma igreja com opção preferencial pelos pobres.
8. Jesus para os muçulmanos
O interesse do Islão por Jesus é condicionado ao
relacionamento de Maomé, com os cristãos. Maomé conheceu Jesus através dos cristãos da Síria e fontes apócrifas, de fato, trechos do Alcorão sobre Jesus e Maria
tem a influência do “proto-evangelho de Tiago” e do “Evangelho árabe da infância”. Os conflitos históricos não
favorecem um aprofundamento das fontes evangélicas,
mas Jesus é visto com simpatia por um círculo de intelectuais que conheceram o mundo cristão, a massa, porém está ausente do conhecimento de Jesus.
No Alcorão Jesus é conhecido como “o filho de Maria” e Maria é acolhida e muito respeitada. O Alcorão vê
as origens de Jesus baseada nos apócrifos e vê Jesus
como profeta enviado por Alá aos filhos de Israel. Jesus
é parte de outros profetas que o precederam (Abraão e
356
Moisés), mas com uma iluminação especial. Jesus é o
“Servidor de Deus” sempre “sujeito” a Deus.
O Alcorão reconhece o título Messias para Jesus
como enviado de Alá, Ele é “uma palavra de Alá”, “uma
palavra da verdade”. É criatura de Deus e a sua morte
foi aparente porque foi levado por Deus ao céu e voltará
do juízo para morrer e ressurgir como qualquer outro
homem.
9. Jesus para os ateus
Focaliza-se particularmente os marxistas, os
quais não deram atenção especial à pessoa e à obra de
Jesus pela crítica ao fenômeno religioso considerado por
eles como alienante. Para Marx os princípios cristãos
afogaram como ideologia opiácea a miséria e a opressão
da massa proletária. Assim também F. Engels em sua
obra “sobre a história primitiva do cristianismo” (1894)
fez um paralelo entre o cristianismo primitivo e o movimento operário moderno, ambos oprimidos, onde o cristianismo vê tudo numa dimensão de vida ultra eterna.
O cristianismo como ópio mantém as massas na opressão com sua ideologia religiosa. Embora alguns expoentes marxistas como Lunacasky vê a doutrina de Jesus
próxima a camada dos pobres, contudo as estruturas
revolucionárias do cristianismo original ficaram ineficientes no plano histórico e agora estão totalmente substituídas pelo socialismo marxista.
Uma outra fase da historiografia marxista soviética sobre Jesus que é de tendência iluminista – liberal,
religionista e mitológica não nega a existência de Jesus,
mas afirma que o seu papel pessoal é secundário, pois
Jesus é um dos tantos profetas messiânicos judeus.
Contudo, em tudo isso a pesquisa histórica sobre Jesus
e as origens cristãs são condicionadas no marxismo so357
viético pelo materialismo dialético e pelas preocupações
da propaganda militante anti-religiosa.
Dentre os autores mais modernos da área marxista que se interessaram por Jesus está Milan Machovec,
o qual escreveu “Jesus para os ateus” (1972), esta pode
ser considerada a primeira obra de um ateu marxista
dedicada especificamente ao tema cristológico. O autor
utiliza o método histórico da leitura dos textos evangélicos e inspira-se na interpretação dimitizante de Bultmann admitindo que na base da tradição e dos textos
evangélicos está a pessoa e a mensagem originais e históricas de Jesus, e que apesar da filtragem da pregação
cristã e as adaptações dos evangelistas, pode-se mesmo
assim delinear as linhas gerais do pensamento de Jesus.
Aponta como núcleo central e historicamente sólido da mensagem de Jesus o anúncio e a chegada do
Reino de Deus que consiste na humanidade perfeita através do compromisso num processo de libertação. Este processo revolucionário da libertação não é só no social e político, mas também na busca e na valorização
dos “pequeninos,” no amor aos inimigos, na não violência e na solidariedade...
Jesus como Filho do Homem é identificado com o
herói esperado no futuro. Quanto ao Messias, ele não é
o Messias, mas foi tornando-se o Messias na medida
que assumiu a função histórica messiânica, Jesus se
apropriou progressivamente da idéia do Messias que dá
a própria vida em sacrifício segundo o modelo do servo
de Isaías.
Para o autor Jesus e os discípulos esperavam que
a transformação final se desse após o período de crise,
mas com sua morte nada aconteceu. O que deixou os
discípulos perturbados não foi o fato do Gólgota, mas a
não transfiguração de Jesus sofredor em “Filho do Ho358
mem”, e assim Pedro empreendeu uma virada no processo de conscientização messiânica por parte de Jesus,
tornando-se o arauto da ressurreição e glorificação de
Jesus. A ressurreição de Jesus tornou-se uma interpretação nova e definitiva do que fôra a essência do anuncio de Jesus antes do Gólgota.
Outro representante do mundo ateu marxista que
tentou uma série aproximação com a pessoa e a mensagem de Jesus foi Ernst Bloch (1885 – 1977), filósofo
propagador do materialismo utópico. Este viu o itinerário de Jesus como “rebelde anunciador do Reino de Deus
para os pobres” e como o Filho do Homem. Posicionouse numa direção que ele denomina “fio vermelho” da Bíblia e esta começou com a tentativa de Jesus ser como
Deus. Ele não é o manso pregador da paciência, mas o
Messias escatológico que anuncia o Reino de Deus, não
um reino ético - espiritual, mas uma realidade histórica,
terrena, política. Seu evangelho é um proclamação da
felicidade que compreende a salvação religiosa e política, o fim da miséria e o início da felicidade, o shalôm
profético.
Jesus é o protótipo da tensão utópica, ele representa a história do homem que se move em direção da
liberdade e da esperança realizadas.
Também Roger Garaudy, filósofo marxista, viu a
mensagem de Jesus na linha dos profetas de Israel, pioneiros da luta contra a alienação. O Reino de Deus
proclamado por Jesus não um outro mundo, mas o
mundo que se tornou outro graças às mudanças do esforço humano. Jesus não é um revolucionário como o
zelotas, nem um pregador de penitência como João Batista, mas é o homem que nos ensina a olhar objetivos
longínquos. A fé que ele nos convida é o “protesto” contra as alienações e idolatrias, sua mensagem é uma exigência de amor radical e a ressurreição de Jesus é um
359
ato criador, a afirmação do impossível com que a história abre o futuro a todos os possíveis, por isso a ressurreição não é um dogma em que se deva crer, mas um
objetivo e uma tarefa a ser cumprida hoje.
Jesus é “homem verdadeiro”, homem de Deus e só
Deus pôde ser.
Por fim, Laszek Kolakowsky, filósofo em Varsóvia
até 1968, viu Jesus como o reformador do Judaísmo e
não o Fundador do cristianismo; é o profeta e o Messias
que está no cerne da tradição bíblica. Há nele um núcleo de ensinamentos que são vitais não só para o cristianismo, mas para qualquer cultura humana. Ele superou a ética legal em favor do pacto do amor que apela
para a fraternidade.
O problema hermenêutica considerado como o estudo de relação escritura-palavra-acontecimento, não é
novidade do século XX. Está presente desde o início,
pois no começo os cristãos aplicaram-se em distinguir a
relação entre A.T. e N.T. A primeira fase da hermenêutica foi adquirir a inteligência espiritual do A.T. pelo N.T.
Os Padres, Justino, Orígines, Agostinho fizeram esta
hermenêutica. Num segundo momento na exegese medieval e recentemente na de Bultmann, a Sagrada Escritura é interpretada como chave do agir humano. Num terceiro tempo a hermenêutica teve por objeto o próprio
texto do N.T. e a relação entre este e o evento, daí nasceu o choque da Sagrada Escritura com as críticas filosóficas, a história...
Hoje graças a Formgeschichte e a RG os evangelhos
não são crônicas, mas testemunhas nascidas na comunidade cristã, sendo que entre o texto elaborado e o ocorrido houve um espaço de 30 a 100 anos.
A historicidade é o primeiro traço de originalidade
e de especificidade da revelação cristã.
360
O cristinianismo não é gnose caído do céu de páraquedas; o Kérigma é pregação de um evento salvífico
(Cristo morreu na cruz). O cristianismo não nasceu da
pura fé, não é doutrina, é um evento fundado sobre a
pessoa de Jesus, pois se o ser de Jesus nos escapa, sua
identidade evapora-se e nossa fé fica arriscada ser uma
ilusão.
A crítica literária após o ceticismo de Bultmann
tornou-se mais moderada com autores que buscaram
critérios válidos para chegar ao Jesus de Nazaré (Jeremias, Schurmann, Cefaux de la Potterie) todos admitindo que o acesso ao Jesus Histórico pelos evangelhos é
possível. Isto foi fruto de dois séculos de buscas e de estudos.
61. UMA FASE
LOGIA
DE RADICALIZAÇÃO NA CRISTO-
Até século XVIII a autenticidade dos Evangelhos
não foi contestada. A exegese explicava o conteúdo do
Evangelho sem se preocupar com o gênero literário ou a
sua formação. O Jesus histórico e o Cristo dos evangelhos não tinha oposição. O problema do Jesus da História começou antes de Bultmann, com a fase pré Bultmanniava, tendo como destaque Reimarus (1694 1768), o qual afirmava que Jesus não quis fundar uma
nova religião, não fez milagres e não ressuscitou. Ele foi
um messias político, mas fracassou decepcionando os
discípulos, os quais criaram a figura de Jesus dos evangelhos e inventaram a sua ressurreição. Este teólogo esvaziou o conteúdo sobrenatural e histórico dos evangelhos. Em seguida David F. Strauss (1808-1874) ao publicar: "A Vida de Jesus" (1837). Afirmou que o elemento
chave para se compreender o evangelho é o mito, o qual
361
é a representação do ideal religioso dos primeiros cristãos. O Cristo do evangelho como Deus é um Jesus mitigado a partir dos elementos tirados do judaísmo, do
helenismo e da experiência cristã. Tudo que precedeu ao
batismo de Jesus é mito. O valor dos relatos evangélicos
é de ordem teológica com a finalidade de dar-nos acesso
à fé.
Outro teólogo desta fase foi Kahler, o qual insistiu
que o único Jesus real é o da pregação da fé e não o Jesus do passado. Não negou contudo um substrato histórico nos evangelhos e a distinção entre Jesus da História e Kérigma. Na mesma linha apareceu Wrede afirmando que Jesus nunca teve consciência de ser o messias, mas que isto foi uma elaboração dos apóstolos que
criaram a idéia do "segredo" messiânico.
O século XX foi ciente de que a redação dos evangelhos teve um espaço de no mínimo 30 anos, por isso
procurou levar em consideração as etapas desta formação, sobretudo com pesquisas e estudos baseados na
História das Formas (1920-1945).
Na evolução desta caminhada na busca da pessoa
de Jesus entram em cena o teólogo protestante Rudolf
Bultmann e a teologia do Kérigma . Para Bultmann o
cristianismo começou com o Cristo anunciado, isto é,
com o Kérigma que supõe a existência histórica de Jesus, mas que não se interessa por ele. O que interessa é
a existência de Jesus, ou seja, basta Jesus. Jesus tinha
nascido, vivido, foi crucificado e morto, mas sua personalidade moral e seus ensinamentos não representam
interesse teológico. Para Bultmann o Kérigma propõe a
figura mística de Jesus. Por isso ele critica radicalmente
uma pesquisa historiográfica sobre Jesus, a qual tornase impossível e ilegítima. Afirma, portanto que é utopia
escrever a vida de Jesus porque os evangelhos são confissões de fé com uma imagem mitigada pelos evangelis362
tas e as fontes cristãs são invadidas de lendas. Precisase segundo ele, ter o máximo cuidado com as fontes
(pregações das comunidades). Os evangelhos são um
kerigma e não uma crônica, e o Novo Testamento é um
universo místico com influência do gnosticismo, do helenismo e do judaísmo. Em suma, Jesus tem um valor
indicativo da salvação que nos vem pela fé; é o grande
profeta, mas não o salvador; é o lugar escolhido por
Deus para notificar-nos a salvação. A salvação de Deus
não passa pela liberdade de Jesus, sua intenção não
entra em jogo.
As posições radicais de Bultmann provocaram
muitas reações a partir dos católicos que afirmam ser a
tradição sinóptica substancialmente fiel à realidade histórica de Jesus, embora aceitando que os evangelhos
sejam testemunhas de fé da Igreja Primitiva. Dentre o
mundo dos teólogos que reagiram destacamos alguns,
tais como: Joaquim Jeremias, o qual enfatiza que o valor
de Bultmann em ter chamado a atenção para o valor do
Kérigma e da gratuidade da salvação, mas o acusa de ter
relativizado no cristianismo o fato primordial que é a encarnação e ter substituído Jesus por Paulo. Para este
teólogo a fonte principal do Cristianismo não é o Kérigma, numa experiência pascal dos apóstolos, mas a entrada em cena do Jesus de Nazaré, crucificado sob Pôncio Pilatos. Portanto precisa-se voltar ao Jesus da História para ser fiel às fontes e ao kérigma. Ele acusa Bultmann de não ter levado a sério o “Verbum Caro Factum,
est”, apresentando um Jesus sem conteúdo.
Outro teólogo que se destacou nesta reação da visão Bultmanniann foi Käsemann, historiador e exegeta
do A.T. Em 1953 critica Bultmann por não mostrar interesse pela existência concreta de Jesus da história, contentando-se do fato bruto de sua existência, transformando o Cristo num mito. Para ele a vida histórica de
363
Jesus tem importância decisiva para a fé e a história de
Jesus é o “initium Chistianismi”. O evento da salvação é
inseparável deste homem que viveu em Nazaré. Sem o
ensinamento de Jesus, o Kérigma não existiria; ele é o
coração do Novo Testamento. Ignorar como Jesus viveu,
segundo Käsemann, leva ao perigo de impor o atributo
de cristão a certa compreensão de Deus e do homem,
segundo o que Jesus não é mais do que um símbolo
místico; o cristianismo seria apenas um mensageiro de
uma gnose. É preciso ir além do simples fato bruto da
existência de Jesus e dar importância ao Jesus terrestre, pois o Kérigma se achava contido em substância em
suas palavras e nos seus gestos. O Novo Testamento
considera o Jesus Histórico critério de validade de seu
ensinamento. Para Käsemann a Igreja com o objetivo de
proteger a pureza do Kérigma, recorreu aos gestos e às
palavras de Jesus, não como um saudosismo do passado e sem isso a teologia seria pura ideologia. O Jesus da
história impediu que Cristo anunciado tornasse um mito, uma gnose, uma ideologia, um subjetivismo. Depois
de ter anunciado o Cristo como Kiryos, as comunidades
tiveram que lutar contra os desvios de tipo espiritualistas que negligenciavam o Cristo extra nós para considerar o Cristo intra nós.
Seguindo na mesma linha de reação, Bornkann afirmou que os Evangelhos proclamam que a fé não começa com ela mesma, mas vive de uma história que a
precede e da qual só pode falar o passado. Os Evangelhos são sensíveis à pessoa histórica de Jesus, ao que
eles nos informam, sobre a sua mensagem, os seus atos
e a história de Jesus é caracterizada por autenticidade,
com um frescor, uma originalidade que nem mesmo a fé
pascal da comunidade primitiva pode reduzir, tudo
quanto se refere à pessoa de Jesus terrestre.
364
Para este teólogo a tradição cristã primitiva sobre
Jesus acha-se impregnada de história, ela se interessa
não só pelos ensinamentos de Jesus, mas também por
sua ação e pelo impacto de sua personalidade sobre o
meio e os homens do tempo. O Kérigma, enfatiza mais a
"contemporaneidade" do Cristo e a sua presença viva e
atual na comunidade como kiryos que o desenvolvimento histórico de sua vida terrestre, mas nem por isso deixa de ser história.
Seguida da reação destes teólogos vem a assim
chamada nova hermenêutica como reação a Bultmann.
Esta denominação deve-se a obra de James Robinson
(The new Hermenêutica), a qual representa a corrente
hermenêutica de vários pensadores. Passa-se a uma nova pesquisa sobre Jesus, a qual é possível não porque se
tenha novas fontes, mas graças aos trabalhos de Dilthey e Heidegger, onde se descobre uma nova concepção
da história e da existência humana. Afirma-se que a história não é uma crônica de fatos, mas a compreensão
que o Eu tem em si mesmo e de seu projeto de existência. A comunidade primitiva conservou intacta quanto
ao essencial, as “Logias” e as narrativas nas quais Jesus
exprimiu suas intenções. Estas “Logia” são fontes históricas para se conhecer a história e pessoa de Jesus.
Na nova hermenêutica com Fuchs e Ebeling, não
somos nós que interpretamos, mas é esta quem nos interpreta. Nada se sabe sobre Jesus que não se ache
fundado sobre o Jesus histórico, assim o kérigma tem
necessidade de Jesus como autenticador da fé.
62. O ACESSO À HISTÓRIA DE JESUS
Os ditos e gestos de Jesus após serem, durante sua
vida, objeto de ciência experimental, tornaram-se de365
pois de sua morte objeto de ciência histórica, pois as
pesquisas a seu respeito, têm o direito de se colocar nos
mesmos termos que para qualquer personagem do
passado. Há porém um problema: não conhecemos Jesus através de seus escritos, mas pelo movimento que
ele suscitou. Nosso ponto de partida para conhecê-lo é a
primeira comunidade cristã que o testemunhou, contudo o testemunho desta comunidade é de crentes, pois os
evangelistas têm uma finalidade religiosa, e por isso atestam que Jesus é o Messias, o Senhor, o Filho de
Deus, ou seja, com um intuito de culto e de adoração.
Os evangelhos, não são crônicas, ou biografias sobre
Jesus, mas documentos de fé. Só atingimos por eles, o
Jesus professado como Senhor. Por isso, devemos fazer
um exame histórico-crítico no contexto da intenção de fé
dos evangelhos para podermos conhecer o Jesus terrestre.
Sabemos que os escritos dos Evangelhos serviram
de catequese para o culto e para a missão, e por isso,
foram marcadas pela atualização e pela interpretação da
Igreja primitiva. Os evangelistas não se limitaram a reproduzir a tradição anterior, mas a repensaram e a rescreveram segundo as perspectivas teológicas e literárias
próprias. Podemos estar certos de que as interpretações
dos apóstolos, da Igreja ou dos evangelistas não deformaram a imagem de Jesus? Será possível descobrir a
interpretação definitiva, os gestos autênticos acontecidos, e ouvir a mensagem de Jesus com frescor? Será
possível chegar a "ipissima verba Jesu", ou ao conteúdo
essencial do seu ensinamento como um bloco granítico
que alimentou as interpretações dos evangelistas? Podemos estabelecer critérios rigorosos que nos dêem a
certeza de conhecer o rabi itinerante que agitou a Palestina e transformou a história da humanidade? Qual é o
366
laço entre história e Kérigma, entre texto e acontecimento?
Se o cristianismo não puder fundamentar a interpretação que a fé lhe deu, naufragará na primeira de
suas pretensões, visto que a fé cristã implica na relação
de continuidade entre o fenômeno Jesus e a interpretação da Igreja Primitiva, pois foi na vida terrestre que
Deus se manifestou. A teologia deve portanto estabelecer pelos evangelhos a justificativa da interpretação cristã do fenômeno Jesus em sua condição terrestre.
Diante desta situação e interrogação, a crítica procurou dar algumas respostas e dentre as quais afirma
que a crítica da exegese até século XVIII, onde até então
se tinha a autenticidade dos Evangelhos porque autênticos eram os autores, pois estes como testemunhas oculares não suscitavam de forma alguma problemas de
autenticidade. Mas com os ceticismo histórico inaugurado com Reimarus, e radicalizado por Bultmann, a crítica reconheceu a cronologia entre Jesus e a pregação
apostólica, mas declarou a ruptura essencial entre Jesus de Nazaré e o Kérigma. Nesta perspectiva a fé é indiferente aos resultados da história. Diante disso houve
uma reação com os discípulos de Bultmann (Käsemann,
Bornkmann), mais moderados e da "Prova Hermenêutica", sobretudo com Fuchs e Ebeling, que consideram
exagero de Bultmann. Já Pannerberg e Moltann afirmaram o primado da história. Por fim, a exegese católica
contemporânea é convencida de que através do Kérigma
chega-se ao Jesus de Nazaré. Para ela o glorificado de
hoje é o crucificado de ontem. Separar Jesus do Kérigma
é cair no grosticismo. Portanto, o Senhor que a Igreja
adora é o Jesus de Nazaré, o Filho do Carpinteiro. Tudo
isso não é uma idéia, um enigma, ou uma encenação
cultural, mas história real. Afirma também que Jesus e
o texto atual há várias mediações que enriqueceram
367
nossa compreensão sobre Jesus e que o problema do
acesso a Jesus pelos evangelhos é um problema de hermenêutica.
63. A CONTRIBUIÇÃO DA REDAKTIONSGESCHICHTE
A Formgeschichte reduziu ao mínimo os hagiógrafos, os quais são tratados como compiladores e colecionadores dos elementos da tradição. Ela dá importância
à iniciativa e liberdade dos evangelistas, mas em que
medida esta liberdade é compatível com a fidelidade à
tradição anterior? Veremos isso com o motivo externo e
interno do Redaktionsgeschichte.
A expressão redaktionsgeschichte é tirada da obra
de W. Marsen sobre o evangelho de Marcos. É uma
disciplina que procura descobrir a forma e o conteúdo
dos materiais utilizados pelo evangelista para discernir a
natureza e a extensão de seu trabalho na organização do
material pré- existente. Assim como também nos retoques redocionais que lhe são próprio, é como se falasse
de uma “Compositiongeschichte”.
A Redaktionsgeschichte é do começo do século passado quando a escola Liberal ensinava que se podia conhecer Jesus tal qual ele é, com Marcos que é fonte para
Lucas e Mateus, os quais por sua vez fizeram uma elaboração teológica enquanto Marcos era puro. Wrede
contestou esta posição estabelecendo que também Marcos tem composição teológica. A Redaktionsgeschichte é
o segundo tempo de um processo iniciado pela Formgeschichte, a qual procurou a história da tradição evangélica e não a redação.
A Redaktionsgeschichte teve desenvolvimento depois de 1945 numa obra de Günter Bornkamm onde analisa a passagem de a tempestade aplacada de Mateus
8, 23-27 e de Marcos 4,35-41. Nesta Mateus interpretou
368
o acontecimento no episódio do chamamento dos apóstolos à vida apostólica e da fé na palavra de Jesus, já
para Marcos o milagre precedeu as admoestações de Jesus dirigidas aos apóstolos. Depois em 1954 Conzelmann estudou Lucas e sua linha teológica. Em seguida
em 1956 Willi Marxsen faz uma comparação entre
Formgeschichte e Redaktionsgeschichte, e consideram
os evangelistas como autores e não como compiladores,
a Redaktionsgeschichte interessa-se pelos grandes conjuntos e obriga a distinguir um tríplice sitz im leben: Jesus, a Igreja primitiva e o evangelista. O fruto deste estado M Marxsen demonstrou que o início de Marcos é
uma composição pessoal do evangelista. Marcos interpreta a história a partir de João Batista.
Através da Redaktionsgeschichte constata-se que
os evangelistas fizeram uma escolha nos materiais da
tradição, um trabalho de síntese e adaptaram seus evangelhos às condições das Igrejas locais. Neste material encontrado os evangelistas escolheram, deixando de
lado certos relatos ou palavras, para poder exprimir
seu ponto de vista levando em conta as situações diversas de seus leitores.
Grande parte das modificações de Lucas e Mateus
em relação a Marcos são de ordem estilista; às vezes é
o acréscimo de uma palavra como esclarecimento, outra
vez é uma subtração, às vezes é adaptação de uma metáfora como no exemplo da casa construída na rocha
(Mt 7,24-27), onde Mateus vê uma casa do tipo palestino, já Lucas (6,45-47) do tipo grego. Há também a
transposição de perícopes, Lucas 3,1-20 coloca dois fatos da vida de João Batista e Marcos (6,17-29) coloca-os
separados, isto é, a sua pregação e sua prisão. Há também transposição no seio da mesma perícope, como por
exemplo a tentação de Jesus no deserto, ou a adição de
um logion errático conforme Lucas 18,24 e Mateus
369
23,12. Adição de um relato proveniente de outra tradição, assim como Mateus 27,15-26, no relato de Jesus
diante de Pilatos acrescenta um currículo, sobre o sonho
da mulher de Pilatos. Há abreviação de documento fonte, ligação de pericopes isoladas; enquanto Marcos se
contenta com justificação, Mateus e Lucas têm cuidado
de ligá-los com palavras. As indicações geográficas às
vezes têm caráter biográfico, outras vezes teológicos,
como por exemplo Mateus coloca as bem-aventuranças
na montanha e Jesus como o novo Moisés. Há referências ao AT com interpretação teológica da tradição, como por exemplo Marcos que vê na multiplicação dos
pães o Jesus Messias e pastor que nutre. (Mc 6,34)
Em suma, a Redaktionsgeschichte contribuiu para
personalizar o autor, a fisionomia de cada evangelista
como escritor e teólogo. O evangelista encontra-se sob a
tensão da fidelidade à tradição e da sua liberdade criadora, e a Redaktionsgeschichte permitiu medir o grau
de liberdade e de fidelidade dos evangelistas diante das
fontes.
64. OUTROS CRITÉRIOS DE AUTENTICIDADE HISTÓRICA DOS EVANGELHOS
Não basta dizer que houve desde o início a transmissão ativa e fiel das palavras e ações de Jesus, e que
houve durante o percurso de formação da tradição, a
preocupação de transmissão fiel dos ditos e gestos de
Jesus tanto pela Igreja como pelos evangelistas. É preciso que esta fidelidade seja verificável, e para isso deve-se
fazer uma crítica histórica, servindo-se de alguns critérios.
370
1. O critério de historicidade é um empreendimento
que iniciou em 1954 com Käsemann e continuou com
outros. A partir daí os teólogos elaboraram alguns destes critérios tais como:
2. O critério da múltipla atestação, com o qual pode-se
considerar autêntico um dado evangélico solidamente
atestado em todas as fontes ou na maioria dos evangelhos (Mc, Quelle) e nos outros escritos do Novo Testamento e terá mais peso o critério se o fato encontra-se
em diferentes formas literárias, como por exemplo o tema da misericórdia de Jesus, porque testes “unus , testes nullus”.
3. O critério de descontinuidade com o qual pode-se
considerar autêntico um dado do evangelho irredutível
quanto às concepções do judaísmo, seja às concepções
da Igreja primitiva. Os evangelhos estão em descontinuidade com a literatura judaica antiga como também com
a literatura cristã ulterior, eles são testemunhas e não
biografias, seu conteúdo é a pessoa de Cristo, um ser
absolutamente único.
4. Estão em descontinuidade quanto a forma e conteúdo, como por exemplo a palavra Abá usada por Jesus,
assim como sua atitude perante o sábado, as purificações legais, a concepção de reino diferente daquela judaica.
5. O critério de continuidade, com o qual pode-se considerar autentico a conformidade dos relatos evangélicos com o meio palestino e judeu da época de Jesus como conhecemos na arqueologia, na literatura e na história. As descrições do meio humano (trabalho, habitação,
profissões) do meio linguístico e cultural (esquema de
371
pensamentos, sobretudo aramaico) do meio social, econômico, político, jurídico, religioso (rivalidade entre fariseus e saduceus, preocupação quanto à pureza e impureza, lei do sábado, demônios, anjos, fim dos tempos).
6. Critério de explicação necessária, com o qual podese considerar autentico quando há um critério que explica um conjunto de dados de maneira coerente, assim
como Jesus suas atitudes diante das prescrições legais,
das autoridades, das escrituras, sua linguagem, o prestigio que gozava do povo e dos discípulos, O que se explica se admitirmos em Jesus uma personalidade única
e transcendente e não um mito. Pelos seus milagres temos razões suficientes para o perfil de Jesus, tais como,
a fé dos apóstolos em sua messianidade, o ódio dos
sumo sacerdotes e dos fariseus...
65. MÉTODOS DE ESTUDO PARA CHEGAR A CONHECER JESUS
Como chegamos a conhecer Jesus Cristo? A resposta mais evidente é através do NT, especialmente os
evangelhos. Contudo embora é uma resposta evidente
deve-se levar em conta do problema hermenêutico, pois
os documentos (evangelhos) têm cerca de 2 mil anos e
foram escritos com uma mentalidade pré-científica, mística e acrítica. O método histórico –crítico leva-nos a ouvir a mensagem dos evangelhos e distanciar-nos criticamente do presente, e questiona-nos a partir do analisado já que o Evangelhos foram resultado de reflexão,
pregação e catequese que a comunidade dos discípulos
elaborou sobre Jesus; eles são a cristalização dogmática
da Igreja primitiva. Os Evangelhos contém pouco sobre o
Jesus histórico e muito da reação de fé das comunida372
des primitivas. Por isso, a exegese crítica desenvolveu
vários métodos no estudo dos textos evangélicos, dentre
os quais temos:
1. Em chave de Hermenêutica Histórica- crítica
a) O método da história das formas (Formgeschichte) – este método estuda o meio vital em que as perícopes mudaram, se formam na catequese, no
culto ou na pregação aos pagãos. Busca ver se se
trata de dito Jesuânico, ou seja, próximo de Jesus
ou se foi interpretação da comunidade ou elaboração dela e depois colocado na boca de Jesus.
b) O método da história das tradições (Traditionsgeschichte) – este método prolonga e aprofunda o
precedente, estuda as tradições dos atuais textos e
constata a atividade criadora seja em teologia que
no culto da comunidade primitiva. Os evangelhos
não são só livros sobre Jesus, mas também livros
que retratam as tradições e o desenvolvimento
dogmático da Igreja primitiva. Por exemplo Lc
16,1-9 tem uma redação que coloca tudo na boca
de Cristo, porém são tradições acumuladas, trabalho teológico e interpretativo da comunidade primitiva.
c) O método da história das redações (Redaktionsgeschichte) – este método vê nos evangelistas
os redatores que utilizaram do material da tradição com perspectivas teológicas próprias e que fizeram a seleção dos ditos e das tradições. Os evangelistas eram teólogos com suas interpretações
pessoais. Assim os Evangelhos são “martyria”, ou
seja, testemunho de fé sobre o significado Jesus.
Há um trabalho redacional de cada evangelista
com suas perspectivas teológicas. Desta forma,
373
Mateus dramatiza uma determinada cena, Lucas
enfoca os pobres, as mulheres, os pagãos... Com
isso a comunidade primitiva usou de muita liberdade junto às palavras de Jesus, interpretando-as,
modificando-as, criando novas perícopes com o intuito de localizar Jesus e sua mensagem na vida.
2. Em chave de Hermenêutica Existencial – a interpretação histórico-crítica reflete sobre o que o NT
pensa sobre Jesus e não se pergunta sobre a realidade que está atrás de cada interpretação. Compreender exige sempre interpretar, daí que compreender
tem necessidade de uma pré-compreensão ao objeto
derivado do nosso meio, da educação e do ambiente
em que vivemos.
a) O círculo hermenêutico e seu sentido – para
compreender realmente quem é Jesus precisa abordá-lo como quem sente atingido e agarrado por
ele, e isto significa uma atitude de fé. Os evangelhos visam anunciar Cristo e levar a sua causa à
frente, e foi dentro da comunidade primitiva que
se criou a atmosfera de fé, se escreveram os evangelhos e se estabeleceram as coordenadas comuns pelas quais nos situamos diante de Cristo.
b) A hermenêutica da existência política – dentro
da sociedade podem entrar mecanismos ideológicos que usam e abusam de Cristo para legitimar
suas pretensões. Muitas vezes a Igreja foi equiparada com Cristo e teologia feita por homens, como
mensagem de Cristo. É preciso distinguir a voz
dos homens e a voz de Deus.
3. Em chave de Hermenêutica Histórico salvífica
374
Este método vê a história da salvação como a história da auto-comunicação de Deus e como a história
das respostas humanas à proposta de Deus. Em Cristo
a história da salvação deu um pulo qualitativo, pela
primeira vez a proposta divina e resposta humana chegaram a uma perpétua adequação; nele deu-se absolutamente a salvação, ele é o “marketing-point” da hermenêutica religiosa, da historia do mundo e dos homens.
Como conclusão podemos dizer que não é mais
possível sermos cientificamente ingênuos, diante de
Cristo como disse Kierkegaard: “Cala-se recolhe-se, pois
é absoluto”, contudo devemos falar sobre e a partir de
Jesus Cristo não para o definirmos, mas para nos definirmos; não o mistério, mas a nossa posição sobre o
mistério. “Em Cristo estão escondidos todos os tesouros
da sabedoria e ciência”(Cl 2,3) e São João da Cruz diz:
“Há muito que aprofundar em Cristo, sendo ele qual abundante mina com muitas cavidades cheias de ricas
veias, e por mais que se cave, nunca se chega ao termo,
nem se acaba de esgotar, ao contrário, se vai achando em
cada cavidade novas veias de novas riquezas, aqui e ali”.
66. JESUS CRISTO NA HISTÓRIA
Jesus surgiu em pleno quadro da história, nasceu no tempo de Augusto, morreu no de Tibério. Viveu
na mesma época histórica que viveu Filon, o judeu, que
Tito Lívio, que Sêneca, que Virgilio. Sua vida pública ele
a desenvolveu entre estas figuras históricas. Sendo que
fez sua primeira aparição no ano 15o do Império de Tibério Cesar. Portanto, ele não é uma figura lendária ou
vaga que vive em lugares ocultos.
Quais as fontes para estudar esse personagem
histórico? Seria lógico conceder valor histórico aos evangelhos, como documento histórico, contudo não seria cientifico, por isso nos séculos passados houve uma
375
febril atividade de estudos críticos sobre os evangelhos.
Estes foram analisados e esmiuçados nestes últimos
tempos com todo rigor e escrúpulos próprios da ciência, através de todos métodos usados na elucidação de
autenticidade histórica de um documento. Estes estudos foram precedidos pelos racionalistas, os quais diante dos resultados concluíram: “Trabalhamos 50 anos
febrilmente para extrair pedras de canataria que serviam
de pedestal à Igreja Católica”.
O trabalho realizado pelos estudiosos da pessoa de
Jesus nestes últimos tempos, foi embasado em vários
métodos dentre os quais o Método das Citações, o qual
procura descobrir as citações dos evangelhos em escritos anteriores aos anos 150 ou 100 da nossa era como
citações ipsis-litteris dos evangelistas. No Codice Murotoriano é dado por certeza que no ano 142 com Pio I, existia o catálogo dos livros canônicos e dentre os quais
estavam os evangelhos. Também o Codice Sinaitico é
uma copia em grego dos evangelhos, usados na Igreja no
1o século. Desta forma, a crítica científica pode contar
com os evangelhos copiados em citações até antes do
ano 100 de nossa era.
Outro é o Método das Traduções, as quais são
traduções vetus itálica, ou seja versão latina dos evangelhos, e na Peschito, ou seja a versão Síria dos Evangelhos. Estas existem antes do ano 150 para a primeira
versão e para a segunda, no fim do século I.
Outro ainda e o Método Polêmico baseado no fato
de que no século II redigiam-se Libelos contra os hereges, onde se recorria aos evangelhos, argumentando
que os próprios hereges nesta época conheciam os evangelhos.
Portanto, a ciência concluiu com a multiplicidade
de argumentos que os evangelhos são autêntico escritos
do primeiro século do cristianismo. E estudiosos não
376
deixaram de professar essa verdade, como Renan que
confessou: “em suma, admito como autênticos os 4 evangelhos”.Ou como Harnack que da mesma forma afirma que: “O caráter absolutamente único dos evangelhos é hoje em dia, universalmente reconhecido pela crítica”.
Hort depois de 25 anos de estudos concluiu que as variantes que atingem a substância dos textos evangélicos são tão poucas que podem ser avaliadas em menos
de milésima parte do texto.
67. JESUS CRISTO DIANTE DA CIÊNCIA
A ciência racionatista com sua refinada supercrítica diz ser impossível a existência de um homem
Deus. De fato o Jesus de Renam é a mais alta regra de
vida, a mais destacada e a mais virtuosa e “Criou o ensinamento prático mais belo que a humanidade recebeu”.
Para Renan Jesus concebeu a verdadeira cidade de
Deus, a verdadeira palingenésia, o sermão da montanha, a apoteóse do fraco, o amor do povo, o gosto do
pobre... cada um de nós lhe é devedor do que tiver de
melhor. Da mesma forma, Loigy tem para com Jesus
uma admiração espetacular quanto a sua humanidade
afirma: “Sente-se por tudo em seus discursos, em seus
atos, em suas dores, não sei que de divino, que eleva Jesus Cristo, não somente por sobre a humanidade ordinária, mas também por sobre o mais seleto da humanidade”.
68. O CRISTO DE HOJE NA HISTÓRIA
Jesus Cristo vive hoje não de uma saudade, não
apenas de sua memória e da mensagem libertadora,
377
mas ele está presente numa forma de vida que superou todos as limitações com sua ressurreição, e por ela
ele continua presente neste mundo: “Eu estarei convosco todos os dias...” (Mt 28,20). Com a ressurreição Jesus abriu uma meta para o homem, pois iniciou-se
uma nova criação (II Cor 4,6), o ponto Ômega foi atingido (Ap 1,17; 21,6). Com ele não podemos mais analisar o mundo somente a partir da criação in illo temporé,
mas devemos compreende-lo a partir da escatologia, do
futuro presente.
Com a encarnação Jesus foi inserido na nossa
história e recebeu um pedaço vital da matéria e por isso relaciona-se com o mundo. Ele viveu de forma sárquica na Palestina e dentro do tempo e da cultura daquela época, e com a glorificação de sua situação na
ressurreição ele não abandonou o mundo e o seu corpo, mas o assumiu de forma mais plena e profunda,
por isso ele está presente agora na globalidade do tempo. O “homo absconditus” em Jesus foi transformado
em “homo revelatus”, seu corpo foi transformado em
pneumático espiritual (I Cor. 15,44), ou seja, o Cristo
glorificado pelo Espírito quer dizer segundo Paulo que
ele tem uma nova existência, que superou todas as limitações do espaço e tempo terrestre e que vive na esfera divina da plenitude. A ressurreição manifestou patente o que estava latente, ele que estava no mundo
desde o início (Gn 1,2) e “sem ele nada se fez de tudo o
que foi criado” (Jo 1,3). Nele está colocada toda a totalidade do Cosmos (Ef 1,10). Neste sentido o ágrafo (palavra de Cristo não contida nos Evangelhos) expresso no
Evangelho de São Tomé, exprime a fé da comunidade
primitiva ao dizer: “Eu sou a luz que está sobre todas as
coisas. Eu sou o universo. O universo saiu de mim e o
universo retornou a mim. Rache um pedaço de lenha e
eu estou lá dentro, levante um pedra e eu estou debaixo
378
dela”. Por isso Santo Agostinho afirma: “A história está
grávida de Cristo”.
Mas, se reconhecemos os sinais de Cristo na história, podemos reconhecê-lo também no Cosmos”? Perguntas que fizeram Claudel, Chardin e outros. Teilhard
de Chardin definiu que existe o infinitamente grande
dos espaços siderais e frente a isso o homem parece
uma “Quakitá négligenble”, perdido como um átomo
errante pelos infinitos espaços vazios... mas existe
também o infinitamente complexo da consciência humana que sabe que existe e se dá conta de sua pequenez e que exatamente isso forma a sua grandeza, que a
faz maior e mais nobre que todas as grandezas físicas e
matemáticas imagináveis. Pode-se pensar e especialmente pode-se amar, pois um único ato de amor como
diz Pascal, vale mais que o universo inteiro. Por isso, é
no homem que passa o sentido da totalidade.
Será que não existem outros seres racionais dos
Cosmos? A nossa fé não proíbe, pelo contrário, devido a
imensidão do universo e a impossibilidade do homem
ser o sacerdote cósmico pelo qual é dada a glória de
Deus, pode existir seres espirituais que melhores que o
homem desempenhem esta função sacerdotal. Sendo
que o Lógos pertence à ordem da criação querida por
Deus para ser o receptáculo de sua entrada nele, então
podemos dizer: Assim como o Lógos eterno apareceu
em nossa carne, assumindo as coordenadas evolutivas
de nosso sistema galáxio, nada impede que o Lógos tenha assumido as condições espirituais e evolutivas de
outros seres e de outros planetas. O modo redentor
como foi realizado aqui na terra seria apenas uma forma concreta dentre outras pelas quais o Verbo de Deus
se relaciona com a criação. Nada repugna também que
outras pessoas divinas se tenham encarnado, o mistério Trino de Deus é tão profundo e inesgotável que ja379
mais pode ser exaurido à concretização do nosso mundo. Portanto Jesus como homem interessa só a nós,
enquanto segunda Pessoa da Trindade, à totalidade da
realidade.
O homem é o maior sacramento de Cristo; ele não
é só imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), mas
também de Cristo (Rm 8,29; Cl 3,10). Por isso, assim o
homem é a maior aparição não só de Deus, mas também de Cristo ressuscitado. Quem rejeita o irmão repele o próprio Deus e o próprio Cristo (Mt 25,42-43). Jesus está presente em cada homem, independentemente
de suas crenças, ou ideologias, sempre que este busca
o amor, a justiça... neste sentido Cristo é presente por
cristãos anônimos e de forma mais profunda ele está
presente naqueles que o seguem e o imitam pela fé e o
amor, ou seja, nos cristãos imitá-lo não é copiá-lo, mas
ter os seus mesmos sentimentos (Fl 2,5).
O Cristo que enche todo o Cosmos está presente
em cada homem, atinge o seu maior grau de concreção
histórica no católico em posse do Espírito Santo. A igreja é o corpo de Cristo, nela ele batiza, consagra, perdoa,
ensina, governa; ele esta presente na eucaristia, nos
demais sacramentos e na liturgia.
69. COMO CHAMAR CRISTO HOJE?
O NT conhece cerca de 70 títulos diferentes dados
a Jesus Cristo pelos cristãos judeus palestinenses, os
judeus na diáspora e os gregos. Títulos da esfera cúltica da liturgia, outros seculares como das cartas aos
Efésios e Colossenses onde Cristo é tido como cabeça
do Cosmos e da Igreja. E nós, quais títulos damos a ele? Nossa fé não se resume nos arcaísmos bíblicos, mas
no encontro pessoal com ele, no deixar se questionar
380
por ele e pela sua mensagem, no ouvir a sua voz no coração.
Para nós ele é o ponto Ômega da evolução, o “homo revelatus” e o presente. Se olharmos a evolução
constatamos que dá cosmogênese passou-se à biogênese e esta emergiu na antropogênese e por fim a cristogênese. É uma realidade que quanto mais avança mais
se complica, e quanto mais se complica mais se unifica
e quanto mais se unifica mais se conscientiza. Assim o
espírito não é um epifenômeno da matérias, mas a sua
máxima realização e concentração em si mesma. Neste
sentido o homem não é um erro de cálculo, um acaso,
mas o ponto onde o processo global toma consciência
de si mesmo e passa a se autopilotar. Cristo é o vértice,
o ponto ômega de todo processo; ele é o homem latente
dentro do processo ascensional que se tornou patente,
é o “homo revelatus”. Nele deu-se um “novum” qualitativo dentro deste princípio esperança do homem. Ele é o
absoluto dentro da história, é um reformador, ou seja,
aquele que quis melhorar o seu mundo social e religioso, sem querer criar coisas absolutamente novas; por
isso ele nasceu dentro do judaísmo e adaptou-se aos
ritos e costumes de eu povo e procurou melhorar o sistema de valores religiosos radicalizando o amor. Ele
não só foi um reformador, mas foi além, ele disse coisas
novas (Mc 1,27) e neste sentido foi um revolucionário.
Jesus Cristo é arquétipo da mais perfeita individualização, o qual se realiza na capacidade do homem
de cada vez mais se acercar do símbolo ou arquétipo de
Deus, o “selbst- self” que se constitui no centro das energias psíquicas do homem. Este selbst é responsável
pela harmonia, integração e assimilação do eu consciente com seus dinamismos com o eu inconsciente
formado pela massa hereditária das experiências de
nossos ancestrais vegetais, animais, humanos, povo,
381
nação, família, etc. Pois bem, Jesus se apresenta como
a atualização mais perfeita do “selbst” de Deus, a etapa
mais consumada do processo de individualização.
Jesus Cristo é nosso irmão maior visto que com
sua encarnação assumiu a totalidade de nossa condição humana, sendo solidário conosco, não temendo a
matéria e a ambigüidade da condição humana, nesta
cotidianidade assumida na obscuridade, viveu de forma
tão humana que anunciou a humanidade de Deus.
Jesus é o Deus dos homens e Deus conosco, pois
nele descobrimos a face desconhecida do Deus do AT,
com isso conhecemos um Deus que faz-se Outro, que
veio ao encontro da fraqueza humana na fragilidade e
assim ele não está longe do homem. O caminho para
Deus passa pelo homem e o caminho para o homem
passa por Deus. O AT descobriu Deus na história, o
cristianismo viu Deus no homem e em Jesus o homem
não é um modo onde Deus se manifesta, mas um modo
de ser do próprio Deus. Por isso, a vocação do homem é
a divinização. Face a isso podemos afirmar com São
Clemente de Alexandria (+215): “Se tiveres encontrado
realmente teu irmão, terás encontrado também teu
Deus”. Portanto, Cristo é a permanente, a incômoda
memória daquilo que deveríamos ser e não somos; a
consciência crítica da humanidade e que conclama a
realizar aquela reconciliação e atingir aquele grau de
humanidade que manifesta a harmonia insondável de
Deus tudo em todos (I Cor 15,28). Enquanto isso não
acontece Cristo continua, como disse Pascal, a ser injuriado, a agonizar e a ser morto por cada um de nós.
70. JESUS CRISTO E O CRISTIANISMO
Em Cristo se realizou as expectativas do coração
humano. Todas as vezes que o homem se abre para
382
Deus no amor, na justiça, no perdão, etc., dá-se o cristianismo. Por isso ele pode unificar-se fora dos limites
cristãos, já antes de Cristo o cristianismo era anônimo
e latente, não possuía um nome, mas com Cristo ele
explicitou-se, assim como a América já era América antes de ser descoberta. A substância do cristianismo já
existia nos primórdios, por isso o cristianismo não é
uma religião ou ideologia, mas a vivência concreta da
estrutura crística. São Justino (+167) disse: “Todos os
que vivem conforme o Lógos são cristãos”, portanto o
cristianismo se articula tanto no sacro como no profano, tanto no ontem como no hoje e no amanhã, assim é
cristão quem tem a vivência cristã.
Quanto mais o homem é orientado para o infinito
mais ele se harmoniza, ele é mais perfeito quanto mais
identifica-se com o infinito, ou seja, o homem para tornar-se verdadeiramente ele mesmo, deve poder realizar
as possibilidades inscritas em sua natureza, especialmente essa de poder ser um com Deus, e quando ele
chega a isso atinge o máximo de sua hominização e
quando isso se verifica, Deus se humaniza e o homem
se diviniza: “A completa hominização do homem supõe a
hominização de Deus” (Ratzinger). A completa hominização do homem exige a sua divinização. A Antropogênese reside na cristogênese, ou seja, na inefável unidade de Deus com o homem e do homem num só ser,
Jesus Cristo.
O que realizou-se de maneira absoluta em Jesus,
deve realizar em cada homem; onde mora a estrutura
crística processa-se a hominização e onde ela fenece
pelo egoísmo do homem, obstaculiza a hominização do
homem. Esta abertura para o outro é imprescindível,
pois dela depende a realização ou a danação do homem
(Mt 25,31-46). Deus está inserido onde vigora o amor e
todas as suas dimensões. A estrutura crística consiste
383
em dar ao outro o amor, como na Trindade processa-se
o Amor (Pericoresis).
A estrutura crística consiste numa nossa resposta
com responsabilidade à proposta divina. Toda vez que
somos chamados a sair de nós mesmos e aceitar o outro, Deus fazendo uma proposta que exige uma resposta de fidelidade e aí se dá a concretização crística. Assim a história humana pode ser de sucesso ou de insucesso da estrutura crística, ou seja, pode ser uma resposta positiva ou negativa, de amor ou egoísmo, história de salvação ou de perdição. Neste sentido, Jesus de
Nazaré é o melhor dom dos homens a Deus e ao mesmo
tempo o mais excelso dom de Deus aos homens, ele é o
sacramento entre Deus e a humanidade.
O cristianismo consiste na resposta com responsabilidade à proposta divina, contudo todas as religiões
são caminhos ordinários pelos quais o homem se dirige
para Deus e O experimenta, embora como resposta à
proposta divina podem conter erros e interpretar de
modo errado a proposta de Deus; por isso nem sempre
podemos legitimar tudo nelas. A igreja católica pela sua
estreita ligação com Cristo que prega e vive nos sacramentos e mistérios, deve ser considerada a mais excelente articulação institucional do cristianismo, nela se
encontra a totalidade dos meios de salvação, embora
sendo pecadora. Ela não esgota a estrutura crística,
nem se identifica simplesmente com o cristianismo.
Se a estrutura crística é um dado da história, é
uma antropologia que deve ser realizada em cada homem para poder salvar, então de onde ela se origina?
Qual é o motivo da encarnação? A redenção dos pecados ou a glorificação do Cosmos? Para os TomistasDominicanos foi por causa do pecado do homem, já os
Escotistas Franciscanos, afirmam que Cristo teria se
encarnado mesmo sem o pecado porque tudo foi feito
384
por Ele e para Ele; sem Cristo faltaria algo à criação e
o homem não chegaria à hominização. A humanidade
estava à espera do Salvador, esta espera deve ser entendida cristologicamente e não cronologicamente.
“Que dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,29) É o
Cristo, Filho de Deus Unigênito e eterno de Deus enviado como homem para nos libertar dos pecados; nele se
cumpriram todas as profecias... Mas eis que no século
XVIII a razão crítica começou questionar esta resposta
religiosa. Percebeu-se que os Evangelhos não eram biografias históricas sobre Jesus, mas fruto da pregação e
meditação dos primeiros cristãos. Estes são interpretações teológicas de fatos acontecidos e não descrição objetiva do que foi Jesus de Nazaré. Isto criou uma revolução com múltiplas reações.
Até neste ponto afirmava-se tudo como histórico,
depois passou-se a negar tudo,: “Cristo nunca existiu”
(Volney) em 1791, “é um mito” (Orews – 1909) criado
pelo inconsciente humano; fenômeno obscurável em
todas as religiões. Na verdade tais posições foram ressachadas a partir de Bultmann (1926). Os evangelhos
são interpretação de algo que aconteceu, além do mais
tem-se testemunhos extra-bíblicos romanos, tais com
Plínio, Suetônio, Tácito, Nero e judeus como: Flávio Josefo e a literatura talmúdica.
Questionando o Cristo dogmático da fé, tentou-se
ruir a verdadeira imagem de Jesus de Nazaré, pois a
intenção dos nacionalistas era chegar no Jesus não interpretado como Filho de Deus e não veiculado ao culto
e à dogmática. Isto começou com Reimarus (+1768) depois Wrede (1904), passado por Renan, Strauss, os
quais tiveram a pretensão de ruir a imagem realmente
histórica de Jesus.
É impossível escrever uma biografia de Jesus sem
lacunas, pois os Evangelhos oferecem ao historiador
385
um feixe de tradições, às vezes isoladas entre si e apenas exteriormente unidas umas com as outras, pois são
testemunhos da fé, do povo. A vida de Jesus é um pedaço do próprio escritor, basta dizer que Marcos que
escreveu entre 65-69 vê Jesus antes de tudo como o
Messias escondido e o grande libertador; é o vencedor
cósmico sobre a morte e o demônio. Mateus que prega
para judeus-cristãos e os gregos na Siria, pelos anos
85-90, vê Jesus o Messias-Cristo profetizado, o novo
Moisés que melhorou a lei. Lucas que escreveu para os
gentios e gregos por volta dos anos 85-90 apresenta Jesus como libertador dos pobres, dos doentes, dos pecadores e dos marginalizados; é o homem que revelou o
caráter filial de todos os homens. João que escreve entre os anos 90-100 vê Jesus como o Filho Eterno do
Pai, o Lógos que habitou entre os homens para ser caminho, verdade, vida, pão e água viva. Seu Jesus é plenamente o Cristo da fé. Paulo que não conheceu o Jesus histórico anuncia o Cristo ressuscitado, como nova
humanidade, o novo céu e a nova terra já presente dentro deste mundo, como o único mediador. O autor de
Colossenses e Éfesos coloca o Cristo como cabeça de
todas as coisas, o polo centralizador onde tudo tem a
sua existência e consistência (Cl 1,16-20).
Diante do fracasso da exegese em reconstruir o
Jesus histórico, Bultmann vê que o único caminho é
centrar-se no Cristo da fé. Para Bultmann tem que distinguir entre o Jesus libertador e o Jesus histórico, entre Jesus e Cristo, pois em lugar da pessoa histórica de
Jesus, entrou a pregação apostólica (Kerigma). Por isso
para Bultmann da vida de Jesus o Kerigma precisa
somente saber que Jesus viveu e que morreu na cruz.
Sendo assim, cristologia “não é uma doutrina sobre a natureza divina e humana de Cristo, mas anuncio, interpretação da fé que me convida a crer...” (Bult386
mann). Cristologia “é explanação da compreensão cristã
de ser” e tudo o resto são “representações mitológicas
e conceitos cúlticos do sincretismo helenístico” (Bultmann).
Portanto, Bultmann busca somente o Cristo da fé,
e isto deixa problemas agudos para a fé. Donde emergiu a fé? Em que se baseia o Kerigma? Pode-se sustentar uma ruptura entre o Jesus histórico e o Cristo da
fé? A morte redentora de Jesus é mera interpretação
da comunidade primitiva? Como se vê cristologia de
Bultmann esvazia a encarnação. Diante de tudo isso
muitos dos discípulos de Bultmann não o acompanharam e assumindo que houve uma continuidade entre o
Jesus histórico e o Cristo da fé, a qual reside no fato da
comunidade primitiva ter explicitado o que estava implícito nas palavras, exigências, atitudes e comportamentos de Jesus. Desta forma, a cristologia consiste
em explicitar aquilo que emergiu em Jesus, onde a
“presencialização da realidade de Deus funda a realidade do próprio Jesus, como disse Bornkamm. Assim, o
Jesus histórico é o Jesus da fé, não só porque os evangelhos são testemunhos da fé, mas também porque Jesus mesmo foi alguém de fé e um testemunho de fé.
71. ALGUMAS POSIÇÕES CRISTOLÓGICAS DA ATUALIDADE
1. Interpretação filosófico-transcendental de Jesus –
Partilhada sobretudo por católicos. Estes partem do
problema da desmitização e afirmam que a cristologia supõe uma antropologia transcendental, pois se
Jesus é homem como nós, a natureza humana como
tal comporta uma transcendência e relacionalidade
com o absoluto; o homem por sua própria natureza
está dimensionando para o absoluto, ele anseia unir387
se a ele como sentido derradeiro de sua hominização
plena. Assim, o homem encontra em si o movimento
para o transcendente. O cristianismo viu em Jesus a
realização deste anseio da natureza humana.
2. Interpretação cósmico-evolucionista de Jesus
Cristo - Aqui não só a natureza está aberta para o
transcendente, mas também todo o processo de evolução ascendente. Jesus representa o ponto Ômega
de convergência de todas as linhas ascendentes de
evolução. Nele deu-se a erupção de tudo em todas
as coisas. Com a encarnação toda a matéria em ascensão foi tocada por Jesus, porque ele é o resultado
do processo de milhões e milhões de anos de evolução.
3. Interpretação de Jesus com o auxílio de categorias da psicologia das profundezas - Serve-se sobretudo de Jung para compreender algumas das facetas do fenômeno Jesus, não se trata de entender
de forma psicologizante a vida consciente de Jesus.
4. Interpretação secular e crítico-social de Jesus –
Vê que o Reino de Deus não pode ser concebido somente na dimensão espiritual, como o perdão dos
pecados e a reconciliação com Deus, mas numa
transformação das pessoas e do cosmos. Jesus foi
contestador, lutador, libertador, ele não veio fundar
uma religião, mas trazer um novo homem; por isso,
Jesus não pode ser encarnado nos cânones religiosos. À Igreja cabe levar a causa libertadora de Cristo, não só no âmbito pessoal, chamando o homem
para a conversão, mas também para a esfera pública. Isto implica numa visão contrária a uma Igreja de
títulos honoríficos herdados das cortes romanas e
bizantinas, onde Jesus não é apresentado como amigo de todos, mas como imperador, juiz, filósofo,
pantocrator...
388
5. O significado da experiência de Cristo na juventude de hoje – Desde os anos 60 que o mundo percebe uma agitação na juventude, com contestações
dos cânones da sociedade. A ciência e a tecnologia
passou a ser vista aos olhos dos jovens como desumana, diabólica, unida ao poder etc. Com o movimento hippy os jovens buscaram a espontaneidade,
a amizade, a paz, o amor. Buscou-se primeiro a libertação com a liberação sexual, o álcool, as drogas,
depois pela meditação transcendental de Mahanishi
e por fim descobriram Jesus Cristo como “super
star”, aquele que antes viveu o amor a fraternidade e
depois pregou. Trazem camisas estampadas com sua
figura...
Esta tendência faz refletir a Igreja e a sociedade, pois
a sociedade secular, religiosa, a racionalista não resolveu com a riqueza os problemas fundamentais do
homem. Mas porque estes jovens não se filiam à Igreja? Porque o seu Jesus não é o Jesus das pregações,
dos dogmas... Para muitos a razão é porque a Igreja o
fez um seu prisioneiro.
72. A REFORMA E A PÓS-REFORMA DIANTE DAS
DECLARAÇÕES ECUMÊNICAS SOBRE O CREDO
CRISTOLÓGICO
As igrejas da reforma e pós-reforma não se satisfizeram com as declarações ecumênicas antigas sobre o
credo cristológico. As disputas em torno das questões
cristológicas tiveram o auge no século IV quando a Igreja teve que resistir Ário que negava a divindade de
Jesus Cristo, o qual teve a sua posição condenada no
Concílio de Nicéia (325). Da mesma forma, o Concílio de
Constantinopla (381) condenou Apolinário, o qual não
389
dava valor suficiente à humanidade de Jesus Cristo.
Ário negou que Jesus Cristo fosse consubstancial ao
Pai, afirmando que o Filho originou-se da vontade, mas
não da substância do Pai. Deus é Pai só quando criou o
Filho. Ário baseava-se em Provérbio 8,22: “O Senhor me
possuía no início de sua obra”; em Deuteronômio 6,4:
“O Senhor é o único Senhor”; e em João 14,28: “O Pai é
maior que eu”. O Pai é incriado e o Filho gerado pela
vontade do Pai. Cristo, devido a sua relação privilegiada
com o Pai, mereceu o título de Filho de Deus, sem que
seja segundo a natureza divina.
Diante destas posições de Ário, o Concílio de Nicéia (325) declarou: “Cremos em um único Senhor, Jesus
Cristo, unigênito Filho de Deus, consubstancial ao Pai,
luz da luz, gerado, não feito da mesma natureza do Pai”.
Condenou a opinião de que houve um tempo em que o
Filho não era e usou a palavra “homo ousios” (consubstancial), pois para Ário o Pai e o Filho não tinham a
mesma substância (ousia).
Com o Concílio de Nicéia o arianismo declinou-se,
mas as controvérsias cristológicas continuaram com
Apolinário de Laudicéia, o qual baseando-se em João
1,14: “O Verbo se fez carne”, indagava sobre a união
hipostática e de como podia dois seres se unirem e formarem um só. Para isso Apolinário encontrou a solução
afirmando que o Deus “Lógos”, em Cristo não se uniu
a um homem genuíno e completo, pois assim devia ter
assumido a pecabilidade da natureza humana. Para ele
o Verbo assumiu apenas o corpo. O Verbo empenhouse para que a salvação não fosse comprometida, por isso a sua humanidade não podia ser igual a nossa.
Diante desta posição, o Concílio de Constantinopla (381) proclamou a perfeição da humanidade de
Cristo condenando Apolinário. Para Igreja o Lógos não
mutilou a humanidade ao fazer-se homem, e Cristo foi
390
igual a nós em tudo, menos no pecado, com isso afirmou a União Hipostática.
Passadas algumas décadas surge Nestório defendendo a uma hipostática como uma união moral, análoga à presença de Deus em nós, embora sendo superior em Cristo. Ele relutou contra o “Theotokos”, dizendo
que Maria só podia ser chamada Mãe da natureza humana de Jesus e de modo algum da divina. A união hipostática para a Igreja representava uma realidade ontológica e não uma simples união moral. Ao mesmo
tempo outro expoente chamado Eutiques passou a defender que com a união hipostática só havia uma única
natureza (monofisismo), enquanto que para Nestório
constituía as duas naturezas em duas pessoas distintas. A Igreja pronunciou-se contra a fusão das duas naturezas defendida por Eutiques e declarou Jesus Cristo: “Verdadeiramente Deus, verdadeiramente homem,
segundo a divindade consubstancial ao Pai, segundo a
humanidade, consubstancial a nós”. Definiu que ambas
as naturezas estão unidas “sem mistura, sem modificação, sem divisão, sem separação”, conservando cada
qual na união, a sua especificidade.
391
ÍNDICE
1. O que é Cristologia
 Métodos da Cristologia
 O problema hermenêutica
 As diversas Cristologias
2. Abordagens bíblicas e teológicas da Cristologia
 Abordagem histórico-crítica
 Abordagem existencial
 Abordagem cristológica pelos títulos
3. Perspectivas teológicas
 Abordagem crítico - dogmática
 Abordagem histórico - salvifica
 Abordagem antropológica
 Abordagem da Cristologia da libertação
 A Cristologia em perspectiva inter - religiosa
4. Por uma “Abordagem Integral” da Cristologia
5. A origem e o desenvolvimento da Cristologia
 Jesus na origem da Cristologia do Jesus pré-pascal
ao cristo pascal
 O desenvolvimento da Cristologia no Novo Testamento
6. Os títulos Cristológicos
 Os títulos cristológicos no Novo Testamento
 Os títulos cristológicos referentes à obra futura de
Cristo
 Os títulos cristológicos referentes à obra presente
de Jesus
 Os títulos referentes a pré-existência de Jesus
7. O perfil Cristológico no Novo Testamento
8. Fundamentação bíblica da Cristologia no Novo Testamento
9. Fontes Bíblicas sobre Jesus
10. As fontes Judaicas sobre Jesus
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11.
12.



13.
14.
15.
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17.
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
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
18.
19.
20.
21.
22.


O que dizem os outros documentos sobre Jesus
As origens e o gênero literário dos Evangelhos
Obstáculos à revelação do mistério de Jesus
A compreensão de Jesus na Igreja Primitiva
A linguagem no meio eclesial primitivo
A Galiléia no tempo de Jesus
O mundo social em que viveu Jesus
O ambiente de Jesus e sua presença nele
A educação familiar de Jesus
Jerusalém no tempo de Jesus
As profissões
As construções
O culto e a religião
O comércio
A nobreza leiga
A situação da mulher
Referências e algumas reflexões sobre Jesus
Testemunhas sobre Jesus nos séculos II e III
A Judéia antes e depois de Jesus
Como o povo via Jesus
O perfil de Jesus
Jesus Cristo o libertador da condição humana
Jesus da extraordinário bom senso, fantasia criadora e originalidade
 Jesus enviado do Pai na concretização do seu Reino
 Jesus, homem de oração
23. O Homem Jesus
24. Jesus concebido dentro de uma família
25. Os relatos da infância de Jesus
26. Jesus na origem da Cristologia: do Jesus prépascal ao Cristo pascal.
27. O desenvolvimento da Cristologia no Novo Testamento
28. O desenvolvimento histórico do dogma
393
 O desenvolvimento histórico do dogma cristológico
 Os Concílios cristológicos
 Avaliação e perspectivas
29. Mais uma ênfase sobre as controvérsias cristológicas
30. A Pessoa de Cristo
31. O conhecimento humano de Jesus
32. A humanidade de Cristo
33. A psicologia humana de Jesus
 A unidade psicológica e auto consciência de Jesus
34. A impecabilidade de Cristo
35. A liberdade humana de Jesus
36. A Divindade de Cristo
37. A consciência messiânica de Cristo
38. As Profecias Cristológicas
39. A União Hipostática
40. Jesus sabia que era Deus?
41. Jesus possuía todas as perfeições
42. O mistério cristológico como unidade da Pessoa de
Cristo
43. A natureza humana e não a pessoa humana de
Cristo
44. O saber e a fé de Jesus
45. Os milagres de Jesus
46. Jesus perante a sua morte
47. O significado de sua morte
48. Os responsáveis pela morte de Jesus
49. Por que queriam matar Jesus?
50. A cruz e a crucifixão
51. A causa da morte de Jesus na cruz
52. Os sofrimentos da paixão e sua morte de cruz
53. Foram os Judeus ou os Romanos que mataram
Jesus?
54. Como a fé concebeu a morte de Jesus?
55. A ressurreição de Jesus
394
56. A experiência “histórica” da ressurreição de Jesus
57. O significado da ressurreição de Jesus
58. As aparições de Jesus
59. O gênero literário na vida de Jesus
60. O debate histórico sobre Jesus
 O Jesus dos iluministas
 O Jesus da escola de Tubinga
 O Jesus da “escola liberal”
 O Jesus na história das religiões
 O Jesus “histórico” no século XX
 O Jesus para os judeus
 O Jesus para os cristãos
 O Jesus para os muçulmanos
 O Jesus para os ateus
61. Uma fase de racionalização na Cristologia
62. O acesso à história de Jesus
63. A contribuição da Redaktionsgeschichte
64. Outros critérios de autenticidade histórica dos Evangelhos
65. Métodos de estudos para se chegar a conhecer
Cristo
 Em chave de hermenêutica histórico – crítica
 Em chave de hermenêutica existencial
 Em chave de hermenêutica histórico salvífica
66. Jesus Cristo na história
67. Jesus Cristo diante da ciência
68. O Cristo de hoje na história
69. Como chamar Cristo hoje?
70. Jesus Cristo e o Cristianismo
71. Algumas posições cristológicas da atualidade
72. A reforma e a pós-reforma diante das declarações
ecumênicas sobre o Credo Cristológico.
395
LIVROS CONSULTADOS
01. Benoit Pierri - Paixão e Ressurreição do Senhor – Edições Paulinas 1995.
02. Bettencourt, Estevão Tavares – Escola Mater Eclesiae
03. Boff, Leonardo – Jesus Cristo Libertador – Editora Vozes, Petrópolis, 1972
04. Carpinter Humphrey - Jesus - Publicações Dom Quixote, 1982
05. Charlesworth James H – Jesus dentro do Judaísmo –
Imago Editora Ltda - 1992
06. Cullman, Oscar – Cristologia do Novo Testamento –
Editora Liber, 2001
07. Dianich, Severino – Il Messia Sconfitto – Edizione Piemme – 1997
08. Dood, Ch – O Fundador do Cristianismo – Edições
Paulinas – 1976
09. Duquoc, Ch – Cristologia, Ensaio dogmático – Edições
Loyola – 1990
10. Grasso, Domenico - O problema de Cristo – Edições
Loyola – 1967
11. Fabris, Reginaldo – Jesus de Nazaré – História e interpetação – Edições Loyola – 1988
12. Laburu, José Antonio - Jesus Cristo é Deus? Edições Loyola - 1974
13. Latourelle, René – Jesus existiu? História e hermenêutica – Editora Santuário Aparecida - 1989
14. Meier, John P. - Um judeu marginal – Imago Editora
Ltda- 1994
15. Messori, Vittorio - Patì Sotto Ponzio Pilato? – Società
editrice internazionale – Torino - 1992
16. Miranda, José Porfirio – O Ser e o Messias – Edições
Paulinas – 1982
17. Palacio, Carlos - Jesus Cristo História e Interpretação
– Edições Loyola – 1979
396
18. Piróvano, Desidério – Porque crer em Jesus Cristo – O
Recado Editora Ltda – 1985
19. Sander, Luis Marcos – Jesus, o Libertador – Editora
Sinodal - 1986
20. Schlesinger, Hugo e Porto Humberto – Jesus era judeu -Edições Paulinas – 1979
21. Voillaume, René - Cristo Palavra de Vida Eterna –
Edições Paulinas - 1979
397
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