Organizado por CP Iuris ISBN 978-85-5805-012-8 DIREITO CIVIL 2ª edição Brasília CP Iuris 2021 SOBRE OS AUTORES AURÉLIO BOURET. Advogado especialista em Direito Privado. Professor de Direito Civil da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ e de diversos cursos preparatórios para concurso público. MATHEUS ZULIANI. Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Aprovado no concurso para Procurador da Imprensa Oficial – SP, do Município de Guarulhos e de Barretos. Coautor do Código de Processo Civil na Perspectiva da Magistratura – Editora RT. Pós-graduação lato senso no Complexo Educacional Damásio de Jesus. Professor Assistente do Curso Preparatório da OAB do Complexo Educacional Damásio de Jesus (2007/2009) e na Faculdade de Direito Damásio de Jesus (2007/2009) na matéria de Direito Civil. Coordenador dos Professores Assistentes do Complexo Educacional Damásio de Jesus (2009). Professor de direito Civil no Instituto Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro (TJDFT). Conclusão do curso de formação de formadores na ENFAM (2015), Professor de Direito Civil na ESMA – Escola Superior da Magistratura do DF e Professor de Diversos cursos preparatórios para carreiras jurídicas. PAULO CESAR BATISTA DOS SANTOS. Graduado pelo Centro Universitário de Brasília – UniCeub (2001). Mestrando em Direito Constitucional Comparado pela Universidade de Samford, Alabama, nos Estados Unidos (2015-2020). Especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura/SP (2018-2019). Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Escola Superior do Ministério Público Federal – DF (2002). Juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia, de 2004 a 2007. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo desde 2007. Juiz Titular da 37ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo - SP, desde 2019. Juiz Assessor da Corregedoria-Geral da Justiça do TJSP, no biênio 2018–2019. Juiz Instrutor no Supremo Tribunal Federal desde setembro de 2019. Professor de cursos de pósgraduação. Coautor de obras na área de Direitos Reais. SUMÁRIO CAPÍTULO 1 – LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO (LINDB) ................................ 8 1. LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO (LINDB) .................................................................... 8 1.1. Vigência e validade das normas ................................................................................................... 8 1.2. Revogação da lei e suas formas .................................................................................................... 9 1.3. Repristinação .............................................................................................................................. 10 1.4. Normas gerais e normas especiais .............................................................................................. 10 1.5. Da integração das normas .......................................................................................................... 10 1.6. Da equidade ................................................................................................................................ 12 1.7. Da aplicação e interpretação das normas jurídicas .................................................................... 12 1.8. Da irretroatividade das leis ......................................................................................................... 13 1.9. Conflito de leis no tempo ............................................................................................................ 13 1.10. Da vigência da lei no espaço ..................................................................................................... 14 CAPÍTULO 2 – DA PARTE GERAL DO CÓDIGO CIVIL ............................................................................... 16 1. DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO CÓDIGO CIVIL........................................................................................... 16 1.1. Socialidade .................................................................................................................................. 16 1.2. Eticidade ..................................................................................................................................... 16 1.3. Operabilidade ............................................................................................................................. 17 1.4. Direito civil constitucional ........................................................................................................... 17 1.5. Diálogo das fontes ...................................................................................................................... 17 2. DAS PESSOAS .......................................................................................................................................... 18 2.1. Da personalidade jurídica ........................................................................................................... 18 2.2. Do nascituro ................................................................................................................................ 18 2.3. Da capacidade ............................................................................................................................ 19 2.4. Da incapacidade ......................................................................................................................... 20 2.5. Maioridade civil .......................................................................................................................... 23 2.6. Da extinção da personalidade jurídica – morte .......................................................................... 26 2.7. Direitos da personalidade ........................................................................................................... 28 2.8. Das pessoas jurídicas - aspectos gerais ...................................................................................... 38 2.9. Do domicílio ................................................................................................................................ 48 2.10. Dos bens .................................................................................................................................... 50 2.11. Dos fatos jurídicos ..................................................................................................................... 55 2.12. Dos atos ilícitos e lícitos ............................................................................................................ 71 2.13. Da prescrição e da decadência ................................................................................................. 73 CAPÍTULO 3 – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES ............................................................................................ 83 1. TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES ................................................................................................................ 83 1.1. Introdução................................................................................................................................... 83 1.2. Diferença entre direitos reais e direitos obrigacionais................................................................ 84 1.3. Figuras híbridas........................................................................................................................... 85 1.4. Relação jurídica obrigacional ...................................................................................................... 86 1.5. Teoria dualista das obrigações (Brinz) ........................................................................................ 87 1.6. Obrigação como um processo ..................................................................................................... 88 2. ATOS UNILATERAIS................................................................................................................................... 89 2.1. Introdução................................................................................................................................... 89 2.2. Promessa de recompensa ........................................................................................................... 89 2.3. Gestão de negócios ..................................................................................................................... 90 2.4. Pagamento indevido ................................................................................................................... 91 2.5. Enriquecimento sem causa ......................................................................................................... 91 3. CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES................................................................................................................ 92 3.1. Classificação básica das obrigações ........................................................................................... 92 3.2. Classificação especial das obrigações ......................................................................................... 92 4. OBRIGAÇÕES DE DAR................................................................................................................................ 93 4.1. Introdução................................................................................................................................... 93 4.2. Obrigação de dar coisa certa ...................................................................................................... 94 4.3. Obrigação de dar coisa incerta ................................................................................................... 97 5. OBRIGAÇÕES DE FAZER E NÃO FAZER .......................................................................................................... 97 5.1. Obrigação de fazer...................................................................................................................... 97 5.2. Obrigação de não fazer............................................................................................................... 99 6. OBRIGAÇÕES ALTERNATIVAS E FACULTATIVAS ............................................................................................. 100 6.1. Obrigações Alternativas ............................................................................................................ 100 6.2. Obrigações Facultativas ............................................................................................................ 101 7. OBRIGAÇÕES DIVISÍVEIS E INDIVISÍVEIS ...................................................................................................... 101 7.1. Dispositivos relevantes.............................................................................................................. 102 7.2. Remissão ou perdão .................................................................................................................. 102 7.3. Perda do objeto e fim da indivisibilidade .................................................................................. 103 8. OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS ........................................................................................................................ 103 8.1. Introdução................................................................................................................................. 103 8.2. Da Solidariedade Ativa.............................................................................................................. 104 8.3. Da Solidariedade Passiva .......................................................................................................... 106 9. ADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES ........................................................................................................... 107 9.1. Introdução................................................................................................................................. 107 9.2. Pagamento direto ..................................................................................................................... 108 9.3. Das formas especiais de pagamento e das formas de pagamento indireto ............................. 113 10. TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES ............................................................................................................ 121 10.1. Introdução............................................................................................................................... 121 10.2. Cessão de crédito .................................................................................................................... 122 10.3. Cessão de débito (assunção de dívida) ................................................................................... 123 10.4. Cessão de contratos ................................................................................................................ 124 11. INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES....................................................................................................... 125 11.1. Introdução............................................................................................................................... 125 11.2. Inadimplemento por ato culposo do devedor (artigo 389 do CC) ........................................... 125 11.3. Inadimplemento por fato não imputável ao devedor ............................................................. 128 11.4. Cláusula penal e arras ............................................................................................................. 129 QUESTÕES ............................................................................................................................................... 130 GABARITO ............................................................................................................................................... 137 CAPÍTULO 4 — DIREITO DOS CONTRATOS: TEORIA GERAL DOS CONTRATOS ..................................... 139 1. PRINCÍPIOS CONTRATUAIS ....................................................................................................................... 139 1.1. Introdução ao estudo dos contratos ......................................................................................... 139 1.2. Função Social dos Contratos ..................................................................................................... 140 2. PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL ................................................................................................................. 141 2.1. Princípio da autonomia da vontade .......................................................................................... 141 2.2. Princípio da supremacia da ordem pública .............................................................................. 143 2.3. Princípio do consensualismo ..................................................................................................... 144 2.4. Princípio da relatividade dos contratos ................................................................................... 145 2.5. Princípio da obrigatoriedade dos contratos ............................................................................. 145 2.6. Princípio da revisão dos contratos ou da onerosidade excessiva ............................................. 145 2.7. Princípio da boa-fé e probidade ................................................................................................ 147 3. FORMAÇÃO DOS CONTRATOS .................................................................................................................. 151 3.1. Introdução ................................................................................................................................ 151 3.2. Fases para a formação dos contratos ....................................................................................... 151 4. FORMAS CONTRATUAIS .......................................................................................................................... 153 4.1. Contrato preliminar .................................................................................................................. 153 4.2. Estipulação em favor de terceiros – artigos 436 a 438 do CC .................................................. 155 4.3. Promessa de fato de terceiro – artigos 439 e 440 do CC ......................................................... 155 4.4. Contrato aleatório – Artigos 458 a 461 do CC ......................................................................... 156 5. VÍCIOS REDIBITÓRIOS E EVICÇÃO ............................................................................................................... 157 5.1. Definição de vícios redibitórios ................................................................................................. 157 5.2. Evicção – Garantia implícita imposta ao alienante.................................................................. 159 6. REVISÃO DOS CONTRATOS ....................................................................................................................... 160 6.1. Teoria da imprevisão ................................................................................................................ 161 6.2. Teoria da quebra da base objetiva do negócio (art. 6º, V, CDC) ............................................... 161 7. COVID-19 E IMPACTOS NOS CONTRATOS .................................................................................................... 162 7.1. Institutos Pertinentes ................................................................................................................ 162 7.2. Três grupos ou hipóteses de contratos ..................................................................................... 163 CAPÍTULO 5 – DIREITO DOS CONTRATOS: CONTRATOS EM ESPÉCIE .................................................. 166 1. COMPRE E VENDA.................................................................................................................................. 166 1.1. Conceito .................................................................................................................................... 166 1.2. Natureza jurídica ...................................................................................................................... 166 1.3. Elementos constitutivos ............................................................................................................ 166 1.4. Estrutura sinalagmática e os efeitos da compra e venda ......................................................... 167 1.5. Restrições à autonomia privada na compra e venda ................................................................ 168 1.6. Regras especiais da compra e venda ........................................................................................ 170 1.7. Cláusulas especiais da compra e venda .................................................................................... 172 1.8. Terrenos da Marinha ................................................................................................................ 175 2. TROCA OU PERMUTA .............................................................................................................................. 176 2.1. Conceito .................................................................................................................................... 176 2.2. Troca entre ascendentes e descendentes ................................................................................. 177 3. CONTRATO ESTIMÁTORIO ........................................................................................................................ 177 3.1. Conceito .................................................................................................................................... 177 3.2. Natureza jurídica ...................................................................................................................... 177 3.3. Responsabilidade pela perda da coisa consignada ................................................................... 178 4. DOAÇÃO.............................................................................................................................................. 178 4.1. Introdução................................................................................................................................. 178 4.2. Modalidades de doação ............................................................................................................ 179 4.3. Promessa de doação ................................................................................................................. 183 4.4. Revogação da doação ............................................................................................................... 183 5. LOCAÇÃO DE COISAS NO CÓDIGO CIVIL ...................................................................................................... 184 5.1. Introdução................................................................................................................................. 184 5.2. Deveres das partes numa locação ............................................................................................ 185 5.3. Extinção do contrato de locação ............................................................................................... 185 6. EMPRÉSTIMO: COMODATO E MÚTUO ........................................................................................................ 186 6.1. Introdução................................................................................................................................. 186 7. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO ......................................................................................................................... 189 7.1. Introdução................................................................................................................................. 189 7.2. Regras da prestação e serviço no CC/02 ................................................................................... 189 7.3. Extinção do contrato de prestação de serviço .......................................................................... 190 7.4. Tutela externa do contrato ....................................................................................................... 190 7.5. Prestação de serviço agrícola ................................................................................................... 191 8. CONTRATO DE EMPREITADA..................................................................................................................... 191 8.1. Introdução................................................................................................................................. 191 8.2. Regras da empreitada no CC/02 ............................................................................................... 191 8.3. Sub-empreitada ........................................................................................................................ 193 9. CONTRATO DE DEPÓSITO......................................................................................................................... 193 9.1. Introdução................................................................................................................................. 193 9.2. Regras quanto ao depósito voluntário ...................................................................................... 194 9.3. Depósito necessário .................................................................................................................. 195 10. MANDATO ......................................................................................................................................... 195 10.1. Introdução............................................................................................................................... 195 10.2. Principais classificações do mandato ...................................................................................... 196 10.3. Principais regras do mandato no CC/02 ................................................................................. 197 10.4. Obrigações do mandatário ..................................................................................................... 197 10.5. Obrigações do mandante ........................................................................................................ 198 10.6. Substabelecimento.................................................................................................................. 198 10.7. Extinção do contrato de mandato .......................................................................................... 198 11. CONTRATO DE COMISSÃO; AGÊNCIA E DISTRIBUIÇÃO; CORRETAGEM .............................................................. 199 11.1. Contrato de comissão ............................................................................................................. 199 11.2. Contrato de agência e distribuição ......................................................................................... 200 11.3. Corretagem ............................................................................................................................. 201 12. CONTRATO DE TRANSPORTE .................................................................................................................. 202 12.1. Introdução............................................................................................................................... 202 12.2. Regras gerais previstas no Código Civil ................................................................................... 202 13. CONTRATO DE SEGURO ......................................................................................................................... 207 13.1. Introdução............................................................................................................................... 207 13.2. Regras gerais do seguro no Código Civil ................................................................................. 207 13.3. Seguro de dano ....................................................................................................................... 210 13.4. Seguro de pessoa .................................................................................................................... 214 14. CONSTITUIÇÃO DE RENDA E JOGO E APOSTA .............................................................................................. 215 14.1. Constituição de renda ............................................................................................................. 215 14.2. Jogo e aposta .......................................................................................................................... 216 15. CONTRATO DE FIANÇA .......................................................................................................................... 216 15.1. Introdução............................................................................................................................... 216 15.2. Efeitos e regras da fiança no Código Civil ............................................................................... 217 15.3. Classificação da fiança quanto a sua extensão....................................................................... 219 16. TRANSAÇÃO E COMPROMISSO................................................................................................................ 219 16.1. Transação ............................................................................................................................... 219 16.2. Compromisso .......................................................................................................................... 221 QUESTÕES ............................................................................................................................................... 222 GABARITO ............................................................................................................................................... 229 CAPÍTULO 6 — DIREITO DAS COISAS .................................................................................................. 231 1. INTRODUÇÃO........................................................................................................................................ 231 1.1. Direitos Reais x Direitos Pessoais (obrigacionais) ..................................................................... 231 1.2. Demais diferenças entre os direitos reais e os direitos pessoais patrimoniais ......................... 232 2. DA POSSE ............................................................................................................................................ 233 2.1. Natureza jurídica da posse........................................................................................................ 233 2.2. Diferenças entre posse e detenção ........................................................................................... 233 2.3. Principais classificações da posse ............................................................................................. 234 2.4. Efeitos materiais e processuais da posse .................................................................................. 236 2.5. Posse e responsabilidade .......................................................................................................... 237 2.6. Posse e processo civil ................................................................................................................ 237 2.7. A legítima defesa da posse e o desforço imediato .................................................................... 239 2.8. Forma de aquisição, transmissão e perda da posse ................................................................. 239 2.9. Composse .................................................................................................................................. 240 3. PROPRIEDADE ....................................................................................................................................... 240 3.1. Conceito .................................................................................................................................... 240 3.2. Principais características do direito de propriedade ................................................................. 240 3.3. Função social e socioambiental da propriedade ....................................................................... 241 3.4. Desapropriação judicial privada por posse-trabalho ................................................................ 242 3.5. Diferença entre propriedade resolúvel e propriedade fiduciária .............................................. 243 3.6. Formas de aquisição da propriedade imóvel ............................................................................ 243 3.7. Formas de aquisição da propriedade móvel ............................................................................. 250 4. DIREITO DE VIZINHANÇA ......................................................................................................................... 253 4.1. Conceito .................................................................................................................................... 253 4.2. Uso anormal da propriedade .................................................................................................... 254 4.3. Árvores limítrofes ...................................................................................................................... 254 4.4. Passagem forçada e da passagem de cabos e tubulações ....................................................... 255 4.5. Águas ........................................................................................................................................ 255 4.6. Direito de tapagem e limites entre prédios............................................................................... 256 4.7. Direito de construir ................................................................................................................... 257 5. DO CONDOMÍNIO.................................................................................................................................. 258 5.1. Conceito .................................................................................................................................... 258 5.2. Condomínio voluntário ou convencional ................................................................................... 259 5.3. Condomínio necessário ............................................................................................................. 260 5.4. Condomínio edilício ................................................................................................................... 260 6. DIREITO REAL DE AQUISIÇÃO DO PROMITENTE COMPRADOR ........................................................................... 266 7. DIREITOS REAIS DE GOZO OU FRUIÇÃO ....................................................................................................... 267 7.1. Introdução................................................................................................................................. 267 7.2. Superfície .................................................................................................................................. 267 7.3. Servidões ................................................................................................................................... 268 7.4. Usufruto .................................................................................................................................... 270 7.5. Uso ............................................................................................................................................ 272 7.6. Habitação.................................................................................................................................. 272 7.7. Concessões especiais para uso e moradia ................................................................................ 273 8. DIREITOS REAIS DE GARANTIA................................................................................................................... 273 8.1. Introdução................................................................................................................................. 273 8.2. Penhor ....................................................................................................................................... 274 8.3. Hipoteca .................................................................................................................................... 279 8.4. Anticrese ................................................................................................................................... 282 8.5. Alienação fiduciária em garantia .............................................................................................. 282 9. DA LAJE............................................................................................................................................... 286 QUESTÕES ............................................................................................................................................... 286 COMENTÁRIOS ......................................................................................................................................... 293 CAPÍTULO 7 — RESPONSABILIDADE CIVIL .......................................................................................... 296 1. DISPOSIÇÕES GERAIS E CLASSIFICAÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL ................................................................ 296 2. DOS ELEMENTOS OU PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL ................................................................... 297 3. DA CONDUTA HUMANA .......................................................................................................................... 298 4. DA CULPA EM SENTIDO AMPLO................................................................................................................. 298 5. DO NEXO DE CAUSALIDADE ...................................................................................................................... 299 6. DAS EXCLUDENTES DO NEXO DE CAUSALIDADE ............................................................................................. 300 7. DO DANO OU PREJUÍZO........................................................................................................................... 302 8. DO DANO MATERIAL .............................................................................................................................. 302 8.1 Teoria do desvio produtivo do consumidor ................................................................................ 306 9. DANO ESTÉTICO .................................................................................................................................... 307 10. DANO MORAL COLETIVO ....................................................................................................................... 307 11. DANOS SOCIAIS ................................................................................................................................... 308 12. DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE .................................................................................................... 308 13. DANO BUMERANGUE ........................................................................................................................... 309 14. DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO DE TERCEIRO .................................................................................... 309 15. DA RESPONSABILIDADE DO INCAPAZ ........................................................................................................ 311 16. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO DONO OU DETENTOR DE ANIMAIS ................................................................ 311 17. RESPONSABILIDADE CIVIL DO DONO DO PRÉDIO OU CONSTRUÇÃO POR SUA RUÍNA ............................................ 312 18. DA CLÁUSULA DE NÃO DE INDENIZAR ....................................................................................................... 312 CAPÍTULO 8 – DIREITO DAS FAMÍLIAS ................................................................................................ 314 1. DIREITO DE FAMÍLIA............................................................................................................................... 314 1.1. Introdução Ao Direito De Família .............................................................................................. 314 1.2. Princípios do direito de família ................................................................................................. 314 1.3. Concepção constitucional da família e os tipos de famílias ...................................................... 318 1.4. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 322 2. CASAMENTO ........................................................................................................................................ 325 2.1. Conceito e natureza jurídica ..................................................................................................... 325 2.2. Princípios específicos aplicáveis ao casamento ........................................................................ 326 2.3. Capacidade para o casamento ................................................................................................. 327 2.4. Impedimentos matrimoniais e causas suspensivas .................................................................. 328 2.5. Processo de habilitação e celebração do casamento................................................................ 331 2.6. Espécies de casamentos ............................................................................................................ 334 2.7. Invalidação do casamento ........................................................................................................ 336 2.8. Efeitos do casamento ................................................................................................................ 340 2.9. Provas do casamento ................................................................................................................ 340 2.10. Informativos de Jurisprudência ............................................................................................... 341 3. REGIME DE BENS ................................................................................................................................... 342 3.1. Disposições gerais ..................................................................................................................... 342 3.2. Regras gerais quanto ao regime de bens .................................................................................. 343 3.3. Pacto antenupcial ..................................................................................................................... 345 3.4. Regime de bens em espécie ...................................................................................................... 345 3.5. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 352 4. DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE CONJUGAL E DO VÍNCULO MATRIMONIAL .............................................................. 355 4.1. Disposições gerais ..................................................................................................................... 355 4.2. Do fim da sociedade conjugal ................................................................................................... 356 4.3. Da dissolução do vínculo matrimonial ...................................................................................... 361 4.4. Discussão de culpa no divórcio ................................................................................................. 362 4.5. O uso do nome após a EC 66 ..................................................................................................... 363 4.6. Dissolução do casamento por morte presumida ...................................................................... 364 4.7. Divórcio e prestação de alimentos ............................................................................................ 364 4.8. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 365 5. PARENTESCO ........................................................................................................................................ 366 5.1. Relações de parentesco ............................................................................................................ 366 5.2. Graus de parentesco ................................................................................................................. 367 5.3. Filiação ...................................................................................................................................... 368 5.4. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 381 6. PODER FAMILIAR E A PROTEÇÃO AOS FILHOS ............................................................................................... 382 6.1. Poder familiar ........................................................................................................................... 382 6.2. Proteção aos filhos: a guarda ................................................................................................... 387 6.3. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 390 7. ALIMENTOS .......................................................................................................................................... 392 7.1. Considerações gerais ................................................................................................................ 392 7.2. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 401 8. TUTELA E CURATELA ............................................................................................................................... 403 8.1. Considerações gerais ................................................................................................................ 403 8.2. Tomada de decisão apoiada ..................................................................................................... 410 8.3. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 411 9. UNIÃO ESTÁVEL..................................................................................................................................... 412 9.1. Considerações gerais ................................................................................................................ 412 9.2. Evolução da união estável ........................................................................................................ 413 9.3. A união estável no código civil .................................................................................................. 416 9.4. A união estável e o denominado namoro qualificado .............................................................. 418 9.5. Questões polêmicas quanto à união estável............................................................................. 419 9.6. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 420 QUESTÕES ............................................................................................................................................... 421 COMENTÁRIOS ......................................................................................................................................... 423 CAPÍTULO 9 – DIREITO DAS SUCESSÕES ............................................................................................. 436 1. INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES .................................................................................................. 436 1.1. Abertura da sucessão ............................................................................................................... 437 1.2. Direito das sucessões e o princípio de saisine .......................................................................... 438 1.3. Espécies de sucessões ............................................................................................................... 438 1.4. Vocação hereditária e classificação dos herdeiros ................................................................... 439 1.5. Diferenças entre herança e legado ........................................................................................... 442 1.6. Procedimento previsto no ncpc para o direito das sucessões ................................................... 442 1.7. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 443 2. SUCESSÃO HEREDITÁRIA .......................................................................................................................... 444 2.1. A herança e meação: diferenciação .......................................................................................... 444 2.2. Administração da herança ........................................................................................................ 445 2.3. Herança jacente e herança vacante ......................................................................................... 445 2.4. Aceitação e renúncia da herança .............................................................................................. 447 2.5. Excluídos da sucessão: indignidade sucessória e deserdação ................................................... 449 2.6. Ação de petição de herança ...................................................................................................... 451 2.7. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 452 3. SUCESSÃO LEGÍTIMA .............................................................................................................................. 453 3.1. Considerações gerais ................................................................................................................ 453 3.2. Sucessão dos descendentes (por cabeça ou direito próprio e por representação) e concorrência do cônjuge e do companheiro.......................................................................................................... 454 3.3. Sucessão dos ascendentes e concorrência do cônjuge e do companheiro................................ 458 3.4. Sucessão do cônjuge e do companheiro isoladamente ............................................................ 459 3.5. Sucessão dos colaterais ............................................................................................................ 461 3.6. Informativos de Jurisprudência ................................................................................................. 462 4. SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA ..................................................................................................................... 463 4.1. Conceito de testamento e características ................................................................................. 463 4.2. Modalidades ordinárias de testamento .................................................................................... 466 4.3. Modalidades especiais do testamento ..................................................................................... 470 4.4. Codicilo...................................................................................................................................... 471 4.5. Disposições testamentárias ...................................................................................................... 471 4.6. Legado ...................................................................................................................................... 473 4.7. Substituições testamentárias .................................................................................................... 476 4.8. Redução das disposições testamentárias ................................................................................. 478 4.9. Revogação do testamento ........................................................................................................ 478 4.10. Rompimento do testamento ................................................................................................... 479 4.11. Testamenteiro ......................................................................................................................... 480 4.12. Informativos de Jurisprudência ............................................................................................... 481 5. INVENTÁRIO E PARTILHA.......................................................................................................................... 482 5.1. Considerações gerais ................................................................................................................ 482 5.2. Inventário judicial ..................................................................................................................... 483 5.3. Inventário extrajudicial ............................................................................................................. 490 5.4. Pena de sonegados ................................................................................................................... 492 5.5. Pagamento das dívidas ............................................................................................................. 493 5.6. Colação ou conferência ............................................................................................................. 493 5.7. Redução das doações inoficiosas .............................................................................................. 496 5.8. Partilha ..................................................................................................................................... 496 5.9. Garantia dos quinhões hereditários .......................................................................................... 498 5.10. Anulação, rescisão e nulidade da partilha .............................................................................. 499 5.11. Informativos de Jurisprudência ............................................................................................... 499 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................................... 514 Matheus Zuliani CAPÍTULO 1 – LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO (LINDB) 1. LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO (LINDB) 1.1. VIGÊNCIA E VALIDADE DAS NORMAS A vigência da lei ocorre a partir do momento em que ela passa a ter força coercitiva, ou seja, a partir do instante em que todas as pessoas devem obedecê-la. Não se pode confundir a vigência da lei com a sua existência. Pode ser que a lei exista, todavia, ainda não esteja em vigor. Assim, o primeiro passo é a existência da lei, uma vez que não tem como exigir a obrigatoriedade da lei sem que ela exista. A lei passa a existir com sua promulgação. Após a sua promulgação, é possível que ela entre em vigor nessa mesma data ou em data distinta, a depender da vontade do legislador. A regra é que a lei passe a vigorar em todo o território dentro do prazo de 45 dias depois de oficialmente publicada. É o que dispõe o art. 1º da LINDB. Denomina-se vacatio legis o prazo entre o início da existência da lei e o início de sua vigência, caso exista esse intervalo. Trata-se de um período necessário para que a sociedade se habitue tanto com a lei quanto com o regime jurídico que ela impõe. Nesse sentido, em atenção ao princípio da obrigatoriedade da lei, ninguém pode alegar seu desconhecimento. Entende-se que esse princípio não é absoluto, uma vez que há exceção, como o caso do erro de direito, em que a parte negociante poderia revogá-lo, desde que não tenha o objetivo de descumprir a lei (CC, art. 139, III). Há uma corrente que entende que a vacatio legis é imprescindível em leis que tenham relevante repercussão, não podendo ela entrar em vigor na data da publicação (art. 8ª caput da LC 95/1998). Por fim, ainda sobre a vacatio legis, é importante mencionar a forma de contagem. Dispõe a Lei Complementar nº 95/1998, que trata sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, em seu art. 8º, §1º que “a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação integral”. Isto é, inclui-se o primeiro e o último dia, entrando a lei em vigor no dia subsequente à consumação integral do prazo. Por isso, não se pode confundir com os prazos processuais do Código de Processo Civil, no qual não se inclui a data da publicação na contagem. A lei que nasce e que tem data certa para entrar em vigor pode sofrer alteração em seu texto antes da vigência ou depois da vigência. A LINDB trata das duas situações. Se, antes de entrar a lei em vigor, ocorrer nova publicação de seu texto, destinada a correção, o prazo dos dispositivos alterados começará a correr da nova publicação (LINDB, art. 1º, § 3º). Em outras palavras, a vacatio se reinicia para esses dispositivos alterados, dando nova oportunidade de se familiarizar com a lei. Agora, se as correções forem em texto de lei já em vigor consideram-se lei nova (LINDB, art. 1º, § 4º). Existe uma questão que pode gerar dúvidas em concurso por confundir a parte técnica com o que comumente se fala ou se aplica. Alguns entendem que vigência e vigor são situações distintas. Vigor é a força da lei, da norma. Vigência é a norma que já esteve em vigor, mas que agora não tem mais aplicabilidade. Assim, no cenário em que vivemos, o CPC/73 não 8 Matheus Zuliani possui mais vigência. Todavia, em maior número, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, vigência é o termo utilizado para indicar a norma que tem força, ou seja, sinônimo de vigor1. Para finalizar a questão da vigência da lei é importante lembrar que uma lei pode ingressar no território nacional em um prazo e no estrangeiro em outro. No concurso da Magistratura do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em 2010, o examinador fez a seguinte pergunta: é possível que um mesmo fato seja regulamentado por duas leis distintas? A resposta para essa indagação está no art. 1º, §1º da LINDB, uma vez que “nos Estados, estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia três meses depois de oficialmente publicada”. Assim, se a lei tem uma vacatio de 45 dias, no 60º dia da sua publicação terá validade no Brasil, mas ainda não no estrangeiro, o que acarreta a aplicação da lei antiga para uma situação e a lei nova na mesma situação, só dependendo o local em que o fato for praticado. 1.2. REVOGAÇÃO DA LEI E SUAS FORMAS Revogar significa anular, invalidar, desfazer, desvigorar. Em outras palavras, significa tornar sem efeito uma lei ou qualquer outra norma jurídica. É a supressão da força obrigatória da lei, retirando sua eficácia. A revogação da lei tem previsão no art. 2º da LINDB, existindo quatros formas de se revogar uma lei que está em vigor. A revogação pode ser total, parcial, expressa ou tácita. A revogação total, também conhecida como ab-rogação, ocorre quando uma lei nova regula inteiramente a matéria da lei anterior, ou então, quando existir incompatibilidade entre elas. A revogação parcial, denominada de derrogação, acontece quando apenas parte da lei é tida como sem efeito, permanecendo parte dela em vigor. Ex.: o novo Código de Processo Civil derrogou alguns dispositivos do Código Civil, por exemplo, o art. 227. A revogação pode ser, ainda, expressa ou tácita. A revogação expressa é aquela que taxativamente se diz qual norma está revogada. O art. 9º da Lei Complementar nº 98/1995, com a redação da Lei Complementar nº 107/2001, estabelece que “a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”. Essa é uma forma de revogação expressa. A tácita, ao contrário, ocorre quando há incompatibilidade entre elas. Diz o art. 2º, §1º da LINDB, que ocorre essa forma de revogação quando “seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria que tratava a lei anterior”. Quando se fala em revogação, questiona-se se o costume pode revogar norma. No Direito Brasileiro, não existe a possibilidade de retirar o efeito de uma lei em razão de um costume. É a chamada supremacia da lei sobre os costumes. O desuetudo, ou seja, o costume negativo (desuso) não revoga lei2. Ele pode, em outro giro, ser considerado um método de integração para fins de julgamento. Por fim, é importante mencionar que lei temporária é aquela que nasce com termo prefixado de duração ou com um objetivo a ser cumprido. A lei já nasce com um prazo para perder sua vigência. Ela é uma exceção ao princípio da continuidade, já que não tem eficácia 1 Ao verificar uma questão que trata da diferença entre vigor e vigência, lembre-se dessa celeuma para responder. STJ: “A eventual tolerância ou a indiferença na repressão criminal, bem assim o pretenso desuso não se apresentam, em nosso sistema jurídico-penal, como causa de atipia (Precedentes). II - A norma incriminadora não pode ser neutralizada ou se considerada revogada em decorrência de, v.g., desvirtuada atuação policial (art. 2º, caput da LICC). Recurso conhecido e provido”. (REsp 146.360/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 19.10.1999, DJ 08.11.1999 p. 85+. 2 9 Matheus Zuliani continua, ou seja, não precisa de uma lei para revogá-la, pois seu fim tem um prazo certo, determinado. 1.3. REPRISTINAÇÃO Repristinação significa restaurar a vigência de uma lei pelo fato de a lei revogadora ter perdido a sua vigência. É o que dispõe o art. 2º, §3º da LINDB: “salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”. Desta forma, em regra, não há repristinação no ordenamento jurídico vigente. Todavia, esse efeito pode acontecer quando o legislador fizer constar essa previsão na lei revogadora. Desta forma, se ficar consignado na lei revogadora que um de seus efeitos é ressuscitar a lei revogada, verifica-se o efeito repristinatório da lei. Alguns doutrinadores fazem a distinção entre repristinação e efeito repristinatório. O efeito repristinatório é estudado no campo do Direito Constitucional, mais especificadamente em controle concentrado de constitucionalidade. Ex.: Lei “A” foi revogada pela Lei “B”. Posteriormente, o STF declara a inconstitucionalidade da Lei “B”, restaurando-se os efeitos da norma revogada, já que a norma revogadora será considerada como nunca tivesse existido. É o que preleciona o artigo 27 da Lei nº 9.868/99. A decisão de inconstitucionalidade é declaratória e possui efeitos retroativos, ex tunc, concretizando-se com a chamada modulação dos efeitos da decisão. 1.4. NORMAS GERAIS E NORMAS ESPECIAIS Há uma classificação de normas no art. 2º, §2° da LINDB em que se entende por norma especial aquela que possui um conteúdo especializado dentro de um ramo do direito (por exemplo, Lei de Alimentos, Código de Defesa do Consumidor). Já a norma geral aborda o conteúdo de um ramo do direito de maneira geral. A norma geral não revoga a especial e a norma especial não revoga a geral. Tais normas caminharão conjuntamente. A norma especial pode revogar a geral de duas formas: de forma explícita, ou então, de forma implícita. A revogação expressa ou explicita ocorre quando há previsão de que a norma especial está revogando a geral. A revogação implícita, por sua vez, acontece no momento em que regula a mesma matéria que a geral, modificando o seu conteúdo. Pode ser que uma lei especial contenha uma parte específica e outra parte geral que também está disposta em um Código, sem que haja, entre elas, contradição. Nesse caso, ambas continuarão em vigor, coexistindo. 1.5. DA INTEGRAÇÃO DAS NORMAS Pelo fato lógico de que o legislador não consegue prever todos os acontecimentos, seja para o presente seja para o futuro, e da mesma forma que o juiz não pode ser furtar ao seu mister de julgar alegando ausência de norma legal sobre o assunto, é que existe o instrumento de integração das normas, permitindo-se que haja o preenchimento de lacunas (CPC, art. 140). Dispõe o art. 4º da LINDB: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. O juiz não pode deixar de decidir uma questão alegando que não existe norma regulamentadora para aquele caso em concreto (julgamento non liquet). Trata-se do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. 10 Matheus Zuliani O fenômeno da subsunção se perfaz no encaixe perfeito da norma ao caso concreto. Contudo, na ausência da subsunção o juiz deverá se valer da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito. Com isso, não deixa nenhum caso sem solução. A doutrina defende que existe uma hierarquia entre os instrumentos de integração da norma, devendo ser aplicada em primeiro lugar a analogia, depois os costumes, e por fim, os princípios gerais de direito. Diz que a analogia tem preferência em razão do sistema brasileiro adotar a supremacia da lei escrita. 1.5.1. ANALOGIA Consiste a analogia na busca da solução em outra norma que é similar ao caso desprovido de lei. Utiliza-se de uma norma ou conjunto de normas aproximadas a um caso. A analogia pode ser classificada como analogia legal e analogia jurídica. A analogia legal, segundo os ensinamentos de Limongi França, é exatamente a aplicação de uma lei àquele caso em específico. Cita-se como exemplo o caso da convalidação do negócio jurídico praticado com o vício da lesão. Dispõe o § 2º do art. 157 do Código Civil que “não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”. Porém, e se o caso for cometido em estado de perigo? O Código Civil não traz a convalidação do negócio praticado em estado de perigo. Assim, a doutrina e a jurisprudência se valendo da analogia legal permitem a utilização da convalidação também para o estado de perigo. Inclusive, o enunciado 148 da III Jornada de Direito Civil é nesse sentido. A analogia jurídica é diversa. Consiste em utilizar-se de princípios, conceitos, preceitos consagrados pela doutrina e pela jurisprudência a um caso em específico. Cumpre mencionar que para alguns doutrinadores, a analogia jurídica se constitui na aplicação dos princípios gerais do direito. Há diferença entre a analogia e a interpretação extensiva. A interpretação extensiva visa adequar o que o legislador realmente pretendia com aquela norma, ou seja, a norma diz menos do que deveria. É o caso do art. 12 do Código Civil, em caso de violação aos direitos da personalidade do de cujus, o cônjuge se torna lesado de forma indireta (dano por ricochete), e tem legitimidade para postular em juízo. Em face dessa regra, deve-se aplicar uma interpretação extensiva para garantir ao companheiro o mesmo direito previsto ao cônjuge. 1.5.2. COSTUMES O costume é a conduta reiterada, de forma lícita, e que possui relevância no mundo jurídico. Assim, um determinado costume pode ser aplicado com forma de integração desde que apresente esses elementos, ou seja, a prática reiterada (elemento objetivo) e observância da lei (elemento subjetivo), com relevância no ordenamento jurídico. Os costumes podem ser classificados como contra legem, praeter legem, secundum legem, e por fim, costume judiciário. O costume contra legem é o que contraria a lei. O costume praeter legem é aquele que preenche os requisitos para servir como método integrativo, ou seja, a conduta reiterada, de forma lícita, e que possui relevância no mundo jurídico. Já o costume secundum legem é aquele em que a sua aplicação é imposta pela lei. Caracteriza o ato emulativo – aquele praticado com abuso do direito – o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim 11 Matheus Zuliani econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (CC, art. 187). Isto é, se a pessoa excede o bom costume pratica abuso do direito e comete ato ilícito. Alguns doutrinares ainda trazem o costume judiciário, também conhecido como jurisprudência sedimentada. Atualmente vivemos em uma era de precedentes obrigatórios, súmulas vinculantes e não vinculantes, repercussões gerais e jurisprudências uníssonas. Há casos, como a súmula vinculante, recursos repetitivos e repercussões gerais, em que o juiz não pode se recusar a aplicar o precedente. Outros, como jurisprudência sedimentada e súmulas não vinculantes, embora não tenham observância obrigatória, são considerados costumes jurídicos a serem seguidos na ausência de lei específica sobre o tema. 1.5.3. PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO Segundo sustenta Miguel Reale, os princípios constituem verdadeiros pilares fundantes do ordenamento jurídico. O artigo 8º do Código de Processo Civil trabalha com a ideia de que os princípios devem ser compulsoriamente observados. Os princípios Gerais de Direito são crenças jurídicas já consolidadas na sociedade e que são universalmente aceitas, como a regra de que ninguém pode ser valer da própria torpeza para se beneficiar, nem se enriquecer indevidamente à custa de terceiro, dentre outros. 1.6. DA EQUIDADE A equidade não é método de integração das normas, sendo considerado um recurso de julgamento na aplicação das leis. A equidade é o julgamento com senso de justiça, com bom senso. Para que se aplique a equidade, a lei precisa autorizar o magistrado a fazê-lo (CPC, art. 140, parágrafo único). Alguns doutrinadores entendem que há diferença entre julgamento por equidade e julgamento com equidade. O primeiro é a aplicação da equidade em si, quando a lei autorizar. O segundo e o julgamento com senso de justiça, com bom senso. Entende-se que o julgamento com equidade é ínsito a toda decisão judicial proferida. 1.7. DA APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS A hermenêutica consiste na teoria científica de interpretar e descobrir o sentido da norma jurídica, fixando seu alcance. Na interpretação, observa-se a verdadeira essência da norma jurídica, ou seja, o que verdadeiramente se pretende alcançar. É a chamada mens legis, isso é, a real intenção da lei. Há diversos métodos e critérios de interpretação. Dentre eles podemos citar a interpretação autêntica, doutrinária, jurisprudencial, gramatical, lógica, ontológica, histórica, sistemática, e por fim, a teleológica. A interpretação autêntica é a feita pelo próprio legislador por meio de outro ato normativo. A doutrinária é elaborada pelos estudiosos do direito, como doutores, mestres e livre docente. A interpretação jurisprudencial é feita pelos Tribunais. Quanto aos meios, a interpretação gramatical é mais pobre de todas, pois leva em conta o sentido literal da palavra. A ontológica busca a essência da lei, sua razão de ser (ratio legis). Na interpretação histórica se investigam os antecedentes da lei, analisando o processo legislativo. A interpretação sistemática é a que faz a interpretação de acordo com as demais normas presentes no ordenamento jurídico. Por fim, a teleológica (sociológica) busca a finalidade da lei diante da 12 Matheus Zuliani nova perspectiva social. Carlos Roberto Gonçalves diz que essa interpretação é endereça ao magistrado e consta do art. 5º da LINDB, quando diz que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. 1.8. DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS A regra é que a lei não retroage, abarcando apenas as situações jurídicas criadas a partir da sua vigência. Trata-se de um princípio que visa dar estabilidade e segurança ao ordenamento jurídico, preservando situações já consolidadas sob a lei antiga, em que o interesse particular deve prevalecer. Denomina-se de regra do tempus regit actum. Todavia, essas regras não são absolutas, podendo sofrer mitigações no âmbito do Direito Penal, por exemplo. Observa-se, por fim, o art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal que determina: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Nessa mesma linha, temos o disposto no art. 6º da LINDB que prevê: “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. 1.8.1. DO ATO JURÍDICO O ato jurídico perfeito e acabado é aquele que já se consumou perante a lei vigente do tempo em que se efetuou. Pense em um contrato de compra e venda de bem imóvel, sem escritura lavrada porque o imóvel tem valor de 28 salários vigentes (CC, art. 108) e com registro realizado. Posteriormente ao ato, vem uma lei que altera a obrigação de lavrar escritura para os negócios que tenham como objeto imóvel acima de 20 salários. Essa lei não vai atingir aquele contrato celebrado. 1.8.2. DIREITO ADQUIRIDO Consiste no direito que já se incorporou ao patrimônio e a personalidade de seu titular, podendo ser exercido a qualquer momento. Para ser considerado “direito adquirido” mister se faz a presença de dois requisitos: a existência de um fato e a existência de uma norma que faça originar direito do fato. Enquanto não estiverem presentes esses elementos, não há direito adquirido, mas expectativa de direito. 1.8.3. DA COISA JULGADA A coisa julgada é a decisão que não comporta mais recurso, tendo atingido o trânsito em julgado. Assim, uma lei nova não pode alterar aquilo que já foi apreciado em definitivo pelo Poder Judiciário. Sobre a coisa julgada é importante constar que consta o enunciado 109 da Jornada de Direito Civil que diz: “a restrição da coisa julgada, oriunda de demandas reputadas improcedentes por insuficiência de provas, não deve prevalecer para inibir a busca da identidade genética pelo investigando”. 1.9. CONFLITO DE LEIS NO TEMPO É possível que existam leis que se contrariem, aparentemente. Quando isso acontece há uma antinomia. Diz-se aparentemente porque, em tese, o ordenamento jurídico é perfeito e não apresenta tais conflitos. Não é o que acontece. 13 Matheus Zuliani A antinomia pode ser aparente e real. A antinomia real ocorre quando duas leis são exatamente conflitantes entre si. No caso desse conflito o sistema jurídico não traz uma solução, devendo ser tal conflito resolvido pelo Poder Judiciário. O Código de Processo Civil, no art. 8º, prevê que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. Embora esteja dentro do Código de Processo Civil, pode servir de norte par aplicação de outros ramos do ordenamento jurídico. O conflito aparente, como o próprio nome diz, é apenas ilusório. Menciona-se, como exemplo, o prazo de prisão civil do devedor de alimentos. Na Lei dos Alimentos há uma previsão de prisão de 1 a 60 dias, enquanto o Código de Processo Civil, no art. 528, §3º, prevê um prazo de 1 a 3 meses. Diante de um conflito aparente de normas a doutrina criou alguns critérios para eliminar a antinomia, sendo o hierárquico, o especial e, por fim, o cronológico. Pelo critério hierárquico uma lei superior prevalece sobre a lei inferior. Assim, buscase na “pirâmide de Kelsen” o fundamento para a aplicação desse critério. Desta forma, a lei hierarquicamente superior tem preferência em relação a uma lei inferior. Ex.: norma constitucional possui hierarquia em face de uma norma infraconstitucional. Esse é o primeiro critério a ser aplicado. No critério da especialidade leva-se em consideração a amplitude das normas. Isto é, se o legislador tratou um determinado assunto com mais cuidado e rigor, ele deve prevalecer sobre o outro que foi tratado de forma geral. Portanto, uma norma especial deve prevalecer em relação a uma norma geral. Por fim, no critério cronológico se aplica o momento em que a norma jurídica entra em vigor, restringindo-se somente ao conflito de normas pertencentes ao mesmo escalão. Dessa forma, utilizando-se o critério cronológico, uma lei mais recente tem preferência em relação a uma lei anterior. O critério cronológico será utilizado sempre que o conflito não puder ser solucionado pelos critérios hierárquico e da especialidade. Alguns doutrinadores classificam as antinomias em graus. Entende-se por antinomia de primeiro grau aquela que envolve apenas um dos critérios de eliminação do conflito. Para o conflito entre uma norma anterior e outra posterior, aplica-se o critério cronológico. Para o caso de conflito entre uma norma geral e outra especial, usa-se o critério da especialidade. A antinomia de segundo grau envolve mais de um critério. Assim, concorrendo os critérios hierárquico e cronológico, prevalece o hierárquico. Concorrendo o critério hierárquico e o de especialidade, prevalece o hierárquico. Por fim, concorrendo os critérios de especialidade e cronológico, prevalece o da especialidade. 1.10. DA VIGÊNCIA DA LEI NO ESPAÇO A regra geral é que, dentro do território brasileiro, aplica-se a lei brasileira. O Estado politicamente organizado tem soberania sobre o seu território e sobre seus habitantes. Decorre disso que toda lei, em princípio, tem seu campo de aplicação limitado no espaço pelas fronteiras do Estado que a promulgou. O critério a ser utilizado para aplicação das leis no espaço é o critério territorial. O Brasil adotou a Teoria da Territorialidade, mas de forma moderada, também chamada de Territorialidade Temperada ou Mitigada. Isso porque, excepcionalmente, nos 14 Matheus Zuliani deparamos com leis ou decisões estrangeiras que podem ser reconhecidas e aplicadas no Brasil. Dessa forma, para que haja a aplicação de leis e sentenças estrangeiras no ordenamento jurídico pátrio, faz-se necessária a observância de duas regras. A primeira prevê que não se aplica leis, sentenças ou atos estrangeiros no Brasil quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. A segunda, por sua vez, prevê que não se cumprirá sentença estrangeira no Brasil sem o devido exequatur, que é a permissão dada pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio de homologação, para que esta decisão produza seus efeitos. É a homologação de sentença estrangeira. Ainda sobre a sentença estrangeira, dispõe o art. 15 da LINDB que será executada no Brasil a sentença proferida no estrangeiro, que reúna os seguintes requisitos: a) haver sido proferida por juiz competente; b) terem sido as partes citadas ou haver legalmente se verificado a revelia; c) ter passado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida; d) estar traduzida por intérprete autorizado; e) ter sido homologada pelo Superior Tribunal de Justiça (corrigindo de ofício o erro da LINDB, pois lá ainda consta a homologação pelo STF, modificação que ocorreu pela EC 45/2004). Por fim, a sentença estrangeira poderá ser executada perante a Justiça Federal, de primeira instância – art. 109, inciso X da CF. Quanto aos títulos executivos extrajudiciais estrangeiros, estes não precisam ser homologados para serem executados no Brasil. A LINDB ainda tratou da vigência da lei no espaço no que concerne às questões de estado da pessoa. Com isso, A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família (LINDB, art. 7º). No que tange ao casamento e ao regime de bens, realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira quanto aos impedimentos dirimentes e às formalidades da celebração. O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes. Por fim, no que concerne ao direito sucessório, deve-se obediência à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens (LINDB, art. 10). A sucessão de bens de estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus (LINDB, art. 10, § 1º). Por fim, a lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder (LINDB, art. 10, § 2º). 15 Matheus Zuliani CAPÍTULO 2 – DA PARTE GERAL DO CÓDIGO CIVIL 1. DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO CÓDIGO CIVIL O Código Civil é rodeado de princípios que moldaram o que é atualmente chamado de o moderno direito civil. O mais importante de todos é o princípio da dignidade humana que irradia efeitos para todos os ramos do ordenamento jurídico, não sendo exclusividade do direito privado. Os princípios norteadores do Código Civil são a eticidade, a socialidade e a operabilidade3. Tais princípios vieram para quebrar a ligação que o Código Civil de 1916 mantinha com o individualismo e patriarcalismo, que colide frontalmente com os ditames da Constituição Federal de 1988. Desta feita nota-se uma inspiração constitucional nesses princípios. 1.1. SOCIALIDADE O Código Civil de 2002 visa atingir um maior número de pessoas, deixando de lado a aplicação estrita ao indivíduo, passando a respeitar direitos sociais, e assim, exigir uma função social, como a função social da propriedade (art. 5º, XXII e XXIII e art. 1.228, § 1º do Código Civil), do contrato (art. 421), da posse e da empresa. A atividade, ainda que privada, deve considerar em seu contexto a sociedade e não apenas os sujeitos do negócio. Exemplo que podemos citar: a diminuição dos prazos para a usucapião, quando a pessoa ali exerce posse e trabalho; o contrato nulo, quando ofende direito dos trabalhadores. Tanto é que a LINDB, no art. 5º, diz que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves defendem que esse princípio encontra-se atrelado ao direito subjetivo. O direito subjetivo consiste no direito do indivíduo de agir amparado pelo ordenamento jurídico com o objetivo de satisfazer um interesse legítimo. Para esses doutrinadores, o direito subjetivo corresponde a uma função social. O sujeito ao agir sempre age no interesse próprio, mas esse interesse individual não pode contrariar um direito social, sob pena de perder força. 1.2. ETICIDADE O Código Civil de 1916, de Beviláquia, não possuía preceitos éticos. O atual Código Civil mudou isso, tanto que a atuação ética, proba, honesta é valor quase que supremo no Código Civil de 2002. Prestigia-se a boa-fé objetiva. Abandona o formalismo do direito romano. Em vários dispositivos do Código Civil, pode-se notar a presença do princípio da eticidade, a exemplo dos art. 113 (negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa fé e os usos); art. 187 (abuso do direito que excede os fins econômicos e sociais) e, o principal, art. 422 que valoriza a boa fé na conclusão e execução dos contratos. A violação positiva do contrato é um reflexo da boa-fé objetiva na relação civil. Assim a parte contratual que cumpre a obrigação pactuada, todavia, o faz com ofensa a boa-fé objetiva, eleva a sua conduta contratual a um inadimplemento. 3 Esses três princípios foram tema de dissertação do concurso 180º de ingresso na carreira de Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 16 Matheus Zuliani E mais, a boa-fé não existe apenas no Direito Civil, estando presente no Direito Processual Civil (art. 80, CPC), já que se exige a ética na condução dos processos, assim como não alterar a verdade e evitar recursos procrastinatórios, sob pena de litigância de má-fé. 1.3. OPERABILIDADE O princípio da operabilidade, também chamado de concretude, vem para facilitar a aplicação e a interpretação das normas pelas pessoas comuns e não apenas pelos operadores do direito. Há dois exemplos que precisam ser mencionados: o primeiro é a localização, no Código Civil, de prazos prescricionais e decadenciais. Antes não se sabia qual prazo era prescricional ou decadencial. Com o princípio operabilidade sabe-se que os prazos dos artigos 205 e 206 são prescricionais, sendo os demais do Código Civil decadenciais. O outro exemplo é a concretude, ou seja, aplicar a regra do Código de forma simples e efetiva, visando a solução do caso concreto. Insere-se, no ordenamento jurídico, cláusulas/normas gerais e conceitos indeterminados, vagos ou abstratos, a serem interpretados no caso concreto. Diante disso, surgiu a teoria das janelas abertas idealizada por Judith Martins Costa. Por essa teoria, na atual codificação material, é possível que se perceba um sistema aberto, um sistema de janelas abertas, que permitem uma constante incorporação e solução para novos problemas. É o magistrado, aplicador da lei, que tem a incumbência de preencher esses espaços abertos, de conceitos indeterminados, com o conceito social da época. Exemplo é a atividade de risco que permite a responsabilidade civil (CC, art. 927, parágrafo único). O que é uma atividade perigosa? Uma atividade de risco podia ser perigosa em 1930, e com as técnicas de segurança e de eletrônica deixou de ser assim taxada em 2020. Nessa senda, é o Magistrado quem vai dizer qual atividade se encaixa no perigo ou não. 1.4. DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL O Código Civil está umbilicalmente ligado à Constituição Federal. A expressão Direito Civil Constitucional advém do Direito Italiano e baseia-se em uma visão unitária do ordenamento jurídico. É imprescindível a leitura dos artigos do Código Civil sob a luz da Constituição Federal. Exemplo claro que reflete a questão é a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas (eficácia horizontal dos direitos fundamentais), assim como a aplicação da dignidade humana nas relações privadas. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais é a possibilidade que se tem de aplicar os direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal, na relação entre particulares. Nota-se que o Código Civil, acompanhando essa permissão, modificou o art. 57 que assim passou a ser redigido: “A exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto”. 1.5. DIÁLOGO DAS FONTES Entende-se que os ramos jurídicos diversos não podem se excluir quando da análise de um caso concreto. Isso quer dizer que se mostra perfeitamente possível a complementação entre os ramos jurídicos distintos, aplicando-se no caso concreto, sem exclusão mútua. Caso mais comum é a aplicação harmônica entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil. 17 Matheus Zuliani A jurisprudência do STJ já aplicou a teoria do diálogo das fontes4, em caso envolvendo o contrato de leasing. 2. DAS PESSOAS Pessoa é todo aquele que titulariza direitos. Para a via processual, pode ser aquele que ocupa tanto o polo ativo quanto o polo passivo de uma relação jurídica. É comum ao se falar em pessoa logo imaginar a pessoa como ser humano. Todavia, no direito civil a pessoa pode ser natural, ou física, ou então, jurídica ou coletiva. 2.1. DA PERSONALIDADE JURÍDICA Dispõe o art. 1º do Código Civil que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Ao nascer com vida, a pessoa adquire a personalidade jurídica, que nada mais é do que a aptidão genérica para se titularizar direitos e deveres. Diante disso, a pessoa adquire a personalidade jurídica ao nascer com vida, ou seja, ao respirar. É o disposto no art. 2º, primeira parte, do Código Civil. Para tanto, existia o exame denominado de docimasia hidrostática de Galeno. Esse método consistia em colocar o pulmão do recém-nascido em recipiente com água. Se o pulmão boiasse, é porque entrou ar; com isso, adquiriu personalidade jurídica. Se o pulmão afundasse, é porque não entrou ar, o que indica a ausência de aquisição de personalidade jurídica. A relevância disso é auferida no direito das sucessões, já que interfere na ordem da vocação hereditária. Por fim, a personalidade jurídica coincide com a capacidade de direito, capacidade que todos têm. 2.2. DO NASCITURO O art. 2º do Código Civil ao mesmo tempo em que confere personalidade jurídica às pessoas que respiram, põe a salvo o nascituro, desde a concepção, o que nos faz indagar: teria também o nascituro personalidade jurídica? Segundo a doutrina de Limongi França, o nascituro é o ente concebido, mas ainda não nascido, em outras palavras é o ente de vida intrauterina. Há uma acirrada discussão sobre a aquisição da personalidade jurídica pelo nascituro. Com isso surgiram três teorias, a natalista, a da personalidade condicional e a concepcionista. Pela teoria natalista o nascituro teria personalidade jurídica desde o nascimento. Antes do nascimento, ou seja, enquanto detentor de vida intrauterina, teria apenas expectativa de direitos. Essa teoria é defendida por Silvio Rodrigues, Vicente Ráo, Silvio Venosa. A teoria da personalidade condicional divide a aquisição da personalidade jurídica a depender do direito exercido. Por ela, o nascituro seria dotado de personalidade apenas para direitos existenciais (como o direito à vida). Se, todavia, fosse para direito negocial ou econômico o seu exercício dependeria do nascimento com vida, ou seja, ficaria condicionado. Serpa Lopes defende essa teoria. Por fim, no que tange a teoria concepcionista, teria o nascituro personalidade jurídica desde sua concepção. A concepção é o momento em que o óvulo da mulher é fertilizado pelo 4 STJ - REsp 1060515 / DF – Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador Convocado do TJ/AP] – julgado em 04/05/2010. 18 Matheus Zuliani espermatozoide do homem. Assim, ela acontece entre 11 e 21 dias após o primeiro dia da menstruação. Percebemos que, aos poucos, a teoria concepcionista ganhou mais espaço nos Tribunais, inclusive na própria legislação brasileira, a exemplo da lei de alimentos gravídicos (Lei nº 11.804/08) e de recentes decisões do STJ que admitiram o dano moral ao nascituro ou pela morte de nascituro (AgRg no REsp 1341790/RS e REsp 931556 /RS) e até mesmo pagamento de DPVAT a beneficiária que teve a gestação interrompida por acidente de trânsito (REsp 1.415.727-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/9/2014 – informativo de jurisprudência nº 0547). Para encerrarmos a questão do nascituro, ainda precisamos fazer alguns apontamentos. Nascituro é diferente do natimorto. O natimorto é o ser que nasce morto. Sobre o natimorto, a nova roupagem que recebeu o Código Civil trouxe a ele alguns direitos que não eram reconhecidos na vigência do Código Civil de 1916. Assim, a proteção que se confere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como: nome, imagem e sepultura (isso com base na dignidade da pessoa humana e na eficácia horizontal dos direitos fundamentais). É o que dispõe o Enunciado nº 1, da 1ª Jornada de Direito Civil. Também não se pode confundir nascituro com o concepturo. O concepturo o ente que nem concebido foi. Trata-se da prole eventual que, nos termos do direito sucessório (CC, art. 1.799, I), pode ser herdeiro testamentário. Com o advento da Lei nº 11.105/2005, conhecida como lei da biossegurança, é preciso tecer algumas considerações sobre o embrião. Essa lei tutela os direitos do embrião, reforçando a adoção da teoria concepcionista. O art. 5º da lei diz que é permitida a utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, desde que sejam embriões inviáveis; ou seja, embriões congelados há 3 anos ou mais, na data da publicação da lei, ou que, já congelados na data da publicação dessa lei, depois de completarem 3 anos, contados a partir da data de congelamento. Ainda, para fins de utilização de embrião com o fito de pesquisa e uso terapêutico, a lei autoriza tal utilização, desde que, em qualquer caso, seja indispensável o consentimento dos genitores. A utilização de células-tronco embrionárias é excepcional, pois a regra é a não utilização. O STF considerou constitucional essa lei. É importante expor que o descarte dos embriões não utilizados se dá pelo encaminhamento às pesquisas de células-tronco. Isto é, não terá o embrião direitos da personalidade. A existência dos direitos da personalidade é condicionada à concepção intrauterina. 2.3. DA CAPACIDADE A capacidade é a medida da personalidade. A pessoa plenamente capaz é aquela que está apta para o exercício dos atos da vida civil sem estar assistido ou representado. A capacidade pode ser de direito ou de fato. A capacidade de direito, também conhecida como capacidade de gozo, confunde-se com a personalidade jurídica, sendo adquirida no momento em que a pessoa nasce com vida. 19 Matheus Zuliani A capacidade de direito ou de gozo é uma capacidade geral, genérica, que qualquer pessoa tem. Bebê de 21 dias tem capacidade de direito, homem maior de 18 também. Todos têm. Capacidade de fato ou de exercício nem toda pessoa a tem. Ela traduz a aptidão para a prática dos atos da vida civil. O absolutamente incapaz não a tem. Quando um sujeito reúne as duas capacidades (de direito e de fato), ele atinge a capacidade civil plena. A capacidade plena não se confunde com a legitimação. Legitimação é a capacidade especial para um determinado ato ou negócio jurídico. Ex.: necessidade de outorga conjugal para vender o imóvel, sob pena de anulabilidade do contrato. Esta legitimação é conferida ao cônjuge. Veja, o cônjuge varão é plenamente capaz, no entanto, não pode vender o bem imóvel sem a outorga do outro, sob pena de faltar legitimação para o ato. Em contraposição à capacidade, temos a incapacidade, que nada mais é do que a ausência de capacidade de fato. 2.4. DA INCAPACIDADE A incapacidade é a ausência de capacidade de fato, que torna a pessoa inapta para os atos da vida civil sem estar assistida ou representada. Assim, no ordenamento jurídico vigente não existe incapacidade de direito, uma vez que todos se tornam capazes (de direito) ao nascer com vida. O instituto da incapacidade sofreu, recentemente, uma reviravolta com a edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015). Em suma, o Estatuto entendeu que não é correto atribuir às pessoas com deficiência a pecha de incapazes. Diante disso e atraindo o princípio da dignidade humana mais uma vez, as pessoas portadoras de deficiência são consideradas capazes para os atos a vida civil. Essa lei trouxe para o ordenamento jurídico uma valorização da dignidade/liberdade em detrimento de uma dignidade/vulnerabilidade. A incapacidade de exercício pode ser de natureza absoluta ou de natureza relativa. A incapacidade absoluta é a total ausência de exercício de direito. Somente pode praticar o ato o representante do incapaz, sob pena de nulidade do ato. Os absolutamente incapazes estão elencados no rol do art. 3º do Código Civil. A incapacidade relativa, por sua vez, é aquela em que o sujeito detém certo discernimento para praticar um ato, no entanto, precisa ser assistido para que o ato tenha validade. Nessa assistência não há supressão da vontade, mas sim, convergência de vontades, na qual o assistido pratica o ato junto com o relativamente incapaz. Nessa senda, o ato praticado pelo relativamente incapaz é um ato anulável (CC, art. 171, I). Os relativamente incapazes estão no rol do art. 4º do Código Civil. 2.4.1. DOS ABSOLUTAMENTE INCAPAZES Dispõe o art. 3º do Código Civil que: “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos”. Nota-se que o Legislador trouxe um critério objetivo para definir os absolutamente incapazes, ou seja, ou a pessoa tem menos de 16 anos e é absolutamente incapaz, ou ela tem mais de 16 anos e pode ser relativamente incapaz ou capaz. 20 Matheus Zuliani 2.4.2. DOS RELATIVAMENTE INCAPAZES Os relativamente incapazes estão no rol do art. 4º do Código Civil, que assim vem redigido: Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. O critério adotado pelo Legislador, nesse caso, é um critério misto, pois adota tanto o critério biológico (objetivo) quanto o critério psicológico (subjetivo). Veja que no inciso I adotase o critério biológico. Nos demais o critério é o psicológico. O surdo-mudo pode ser considerado um relativamente incapaz ou não. A pessoa surda é capaz. No entanto, na hipótese dessa pessoa não conseguir manifestar sua própria vontade, é que ela poderá ser considerada relativamente incapaz, nos moldes do art. 4º, inciso III, do Código Civil. No Código Civil de 1916, o ausente era considerado um relativamente incapaz. No Código Civil de 2002, a ausência não se relaciona com a incapacidade, possuindo um rito próprio para que se tenha a declaração de ausência e, com isso, dê procedência aos bens deixados pelo ausente. Em 2016 foi editada uma lei que trouxe o conceito do que é a primeira infância da pessoa. A Lei nº 13.257/2016 regula alguns pontos interessantes sobre a questão da primeira infância, que é tida nos 72 primeiros meses (6 anos) de vida da criança. Diante da lei, busca-se o estabelecimento de políticas públicas para melhor desenvolvimento da criança nesses primeiros meses de vida. Dispõe o art. 2º da referida lei que “considera-se primeira infância o período que abrange os primeiros 6 (seis) anos completos ou 72 (setenta e dois) meses de vida da criança”. O pródigo é a pessoa que dissipa seus bens desvairadamente. Sobre o pródigo, importa fazer uma ressalva sobre a modificação da visão do direito privado ao logo dos anos. Certa vez, em uma prova de ingresso no concurso da Magistratura do Estado de São Paulo, o Desembargador Examinador perguntou ao candidato: analise a interdição do pródigo na visão do Código atual (2002) no cotejo com o Código anterior (1916). O que justifica a interdição do pródigo é a proteção do mínimo vital para a sua sobrevivência. Não somente, a proteção do patrimônio mínimo, corolário do princípio da dignidade humana. Assim, verifica-se o cunho social da intervenção (princípio da socialidade). No Código Civil de 1916, a finalidade era estritamente patrimonialista, sem se preocupar com a pessoa do pródigo. Simplesmente preservar o patrimônio para os herdeiros. Essa modificação de visão é que deu outra roupagem ao direito civil moderno. Por fim, sobre os índios, é preciso apenas fazer uma pequena observação, no mesmo sentido que foi feita em relação ao surdo mudo. 21 Matheus Zuliani No Código Civil de 1916, os índios eram denominados de “silvícolas” e considerados relativamente incapazes, simplesmente por serem índios. Com o novo modelo de código, o Código Civil de 2002 passou a prever que a capacidade dos índios é regida por legislação específica (CC, art. 4º, parágrafo único). A Lei nº 6.001/73 que trabalha o Estatuto do Índio estabelece, no art. 8º, que o índio não inserido na sociedade, caso pratique algum ato, esse ato será nulo. Por outro lado, caso o índio esteja inserido na sociedade, os atos serão válidos. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) é o órgão público encarregado de proteção dos direitos dos índios. 2.4.3. DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA – ASPECTOS RELEVANTES A Lei nº 13.146/2015 entrou no nosso sistema jurídico em julho de 2015, teve período de vacatio legis de 180 dias, tendo em vista a grande repercussão no mundo jurídico. Sua criação teve por finalidade dar maior proteção às pessoas com deficiência. O Estatuto da Pessoa com Deficiência revolucionou nosso sistema de incapacidade, conferindo maiores oportunidades às pessoas com deficiência, inclusive, para atuarem no mundo cível com maior de liberdade. Em virtude disso, antes da entrada em vigor da Lei n° 13.146/2015, as pessoas que tinham discernimento reduzido eram chamadas de relativamente incapaz, ao passo que, aqueles que não tinham qualquer discernimento, eram denominados de absolutamente incapaz. Hodiernamente, a pessoa com deficiência, pela simples deficiência, não é considerada incapaz, podendo atuar nos atos da vida civil e tomar decisões. Portanto, a pessoa com deficiência possui capacidade civil plena. É claro que, na prática, a pessoa com deficiência, ainda possui certa vulnerabilidade necessitando de atenção especial. A lei não ficou indiferente a essa situação, criando uma divisão de atos a serem praticados por eles. Desta forma, entende-se que a pessoa com deficiência não precisa estar amparada por curador quando estiver diante da prática de atos existenciais, uma vez que é capaz. Assim, para alterar seu nome ou para casar não precisa do curador. O art. 6º da lei traz essa menção quando elenca atos, de forma exemplificativa, que podem ser praticados sem que isso afete a plena capacidade. Contudo, quando o ato tiver cunho patrimonial, há a necessidade do curador para a proteção da pessoa com deficiência. O art. 85 da lei deixa isso claro quando diz que: “a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”. Nesse sentido, também foi editado um enunciado pela Jornada de Direito Civil (Enunciado 138 da JDC), que diz: “a vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inciso I do artigo 3°, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento suficiente”. Conclui-se, assim, que a curatela ainda persiste no nosso ordenamento jurídico. No entanto, nos termos do art. 84, §3º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. 22 Matheus Zuliani Outra questão relevante que foi introduzida pelo Estatuto é a tomada de decisão apoiada. A tomada de decisão apoiada encontra-se prevista no art. 1.783-A do Código Civil. É o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. A doutrina civilista afirma que essa decisão é, efetivamente, “apoiada”. Somente é possível ter tomada de decisão apoiada se a pessoa a ser apoiada tiver o mínimo de discernimento. A decisão não é substituída, ou seja, a decisão final será da pessoa que está sendo apoiada. Os limites do apoio estarão inseridos no termo, inclusive prazo de vigência do acordo, conforme §1º do 1.783-A do Código Civil, in verbis: para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar. O pedido de tomada de decisão apoiada é feito perante o Juiz, com a participação do Ministério Público (CC, art. 1.783-A, § 3º). Outro ponto interessante a mencionar é quando os apoiadores não estão em harmonia com a decisão. Neste caso, o juiz vai decidir, após manifestação do Ministério Público, tudo nos termos do §6º do art. 1.783-A do Código Civil. 2.5. MAIORIDADE CIVIL A maioridade põe fim à menoridade. Conforme ensina Fábio Ulhoa, a maioridade inicia-se à zero hora do primeiro dia seguinte àquele em que a pessoa completou seu décimo oitavo aniversário. A partir desse instante a pessoa é plenamente capaz para os atos da vida civil. Embora a maioridade só inicie aos 18 anos, é possível que haja a antecipação de seus efeitos. Muitos dizem, de forma equivocada, que a maioridade pode ser antecipada. Não, não pode. O que se antecipa são os efeitos da maioridade. Isso se dá com a emancipação. Dois pontos merecem atenção quando se fala em maioridade. O primeiro deles diz respeito a pensão alimentícia. Significa que o genitor que paga pensão alimentícia não fica automaticamente desobrigado do dever alimentar pelo simples fato do seu filho atingir a maioridade. Nesse caso, é preciso que se ingresse com ação de exoneração de alimentos, garantindo, assim, o direito ao contraditório5. Isso porque é possível que esse filho esteja estudando, fato que prorrogará a pensão alimentícia até os 24 anos de idade. O segundo ponto é sobre o termo final de recebimento de pensão por morte. Isso porque o art. 16, I da Lei nº 8.213/91 diz que são beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado, os menores de 21 anos de idade. Ora, o 5 Súmula 358 do STJ: O cancelamento de pensão alimentícia de filho que atingiu a maioridade está sujeito à decisão judicial, mediante contraditório, ainda que nos próprios autos. 23 Matheus Zuliani Código Civil diz que o maior de 18 anos é maior e capaz e a lei específica diz que o menor de 21 anos de idade é dependente. Como fazer diante desse conflito? Em primeiro, a lei surgiu quando a maioridade era atingida aos 21 anos de idade. Em segundo, a doutrina e a jurisprudência entendem que a redução da maioridade para os 18 anos não atingiu a lei da previdência, uma vez que ela presume que a dependência econômica, para fins previdenciários, não cessa aos 18 anos, mas sim, aos 21 anos de idade. Nesse sentido foi editado o enunciado 3 da I Jornada de Direito Civil6. 2.5.1. DA EMANCIPAÇÃO A emancipação é a antecipação dos efeitos da maioridade. Ela está prevista no art. 5º, parágrafo único, do Código Civil, podendo ser voluntária, legal ou judicial. A emancipação somente pode acontecer para os maiores de 16 anos de idade, mesmo nas hipóteses de emancipação legal. No caso do casamento é preciso fazer apenas uma observação. A regra é a de que o casamento só pode ser contraído por quem tenha a idade núbil. Essa é atingida aos 16 anos de idade. Portanto, mesmo no caso de emancipação pelo casamento, é necessário ter 16 anos de idade. Por fim, é interessante, antes de ingressar nas formas de emancipação, falar sobre a emancipação e a permissão para conduzir veículo automotor. Embora o emancipado esteja, com a emancipação, apto a praticar os atos da vida civil, podendo, inclusive, comprar um carro, não poderá conduzi-lo. Isso porque o Código de Trânsito Brasileiro, no art. 140, I, diz que é requisito para adquirir a habilitação ser penalmente imputável, ou seja, enquanto a maioridade penal for atingida apenas aos 18 anos de idade, somente com essa idade a pessoa pode dirigir. 2.5.1.1. DA EMANCIPAÇÃO VOLUNTÁRIA A emancipação voluntária é aquela concedida pelos pais, sendo realizada diretamente no cartório, mediante escritura pública, ao menor que já tenha atingido 16 anos. Ela prescinde de homologação judicial, basta a vontade dos pais. Trata-se de um ato discricionário dos genitores, ou seja, os filhos não podem exigir de seus pais a disposição do poder familiar. Ex.: Não se pode ajuizar uma ação de obrigação de fazer contra os genitores exigindo que eles o emancipem. Aquele que tem o poder familiar tem que participar do ato emancipatório. E se os pais não concordam com o ato de emancipar? Havendo divergência entre a vontade dos pais, o juiz decidirá. Sobre a emancipação voluntária há uma questão relevante que vem sendo decidida pelo Poder Judiciário. Quando os pais emancipam o maior de 16 anos de idade, isso não tem o condão de livrá-los o pagamento de indenização pela prática do ato ilícito do filho. Nesse sentido já decidiu o STJ (AgRg no Ag 1239557/RJ – Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti). 6 Enunciado nº 03, da I Jornada CJF: Art. 5º: “a redução do limite etário para a definição da capacidade civil aos 18 anos não altera o disposto no art. 16, I, da Lei n. 8.213/91, que regula específica situação de dependência econômica para fins previdenciários e outras situações similares de proteção, previstas em legislação especial”. 24 Matheus Zuliani Nesse sentido, o enunciado 41 da Jornada de Direito Civil traz que “a única hipótese em que poderá haver responsabilidade solidária do menor de 18 anos com seus pais é ter sido emancipado nos termos do art. 5º, parágrafo único, inc. I, do novo Código Civil”. 2.5.1.2. DA EMANCIPAÇÃO JUDICIAL A emancipação judicial acontece em uma única hipótese, qual seja, quando concedida a pedido do tutor. É necessária a oitiva do tutor e do Ministério Público. É importante ponderar que o tutor não pode emancipar o tutelado de forma voluntária. 2.5.1.3. DA EMANCIPAÇÃO LEGAL Por fim, a emancipação legal acontece nas hipóteses trazidas pelo Código Civil, sendo aquelas previstas no art. 5º, parágrafo único, II, III, IV e V do Código Civil, ou seja, pelo casamento, pelo exercício de emprego público efetivo, pela colação de grau em curso de ensino superior, e por fim, por ser titular de estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com 16 anos completos tenha economia própria. Sobre a emancipação legal é preciso pontuar: a) economia própria é um conceito vago, que será interpretado no caso concreto. É a aplicação efetiva da teoria das janelas abertas; b) não há homologação judicial na emancipação legal, basta a ocorrência dos fatos previstos em lei; c) em relação ao casamento como hipótese de emancipação legal, não se aplicará nos casos de união estável. Isso porque, a união estável não possui o fato constitutivo, como se tem no casamento. Havendo divórcio, o menor não retorna ao estado de incapaz, no entanto, se o casamento for considerado nulo ou inválido, o menor voltará à condição de incapaz. Ademais, em se tratando de casamento putativo (casamento nulo ou anulável contraído de boa-fé por um ou ambos os nubentes) a pessoa permanece da condição de capaz; d) a hipótese de emprego público efetivo, previsto no Código Civil, tornou-se um dispositivo inócuo, pois atualmente é necessário ter 18 anos para esse tipo de emprego. 2.5.1.4. DA REVOGAÇÃO DA EMANCIPAÇÃO A emancipação possui caráter de irrevogabilidade e irretratabilidade. No entanto, não significa dizer que não possa ser anulada. A emancipação voluntária, embora não seja um ato jurídico em sentido estrito, cujos efeitos estão na lei, não significa que não possa ser invalidado. Até porque, o artigo 185 do CC, estabelece que “poderão aplicar aos atos jurídicos, os dispositivos relacionados a negócio jurídico”. Ex.: se o filho coage o pai para emancipá-lo, é possível invalidar essa emancipação. Portanto, quando presente qualquer vício do negócio jurídico, como coação, erro, dolo, simulação, fraude contra credores, será possível se cogitar em uma anulação da emancipação. Outra questão é a revogação da emancipação caso fique comprovado que os responsáveis legais do relativamente incapaz realizaram a emancipação apenas para se livrarem do dever de auxiliar o assistido. Nessa hipótese, é possível se cogitar em uma revogação da emancipação. 25 Matheus Zuliani 2.6. DA EXTINÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – MORTE A personalidade jurídica é extinta pela morte. De modo geral, a extinção da personalidade jurídica é extremamente relevante no mundo jurídico, uma vez que interfere diretamente em outros ramos, como a abertura da sucessão; transmissão da herança pelo princípio da saisine; extinção do poder familiar; extinção do matrimônio; fim de relações personalíssimas, dentre outros. No direito civil temos dois tipos de morte, a real e a presumida. A morte real é aquela em que temos um corpo morto. Tem-se morte real com a paralisação da atividade encefálica, segundo dispõe a Lei nº 9.434/97 – Lei dos Transplantes de Órgão. Por essa razão, a extinção da personalidade jurídica não acontecerá da mesma forma que à sua inquisição, ou seja, com a respiração. Portanto, basta que um médico ateste o fim da atividade encefálica para se decretar a morte. Todavia, se a morte tiver fins de transplante de órgãos, a morte precisa ser atestada por dois médicos que não integre a equipe de remoção do órgão (art. 3º da Lei nº 9.434/97). A morte presumida é considerada como sendo aquela em que não há a presença de um corpo morto. A morte presumida pode ser com declaração de ausência ou sem declaração de ausência. O art. 7º do Código Civil trata dos casos em que a morte é sem declaração de ausência, uma vez que a probabilidade da morte ter ocorrido é alta. Já a morte presumida com declaração de ausência se encontra disciplinada nos artigos 22 ao 39 do Código Civil, possuindo um procedimento específico de três fases. 2.6.1. DA MORTE SEM DECLARAÇÃO DE AUSÊNCIA Dispõe o art. 7º, incisos I e II, Código Civil, que pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência, se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida, ou então, se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra7. Na primeira hipótese temos os casos recentes de tragédias envolvendo as companhias aéreas, como Air France; Air Malasia, barragem de Brumadinho, dentre outros. É importante constar que a declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento. Para que o juiz profira essa sentença é preciso que haja o procedimento de justificação. 2.6.2. DA MORTE COM DECLARAÇÃO DE AUSÊNCIA A morte com declaração de ausência possui um procedimento próprio, previsto no Código Civil, que visa arrecadar os bens do ausente, dar a posse dos bens aos herdeiros de forma provisória, e por fim, declarar a morte com a transmissão definitiva da posse e propriedade dos bens. Com isso, tal procedimento possui três fases, sendo a primeira a da arrecadação dos bens do ausente, a segunda da sucessão provisória, e por fim, a terceira que é a sucessão definitiva. 7 Para os amantes de filme, esse caso reflete exatamente o narrado no Rambo II, a missão, com o autor sylvester stallone. Nesse filme o Rambo resgata prisioneiros da guerra do Vietnã. 26 Matheus Zuliani Na fase de arrecadação dos bens do ausente, que se inicia com a judicialização da notícia do desaparecimento da pessoa, o juiz nomeia um curador dentre as pessoas elencadas no art. 25 do Código Civil, devendo seguir a ordem da lei. Esse período de arrecadação, que pode ser de 1 (um) ano ou de 3 (três) anos, encerra a primeira fase. Será de três anos quando o ausente deixou procurador para administrar seus bens, sendo de um ano quando não existir procurador constituído (CC, art. 26). Feita a arrecadação, o juiz mandará publicar editais na rede mundial de computadores, no sítio do tribunal a que estiver vinculado e na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça, onde permanecerá por 1 (um) ano, ou, não havendo sítio, no órgão oficial e na imprensa da comarca, durante 1 (um) ano, reproduzida de 2 (dois) em 2 (dois) meses, anunciando a arrecadação e chamando o ausente a entrar na posse de seus bens (CPC, art. 745). Findo o prazo previsto no edital, ou seja, após um ano da arrecadação dos bens do ausente, poderão os interessados (CC, art. 27) requerer a abertura da sucessão provisória. Na fase da sucessão provisória, ao ser prolatada a sentença, que somente produzirá efeitos 180 dias depois de publicada pela imprensa. No entanto, ao transitar em julgado já poderá dar proceder-se-á à abertura do testamento, se houver, e ao inventário e partilha dos bens, como se o ausente fosse falecido (CC, art. 28). Dessa forma, ao permitir o ingresso dos herdeiros na posse, o juiz exigirá deles uma garantia de que eles serão restituídos. Essa garantia pode ser de penhor ou de hipoteca. Os herdeiros necessários estão dispensados dessa garantia (CC, art. 30, § 2º). Os demais, que não puder prestar a garantia serão excluídos, mantendo-se os bens que lhe deviam caber sob a administração do curador, ou de outro herdeiro designado pelo juiz, e que preste essa garantia (CC, art. 30, § 1º). Nessa fase não se pode alienar os imóveis, salvo para evitar ruína e com autorização do juiz. O mesmo para se hipotecar o bem. É o que se extrai do art. 31 do Código Civil. Por fim, é importante tecer algumas considerações acerca dos frutos que os bens dão. O descendente, ascendente ou cônjuge que for sucessor provisório do ausente, fará 100% dos frutos que os bens dão. Os outros sucessores (herdeiros facultativos), porém, deverão capitalizar metade desses frutos e rendimentos, com obrigação de prestar contas anualmente ao juiz. Essa capitalização ocorre em títulos garantidos pela União, nos termos do art. 29 do Código Civil. Essa capitalização é necessária para o caso do retorno do ausente. Se isso acontecer, e ficar provado que a ausência foi voluntária e injustificada, perderá ele, em favor do sucessor, sua parte nos frutos e rendimentos. Se o ausente aparecer, ou se lhe provar a existência, depois de estabelecida a posse provisória, cessarão para logo as vantagens dos sucessores nela imitidos, ficando, todavia, obrigados a tomar as medidas assecuratórias precisas, até a entrega dos bens a seu dono. É o que dispõe o art. 36 do Código Civil. Dez anos depois de passada em julgado a sentença que concede a abertura da sucessão provisória abre-se a sucessão definitiva, por requerimento. Com a sucessão definitiva atesta-se a morte do ausente e os herdeiros tomam os bens para si, de forma definitiva. No entanto, ainda é permitido ao ausente reaver os bens. Nos termos do art. 39 do Código Civil, regressando o ausente nos dez anos seguintes à abertura da sucessão definitiva, ou algum de seus descendentes ou ascendentes, aquele ou estes haverão só os bens existentes no estado em que se acharem, os sub-rogados em seu lugar, ou o preço 27 Matheus Zuliani que os herdeiros e demais interessados houverem recebido pelos bens alienados depois daquele tempo. Se, nos dez anos da sucessão provisória, o ausente não regressar, e nenhum interessado promover a sucessão definitiva, os bens arrecadados passarão ao domínio do Município ou do Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da União, quando situados em território federal (CC, art. 39, parágrafo único). Por fim, é interessante anotar que o art. 38 do Código Civil traz uma conversão direta em sucessão definitiva, sem passar pelas fases anteriores. Se comprovar que uma pessoa ausente, esteja desaparecido a mais de 5 anos e que conta com 80 (oitenta) anos de idade, poderá ser requerida a abertura da sucessão definitiva. Isso porque a idade do ausente traz uma presunção de que as chances de sobrevivência dessa pessoa são mínimas. Desta forma, as medidas protetivas do seu patrimônio também poderão ser mitigadas. 2.6.3. DA COMORIÊNCIA Comoriência tem relação com o momento da morte, interferindo diretamente nos direitos sucessórios. Segundo o art. 8 do Código Civil, se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumirse-ão simultaneamente mortos. Há uma discussão na comoriência se o Código Civil, ao se valer do termo mesma ocasião, pretendeu adotar comocomorientes as pessoas que morrem do mesmo evento, ou então, que faleceram ao mesmo tempo. A doutrina majoritária, que enfrenta o assunto, posiciona-se no sentido de que mesma ocasião leva a ideia de tempo e não de lugar. Nesse caso, considera-se comorientes as pessoas que morreram ao mesmo tempo, independentemente de ser sido do mesmo evento. 2.7. DIREITOS DA PERSONALIDADE Os direitos da personalidade por muitos anos ficaram no esquecimento, sem relevância jurídica, já que a proteção do patrimônio era a única a ser tutelada. O ser humano não será protegido apenas no seu patrimônio, mas também em elementos que integram a sua alma. Os direitos da personalidade têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa, mas não apenas individualmente, mas também socialmente. São direitos inatos, ou seja, que nascem com o ser humano que não podem ser renunciados ou dispensados. Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves fazem uma correlação interessante sobre os direitos da personalidade. Eles dizem que, assim como os direitos fundamentais estão para a Constituição Federal, os direitos da personalidade estão para Código Civil. 2.7.1. ASPECTOS GERAIS O Código Civil não exauriu todos os direitos da personalidade, podendo existir outros esparsos pelo ordenamento jurídico. Os direitos autorais é um exemplo que pode ser mencionado de um direito da personalidade não previsto no Código Civil. Nesse sentido foi editado o enunciado 274 da Jornada de Direito Civil que diz: 28 Matheus Zuliani os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação. O enunciado representa muito bem a Escola do Direito Civil Constitucional que procura analisar o direito privado a partir da Constituição Federal e dos seus princípios fundamentais. O artigo 11 do Código Civil menciona que “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. O referido artigo trabalha com mais uma das características dos direitos de personalidade, o qual não consta no rol já mencionado. Desse modo, quando falamos em intransmissível e irrenunciável, tem-se que os direitos de personalidade são indisponíveis. Todavia, tais características não estão revistas de caráter absoluto. Significa que em algumas situações pode-se dispor desses direitos de personalidade. A parte destacável dos direitos da personalidade é aquela de cunho patrimonial, realizada mediante um contrato, que tem que respeitar a sua função social. Essa parte disponível tem um limite temporal e moral, ou seja, a disponibilidade não pode ser eterna e não pode ofender a moral e os bons costumes, além de não atentar contra a dignidade humana. Aqui, não tem como não lembrar do famoso caso de arremessos de anão na França8. Além disso, o contrato que trata dessa parte destacável tem que respeitar a eficácia interna da função social, ou seja, entre as partes do contrato é preciso que haja um respeito aos interesses sociais. A Jornada de Direito Civil da Justiça Federal editou três enunciados sobre o tema, sendo o 49, 2310 e 36011. O Código Civil prevê a proteção dos direitos da personalidade em seu art. 12. Os direitos da personalidade são protegidos pelos princípios da prevenção e da proteção integral dos danos. Pelo princípio da prevenção inibe-se, por meio da tutela inibitória o nascimento do ilícito. É a busca e apreensão de uma revista que está prestes a publicar uma reportagem que ofende a honra de uma pessoa. Todavia, quando o ilícito já produziu seus efeitos, a proteção é por meio da tutela ressarcitória ou reparatória. Inclusive, permite-se que o juiz, de ofício, fixe tutela específica para a proteção dos direitos da personalidade, como é o caso de astreintes. Nesse sentido, o enunciado 140 da Jornada de Direito Civil traz que “a primeira parte do art. 12 do Código Civil refere-se às técnicas de tutela específica, aplicáveis de ofício, enunciadas no art. 461 do Código de Processo Civil, devendo ser interpretada com resultado extensivo”. 8 O arremesso de anões foi proibido na pequena cidade francesa de Morsang-sur-Orge em 1992, e o caso passou pelas cortes administrativas de apelação por iniciativa do dublê Manuel Wackenheim – que ganhava a vida como arremessado – até chegar ao Conselho de Estado, que em 1995 decidiu que uma autoridade municipal poderia proibir a prática sob a alegação de que ela não respeitava a dignidade humana, sendo, portanto, contrária à ordem pública; levando à sua proibição (https://pt.wikipedia.org]. 9 O enunciado 4 CJF/STJ: O exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral. 10 Enunciado 23 CJF/STJ da I jornada: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana 11 Enunciado 360 CJF/STJ da IV jornada: O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes 29 Matheus Zuliani Por fim, mister se faz tecer considerações acerca da existência de conflito de direitos da personalidade, como um possível conflito entre a honra e a informação; liberdade de imprensa e privacidade; direito de crença e a vida, dentre outros. Diante desses conflitos, e sabendo que um direito não se sobrepõe ao outro, é preciso socorrer-se ao método da ponderação de princípios. Os direitos fundamentais não possuem natureza, e assim, devem ser vistos diante do caso concreto e dos argumentos fornecidos pelas partes envolvidas. Dessa forma, evidencia-se a necessidade de se ponderar para se chegar a solução do conflito. A ponderação nada mais é do que atuar com proporcionalidade diante do caso posto. Na opinião do Ministro do STF Luís Roberto Barroso, a ponderação é uma “técnica de decisão jurídica, aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente”. Assim, em breve resumo, a ponderação é o método de redução proporcional de um determinado princípio em detrimento do outro que, naquela circunstancia mostrou uma maior relevância jurídica. 2.7.2. DISPOSIÇÃO DO PRÓPRIO CORPO Dispõe o art. 13, caput e parágrafo único, do Código Civil que, salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. O ato de disposição será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. O Código estabelece que essa disposição do corpo de forma permanente é vedada, salvo se existir uma exigência médica nesse sentido. Caso não exista exigência médica, não há de que se falar em disposição de parte do corpo vivo de forma permanente, salvo para fins de transplante. Nesse ponto, não há como não se falar em transgenitalização. Trata-se do procedimento cirúrgico que possibilita a retirada de parte do corpo, especificadamente órgão genital, para a pessoa se transformar no sexo e incorporar a personalidade que acredita possuir. São denominados de wannabes (essa expressão decorre da língua inglesa, que significa “I want to be”, e que traduzida para o português significa “eu quero ser”), ou seja, pessoas que possuem um sexo, mas que querem possuir outro. Com efeito, entende-se que somente com autorização de um médico, após sessões com psiquiatra, é que seria autorizada a realização da cirurgia de mudança de sexo. Nesse caso, haveria a recomendação médica para cirurgia do transexual. Existem movimentos científicos que pretendem considerar a transexualidade uma condição sexual. Com a alteração do sexo surge uma questão jurídica a ser resolvida, qual seja, o registro civil da pessoa, seja no aspecto do gênero seja no nome da pessoa. Com isso, inicialmente, o Poder Judiciário vinha entendendo que a alteração do gênero e do nome, incluindo o prenome, era medida a ser adotada para àqueles que procedessem a alteração do sexo. Todavia, recentemente o STF possibilitou aos transgêneros a possibilidade de alteração do registro civil sem a mudança de sexo. A decisão ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, em março de 2018. Todos os ministros da Corte reconheceram o direito, e a maioria entendeu que, para a alteração, não é necessária autorização judicial. Assim, o STF não apenas reconheceu o direito de mudança do registro civil (gênero e nome) sem cirurgia, mas também, sem necessidade de ordem judicial. 30 Matheus Zuliani Com isso, foi a ação julgada procedente para dar à Lei dos Registros interpretação conforme a Constituição Federal e pactos internacionais que tratam dos direitos fundamentais, a fim de conceder aos transgêneros que desejarem o direito à alteração de nome e gênero no assento de registro civil, independentemente da cirurgia. 2.7.3. DISPOSIÇÃO PÓS-MORTE Segundo o art. 14 do Código Civil, é válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. O dispositivo legal reflete a possibilidade de doação de órgãos. A disposição de órgão para depois da morte é plenamente possível, porém esta disposição do próprio corpo pode ser revogada a qualquer momento. Significa que se permite o arrependimento, conforme se nota do parágrafo único do art. 14 do Código Civil. Para regulamentar a questão da doação de órgãos foi editada uma lei específica sobre o tema. Quando o doador manifesta sua vontade, de forma expressa, em vida, não há qualquer discussão sobre o tema. Trata-se do princípio do consenso afirmativo. Antes da edição desse princípio se entendia que, na omissão, a pessoa era doadora de órgão. Atualmente, não é mais assim. A discussão jurídica ocorre quando o doador morre. Segundo o Enunciado 277 CJF/STJ da IV Jornada de Direito Civil12, o artigo 14 do Código Civil ao tratar da disposição gratuita do próprio corpo determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares. Todavia, quando a pessoa não manifesta, de forma expressa, que é doador de órgãos, a lei permite que essa decisão seja tomada por parentes. O art. 4º da Lei nº 9.434/97 estabelece que a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. Em outras palavras, a retirada de órgãos post mortem deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, e depende de autorização de parente maior, na linha reta ou colateral até o 2º grau, ou do cônjuge sobrevivente. É importante mencionar que, para pessoas não identificadas, não será permitida a doação de órgãos. É o disposto no art. 4º, § 6º da Lei nº 9.434/97. 2.7.4. TRATAMENTO SEM CONSENTIMENTO Dispõe o art. 15 do Código Civil que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Significa que no caso em que o paciente, ao ser previamente esclarecido do risco do procedimento, tem o direito potestativo de se negar a realizar o procedimento cirúrgico, sem que, com isso, atraia a responsabilidade civil do médico. Tanto é que o STJ entendeu que a 12 O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador. 31 Matheus Zuliani internação forçada do paciente, ainda que por decisão dos pais, é descabida, configurando constrangimento ilegal13. O caso ganha contornos diversos quando o paciente, diante de um caso grave, não tem condições de manifestar sua vontade. Nessas hipóteses o médico tem o dever de realizar o procedimento cirúrgico tentando salvar a vida da pessoa humana. AVI Jornada de Direito Civil aprovou o Enunciado 533, dizendo que o paciente plenamente capaz pode deliberar sobre todos os aspectos concernentes ao tratamento médico que possa lhe causar algum risco de vida, seja imediato ou mediato, salvo as situações de emergências no curso de procedimentos médico e cirúrgicos que não possam ser interrompidos. Por último, a grande questão polêmica sobre esse dispositivo legal é o conflito que pode surgir entre a crença religiosa e o direito à vida. Sabe-se que os seguidores da cresça denominados de testemunha de Jeová, não aceitam, em hipótese nenhuma, a transfusão de sangue. Assim, imagine a situação da testemunha de Jeová que, inconsciente, chega ao pronto socorro, estando entre a vida e morte, precisando de transfusão de sangue. Nessa hipótese deve ser aplicado o método da ponderação, critério utilizado para resolver conflitos entre princípios. Nessa senda, conforme posição majoritária na jurisprudência, deve o médico salvar a vida, bem maior protegido pela Constituição Federal. Desta forma, o direito à liberdade de crença não é absoluto, ele pode ser limitado se ofender outro direito fundamental garantido na Constituição, como o direito à vida. O TJSP já julgou demanda em que a testemunha de Jeová ingressou com ação judicial contra o médico que a salvou. Segundo o TJSP14 não há que se falar em exercício regular das próprias funções, modalidade de exercício regular de direito (Código Civil, artigo 188, I). Para finalizar, existe doutrina que diz que a Jornada de Direito Civil foi contra a posição exposta acima, editando o Enunciado 403. Ao contrário, o enunciado reforma a posição expressa no art. 15, ou seja, a pessoa consciente, alertada do risco do procedimento, tem o direito de decidir em prol da cresça religiosa e se negar a realizar o procedimento de transfusão de sangue. Segue a redação do enunciado: O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante. 2.7.5. DO NOME O nome é o instrumento que identifica a pessoa no meio social. “É o nome que identifica a pessoa nos circuitos familiar, profissional e social, daí exsurgindo a sua importância como traço individualizador que molda e projeta a sua personalidade” (JAMES, Eduardo Oliveira – Código Civil Anotado e Comentado – Editora Forense). O nome encontra-se protegido pelo Código Civil e pelas leis especiais, e emerge do princípio da segurança jurídica. Protege-se a sociedade evitando-se que a pessoa mude seu nome, sem fundamento, prejudicando terceiros, tanto na esfera criminal quanto na esfera 13 14 STJ - HC 35301/RJ – Ministra Relatora Nancy Andrhi. TJSP – Apelação Cível 123. 430-4. 32 Matheus Zuliani cível. Diante disso, o nome é protegido pelo princípio da imutabilidade do nome. Todavia, esse princípio não é absoluto. São elementos do nome o prenome; sobrenome, e ainda, o agnome. O prenome é o primeiro nome da pessoa, podendo ser ele simples ou composto. O sobrenome, antigamente conhecido como patronímico de família (mudança ocasionada pelo princípio da operabilidade) é o identificador familiar. Por fim, o agnome é o elemento que identifica, dentro de uma mesma família, pessoas com o mesmo prenome e sobrenome. Se o patriarca se chama Antenor Zuliani, seu filho vai se chamar Antenor Zuliani Filho, e seu neto se chamará Antenor Zuliani Neto. Conforme ressaltado, o nome se sujeita ao princípio da imutabilidade do nome. No entanto, essa imutabilidade não é absoluta. Uma das hipóteses que se excepciona o princípio da imutabilidade do nome é no caso de adoção. Significa que, uma vez autorizada a adoção permite-se que o adotado inclua o nome do seu adotante, inclusive a inclusão do nome dos genitores do adotante, que passarão a ser os avós. Todavia, é preciso fazer uma distinção entre a adoção estatutária e a adoção simples que vigia no Código Civil de 1916. Naquela época permitia-se a adoção por escritura pública *adoção contratual+ que previa que o parentesco resultante da adoção era meramente civil e limitava-se ao adotante e ao adotado, não se estendendo aos familiares daquele, uma vez que foram mantidos os vínculos do adotado com a sua família biológica. Nesse sentido era o art. 378 do Código Civil de 1916: "Os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio poder, que será transferido do pai natural para o adotivo”. Portanto, o pedido de inclusão dos nomes dos ascendentes dos pais adotivos não pode ser aceito dada a impossibilidade de modificação do ato jurídico perfeito e acabado da adoção levada a efeito na vigência do Código Civil de 1916. Assim, o STJ entendeu que: “o registro civil de nascimento de pessoa adotada sob a égide do Código Civil/1916 não pode ser alterado para a inclusão dos nomes dos ascendentes dos pais adotivos” *REsp 1.736.803-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 28/04/2020, DJe 04/05/2020 – informativo de jurisprudência n. 666+. Dispõe a Lei de Registros Públicos, no art. 56, que: “o interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa”. Significa que, entre os 18 e 19 anos, a pessoa pode, administrativamente, alterar o nome, desde que isso não prejudique a sua identificação no seio familiar. A lei traz no art. 57 que a alteração posterior de nome, ou seja, após o primeiro ano da maioridade, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa. Em uma leitura rápida de ambos os dispositivos é possível extrair a tese de que no primeiro ano da maioridade seria possível a alteração do nome administrativamente, enquanto, após esse primeiro ano, somente mediante ação judicial, com presença do Ministério Público. 33 Matheus Zuliani No entanto, a posição da ARPEN (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo) defende a tese de, em ambos os casos, a modificação depende de sentença judicial. O requerimento deve ser efetuado através de processo a ser manejado em juízo, assim como no caso do art. 57. O que muda é que na hipótese do art. 56 a modificação, realizada no prazo legal, não precisa ser justificada. Na hipótese do art. 57 a alteração só pode se operar por exceção e justo motivo. Por fim, a jurisprudência, interpretando tal dispositivo, chegou à conclusão de que essa alteração é somente do sobrenome, não se permitindo a alteração do prenome, e sempre, preservando a identificação familiar. Assim, seria possível modificar a ordem dos nomes; incluir sobrenome de família que não foi colocado pelos pais; retirar sobrenome que o titular acredita não se identificar, dentre outros casos. Sobre a possibilidade de se alterar o prenome, o art. 56 utiliza a expressão nome, o que engloba todos os elementos. Todavia, é pacífico que a alteração do prenome somente seria possível diante do procedimento previsto no art. 57, apresentando um justo motivo. Ainda sobre a relativização do princípio da imutabilidade do nome, permite-se a alteração nas seguintes hipóteses: exposição ao ridículo; erro de grafia crasso; adequação de sexo (transgenitalização); introdução de alcunha (alcunha também é conhecida como apelido ou cognome); introdução do nome do cônjuge ou convivente; introdução do nome do pai ou da mãe no caso de adoção do filho; tradução de nome estrangeiro, e por fim, proteção de testemunhas. A chamada Lei Clodovil (Lei nº 11.924/09), em homenagem ao Deputado Federal e apresentador de Televisão, modificou o art. 57, incluindo o § 8º, permitindo-se que o enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância desses, sem prejuízo de seus apelidos de família. Além desses casos permitidos pela Lei de Registros Públicos, a jurisprudência, a cada dia que passa, enaltecendo o princípio da dignidade humana, tem flexibilizado mais o princípio da imutabilidade do nome, como passamos a mencionar. O STJ, recentemente, entendeu que no caso de abandono afetivo e econômico por parte de genitor, o filho poderá fazer requerimento de retirada no nome de identificação familiar desse pai ou mãe15. O mesmo STJ também entendeu que é possível a retificação do registro civil para acréscimo do segundo patronímico do marido ao nome da mulher durante a convivência matrimonial16. Não se desconhece que a princípio, o propósito de alteração do sobrenome se revela mais apropriada na habilitação para o futuro casamento, quando o exercício do direito é a regra. Contudo, não há vedação legal expressa para que, posteriormente, o acréscimo de outro patronímico seja requerido ao longo do relacionamento, por meio de ação de retificação de registro civil, conforme artigos 57 e 109 da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), especialmente se o cônjuge busca uma confirmação expressa de como é reconhecido socialmente, invocando, ainda, motivos de ordem íntima e familiar, como, por exemplo, a identificação social de futura prole. 15 STJ - REsp 1.304.718-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 18/12/2014, DJe 5/2/2015 – Informativo de Jurisprudência n. 555. 16 STJ - REsp 1.648.858-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 20/08/2019 - Informativo de Jurisprudência n. 655. 34 Matheus Zuliani Em contrapartida, ainda dentro desse tema, existe a proteção que o ordenamento jurídico confere ao pseudônimo (CC, art. 19). O pseudônimo é nome adotado por autor ou responsável por uma obra (literária, artística ou científica, ou de qualquer outra natureza), que não usa o seu nome civil verdadeiro ou o seu nome consuetudinário, por modéstia ou conveniência ocasional ou permanente, com ou sem real encobrimento de sua pessoa. Na verdade, nos termos do art. 5º, VIII, “c” da Lei dos Direitos Autorais, aquele autor que se oculta sob nome suposto. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome. Por fim, sobre a proteção jurídica do nome, dispõe o art. 17 do Código Civil que nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória. No mesmo sentido é o art. 18 do Código Civil que diz que sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial. Caso haja infringência ao dispositivo citado haverá a prática de ato ilícito, passível de indenização, material e moral. 2.7.6. DO DIREITO DE IMAGEM A imagem é um direito inato da pessoa humana consistindo na sua fisionomia física e social. É a forma como a pessoa fisicamente se apresenta, bem como o modo que a sociedade a enxerga. É baseado nesse conceito que a doutrina classifica a imagem em imagem retrato e imagem atributo. A imagem-retrato é a sua fisionomia e aparência. A imagem-atributo é a sua qualificação, sendo a imagem pela qual as pessoas lhe julgam. As duas modalidades de imagem estão protegidas pelo artigo 20 do Código Civil, que assim dispõe: salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Pela leitura do dispositivo legal podemos extrair que, nos casos de interesse da ordem pública e de interesse da administração da justiça, o direito de imagem da pessoa pode ser utilizado sem necessidade de autorização. Ordem pública e administração da justiça são cláusulas gerais, ou seja, é o Juiz quem vai dizer, no caso concreto, se fica autorizada a divulgação dessa imagem da pessoa sem a sua autorização. Nos demais casos, a autorização de seu titular é imprescindível. Não havendo autorização, é possível aplicar o princípio da prevenção, impedindo que novas publicações sejam feitas, bem como o princípio da reparação integral do dano, de forma que, caso haja violação, deverá reparar o dano. Outra questão é que, pelo dispositivo legal, somente pode proibir a utilização da imagem sem autorização, caso ela atinja a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Essa interpretação é equivocada do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial. Isso porque, atualmente, em razão da relevância da dignidade humana e dos princípios fundamentais, a proibição pode ocorrer em qualquer caso quando não exigir autorização. A natureza da utilização da imagem é que vai ser analisada para gerar ou não indenização. Assim, se a utilização sem autorização atingir a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais, nascerá o direito de indenizar. Se não houver essa ofensa, apenas existe o direito de evitar a publicação ou de retirá-la de circulação. 35 Matheus Zuliani Sobre o dever de indenizar, quando o uso da imagem atingir a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, cabe ao ofendido comprovar o prejuízo. É ônus do detentor do direito de imagem. É claro que o Juiz tem sensibilidade para analisar se a utilização de imagem de alguém ofende a honra, boa fama ou respeitabilidade, não sendo um ônus probatório árduo. No entanto, em se tratando da publicação de imagem de pessoa não autorizada, com fins econômicos ou comerciais, o prejuízo é presumido, gerando um dano in re ipsa. Nesse sentido, a Súmula 403 do STJ diz que “independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.” Em relação às pessoas públicas, não se desconhece que tais cidadãos também são detentores de direito de imagem. Todavia, o direito de imagem dessas pessoas sofre uma mitigação em razão do interesse público e do direito de informação. Desta forma, o STJ entendeu, em caso envolvendo a pessoa pública, que o seu direito de imagem não pode ser proibido desde que haja compromisso ético com a informação verossímil, que se preserve os direitos da personalidade, entre os quais se incluem os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade, e por fim, que se vede a veiculação de crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandi vel diffamandi). Entendeu que a princípio, não configura ato ilícito as publicações que narrem fatos verídicos ou verossímeis, embora eivados de opiniões severas, irônicas ou impiedosas, sobretudo quando se trate de figuras públicas que exerçam atividades tipicamente estatais, gerindo interesses da coletividade, e a notícia e a crítica referirem-se a fatos de interesse geral relacionados à atividade pública desenvolvida pela pessoa 17 noticiada . Por fim, é importante constar que a captação do direito de imagem, em ambiente público, somente passa a ser ofensivo quando contextualizada ou específica, dando a interpretação de que o foco não é o ambiente, mas sim, a sua pessoa. Caso isso aconteça ocorrerá violação ao direito de imagem. 2.7.7. VIDA PRIVADA E INTIMIDADE A intimidade e a vida privada da pessoa humana angariam proteção pelo Código Civil, como se nota do art. 21 do Código Civil, in verbis: “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Existe diferença entre vida privada e intimidade. A vida privada é um núcleo restrito da vida social da pessoa que ela abre apenas para um grupo seleto de pessoas, enquanto a intimidade é aquele momento íntimo da pessoa, ou seja, núcleo mais restrito ainda. No que concerne a proteção, ambos possuem o mesmo peso, tendo a mesma proteção. Na visão do ato ilícito, o que a faz diferenciar uma da outra é no quantum indenizatório, sendo que a indenização é maior quando se viola a intimidade. Mesmo o direito à vida privada e à intimidade não são revestidos de caráter absoluto. Anderson Schreiber diz que é necessária a ponderação. Um exemplo claro de ponderação de vida privada é a segurança, por exemplo. No caso do aeroporto, quando se coloca a bagagem no raio-x, o agente da Infraero visualiza tudo. Todavia, nesse caso, o direito à segurança se sobrepõe ao direito à privacidade. 17 STJ - REsp 1771866/DF. 36 Matheus Zuliani Ainda dentro do tema da intimidade e da vida privada encontra-se o a questão da biográfica. A biografia é um gênero literário em que o autor narra a história da vida de uma pessoa ou de várias pessoas (conceito retirado da Wikipédia). Sobre a biografia, surgiu uma discussão jurídica sobre a necessidade ou não de autorização do personagem principal para que sua vida seja narrada. O STF, por unanimidade, julgou procedente uma ADIN18, para dar interpretação conforme a Constituição aos arts. 19 e 20 do Código Civil, sem redução de texto. O STF declarou inexigível o consentimento da pessoa biografada. Ou seja, ela não tem que autorizar para que sua vida seja contada. É igualmente desnecessária a autorização das pessoas que sejam coadjuvantes na biografia, bem como aquelas que tenham morrido, mas que foram mencionadas. Além disso, o Supremo reafirmou que o direito à inviolabilidade, da privacidade, intimidade, da honra e da imagem da pessoa, caso haja lesão aos seus direitos, deve-se haver a reparação dos danos. Outra questão polêmica é a publicidade do salário do servidor público. A publicação da folha de pagamento de um determinado servidor público ofende a sua intimidade (ou vida privada)? O TJDFT19 julgou um caso em que determinada imprensa escrita publicou uma reportagem expondo o salário de um servidor da Câmara dos Deputados. Esse Analista ingressou com ação dizendo que aquela publicidade ofendeu a sua intimidade, pois a partir de então familiares passaram a pedir dinheiro emprestado, além de despertar a cobiça de vizinhos. Nota-se que há forte corrente que entende que o salário do servidor público é pago pela sociedade, tendo ela interesse e direito de conhecer quanto que o servidor recebe e se estão observando os ditames legais. Assim, entende-se que a simples publicidade de salário, sem exposição de descontos da vida pessoal, e sem falácias, não configura ato ilícito. Ainda sobre a vida privada e intimidade, o STJ entendeu que a veiculação de matéria jornalística sobre delito histórico que expõe a vida cotidiana de terceiros, não envolvidos no fato criminoso, ofende o princípio da intranscendência, gerando o dever de indenizar *REsp 1.736.803-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 28/04/2020, DJe 04/05/2020 – informativo de jurisprudência n. 670+. 2.7.8. DIREITO DOS MORTOS O § único do artigo 20 do Código Civil, assim como o § único do artigo 12, reconhecem direitos da personalidade do morto, havendo legitimidade dos lesados indiretos. A lesão a direito da personalidade atinge tanto o morto quanto os seus parentes (dano em ricochete). É uma das hipóteses excepcionais em que se admite a transmissão de direitos personalíssimos. Art. 20. (...) Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. A única observação que deve ser lembrada, embora retórica, é a de que, não obstante se tenha esquecido da pessoa do companheiro, em razão da interpretação pacífica 18 19 STF – ADIN 1815 – Relatora Ministra Cármen Lúcia – julgamento 1/2/2016. TJDFT – 10º Vara Cível de Brasília – Juiz Matheus Stamillo Santarelli Zuliani – autos n. 2011.01.1.227261-7 37 Matheus Zuliani que se faz sobre o Código Civil, tem ele legitimidade, ao lado do cônjuge. Nesse sentido, existe o Enunciado 275 da IV Jornada de Direito Civil. 2.7.9. DIREITO DE PERSONALIDADE DAS PESSOAS JURÍDICAS A pessoa jurídica, tida como ente fictício, tem alguns dos direitos da personalidade, como ser observa do art. 52 do Código Civil, que assim se encontra redigido: “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”. Quando falamos em dano moral a pessoa jurídica, a mesma se justifica na ofensa a honra objetiva. A honra objetiva pode ser compreendida como o juízo que terceiros fazem acerca dos atributos de alguém. A honra subjetiva, noutro giro, se revela no sentimento que a pessoa tem dela mesma. Realmente, a pessoa jurídica tem alguns dos direitos da personalidade, caso do nome, da honra objetiva (repercussão social da honra) e da imagem. No entanto, não tem ela sentimento próprio, uma vez que se trata de um ente fictício. Por isso, prevê a súmula 227 do STJ que a pessoa jurídica pode sofrer dano moral (nunca em relação à honra subjetiva, pois a Pessoa Jurídica não tem sentimento). Por fim, é importante constar que a pessoa jurídica de direito público não tem direito a indenização por danos morais relacionados à violação da honra ou imagem. É o que decidiu o STJ20. 2.8. DAS PESSOAS JURÍDICAS - ASPECTOS GERAIS Temos no nosso ordenamento jurídico os sujeitos de direitos com personalidade jurídica, a qual é constituída pela pessoa natural e pessoa jurídica. O princípio da legalidade no campo do direito civil se materializa na ideia de que a pessoa natural e a pessoa jurídica podem fazer tudo que a lei não proíba. Desse modo, a pessoa jurídica é uma atividade de criação, que se distingue da pessoa natural. Por isso, fala-se que a pessoa jurídica tem personalidade jurídica própria, diversa, portanto, da personalidade jurídica dos seus componentes/sócios. Trata-se da necessidade ou conveniência de os indivíduos unirem esforços e utilizarem recursos coletivos para a realização de objetivos comuns, que transcendem as possibilidades individuais. O Código Civil adota a expressão “pessoa jurídica” para identificar esse ser fictício. No entanto, isso não exclui outras terminologias, como: pessoa civil, pessoa moral, pessoa coletiva, pessoa abstrata, pessoa mística, pessoa fictícia, ente de existência ideal (teoria abordada por Teixeira de Freitas). O doutrinador Carlos Roberto Gonçalves nos ensina: A pessoa jurídica é, portanto, proveniente desse fenômeno histórico e social. Consiste num conjunto de pessoas ou de bens dotado de personalidade jurídica própria e constituído na forma da lei para a consecução de fins comuns. Pode-se afirmar, pois, que pessoas jurídicas são entidades a que a lei confere personalidade, capacitando-as a serem sujeitos de direitos e obrigações. 20 STJ - REsp 1.258.389/PB. 38 Matheus Zuliani Muito se discute sobre a teoria adotada pelo Código Civil no que concerne a criação das pessoas jurídicas. O Código Civil adotou a teoria da realidade técnica. Essa teoria é uma junção de outras duas teorias, a teoria da ficção, idealizada por Savigny, e, ainda, a teoria da realidade orgânica, criada por Otto Gierke. Por essa teoria afirma-se que a pessoa jurídica teria existência real, não obstante a sua personalidade ser conferida pelo direito. Uma vez personificada pelo direito, a pessoa jurídica passa a ter a atuação social na condição de sujeito de direito. Não se olvida que a personalidade jurídica, uma vez concedida pelo direito, passa a ter ela uma função social, atendendo, assim, ao princípio da socialidade, um dos pilares do Código Civil de 2002. A teoria da realidade técnica se revela, basicamente, no artigo 45 do Código Civil, que assim dispõe: Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. Denota-se que, a aquisição da personalidade jurídica da pessoa jurídica de direito privado, existe a partir do registro dos atos constitutivos, produzindo efeito ex nunc, logo, possui natureza constitutiva. Por ter natureza constitutiva que o parágrafo único, do mesmo dispositivo, assenta que decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro. Por último, não se pode perder de vista a questão da presentação da pessoa jurídica. É muito comum em provas e em doutrinas, utilizarem a expressão de que a pessoa jurídica é “representada” pelos sócios, administradores e gerentes. Porém, o termo correto é “presentação”. Isso porque, representação, é um instituto das incapacidades e, a presentação, é instituto da pessoa jurídica. Segundo ensinamentos de Pontes de Miranda, por não poder atuar por si própria, a pessoa jurídica, como ente da criação da lei, deve ser presentada por uma pessoa natural, exteriorizando sua vontade, nos atos judiciais ou extrajudiciais. O art. 47, do Código Civil diz que todos os atos negociais exercidos pelo presentante, dentro dos limites de seus poderes estabelecidos no estatuto social, obrigam a pessoa jurídica, que deverá cumpri-los. Contudo, se o presentante extrapolar estes poderes, responderá pessoalmente por este excesso. Para essas circunstâncias, temos a chamada teoria intra viris societatis e ultra vires societatis. A teoria intra viris societatis ocorrerá, quando a pessoa natural que a administra, o sócio, atua de acordo com o previsto no ato constitutivo. Tais atos vinculam a pessoa jurídica. O ato ultra vires societatis ocorrerá quando o sócio extrapola os poderes que lhes foram concedidos através do contrato social, como consequência, o próprio sócio responde pelos atos praticados. Não vincula a pessoa jurídica. A questão do ato intra e ultra vires é bastante pertinente, no que tange à desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque quando o sócio pratica um ato intra vires e não possui condições de arcar com essa responsabilização, ocorrerá o fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica (CC, art. 50). 39 Matheus Zuliani Em regra, a pessoa natural é a indicada no ato constitutivo da pessoa jurídica. Na sua omissão, a presentação será exercida por seus diretores. Se a pessoa jurídica tiver administração coletiva, as decisões serão tomadas pela maioria dos votos, salvo se o ato constitutivo dispuser de modo diverso (CC, art. 48). 2.8.1. CLASSIFICAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS No ordenamento jurídico vigente a pessoa jurídica pode ser nacional ou estrangeira, sendo que, nesse último caso, precisará de autorização do Poder Executivo. Quanto à estrutura interna, poderá a pessoa jurídica ser classificada como Corporação ou como Fundação. Naquela há um conjunto de pessoas que atuam para determinados fins. Por exemplo, as empresas possuem a finalidade de lucro, enquanto as associações possuam uma natureza sem fins lucrativas e recreativa. A entidade religiosa possui a finalidade de buscar as suas crenças, e assim por diante. Já a Fundação, por sua vez, é um conjunto de bens, os quais são arrecadados para uma finalidade de interesse social. Por fim, quanto a natureza, podem ser elas de direito público ou de direito privado. As de direito público podem, ainda, ser de direito público interno e externo. Será de direito público interno quando visar atender interesse público intrínseco. São elas a União, Estados, DF e Municípios, autarquias, associações públicas. A pessoa jurídica de direito público externo representa o País perante os países estrangeiros. A Pessoa jurídica de direito privado é aquela instituída pela vontade dos particulares. O art. 44 do Código Civil elenca as pessoas jurídicas de direito privado. O rol do art. 44 do Código Civil não é um rol exaustivo, podendo existir outras pessoas jurídicas de direito privado esparsas pelo Código Civil ou pela legislação civil especial. Cita-se, como exemplo, o condomínio edilício, que tem uma personalidade jurídica anômala. Atente-se que pessoas jurídicas não se confundem com entes despersonalizados. Entes despersonalizados não têm personalidade jurídica. São conjuntos de bens ou de pessoas que não tem personalidade própria, tais como a família, a massa falida, espólio, herança jacente, sociedade de fato e a irregular, dentre outros. 2.8.2. DAS ASSOCIAÇÕES O art. 53 diz que se constituem as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. Por fins não econômicos entende-se pela ausência de finalidade lucrativa. Isso não significa que a pessoa jurídica não possa angariar dinheiro, o que é proibido é a distribuição de dividendos. Geralmente o estatuto de uma associação prevê, no que se refere à sua estrutura, uma diretoria, uma presidência, um conselho fiscal, um conselho administrativo. No entanto, o órgão máximo de toda e qualquer associação é a sua assembleia geral, cuja atribuição está delineada no art. 59 do Código Civil, sendo resumidamente a destituição de administradores e a alteração de estatuto. Para as deliberações a que se referem os incisos do art. 59 é exigido deliberação da assembleia especialmente convocada para esse fim, cujo quórum será o estabelecido no estatuto, bem como os critérios de eleição dos administradores. Em uma associação não existe entre os associados direitos e obrigações recíprocos. Isso porque não há intuito de lucro. A diferença entre a associação e a sociedade é a de que aquela não tem fins lucrativos e a sociedade sempre tem fins lucrativos. A diferença entre 40 Matheus Zuliani associação e a fundação é a de que aquela é um conjunto de pessoas e a esta é um conjunto de bens. O Código Civil dispõe que dentro da associação deverão os associados ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais. Quem não lembra do sócio remido do clube. O que não se admite é que dentro de uma mesma categoria de sócios haja diferenciação entre eles. Há uma discussão sobre a intransmissibilidade da qualidade de associado. Dispõe o art. 56 do Código Civil que a qualidade de associado é intransmissível, se o estatuto não dispuser o contrário. Trata-se de uma definição de natureza personalíssima (intuito personae) da qualidade de sócio. Todavia, essa característica não se reveste de natureza absoluta, podendo o estatuto autorizar a transmissão. No que tange as associações, é importante ressaltar sobre a possibilidade da expulsão do associado. Explica o art. 57 do Código Civil que “a exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto”. A exclusão do associado só é possível se houver justa causa. Mesmo assim, é preciso que a exclusão seja decorrente de um procedimento que assegure ampla defesa e recurso, nos termos previstos no estatuto. Há, aqui, uma aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Outro tema importante envolvendo as associações é a possibilidade de cobrança de taxa de manutenção criada por associações de moradores. Quando se envolve um bairro de uma cidade a questão é simples, que não se associa não pode ser obrigado a pagar a referida taxa. No entanto, a questão ganha contornos complexos quando se está diante de um condomínio de fato, ou seja, irregular. A matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal que decidiu pela não obrigatoriedade de pagamento se a pessoa não aderiu à associação. Sustenta que a Constituição Federal, em seu art. 5°, incisos II e XX, não aceita a adesão compulsória à associação. Ademais, pelo fato da associação de moradores não ser igual à associação de condôminos, a imposição compulsória da mensalidade é ilegal, vez que a obrigação tem como fonte a lei ou a declaração de vontade. Se não há amparo em nenhuma dessas duas fontes só resta reconhecer a mensalidade dentro do campo da ilicitude. Assim, não está obrigado ao pagamento da mensalidade imposta pela associação dos moradores aquele que não aderiu. O STJ firmou, em sede de repetitivo, a tese (882) de que a taxa de manutenção não é obrigatória, com fundamento na Constituição Federal de que ninguém é obrigado a associar-se (REsp 1439163 / SP). Por fim, não há como não tratar do tema da dissolução da associação. O tema vem delineado no art. 61 do Código Civil. Se for dissolvida a associação, o patrimônio líquido remanescente será destinado à entidade de fins não econômicos designada no estatuto. Caso o estatuto seja omisso, os associados irão deliberar a respeito. O remanescente poderá ser destinado à instituição municipal, estadual ou federal, de fins idênticos ou semelhantes. Existe discussão em que se considera nula a previsão no Estatuto que determina que nos casos de dissolução da associação, o patrimônio vai ser rateado entre os associados, eis que haveria um esbarrar na vedação de lucro. Bastaria pensar numa associação que cresceu muito e que tenha um patrimônio de 100 milhões de reais com 100 associados. Maria Helena Diniz comenta que se a finalidade da associação não for altruística, “o associado poderá receber uma quota de liquidação daquele acervo social, ante seu direito de participante no patrimônio comum, de quota ideal, conforme os fins da associação, exceto se o estatuto prescrever o contrário” (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – Editora Saraiva). 41 Matheus Zuliani Os que discordam dessa posição defendem que inexiste um patrimônio em comum, eis que a associação possui personalidade e autonomia patrimonial. Logo, ainda que a associação não possua finalidade altruística, a quota a ser liquidada não poderá representar uma parcela do patrimônio associativo. Isso, porque é notório que o associado não poderia ser considerado um proprietário de quota do capital associativo, mas mero participante (BITTI, Eduardo Silva - A dissolução de associação e a repartição do patrimônio entre “sócios proprietários). Francisco Loureiro, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e professor em diversas entidades, já decidiu que independente da finalidade altruísta ou não da associação, isso não afasta o caráter não lucrativo da associação, ao certo que, no final de sua existência o patrimônio não será compartilhado entre os associados, mas, sim, direcionado pelo estatuto a “entidade de fins não econômicos designada”. Não somente, “à falta de deliberação da assembleia, se um dia vier a ser extinta a pessoa jurídica, a escolha da entidade destinatária do patrimônio cabe o juiz, com base na afinidade dos objetivos de entidades congêneres21”. Existe a possibilidade de eventualmente o associado recuperar aquilo que ele investiu na cota. Trata-se do ressarcimento, não havendo falar em enriquecimento. Vale atentar que, não existindo no Município, no Estado, no Distrito Federal ou no Território, em que a associação tiver sede, instituição nas condições indicadas, o que remanescer do seu patrimônio se devolverá à Fazenda do Estado, do Distrito Federal ou da União. 2.8.3. DAS FUNDAÇÕES Fundações podem ser conceituadas como um conjunto de bens, os quais são arrecadados e personificados para uma determinada finalidade. A fundação é uma pessoa jurídica especial, pois ela resulta de um patrimônio destacado e se personifica para se constituir. Só constitui fundação quem tem muito patrimônio. O art. 62 do Código Civil diz que as fundações são criadas por escritura pública ou por testamento. A sua criação pressupõe a existência de afetação de bens livres, a especificação da sua finalidade, a previsão de como será administrada a fundação, e por fim, a elaboração de estatuto. O art. 64 do CC diz que constituída a fundação, num negócio jurídico entre vivos, o instituidor é obrigado a transferir à fundação a propriedade, ou outro direito real, sobre os bens dotados. Caso não o faça, os bens serão registrados em nome da fundação por mandado judicial. A elaboração do estatuto é submetida à apreciação do Ministério Público, eis que ele fiscaliza a fundação, cabendo a ele a função de aprovar a elaboração. No entanto, pode ser que o Ministério Público tenha que, ele próprio, elaborar o estatuto. Isso acontece quando o estatuto não é elaborado dentro do prazo assinado pelo instituidor, ou, não havendo prazo, em cento e oitenta dias. É o que dispõe o art. 65, parágrafo único, do Código Civil. Nesse caso, a quem cabe a aprovação do estatuto elaborado pelo Ministério Público? Caso o Ministério Público elabore o estatuto, o art. 764, II do Código de Processo Civil estabelece que deverá o mesmo ser aprovado pelo juiz. 21 Apelação Cível n. 994.09.287598-8, pela 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – julgado em 5/8/2010. 42 Matheus Zuliani É importante constar que Pablo Stolze critica essa norma. Ele defende que isso escapa da função jurisdicional. Se o juiz aprovar um estatuto, ele não poderá julgar as lides que envolvam esse estatuto, pois ele o aprovou. Assim, a aprovação do estatuto não parece ser uma função jurisdicional. Sobre a atribuição fiscalizatória do Ministério Público, explica o Código Civil, no art. 66, que velará pelas fundações o Ministério Público do Estado onde estão situadas. Se funcionarem no Distrito Federal, ou em Território, caberá o encargo ao Ministério Público do Distrito Federal. Se estenderem a atividade por mais de um Estado, caberá o encargo, em cada um deles, ao respectivo Ministério Público. Quando se tratar de fundações instituídas ou mantidas pela União, autarquia ou empresa pública federal, ou que destas recebam verbas, poderá o Ministério Público Federal atuar22. A alteração das normas estatutárias de uma fundação somente é possível pela deliberação de 2/3 dos competentes para gerir e representar a fundação. Além disso, esta alteração não pode contrariar ou desvirtuar o fim desta. Ademais, quando a alteração não se der por votação unânime, os administradores, ao submeterem o estatuto à análise do Ministério Público, irão requerer que seja cientificada a minoria vencida para impugnar a votação se quiser, em 10 dias. Por fim, tornando-se ilícita, impossível ou inútil a finalidade a que visa a fundação, ou vencido o prazo de sua existência, o órgão do Ministério Público, ou qualquer interessado, lhe promoverá a extinção, incorporando-se o seu patrimônio, salvo disposição em contrário no ato constitutivo, ou no estatuto, em outra fundação, designada pelo juiz, que se proponha a fim igual ou semelhante. É o art. 69 do Código Civil tratando da extinção da fundação. 2.8.4. DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. 2.8.4.1. ASPECTOS GERAIS. A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto advindo do direito inglês, que autoriza o afastamento da autonomia patrimonial, permitindo-se chegar aos bens particulares dos sócios por dívidas da sociedade, nas hipóteses previstas no art. 50 do Código Civil. Vale destacar que a desconsideração da personalidade jurídica já estava positivada no Direito brasileiro antes mesmo da promulgação do mencionado artigo 50 do Código Civil, eis que o artigo 135 do Código Tributário Nacional, o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e o artigo 4º da Lei de Crimes Ambientais já previam o referido instituto. O art. 50 do Código Civil assim prevê: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. O abuso da personalidade jurídica é gênero, que tem como espécies a confusão patrimonial e o desvio de finalidade. Sócios de uma sociedade empresária, aproveitando-se do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a utilizam como subterfúgio para ludibriar pessoas, causando-as prejuízos econômicos. Quando tentam buscar o recebimento de seus créditos esbarram em uma sociedade desprovida de bens. 22 Enunciado 147 da Jornada de Direito Civil da Justiça Federal. 43 Matheus Zuliani O Poder Judiciário sempre foi adepto da desconsideração da personalidade, dando uma maior elasticidade ao conceito de confusão patrimonial e o desvio de finalidade, já que o Código Civil não trazia maiores detalhes. Todavia, foi editada pelo Poder Executivo Federal a Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, cujo objetivo, segundo suas razões constantes do artigo 1º, é instituir “a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador. Essa Medida Provisória foi convertida em Lei, dando nascimento a lei 13.874/2019. Muito se diz que tais alterações promovidas pelo Legislativo se traduz em uma mensagem clara consistente em reduzir a discricionariedade dos Magistrados a respeito do tema. A confusão patrimonial ocorre na hipótese em que os sócios da sociedade utilizam os proventos da sociedade em benefício próprio, adquirindo bem em seu nome, e não da pessoa jurídica. Nesse sentido dispõe o § 2º do art. 50 do Código Civil, in verbis: “§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.” Já o desvio de finalidade consiste em um desvirtuamento do seu fim, desviando-se para lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Diante disso, o art. 50, § 1º assim prevê: “§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”. É importante constar que não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica, conforme se nota do § 5º do art. 50 do Código Civil. Não obstante o legislador tenha sinalizado para uma possível alteração na atividade *escopo meio ou objeto da sociedade+, na verdade, executou uma alteração na finalidade-fim da sociedade *objetivo da sociedade empresária+. Nesse sentido escreveu Raphael Andrade *in www.conjur.com.br - MP 881 e a nova disciplina do desvio de finalidade no Código Civil+: “Uma alteração de finalidade (Zweckänderung) ocorreria, por exemplo, ao se cambiar o objetivo de lucro, próprio da sociedade empresária, pelo objetivo de benemerência, ao qual se dedicam as associações, que, em decorrência de sua natureza, jamais podem explorar atividade econômica – isto é, empresa (artigo 53 do Código Civil). A se interpretar dessa maneira, as consequências do dispositivo seriam muito mais gravosas para terceiros do que, em minha opinião, quis cogitar a MP 881. Se a finalidade se confunde com o escopo-fim e, na sociedade empresária, é sempre a partilha dos resultados, a alteração sobre a qual se debruça o dispositivo é aquela da atividade (isto é, da empresa), de modo que o excerto “da finalidade original” deveria, simplesmente, ter sido suprimido, bastando, para os propósitos do legislador, 44 Matheus Zuliani dizer que “a alteração da atividade econômica específica da pessoa jurídica” não é elemento apto a, per se, configurar o desvio de finalidade autorizativo da desconsideração da personalidade jurídica”. Por fim, é importante constar o enunciado 146 da III Jornada de Direito civil que dispõe no sentido de que esses parâmetros permissivos da desconsideração da personalidade jurídica devem ser interpretados restritivamente23. Quando se trata de desconsideração da personalidade jurídica em uma relação regida pelo Código Civil, ou seja, diante de paridade de partes, não se falar em desconsideração de ofício pelo Juiz. Embora, quando se trate de relação sob a égide do Código de Defesa do Consumidor, em função da norma cogente, essa possibilidade é real. A desconsideração da personalidade jurídica é uma medida excepcional, que dever ser tomada com cautela, calcada em provas, para evitar abusos em face dos sócios empreendedores. A sua realização é para um determinado negócio jurídico, sendo assim, temporário. Uma vez pago a dívida a personalidade é restabelecida, permitindo-se uma nova desconsideração em caso de novo abuso. Por isso que se diz que a desconsideração é temporária, e não permanente. Existe uma diferença entre a desconsideração e a despersonalização da pessoa jurídica. A desconsideração permite o afastamento da autonomia patrimonial, de forma temporária, para a hipótese de abuso da personalidade jurídica, com fulcro no Código Civil. Já a despersonalização, ao revés, é a perda da autonomia patrimonial em virtude do não cumprimento das regras atinentes ao direito de empresa, o que torna a pessoas uma sociedade de fato. Possui como característica a definitividade, a não ser que regulamente a situação irregular que a circunda. Muito se discute, quando se cogita na desconsideração, da imprescindibilidade da decretação da insolvência da sociedade. É certo que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, estampada no art. 50 do Código Civil, pressupõe que o credor não esteja – de alguma forma – conseguindo buscar o seu direito de crédito em face desta sociedade. De modo que, provando o abuso da personalidade jurídica ou o simples inadimplemento *relações sob a égide do Código de Defesa do Consumidor+, o credor pode buscar nos bens dos sócios desta sociedade, o que não obteve êxito em face da pessoa jurídica. Assim, conclui-se que se a sociedade não está de algum modo inviabilizando o pagamento do crédito, existindo bens a serem penhorados, não há motivo para desconsiderar a personalidade jurídica, já que vigora no nosso sistema jurídico o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Nessa senda, acompanhado o posicionamento do STJ, não cabe desconsiderar a personalidade jurídica se a sociedade for solvente. Alguns doutrinadores, calcado no enunciado 281, da IV Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal, vem sustentando o oposto24. Não é essa a interpretação correta a ser dispensada ao enunciado. O que ele quis dizer foi que prescinde do lesado mostrar a insolvência da empresa, uma vez que se os sócios não quiserem que haja constrição sobre seus bens particulares, cabe a eles indicarem bens da empresa para suprirem o débito. O exemplo pode elucidar bem a questão. Se o credor pede a 23 Enunciado 146 da III Jornada de Direito Civil: “Nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50 (desvio de finalidade social ou confusão patrimonial)” 24 Enunciado 281 da IV Jornada de Direito Civil: “A aplicação da teoria da desconsideração descrita no art. 50 do Código Civil, prescinde da demonstração de insolvência da pessoa jurídica”. 45 Matheus Zuliani penhora “on-line” e não encontra bem, pede a penhora de bem imóvel e não encontra registro, pede a penhora de automóvel e não encontra registro, vai então, atrás dos bens pessoais. Nesse caso pode o sócio peticionar indicando, no galpão, uma máquina valiosa. Nesse sentido decidiu o STJ *STJ - REsp 1.729.554+: “É possível afirmar, ademais, que além de a constatação da insolvência não ser suficiente à desconsideração - para o caso do art. 50 do CC -, com mais razão a inexistência de bens do devedor não pode ser condição para instauração do procedimento que objetiva aquela decretação. Na verdade, pode a desconsideração da personalidade jurídica ser decretada ainda que não configurada a insolvência, desde que verificados o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, caracterizadores do abuso de personalidade.” 2.8.4.2. TEORIAS. No que concerne as teorias que circundam o tema, o Código Civil adotou a teoria maior, já que exige, para a desconsideração da personalidade jurídica, a presença dos requisitos do artigo 50, somado ao inadimplemento do título. Para essa teoria não basta o simples inadimplemento, deve haver a existência de outros requisitos, como a prova do abuso da personalidade. Já a teoria menor, por sua vez, exige menos requisitos para que ocorra a desconsideração da personalidade jurídica, bastando para tanto, o inadimplemento da obrigação. Foi a teoria adotada no Código de Defesa do Consumidor. Ainda sobre as teorias, fala-se em concepção subjetivista e objetivista da teoria maior na desconsideração da personalidade jurídica. Sabe-se que o Código Civil, em seu art. 50, adotou a teoria maior da personalidade jurídica, necessitando-se, para atingir os bens pessoais dos sócios, por dívida da sociedade, a demonstração do abuso da personalidade jurídica da sociedade, consubstanciada na confusão patrimonial ou no desvio de finalidade. Pois bem, caso entenda-se que cabe ao credor da sociedade provar o abuso, adota-se, assim, a concepção subjetivista, onde não basta a prova da confusão patrimonial ou do desvio de finalidade, mas também a prova cabal de que foi empregada a fraude. Esta prova era demasiadamente difícil de ser realizada, o que aniquilava a possibilidade de ver o seu crédito satisfeito. Assim, chegou-se à conclusão de que bastaria a demonstração da confusão patrimonial ou do desvio de finalidade para viabilizar o atingimento dos bens particulares dos sócios, por dívidas da sociedade, adotando-se, assim, a concepção objetivista da teoria maior. A análise fica restrita aos elementos de cunho objetivo, sem perquirir a intenção de fraudar ou não. 2.8.4.3. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. A desconsideração da personalidade jurídica inversa é a possibilidade de buscar os bens da sociedade por dívidas particulares dos sócios, quando esses, com intuito manifestamente fraudulento, transferem ao ente todo o seu patrimônio. A desconsideração da personalidade jurídica, mesmo de forma inversa, é mecanismo voltado para afastar o manto protetivo da autonomia da personalidade jurídica das empresas quando ocorrer abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Tal manobra é corriqueira nas relações familiares que estão à beira do fracasso. O cônjuge, vislumbrando o fim do casamento, começa a transferir todos os bens para a sua sociedade, evitando-se, assim, a divisão dos bens com o outro consorte. Nítida manobra fraudulenta. O 46 Matheus Zuliani Conselho da Justiça Federal editou o enunciado 283, na IV Jornada de Direito Civil nesse sentido25. Antes não existia previsão no ordenamento jurídico acerca da desconsideração inversa. Agora, o novo Código de Processo Civil trouxe essa possibilidade de forma expressa no art. 133, § 2º. 2.8.4.4. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INDIRETA. A desconsideração da personalidade indireta consiste na retirada da personalidade jurídica de uma determinada empresa que pertence à um grupo econômico, para viabilizar a responsabilidade da empresa controladora, angariando seus bens e ressarcindo o lesado. Em regra, a sociedade que se encontra na prática de atos fraudulentos, prejudicando os credores, é apenas uma fachada para blindar o patrimônio de outra sociedade, a principal do grupo econômico. Com a desconsideração indireta viabiliza o recebimento do crédito burlado, atingindo o patrimônio da empresa protegida. O art. 50, § 4º do Código Civil dispõe que: “A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica”. Ou seja, para que seja possível atingir os bens de pessoas jurídicas pertencentes ao mesmo grupo econômico é preciso que os requisitos do art. 50 estejam presentes. 2.8.4.5. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DE PESSOAS SEM FINS LUCRATIVOS. Muito embora tais pessoas de direito privado tenham como principal característica a ausência de finalidade lucrativa, isso não tem o condão de afastar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem como finalidade precípua a preservação do visa conservar a alma da pessoa jurídica. Nessa trilha, o jurista alemão Rolf Serick aduz que "a desconsideração da personalidade jurídica poderá ser aplicada em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre pessoa jurídica e os membros que a compõem, colocando o problema de que essa separação radical pode conduzir a resultados injustos”. Tendo em vista a semelhança entre as associações e as sociedades, em especial no que concerne à reunião de pessoas *característica essa denominada de corporação+, a facilidade para desvirtuar a finalidade da pessoa formada não se mostra trabalhosa, permitindo-se, dessa forma, a aplicação da teoria em estudo. Tanto é que o Código Civil dispõe, no art. 44, § 2º, a aplicação subsidiária das regras inerentes ás sociedades para as associações. Mais um indicativo de que a desconsideração da pessoa jurídica se mostra factível ante a constatação de confusão patrimonial ou de desvio de finalidade *abuso da personalidade jurídica+. O enunciado 284 da IV Jornada de Direito Civil segue essa linha26. 25 Enunciado 283 da IV Jornada: “É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”. 26 Enunciado 284 da IV Jornada: “As pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos ou de fins não-econômicos estão abrangidas no conceito de abuso da personalidade jurídica”. 47 Matheus Zuliani Nesse sentido é a jurisprudência desse e. Tribunal de Justiça do Distrito Federal Acórdão n. 517250, 20110020091392AGI, Relator: VERA ANDRIGHI, 6ª Turma Cível, Data de Julgamento: 29/06/2011, Publicado no DJE: 07/07/2011. Pág.: 192. 2.8.4.6. AUTODESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. Se cogita se a própria pessoa jurídica poderia invocar a sua desconsideração. Não obstante a raridade de se verificar um pleito nesse sentido, doutrinariamente é possível cogitar-se em pedido de desconsideração da personalidade jurídica pela própria pessoa jurídica no instante em que há uma deliberação pela maioria dos sócios, justamente com o objetivo de indicar os bens de determinado sócio, que à revelia dos demais incidiu no abuso da personalidade jurídica. Menciona-se, com a devida licença, a decisão do C. Superior Tribunal de Justiça que assim decidiu27: “A decisão jurisdicional que aplica a aludida teoria importa prejuízo às pessoas físicas afetadas pelos efeitos das obrigações contraídas pela pessoa jurídica. A rigor, ela resguarda interesses de credores e da própria sociedade empresária indevidamente manipulada”. Por isso, o Enunciado 285 da IV Jornada de Direito Civil descreve que "A teoria da desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor”. 2.9. DO DOMICÍLIO As regras quanto ao domicílio da pessoa natural estão entre os arts. 70 e 78 do Código Civil. Domicílio é o local em que a pessoa pode ser sujeito de direitos e deveres na ordem privada. É o local onde poderá ser cobrada ou cobrar direitos e deveres na ordem jurídica. Domicílio é o local da sua residência. Há quem diga que domicílio é residência com ânimo definitivo. O domicílio eleitoral é mais amplo do que o domicílio civil. Existe o elemento objetivo e o elemento subjetivo do domicílio. O elemento objetivo representa a fixação da pessoa em um determinado lugar. É a cidade que o sujeito escolhe para morar, por exemplo. O elemento subjetivo, por sua vez, é a vontade de ali permanecer de forma definitiva. O Código Civil admite a pluralidade de domicílios, ou seja, a pessoa poderá ter duas ou mais residências, o qual ela viva alternadamente, considerando-se domicílio seu qualquer delas. É o que se extrai do art. 71 do código privado. O art. 72 do Código Civil diz que o local em que a pessoa exercitar profissão também é domicílio da pessoa natural, também sendo permitida a pluralidade domiciliar. Nesse caso, se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles constituirá domicílio para as relações que lhe corresponderem. É possível a mudança de domicílio. Estabelece o art. 74 do Código Civil que se muda o domicílio, transferindo a residência, com a intenção manifesta de mudar o domicílio. Para se provar a intenção manifesta de mudar, basta que a prova da intenção resulte da declaração da pessoa às municipalidades dos lugares, que deixa, e para onde vai, ou, se tais declarações não fizer, da própria mudança, com as circunstâncias que a acompanharem. 27 STJ - AgRg no REsp 1307639 / RJ – Rel. Min. Herman benjamin – julgado em 17/5/2012. 48 Matheus Zuliani Essa intenção é vislumbrada por meio das declarações da pessoa à municipalidade, tanto de onde ela está saindo como onde ela está indo morar. Ex.: alteração do domicílio eleitoral é exemplo de intenção manifesta de se mudar. 2.9.1. CLASSIFICAÇÃO DO DOMICÍLIO O domicílio pode ser voluntário, de eleição, legal ou necessário, contratual, e por fim, o aparente. O domicílio voluntário, também conhecido como convencional, é o que decorre de um ato de escolha da pessoa como exercício da autonomia privada. O legal ou necessário é o fixado pela lei. O artigo 76, do Código Civil, apresenta um rol daqueles que possuem domicílio legal, e em seu parágrafo único, define o local onde elas terão domicílio. Dessa forma, o domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente. Vale lembrar que a súmula 383, STJ, estabelece que a competência para processar e julgar ações conexas de interesse de menor, em geral, é o foro do domicílio do detentor da sua guarda. O domicílio do servidor público é o lugar em que ele exerce permanentemente as suas funções. Até para o servidor público admite-se a pluralidade de domicílios. O domicílio do militar é o do local onde ele servir e se for da marinha ou da aeronáutica é da sede ou comando a que se encontrar imediatamente subordinado. O domicílio do marítimo é o do lugar em que seu navio estiver matriculado. Por fim, o domicílio do preso é o do lugar em que ele cumpre a sentença. E o preso preventivo? Ele não está cumprindo sentença, então, não há para ele essa hipótese de domicílio legal. No que tange as pessoas que não tem domicílio, o Código Civil classifica esse como o de domicílio aparente, ou seja, seu domicílio é o local em que elas forem encontradas (CC, art. 73). Domicílio contratual é aquele que consta em contrato escrito especificando local para cumprimento de deveres e obrigações contratuais. Nesse ponto, não podemos confundir domicílio contratual com foro de eleição. O foro de eleição é utilizado para aspectos processuais, para fins de definição de uma determinada ação judicial. Por exemplo, em uma cláusula contratual consta que eventuais conflitos resultantes do contrato serão discutidos na cidade “A”. O domicílio contratual ocorrerá nos contratos escritos, em que os contratantes poderão especificar domicílio onde se exercitem, e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes. É o disposto no art. 78, do Código Civil. Dessa forma, estabelece a Súmula 335 do STF que “é válida a cláusula de eleição do foro para os processos oriundos do contrato”. No entanto, quando estivermos diante de contrato de adesão, ou seja, aquele com conteúdo imposto por uma das partes, principalmente, no que tange as relações consumeristas, a imposição de cláusula de eleição de foro é abusiva, podendo ser declarada de ofício se houver prejuízo ao aderente. 49 Matheus Zuliani É importante ponderar que o contrato de adesão não necessariamente é de consumo28. Por conseguinte, os contratos de adesão e de consumo, possuem proteção no Código de Defesa do Consumidor, no entanto, no campo das relações civilistas, possuem proteções aos contratos civis que não envolvam necessariamente relações de consumo. O domicílio da pessoa jurídica pode ser estatutário ou aparente. Domicílio estatutário é local previsto no estatuto. O domicílio aparente, noutro giro, é o local de funcionamento das diretorias ou administrações. Se a pessoa jurídica tiver sede no exterior, deve-se considerar como seu domicílio o local da filial no Brasil (CC, art.75, § 2º). 2.10. DOS BENS Antes de ingressar no instituto jurídico denominado “dos bens”, que tem regulamentação a partir do art. 79 e seguintes do Código Civil, é preciso fazer uma distinção entre bem e coisa, já que não são vistos como sinônimos. No conceito adotado pelo Código Civil de 2002, idealizado por Miguel Reale, coisa é gênero (tudo o que não é humano), sendo que bem é espécie (coisa com interesse econômico e/ou jurídico). Diante disso, bens são as coisas materiais ou imateriais que têm valor econômicojurídico e que são elementos de uma relação jurídica. Desta forma, bem é uma coisa que proporciona ao homem uma utilidade, sendo suscetível de apropriação. O ar não é bem, pois apesar da utilidade, não é suscetível de apropriação. Ao conjunto de bens pertencentes a um particular dá-se o nome de patrimônio. 2.10.1. CLASSIFICAÇÃO DOS BENS Os bens podem ser classificados de diversas maneiras. O Código Civil divide os bens em bens considerados em si mesmos e bens reciprocamente considerados. Quando se fala em bens considerados em si mesmo, considera-se o bem individualmente, sem a necessidade de ter outro bem atrelado. Nessa classificação encontramos os bens imóveis, bens móveis, bens fungíveis e infungíveis, bens consumíveis, e ainda, bens singulares e coletivos. Nos termos do art. 79 do Código Civil, são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente. Noutro giro, bens móveis são os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social (CC, art. 82). Os bens imóveis sofrem, ainda, uma subclassificação, sendo por natureza, por acessão física, industrial ou artificial, ou ainda, pela disposição da lei. Os bens imóveis por natureza são formados pelo solo e tudo aquilo que se incorporar a ele de forma natural. Abrange o solo, subsolo, superfície, espaço aéreo e tudo que lhe for incorporado. Ex.: árvore que é incorporada naturalmente. Os imóveis por acessão física são aqueles que o homem incorpora permanentemente ao solo, não podendo remover do solo sem a destruição, será bem imóvel por acessão física, as plantações, construções, etc. Segundo o art. 81, não perdem o caráter de imóveis as 28 Enunciado 171 da Jornada de Direito Civil – “Art. 423: O contrato de adesão, mencionado nos artigos 423 e 424 do novo Código Civil, não se confunde com o contrato de consumo” 50 Matheus Zuliani edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local, bem como os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem. Os imóveis por acessão física intelectual, por sua vez, são aqueles empregados intencionalmente para exploração industrial, aformoseamento ou comodidade, estes bens móveis seriam considerados imóveis por acessão física intelectual. A posição majoritária sobre o assunto é a de que essa classificação ficou totalmente esvaziada com a introdução, no Código Civil, do instituto da pertença. Por fim, temos os bens imóveis por disposição legal: são bens considerados imóveis pela lei, a fim de dar maior proteção jurídica, tais como: o direito à sucessão aberta, direitos reais sobre imóveis, como a hipoteca e penhor agrícola, excepcionalmente, bem como as ações que os asseguram (CC, art. 80). Já os bens móveis podem ser classificados em móveis por natureza, móveis por determinação legal, e por fim, móveis por antecipação. Os bens móveis por natureza são aqueles que podem ser transportados sem qualquer dano, seja por força própria (semoventes) ou por força alheia. Os móveis por determinação legal, a exemplo dos imóveis por determinação legal, são aqueles estabelecidos pela lei, nos termos do art. 83 do Código Civil, sendo o penhor, a energia elétrica, os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes, e por fim, s direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. Por fim, os bens móveis por antecipação são os bens que eram imóveis, mas que foram mobilizados por uma atividade humana. Ex.: colheita de uma plantação. Todo ano o fazendeiro semeia para colher. Trata-se de um bem móvel por antecipação. Há uma dúvida sobre a natureza dos navios e aeronaves, pois embora estejam sujeitos a hipoteca, conforme determinação do Código Civil, são considerados bens móveis. Isso porque eles possuem alto valor econômico, o que exige uma maior garantia, como a hipoteca. Flávio Tartuce considera que são bens imóveis especiais ou bens móveis sui generis. Para concurso, essa não é a posição majoritária. Os bens infungíveis são aqueles que não podem ser substituídos por outro da mesma espécie, qualidade ou quantidade. Pense em um quadro pintado por um artista renomado. Trata-se de um bem que não pode ser substituído por outro quadro, pois não é daquele artista específico. Os bens fungíveis, ao contrário, podem ser substituídos por outro da mesma espécie, qualidade ou quantidade (CC, art. 85). São consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria substância, sendo também considerados tais os destinados à alienação (CC, art. 86). Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam. É importante mencionar que o Código Civil não se importa com a fração da coisa, mas sim, com a perda da propriedade da coisa. Um diamante é considerado um bem indivisível, pois se partido em várias frações perderá no seu aspecto econômico. É relevante considerar que o Código Civil, no art. 88 autoriza que os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por determinação da lei ou por vontade das partes. Os bens singulares são os que, embora reunidos, se consideram de per si, independentemente dos demais. O livro, um boi, uma ovelha, são exemplos de bens singulares. Os bens universais, por sua vez, são bens que se encontram agregados a um todo, constituído por várias coisas singulares, mas considerados em seu conjunto, formando um todo individualizado. Essa união poderá ser fática ou mesmo jurídica. Neste sentido, de acordo com o artigo 90 do Código Civil, constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes a mesma pessoa, tenham destinação 51 Matheus Zuliani unitária. Um rebanho e uma frota de automóveis são exemplos dessa classificação. Já a universalidade de direito é a união de bens materiais ou imateriais, corpóreas ou incorpóreas, com natureza coletiva. A herança, a massa falida são exemplos de universalidade de direito. Com relação à classificação que leva em conta a dependência em relação a outro bem, temos o bem principal e o bem acessório. Principal é aquele que existe de forma autônoma e independente, não dependendo de qualquer outro objeto. O acessório, por sua vez, é aquele que a existência e finalidade depende de outro bem, que é denominado principal. Quando se fala nessa particular classificação surge um princípio muito importante para o direito, sendo o princípio da gravitação jurídica. Por ele, a regra é a de que o bem acessório segue o bem principal. No entanto, essa regra não é absoluta. Os frutos são classificados como bem acessórios. Os frutos têm origem no bem principal, mas mantêm a integridade deste último, sem diminuir a substância ou quantidade. Classificam-se como: Frutos naturais: ex.: frutos de uma árvore, mas mantém a inteireza da coisa principal, no caso a árvore; frutos industriais: decorrendo de uma atividade humana. Ex.: saco de balinhas feita por uma fábrica; frutos civis: decorrendo de uma relação jurídica econômica, denominados de rendimentos. Ex.: aluguel é fruto para o dono do imóvel, assim como os juros e dividendos. Quanto ao estado que normalmente se encontram os frutos, podem ser classificados em: frutos pendentes: são os frutos que ainda não foram colhidos. Ex.: fruta que está na árvore. Frutos percebidos: são os frutos que já foram colhidos. Frutos estantes: são os frutos que já foram colhidos e já estão armazenados. Ex.: maçãs colhidas e que estão armazenadas. Frutos percipiendos: são os frutos que deveriam ter sido colhidos, mas não foram. Por fim, os frutos consumidos: são os frutos que foram colhidos e não existem mais, pois foram consumidos. Fruto não se confunde com produto. Produtos são bens acessórios que saem da coisa principal, diminuindo a sua quantidade e substância. Neste ponto difere do fruto, pois este sai da coisa principal, mas não diminui a sua substância ou quantidade. Ex.: pepita de ouro retirado de uma mina. Explora-se a mina até que irá acabar o ouro. 2.10.2. DAS PERTENÇAS Nos termos do art. 93 do Código Civil, são pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, destinam-se, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de outro. A doutrina traz um exemplo que esclarecedor. Ex.: em uma fazenda, o sujeito compra uma caminhonete para utilizar dentro da fazenda. Este bem é uma pertença, pois é destinado a servir um bem principal, que é um imóvel, não perdendo a sua individualidade e não é parte integrante desse bem. As pertenças vieram para substituir a antiga classificação de bem imóvel por acessão intelectual. A regra é a de que o bem acessório segue o bem principal (gravitação jurídica), todavia, quando se trata de pertença, essa regra não prevalece. Nota-se que o Código Civil, no art. 94 diz que os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade, ou das circunstâncias do caso. Assim, quando resultar da lei, da vontade manifestada, ou então, das circunstâncias do caso, ela pode seguir o bem principal. O STJ determinou a restituição, para o devedor fiduciário, de equipamento de monitoração que havia sido acoplado ao caminhão apreendido por falta de pagamento do contrato de financiamento. Segundo o colegiado, o equipamento é considerado uma pertença 52 Matheus Zuliani e, portanto, pode ser retirado do caminhão sem causar prejuízos ao bem (STJ - REsp nº 1667227/RS). 2.10.3. DAS BENFEITORIAS Benfeitorias são bens acessórios introduzidos em um bem móvel ou bem imóvel, visando a sua conservação, ou melhor, de sua utilidade. Podem ser classificadas em necessárias, úteis e voluptuárias. Benfeitorias necessárias são as que têm por finalidade conservar ou evitar que o bem se deteriore. Ex.: reforma no telhado da casa para evitar que o telhado desabasse. As benfeitorias úteis aumentam ou facilitam o uso ou a utilidade da coisa. Ex.: instalar grades na janela da casa. Por fim, as benfeitorias voluptuárias são benfeitorias para mero deleite. Ex.: piscina numa casa. Não devemos confundir benfeitorias com acessões, visto que as primeiras são melhorias e as últimas são incorporações. 2.10.4. DOS BENS PÚBLICOS Os bens públicos pertencem a pessoa jurídica de direito público interno. Os bens públicos podem ser classificados como bens de uso geral, bens de uso especial, e por fim, bens dominicais (CC, art. 99). Bens de uso geral, também conhecido como bem de uso comum do povo são aqueles necessários ao uso geral do povo, sem a necessidade de uma permissão especial. Ex.: praças e ruas, ainda que cobre pedágio. Os bens de uso especial são bens ou terrenos que são utilizados pelo próprio estado para execução de um serviço público especial. Isto é, há uma destinação especial àquele bem, denominado de afetação. Ex.: repartições públicas, sede da prefeitura, etc. por último, os bens públicos dominicais são bens que fazem parte de um patrimônio disponível da pessoa jurídica de direito público. Ex.: terras devolutas, pois não têm uma destinação específica. Os bens dominicais podem ser convertidos em bem de uso comum ou bem de uso especial. Os bens de uso comum e de uso especial são inalienáveis, enquanto os bens dominicais são alienáveis. Todavia, essa inalienabilidade não é absoluta, podendo perdê-la, desde que haja desafetação, ou seja, que mude a destinação do bem. Na afetação, o bem dominial passa a ser afetado a uma função. Ex.: terreno vazio passou a ser a sede da prefeitura. Na desafetação, há a mudança da destinação do bem para a categoria de bens dominicais. Ou seja, passam a fazer parte do patrimônio disponível da pessoa jurídica de direito público, podendo ser alienado. Os bens públicos podem ou não ser alienáveis, a depender da destinação ou não do bem, se há afetação ou não. Seja qual for a espécie de bem público, nenhum deles está sujeito a usucapião (CC, art. 102; CF, art. 183, § 3°, e súmula 340 do STF). 2.10.5. DO BEM DE FAMÍLIA O bem de família é o imóvel utilizado como residência da entidade familiar. No direito de família existem duas formas de prever o bem de família. Existe o bem de família voluntário e o bem de família involuntário. O voluntário, também conhecido como convencional, é aquele indicado pela entidade familiar. Tem previsão no art. 1.711 do Código 53 Matheus Zuliani Civil. Já o bem de família involuntário é aquele que foge a indicação da pessoa, sendo instituído pela lei, no caso, a Lei nº 8.009/90. 2.10.5.1. DO BEM DE FAMÍLIA VOLUNTÁRIO A instituição do bem de família convencional se dará por escritura pública ou testamento. Porém, não pode ultrapassar 1/3 do patrimônio líquido da pessoa que faz a instituição. O bem de família convencional não revoga o bem de família legal, podendo, inclusive, conviverem. No caso do bem de família convencional, os cônjuges devem aceitar expressamente este benefício. Para que seja bem de família convencional, é necessário que o bem seja imóvel, residencial rural ou urbano, e que inclua todos os bens acessórios que o compõem. São consequências da instituição do bem de família convencional a inalienabilidade do imóvel; a impenhorabilidade do imóvel, e ainda, a isenção de execução por dívidas posteriores à instituição. Há situações em que, a despeito de o bem ser de família convencional, e ter tais características, essas condições não prevalecerão, como em situações de dívidas anteriores à constituição do bem de família, em casos de dívidas posteriores relacionadas a tributos relacionados ao prédio, e ainda, com relação a dívidas de condomínio. O art. 1.715, parágrafo único do Código Civil diz que no caso de execução dessas dívidas, o saldo existente será aplicado em outro prédio, como bem de família, ou em títulos da dívida pública, para sustento familiar, salvo se motivos relevantes aconselharem outra solução, a critério do juiz. A inalienabilidade é a regra geral do bem de família convencional, mas é possível a alienação do referido bem se houver o consentimento dos interessados, ouvido o Ministério Público, desde que houvesse autorização judicial. Eventualmente, comprovada a impossibilidade de manutenção do bem de família convencional, poderá o juiz extinguir o bem de família ou autorizar a sub-rogação real, colocando um bem no lugar do outro para fins de bem de família convencional. O art. 1.722 diz que se extingue, igualmente, o bem de família com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos a curatela. Essa extinção não impede a aplicação da proteção do bem de família legal, constante da Lei nº 8.009/90. 2.10.5.2. DO BEM DE FAMÍLIA INVOLUNTÁRIO O art. 1º da Lei nº 8.009/90 diz que o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nessa lei. O conceito de bem de família vem sofrendo transformações ao longo do tempo, tudo com o objetivo de acompanhar e dar efetividade ao princípio da dignidade humana. Assim, a jurisprudência tem ampliado seu conceito para abarcar situações que antes nem eram cogitadas. O bem pertencente a pessoa solteira, pode ser considerado bem de família legal. Isso porque o conceito de família sofreu uma evolução, sendo que se considera família o lar da pessoa solteira. Dessa forma, o STJ editou a Súmula 364 que diz que “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”. 54 Matheus Zuliani A vaga de garagem também recebe a proteção do bem de família, desde que não tenha matrícula própria. Caso a vaga de garagem tenha matrícula própria, é perfeitamente possível a sua penhora, não sendo ela considerada bem de família. É o mais recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça, explanado na edição da Súmula 449, que diz: “A vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem de família para efeito de penhora”. A pessoa que tem apenas um único bem imóvel e aluga esse bem para, com a renda oriunda, alugar outro maior que cabe toda a família, também tem a atenção do instituto da proteção do bem de família. Entende-se que esse bem é considerado bem de família, insuscetível de penhora. O motivo é a tutela do patrimônio mínimo, pois a renda do único vem encontra-se destinada a garantir as necessidades vitais mínimas da família. A Súmula 486 do STJ, nesse sentido, assim dispõe: “É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família”. A questão do contrato de fiança e da proteção do bem de família já rendeu muita discussão doutrinária e jurisprudencial. Tanto que o STJ pacificou o tema com edição da Súmula 549 que diz que “é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação." A Lei nº 8.009/90 também traz essa permissão quando excepciona, no art. 3º, os casos em que não há a proteção da impenhorabilidade. No inciso VII, do art. 3º diz que A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. No entanto, é preciso ficar atento ao tipo de contrato de locação. Isso porque o STF decidiu que se o contrato de locação foi não residencial, ou seja, comercial, não há essa exceção, estando o bem do fiador protegido. Em outras palavras, não é possível a penhora de bem de família do fiador em contexto de locação comercial. (STF. 1ª Turma. RE 605709/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, red. p/ ac. Min. Rosa Weber, julgado em 12/6/2018 (Informativo de jurisprudência n. 906)). Outra questão decidida pelos Tribunais Superiores foi a do bem pertencente a pessoa jurídica na qual reside seu sócio. Na hipótese de sobrevier dívida da sociedade, esse bem não pode ser penhorado por ser considerado bem de família. Assim, é impenhorável a residência do casal, ainda que de propriedade de sociedade comercial, da qual os cônjuges são sócios exclusivos. Foi o que decidiu o STJ (STJ. 4ª Turma. EDcl no AREsp 511.486-SC, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 3/3/2016 (Informativo de jurisprudência n 579)). 2.11. DOS FATOS JURÍDICOS Fato jurídico é o acontecimento, natural ou humano, que interessa ao direito, relevância jurídica. O fato jurídico não se confunde com o ato jurídico. Esse é um fato que tem relevância jurídica, mas com elemento volitivo e conteúdo lícito (ou ilícito). É a atuação da vontade de alguém. O ato jurídico também pode ser ilícito, diga-se de passagem. Além do fato jurídico e do ato jurídico existe o negócio jurídico. Negócio jurídico é um ato jurídico, com elemento volitivo e de conteúdo lícito, mas que há composição de interesse das partes, com finalidade específica e desejada pelas partes. O negócio jurídico é o ponto principal da parte geral do Código Civil, uma vez que é a base de um contrato, a base de atos familiares e nas sucessões, estando presente, também, nas obrigações. O ato jurídico pode ainda ser classificado com ato jurídico stricto sensu, sendo aquele ato jurídico com elemento volitivo, ou seja, com manifestação de vontade. Todavia, essa 55 Matheus Zuliani manifestação de vontade já está pré-determinada na lei. É o caso do sujeito que adquire um bem imóvel ou veículo. Como consequência desse ato ele terá que pagar o imposto que incide, ou seja, no caso do bem imóvel, o IPTU, e no do bem móvel, o IPVA. Por fim, ainda existe o ato-fato jurídico. Por esse, existe um ato ou um comportamento humano sem vontade, mas que produziu um resultado. Carlos Roberto exemplifica bem esse ato. Muitas vezes o efeito do ato não é buscado nem imaginado pelo agente, mas decorre de uma conduta e é sancionado pela lei, como no caso de uma pessoa que acha, casualmente, um tesouro. A conduta do agente não tinha por fim imediato adquirir-lhe a metade, mas tal acaba ocorrendo, por força do disposto no art. 1.264, ainda que se trate de um louco (GONÇALVES, Carlos Roberto – Direito Civil Brasileiro – volume 1 – parte geral – editora Saraiva jur). 2.11.1. DO NEGÓCIO JURÍDICO O negócio jurídico tem origem no Código Civil alemão, trata-se de um ato ou uma pluralidade de atos, entre si relacionados, quer sejam de uma ou de várias pessoas, que tem por fim produzir efeitos jurídicos e modificações nas relações jurídicas no âmbito do direito privado. No campo dos negócios jurídicos a autonomia privada é ampla, traduz uma declaração de vontade limitada pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, pela qual o agente pretende livremente alcançar determinados efeitos juridicamente possíveis. Tal situação, segundo Judith Martins, vive-se a era da autonomia solidária. Por fim, tem-se como negócio jurídico, a manifestação da vontade através de uma finalidade negocial, que abrange a aquisição, conservação, modificação ou extinção de direitos. Existem doutrinadores que trazem, dentro do negócio jurídico, teorias que explicam a natureza jurídica do negócio jurídico. Assim, entende-se que existe a teoria da declaração e a teoria da vontade. Pela teoria da declaração (Erklärungstheorie), afirma-se que o negócio jurídico teria a sua essência, não na vontade interna, mas na vontade externa ou declarada. Já pela teoria da vontade (Willenstheorie), entende-se que o núcleo essencial do negócio jurídico seria a vontade interna, a intenção do agente. Por ela, o negócio jurídico se explica pela intenção do agente. A teoria adotada pelo sistema civilista é a teoria da vontade, que por sua vez, pode ser dividida em: vontade externada e vontade interna. Via de regra, a vontade interna condiz com a vontade exteriorizada (intenção do sujeito). Caso elas sejam destoantes poderá haver um vício do consentimento. 2.11.1.1. CLASSIFICAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO O negócio jurídico sofre classificações. Quanto ao número de declarantes o negócio jurídico pode ser unilateral ou bilateral. O negócio jurídico unilateral é aquele em que há uma única manifestação de vontade, podendo ser receptícios (destinatário deve saber para ter efeitos, como revogação de procurações) ou não receptícios (não precisa de ciência do destinatário, como testamentos). Nos bilaterais existem duas manifestações e vontade coincidentes sobre o mesmo objeto, o que se chama de consentimento mútuo ou acordo de vontades, podendo ser simples (uma parte aufere 56 Matheus Zuliani vantagem) ou sinalagmáticos (vantagens recíprocas, deriva do vocábulo grego sinalagma, que significa contrato com reciprocidade). Quanto as vantagens patrimoniais podem ele ser gratuito ou oneroso. No gratuito apenas uma das partes aufere vantagem ou benefício, como doação e comodato. No oneroso, ambas as partes contratantes auferem vantagens às quais correspondem um sacrifício ou uma contraprestação. Os onerosos podem ser comutativos (prestações certas e determinadas) ou aleatórios (caracterizados pela incerteza, o risco é a essência do negócio). Há, ainda, os bifrontes, que são os que podem ser onerosos ou gratuitos, segundo a vontade das partes, como o mútuo, o mandato, o depósito. Nem todo contrato gratuito pode se tornar oneroso, como por exemplo, a doação e o comodato, pois, nesses casos tornar-se-iam venda e locação, respectivamente, segundo Orlando Gomes. Por fim, existem os neutros. Caracterizam-se pela destinação do bem, possuindo, ainda, uma vinculação com bem. É o caso da cláusula de incomunicabilidade e inalienabilidade. Quanto ao modo de existência pode ser principal e acessório. Principal é aquele que tem existência própria e não depende de nada para produzir seus efeitos. O acessório, por sua vez, é aquele que tem sua existência subordinada à do contrato principal, como ocorre com a cláusula penal, fiança, penhor e hipoteca. 2.11.1.2. TRICOTOMIA DO NEGÓCIO JURÍDICO (ESCADA PONTEANA) A escada ponteana foi pensada e idealizada por Pontes de Miranda, nos quais o negócio jurídico perpassa por três planos/degraus: 1º plano de existência; o 2º plano de validade e o 3º o plano de eficácia. No plano de existência, observam-se os elementos que conferem a possibilidade de se chegar à validade. Diante disso, para que o negócio jurídico exista é necessário: vontade, agente, objeto e forma. O plano de validade visa adjetivar os elementos de existência, para assim, verificar se o negócio jurídico é válido ou inválido. Eles se encontram no art. 104 do Código Civil, ou seja, a vontade tem que se livre e de boa-fé; o agente necessita ser capaz; o objeto tem que ser lícito, possível, determinado ou determinável, e por fim, a forma tem que ser aquela prescrita ou não defesa em lei. Uma vez violado tais requisitos, o negócio jurídico poderá ser nulo ou anulável, a depender da situação. Por fim, no plano da eficácia, temos os elementos acidentais, ou seja, a condição, o termo e o encargo. No Código Civil, nas disposições gerais do negócio jurídico, há algumas questões que precisam ser observadas e que tratam, especificadamente, sobre os elementos de existência e de validade do negócio jurídico. No art. 105 do Código Civil há regramento sobre a incapacidade. Explica que a incapacidade relativa de uma das partes não pode ser invocada pela outra em benefício próprio, nem aproveita aos cointeressados capazes, salvo se, nesse caso, for indivisível o objeto do direito ou da obrigação comum. A primeira parte do art. 105 trata do venire contra factum proprium, instituto ligado a boa-fé objetiva das relações negociais. Venire contra factum proprium consiste na vedação de práticas antagônicas àquelas praticadas anteriormente pelo próprio agente. Nada mais é do que um desdobramento do princípio da boa-fé objetiva. 57 Matheus Zuliani Também chamada de “teoria dos atos próprios” ou “proibição de comportamento contraditório”. No venire contra factum proprium, há uma sequência lógica de dois comportamentos. Cada um deles, observados isoladamente, certamente se mostraria lícito; mas eles se tornam ilícitos pela incoerência comportamental. Existe enunciado nesse sentido29. O art. 106 do Código Civil, por sua vez, trata da impossibilidade inicial e relativa do objeto. Assim, a impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio jurídico se for relativa, ou se cessar antes de realizada a condição a que ele estiver subordinado. Desta forma, entende a doutrina que para macular o negócio jurídico a impossibilidade do objeto deve ser absoluta, ou seja, não ligada ao declarante, mas sim, a todas as pessoas que possam ter alguma relação com tal objeto. Sobre a vontade e a forma, o Código Civil explica, no art. 107 que a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. De acordo com Anderson Shreiber, “forma do negócio jurídico é o meio através do qual o agente exprime a sua vontade” (Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência – Editora Gen). Diante disso, o Código Civil diz que a regra, no negócio jurídico, é a do ato não solene. No entanto, quanto à lei exigir o negócio jurídico passa a ser um ato solene, onde a desobediência da forma macula a validade do ato. Cite-se como exemplo a compra e venda de uma casa, em uma cidade do interior, localizada no bairro mais pobre. Se essa casa tiver o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), o negócio jurídico de compra e venda envolvendo-a pode ser feito por instrumento particular. Isso porque o Código Civil, no art. 108, diz que “não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”. Se superasse 30 salários a compra e venda deveria ser por escritura pública, ou seja, um ato solene (formal). No entanto, é importante constar que, nesse negócio envolvendo essa casa de R$ 20.000,00, se as partes fizerem constar no contrato que o negócio não tem validade se não for feito por escritura pública, passa a ser essa forma a substância do ato. Assim, o art. 109 do Código Civil explica que “No negócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato”. O art. 110 do Código Civil traz a reserva mental. A redação do dispositivo legal expõe que “a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”. A pouco, em comentário supra, dizemos que o Código Civil, no âmbito do negócio jurídico, adotou a teoria da vontade, onde a intenção manifestada interessa para o negócio. Assim, mesmo que o agente manifeste uma vontade não condizente com a vontade desejada, esse negócio existe e será válido. Para a doutrina, quando a outra parte, aquela que recebe a declaração de vontade, conhece dessa divergência entre a vontade querida e a vontade externada, o negócio passa a ter um vício na sua existência, sendo considerado um negócio jurídico inexistente. Sobre o silêncio como manifestação de vontade, o Código Civil, no art. 111 explica que O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa. Nesse sentido, o silêncio, como regra, não produz vontade. Ele apenas passa a ser considerado uma manifestação de vontade quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e ainda, desde que não seja necessária a declaração de vontade expressa. 29 Enunciado 362 da IV Jornada de Direito Civil: “a vedação do comportamento contraditório (Venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos art. 187 e 422 do Código Civil” 58 Matheus Zuliani No que concerne a interpretação do negócio jurídico, o Código Civil traz três regras importantes. A primeira encontra-se no art. 112 do Código Civil que diz que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. Isso significa que, precisando o negócio jurídico de uma interpretação, buscará a solução no que pretendiam as partes quando da celebração do negócio. Busca-se a essência do negócio na visão dos personagens. Mais uma vez é o Código Civil sinalizando pela adoção da teoria da vontade. A segunda, por sua vez, está no art. 113 do Código Civil, que recentemente experimentou uma modificação advinda da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019). Assim dispõe o art. 113 do Código Civil: “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Nota-se que a boa-fé objetiva é um elemento interpretativo do negócio jurídico, impondo um comportamento leal, probo, baseado na confiança. Nesse sentido, entende-se que a interpretação deve levar em conta o comportamento das partes após a celebração do contrato, obedecendo as práticas costumeiras para aquele negócio, sem, contudo, se depreender da boa-fé, e ainda, ser mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável (CC, art. 113, § 1º). Além disso, o Código Civil permitiu que as partes trouxessem para o negócio critérios e regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei (CC, art. 113, § 2º). A terceira e última regra de interpretação diz respeito aos negócios jurídicos benéficos e a renúncia. Nessas duas modalidades o negócio jurídico deve ser interpretado estritamente, ou seja, aquela interpretação que se revela menos ampla (CC, art. 114). Isso acontece porque nessa modalidade de negócio a parte, em regra, já não aufere qualquer vantagem, não podendo, ainda, sofrer uma interpretação extensiva. 2.11.2. VÍCIOS DO NEGÓCIO JURÍDICO O negócio jurídico nasce para ser perfeito e produzir efeitos jurídicos desejados entre as partes. No entanto, pode ocorrer que, em razão de uma mácula nesse negócio, passe ele a ser considerado viciado, e assim, podendo ser anulado ou declarado nulo, a depender do vício apresentado. Os vícios, também conhecidos como defeitos do negócio jurídico, podem ser classificados em vícios do consentimento ou vícios sociais. Vícios do consentimento são aqueles em que a manifestação de vontade interna do agente não condiz com a manifestação externada ao outro negociante. Já o vício social consiste naquele em que a manifestação de vontade querida pelo agente é a mesma externada, contudo, praticada com o intuito de prejudicar terceiros. São vícios do consentimento o dolo, o erro, o estado de perigo, a lesão e a coação. Por sua vez, são vícios sociais a fraude contra credores e a simulação. 2.11.2.1. DO ERRO OU DA IGNORÂNCIA A legislação brasileira não diferencia o erro da ignorância, embora a doutrina costume dizer que o erro é uma falsa representação positiva da realidade, ao passo que a ignorância traduz um estado negativo de desconhecimento. O erro consiste numa falsa representação da realidade ou o próprio agente se faz enganar, sem perceber o erro. 59 Matheus Zuliani Segundo a doutrina clássica de Clóvis Beviláqua, para que haja invalidação do negócio jurídico, é necessário que o erro seja essencial ou substancial. Nessa perspectiva, erro essencial/substancial é o que recai sobre circunstâncias e aspectos relevantes do negócio jurídico. É a causa determinante, ou seja, a causa que se fosse conhecida no momento da realização do negócio jurídico, o mesmo não seria celebrado (CC, art. 139). Outra espécie de erro é o acidental o qual não invalida o negócio jurídico. Ele se opõe ao erro substancial, uma vez que se refere a circunstâncias de menos importância e que não acarretam efetivo prejuízo, ou seja, qualidades secundárias do objeto ou da pessoa. Significa que mesmo tendo que conhecida do sujeito, o negócio seria celebrado. Pense o caso de Manuel que deseja comprar um lote em um condomínio horizontal fechado. Ao sentar com o vendedor escolhe o lote 2, da quadra “a” porque fica ao lado do parquinho, já que possui dois filhos pequenos. No entanto, ao celebrar o contrato e escolher o lote no mapa, acaba por selecionar o lote 2 da quadra “d”, que fica bem distante do parquinho e ao lado da portaria. O lote da quadra “a” é mais caro, tendo Manuel pago preço. Nesse caso, estamos diante de um erro essencial. Quando se fala em erro, a doutrina clássica exigia que o erro deveria ser essencial e escusável. O erro escusável, também conhecido como perdoável, é aquele em que qualquer pessoa de mediana prudência incidiria. É o erro que qualquer pessoa poderia cometer. O erro é perdoável, qualquer um cometeria. Seguindo tendência moderna, o enunciado 12, da 1ª Jornada de Direito Civil30, sustenta, à luz do princípio da confiança, ser dispensável a escusabilidade para a caracterização do erro. Assim, para a doutrina mais modera, deve exigir-se que o erro seja essencial, mas não que seja escusável. Basta que o erro seja essencial. Não precisa ser escusável, desculpável, inevitável. O Código Civil admite o erro de direito, como se nota do art. 139, III, desde que não implique recusa a aplicação da lei, ou então, for o único motivo ou principal motivo do negócio jurídico. O erro de direito é o equívoco sobre a regra que disciplina o negócio jurídico que se está celebrando. Ele não se confunde com o total desconhecimento da lei. Dispõe o art. 140 do Código Civil que O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante. Também chamado de erro de motivos. Os motivos do negócio jurídico não interessam para formação deste, via de regra. Se a pessoa vende uma casa, o motivo pelo qual ela vende essa casa não interessa para o direito. Entretanto, se o motivo constituir expressamente como razão essencial do negócio, e ainda, for falso, ele viciará o negócio celebrado. Por exemplo, a pessoa faz uma doação ao sujeito porque este supostamente lhe salvou a vida e posteriormente descobre que não é verdade. O motivo da doação é o salvamento. Por ser um motivo falso, e ainda, que constou no negócio como razão determinante da doação, pode levar a invalidade do negócio celebrado. O Código Civil ainda permite que se anule por erro a transmissão errônea da vontade. O art. 141 do Código Civil explica que “a transmissão errônea da vontade por meios interpostos é anulável nos mesmos casos em que o é a declaração direta”. Se o declarante não se encontra na presença do declaratório, valendo-se de interposta pessoa (mensageiro) ou de um meio de comunicação (fax, telégrafo, e-mail) e a transmissão da vontade, não se faz com fidelidade, estabelecendo-se uma divergência entre o querido e o que foi transmitido erroneamente (mensagem truncada), caracteriza-se o vício que torna anulável o negócio jurídico. 30 I Jornada de Direito Civil – enunciado 12: “Na sistemática do art. 138, é irrelevante ser ou não escusável o erro, porque o dispositivo adota o princípio da confiança”. 60 Matheus Zuliani Por fim, o Código Civil permite que o negócio jurídico errôneo possa ser convalidado (CC, art. 144). Desta forma, se a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la em conformidade da vontade real do manifestante, o erro fica superado, convalidando-se o negócio jurídico, tornando-se válido. 2.11.2.2. DO DOLO O dolo é o vício do negócio jurídico em que o contratante se vale de qualquer meio para induzir ou manter alguém em erro na prática de um ato jurídico. O dolo é classificado em dolo principal, dolo acidental, dolus bonus, dolus malus, dolo positivo (comissivo), omissivo (negativo), dolo do representante, dolo de terceiro, dolo unilateral, e por fim, dolo bilateral. Dolo principal consiste naquele em que o engodo centra-se na causa determinante do negócio jurídico. Encontra previsão no art. 145 do Código Civil. O negócio se realizou somente por que houve o dolo de umas das partes. Já o dolo acidental é o que se concentra em elementos acessórios, circunstanciais no negócio jurídico. Mesmo que previsto o negócio jurídico se realizaria, contudo, não da forma que foi feito. É o que dispõe o art. 146 do Código Civil, segunda parte. O exemplo é contrato de permuta em que uma das partes induz em erro a questão dos valores. Pelo fato de que o negócio seria realizado de qualquer forma é que este dolo não anula o negócio jurídico gerando, apenas, perdas e danos. Dolus bonus é o dolo tolerável, destituído de gravidade suficiente para viciar a manifestação da vontade. Essa modalidade é muito comum no comércio, principalmente em publicidade. Já o dolus malus é o revestido de gravidade, sendo exercido com o propósito de ludibriar e de prejudicar. Podem consistir em atos, palavras e até mesmo no silêncio maldoso. Essa espécie vicia o consentimento. Dolo omissivo é o engodo praticado pelo silêncio, quando a parte tinha obrigação de alertar sobre determinado fato relevante. Tem previsão no art. 147 do Código Civil. Já o dolo comisso é aquele materializado por ações maliciosas. O dolo de terceiro é aquela artimanha para enganar uma pessoa a fazer um negócio malfeito com uma terceira pessoa, que se beneficia do ato. O dolo de terceiro somente tem o condão de anular o negócio jurídico se o terceiro beneficiado tivesse devesse ter conhecimento do engodo. Caso não tenha esse conhecimento, resta ao contratante enganado apenas perdas e danos contra o que praticou a artimanha. O dolo do representante não é igual ao dolo de terceiro. O representante age se fosse a própria parte. A questão está tratada no artigo 149 do CC, e faz uma diferenciação entre representante legal e representante convencional. Na representação legal, o representado responde civilmente até importância do proveito que teve. Não somente, em se tratando de representante convencional, acarretará a responsabilidade solidária do representado. Com isso, terá o representado direito a ação regressiva contra o representante. Por fim, temos o dolo unilteral e o bilateral. Dolo unilateral é o dolo de uma das partes. O dolo bilateral, noutro giro, é o dolo praticado por ambas as partes. Esse está regulado no artigo 150 do CC que traz que “se ambas as partes procederem com dolo, nenhuma pode alegá-lo para anular o negócio, ou reclamar indenização”. O dolo bilateral é reflexo do brocardo jurídico de que ninguém pode se beneficiar da própria (Nemo auditur propriam turpitudinem allegans). 61 Matheus Zuliani 2.11.2.3. DA COAÇÃO Coação é toda ameaça ou pressão injusta exercida sobre um indivíduo para forçá-lo, contra sua vontade, a praticar um ato ou realizar um negócio. O que caracteriza é o emprego da violência psicológica para viciar a vontade. Não é a coação em si um vício, mas o temor que ela inspira, tornando defeituosa a manifestação de vontade de querer do agente. Segundo Carlos Roberto Gonçalves, a coação é o vício mais grave e profundo que pode afetar o negócio jurídico. Dispõe o artigo 151, do Código Civil que: A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens. Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação. Assim, nem toda ameaça configura a coação como vício, a não ser que tenha os seguintes requisitos: causa determinante + grave + injusta + dizer respeito a dano atual ou iminente + constituir ameaça de prejuízo à pessoa ou a bens da vítima ou pessoa de sua família. A coação não é apreciada em juízo abstrato (critério do homem médio), mas em uma análise concreta da condição da vítima, como se verifica dos elementos a serem analisados no art. 152 do Código Civil, in verbis: “No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela”. A coação pode ser absoluta (física), relativa (moral), sobre a pessoa e de sua família, sobre os bens da pessoa, e por fim, sobre pessoa diversa da família. A coação absoluta, também conhecida como vis absoluta, é aquela que a vantagem decorre de violência física. Trata-se na hipótese de negócio jurídico inexistente, por ausência de manifestação de vontade. Pense no caso em que se pega a mão da velhinha e força a assinatura de um cheque. A relativa, que pode ser denominada de vis compulsiva, é a que torna o negócio anulável. Neste caso, deixa-se opção de escolha à vítima: praticar o ato ou correr o risco. Trata-se de uma coação psicológica. Nesse caso, aponta-se uma arma para a pessoa e manda que ela assine o cheque. São casos diversos. A coação pode ser ainda contra a própria pessoa, seus familiares, ou então sobre os seus bens. Quando a coação é exercida sobre uma pessoa que não pertence à família do contratante, é preciso analisar as circunstancias do caso. Nessa hipótese, é o juiz quem vai fazer essa análise, verificando se aquela pessoa ameaçada é relevante para o coagido ao ponto de causar nele um grave temor de dano. Na coação, é preciso ressaltar que nem o temor reverencial e nem o exercício regular de um direito, caracterizam vício do negócio jurídico. Dispõe o art. 153 do Código Civil que “não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial”. Temor reverencial é o respeito à autoridade instituída (é a autoridade reconhecida pela vítima). Isso não caracteriza coação. Pablo Stolze, Juiz do TJBA e professor de Direito Civil, dá o seguinte exemplo: “pai de sua noiva, no início de namoro, pede R$ 10.000,00 emprestado e diz “você confia em mim, não é?”– Você empresta sem pestanejar para não desagradar o sogrinho. Porém, isso não caracteriza coação, mas mero temor reverencial”. O exercício regular de um direito, ato lícito pelo Código Civil, também não gera coação. Se alguém lhe ameaça inscrever seu nome nos órgãos de proteção ao crédito porque você não paga a dívida, isso não pode ser considerado uma coação, mas sim, o exercício regular de um direito. 62 Matheus Zuliani A coação exercida por terceira pessoa tem previsão no art. 154 do Código Civil, in verbis: “vicia o negócio jurídico a coação exercida por terceiro, se dela tivesse ou devesse ter conhecimento a parte a que aproveite, e esta responderá solidariamente com aquele por perdas e danos”. Todavia, o negócio subsiste se a coação decorrer de terceiro, sem que a parte a que aproveite dela tivesse ou devesse ter conhecimento, todavia, o autor da coação responderá por todas as perdas e danos que houver causado ao coacto (CC, art. 155). Desse modo, prevalece o princípio da boa-fé e a tutela da confiança da parte que recebe a declaração de vontade. É importante se atentar para o caso de que nos atos unilaterais, como testamentos e promessa de recompensa, a coação de terceiro continuará ensejando sempre anulação, uma vez que ali não existem “partes”, mas sim, agentes e terceiros que se dirigem a declaração de vontade. 2.11.2.4. DO ESTADO DE PERIGO O estado de perigo é um vício do negócio jurídico que não existia no Código Civil de 1916. Dispõe o art. 156 do Código Civil que “configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”. O Estado de perigo é a situação de extrema necessidade (conhecido pela parte contrária) que conduz uma pessoa a celebrar negócio jurídico em que assume obrigação desproporcional e excessivamente onerosa. O exemplo clássico é do náufrago que doa seu patrimônio para ser salvo. O professor Carlos Roberto Gonçalves ensina que a anulabilidade do negócio jurídico celebrado mediante estado de perigo encontra justificativa em diversos dispositivos do novo código civil, principalmente, naqueles que consagram os princípios da boa-fé e da probidade, e ainda, condiciona o exercício da liberdade de contratar a função social do contrato (artigos 421 e 422 do CC). Há que se mencionar, ainda, os dizeres de Teresa Ancona Lopez: evidentemente se o declarante se aproveitar da situação de perigo para fazer um negócio vantajoso para ele e muito oneroso para outra parte, não há como agasalhar tal negócio. Há uma frontal ofensa à justiça comutativa que deve estar presente em todos os contratos. Ao estudar o estado de perigo nota-se que o Código Civil não tratou, de forma expressa, da possibilidade de se convalidar o negócio, a exemplo do que faz com a lesão. Assim, a doutrina entendeu que a mesma situação prevista no art. 157, §2º do Código Civil, tem incidência, por analogia, no caso de estado de perigo. Dispõe o no art. 157, §2º do Código Civil que: “não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”. Nesse mesmo sentido foi editado o Enunciado 158 da Jornada de Direito Civil31. Da mesma forma que a coação, é possível que uma pessoa, sob a premente necessidade de salvar alguém que não é da família, assume prestação onerosa. Seguindo o mesmo raciocínio, o Código Civil, no art. 156, parágrafo único, diz que, em se tratandode pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias. Portanto, fica ao crivo do Magistrado o decreto do negócio viciado ou não. 31 Enunciado 148 da III Jornada de Direito Civil: “Ao "estado de perigo" (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art. 157”. 63 Matheus Zuliani Por fim, no estado de perigo é preciso que haja um requisito indispensável, qual seja, o dolo de aproveitamento. Consiste no fato de uma das partes se aproveitar da outra para levar vantagem, enquanto a outra experimenta prejuízo. O dolo de aproveitamento deve ser aferido no instante da realização do contrato. Se posteriormente à sua subscrição a parte descobre que está levando vantagem enquanto a outra experimenta prejuízo não se pode pleitear a anulação pelo vício do negócio jurídico. 2.11.2.5. DA LESÃO Igual ao estado de perigo, o instituto da lesão não tinha previsão no Código Civil antigo. É inovação. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. Lesão é, assim, o prejuízo resultante da enorme desproporção existente entre as prestações de um contrato no momento de sua celebração, determinada pela premente necessidade ou inexperiência de uma das partes. Dessa forma, não se contenta a lei com qualquer desproporção, mas sim a manifesta. O objetivo é reprimir a exploração usurária de um dos contratantes com o outro, que não precisa ser de conhecimento da parte contrária, ao contrário do estado de perigo, que exige o conhecimento da parte contrária. O CC de 2.002 adotou a lesão especial ou lesão enorme, na qual apenas se verifica a vantagem exagerada ou desproporcional, não se indagando a má-fé ou ilicitude do comportamento da parte contrária (dolo de aproveitamento). O nosso código, neste caso, não está preocupado em punir o sujeito, mas em proteger o lesado. Veja que a doutrina entende que há dolo de aproveitamento para o estado de perigo, mas não para a lesão. Nesse sentido foi editado o Enunciado 150 da Jornada de Direito Civil32. Em suma: Ocorre lesão quando por premente necessidade ou por inexperiência, obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. A desproporção das prestações será apreciada segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico, conforme consagra o art. 157, § 1º do Código Civil. O Código de Defesa do Consumidor trata a lesão como causa de nulidade absoluta do negócio (arts. 6º, V; 39, V; e 51, IV, todos do Código de Defesa do Consumidor). Por fim, é importante fazer a distinção entre a lesão e a onerosidade excessiva. A diferença é que na lesão o negócio jurídico já nasce viciado, enquanto no caso da teoria da imprevisão não. Na lesão o vício é congênito. Ao contrário da teoria da imprevisão, onde o contrato nasce válido, e devido ao fato imprevisível e inevitável, que altera substancialmente a base do contrato, acaba por tornar a prestação excessivamente onerosa para uma das partes. A saída encontrada pelos protagonistas é a revisão do contrato (CC, art. 479), ou até mesmo a extinção do negócio, essa como última medida. A resolução por onerosidade excessiva encontra-se regulamentada no art. 478 do Código Civil33. 32 III Jornada de Direito Civil – enunciado 150: “A lesão de que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento”. 33 Art. 478. “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. 64 Matheus Zuliani 2.11.2.6. DA FRAUDE CONTRA CREDORES A fraude contra credores é um vício social do negócio jurídico passível de anulabilidade. Os defeitos do negócio jurídico como erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo, podem ser discutidos como questões principais no processo através de uma ação anulatória, ou então, até mesmo de forma incidental. Por via incidental, hipoteticamente, poderia ocorrer na hipótese de alguém ajuizar ação de adimplemento contratual (questão principal), e parte contrária, em sua defesa, alegar algum vício social quando da celebração do contrato(questão incidental). Por outro lado, quando falamos em fraude contra credores, tem-se o manejo de uma ação própria, denominada de Ação Pauliana, também denominada de Ação Revocatória, que tem o mesmo sentido de uma ação anulatória. Todavia, neste caso, não é possível suscitar a fraude contra credores por via incidental. Notadamente, a referida ação pauliana de origem romana, foi idealizada pelo jurisconsulto chamado Paulo, tendo como razão de ser a nomenclatura “ação pauliana”. Esse instituto jurídico encontra-se previsto nos artigos 158 ao 165 do Código Civil, e trata-se de um ato de disposição patrimonial pelo devedor com objetivo de prejudicar o credor. Colocando-se em estado de insolvência. Nesse contexto, temos na doutrina alemã um binômio que rege as relações obrigacionais, denominados de schuld – débito e haftung – responsabilidade patrimonial. Significa, portanto, que quando o sujeito contrai uma obrigação na condição de devedor, a partir do fenômeno “vínculo obrigacional” origina o binômio schuld e haftung. Schuld, portanto, é uma relação estática do direito civil, quem detém o débito, é o devedor. O haftung, por sua vez, constitui uma relação dinâmica do direito processual civil e, portanto, trata-se da responsabilidade patrimonial. No campo do Processo Civil, este se revela através do princípio da patrimonialidade, pois, em caso de não cumprimento da obrigação pelo devedor, este responderá com seu patrimônio. Conforme doutrina clássica, para a comprovação da fraude contra credores é preciso demonstrar o elemento objetivo e o elemento subjetivo. O elemento objetivo consiste na diminuição ou esvaziamento do patrimônio do devedor, até a sua insolvência. É também denominado de eventus damni. Por sua vez, o elemento subjetivo é a intenção maliciosa do devedor de causar o dano. Também chamado de consilium fraudis. Todavia, recentemente o STJ34 entendeu que na fraude contra credores não precisa mais da prova do elemento subjetivo (consilium fraudis), ou seja, conluio fraudulento, basta que se comprove a quatro elementos I anterioridade do crédito/ II – prejuízo/ III – redução da insolvência/ IV – conhecimento do terceiro. Existe na doutrina e na jurisprudência uma discussão acerca da consequência do reconhecimento da fraude contra credores. É pacífico que todos os vícios do negócio jurídico levam a anulação, com exceção da simulação, que é um negócio nulo. Cresceu na doutrina e na jurisprudência a tese de que o reconhecimento da fraude gera a ineficácia do negócio. Portanto, provado pelo credor os requisitos, a alienação será ineficaz em relação ao credor, considerando-se como se nunca tivesse produzido efeitos. Estenderam à fraude os mesmos efeitos da fraude à execução, institutos que não se confundem. 34 STJ - REsp nº 1294462/GO. 65 Matheus Zuliani Na fraude à execução há uma diminuição patrimonial do devedor para reduzir-se à insolvência, com alienação de bens no curso do processo. Além de prejudicar o credor é, também, considerado um ato atentatório a dignidade da justiça. Para a sua configuração basta a alienação do bem, nas hipóteses do artigo 792 do Código de Processo Civil. Para finalizar o tema da fraude contra credores, é importante tecer comentários acerca da legitimidade passiva da ação paulina. A legitimidade passiva (quem responde na Pauliana) é em face do devedor insolvente, da pessoa que com ele contratou e, eventualmente, do terceiro de má-fé (art. 161, ver também REsp. 242.151, MG). Haverá um litisconsórcio passivo necessário entre os legitimados passivos. Se o bem estiver com terceiro de boa-fé que o adquiriu sem ter ciência da fraude o credor terá de buscar outros meios de ressarcimento. Não se pode alegar a fraude contra credores em sede de embargos de terceiros. É o disposto na súmula 195 do STJ35. Por quê? Porque nessa ação falta a presença do vendedor do bem, justamente aquele que praticou o negócio fraudulento, o Ou seja, o devedor insolvente. O devedor vende seu bem a um terceiro. O credor consegue a penhora desse bem. O comprador do bem entra com embargos de terceiro contra o credor que penhorou e não coloca o devedor vendedor no polo passivo. Como discutir se ele praticou fraude se não consta do processo? É esse o motivo pelo qual não se discute fraude contra credores em embargos de terceiro. 2.11.2.7. DA SIMULAÇÃO A simulação consiste em um vício social, ou seja, sempre visa prejudicar uma terceira pessoa, ainda que não definida, enquanto na fraude contra credores a investida fraudulenta é destinada a prejudicar o credor. Na simulação, ao contrário, o prejudicado pode não se nominado, não se tratando de uma vítima especifica. No CC/16 era causa de anulabilidade; no CC/2.002 passa a ser tratada como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico. Na simulação celebra-se um negócio jurídico aparentemente normal, mas que, em verdade, não pretende atingir o efeito que juridicamente deveria produzir. Por essa razão, a simulação será sempre bilateral, na qual, “A” e “B”, por exemplo, em conluio para enganar “C” ou fraudar a lei. Há duas espécies de simulação, a absoluta e a relativa. Na simulação absoluta as partes não realizam qualquer ato, apenas fingem na criação de um negócio que não existe. Na simulação relativa as partes pretendem realizar negócio jurídico prejudicial a terceiro ou para fraudar a lei, mas realizam um diverso “simulado” para ocultar o “dissimulado”, oculto, mas verdadeiramente desejado. É o caso da velhinha e da cuidadora. A velhinha prometeu doação da casa em que ela morava para sua cuidadora se ela cuidasse dela até o fim da vida. Passou uma procuração para ela fazer a doação. A cuidadora, se valendo da procuração, faz uma escritura de compra e venda com a própria filha, representando a velhinha. O negócio simulado é nulo, mas o dissimulado pode ser válido se for na substância e na forma36. 35 36 Súmula 195 do STJ: “Em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra credores”. Autos n. 0702397-17.2017.8.07.0004 – sentença proferida Juiz Matheus Stamillo Santarelli Zuliani 11/12/2019. 66 Matheus Zuliani Sobre a simulação relativa, existe enunciado da Jornada de Direito Civil sobre o tema37. Por fim, a doutrina ainda fala em simulação inocente. Tal modalidade era prevista no código civil de 1916 e tratava-se de uma simulação desprovida de intenção de prejudicar terceiros ou violar a lei. Essa modalidade não se aplica mais, uma vez que qualquer simulação é nula. 2.11.3. INVALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO Quando se fala em invalidade do negócio jurídico se fala em nulidade (nulidade absoluta) ou anulabilidade (nulidade relativa). Todos os vícios do negócio jurídico levam a anulação, com exceção da simulação, conforme visto acima, que leva a nulidade. A Nulidade é a sanção imposta pela lei aos atos e negócios jurídicos realizados sem observância dos requisitos essenciais, impedindo-os de produzir os efeitos que lhes são próprios. Ofendem preceitos de ordem pública que interessam à sociedade, ou seja, o interesse público é lesado. A nulidade pode ser absoluta ou relativa. Enquanto a nulidade absoluta ofende as normas de ordem pública, a nulidade relativa ofende norma de interesse particular. A nulidade absoluta não se convalida nunca, enquanto a relativa pode ser convalidada por vontade das partes. O juiz pode conhecer de ofício de uma nulidade absoluta, no entanto, tal atitude não pode ser tomada diante de uma nulidade relativa. Para se postular o reconhecimento de uma nulidade absoluta é preciso o manejo de uma ação declaratória de nulidade, e, como o nome mesmo sugere, sua natureza é de ação declaratória. A nulidade relativa é reconhecida por meio de ação anulatória, possuindo efeito desconstitutivo. A sentença declaratória, efeitos ex tunc, isso é, retroativos, enquanto na sentença desconstitutiva (ou constitutiva negativa) o Juiz desfaz o negócio jurídico, produzindo efeitos ex nunc (não retroativos). Não obstante tal posição, a jurisprudência tem reconhecido o efeito retroativo também para a ação anulatória, retornando as partes ao estado anterior. Por fim, podem ajuizar ação declaratória o Ministério Público ou qualquer interessado, enquanto a ação anulatória somente pode ser ajuizada pelo interessado no reconhecimento. Para finalizar a questão das ações cabíveis, é preciso mencionar a questão do prazo para o manejo. Enquanto a ação declaratória de nulidade é imprescritível, a ação anulatória pode ser ajuizada em 2 (dois) anos ou em 4 (quatro) anos, a depender do defeito. Consoante dispõe o art. 179 do Código Civil, quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato. Todavia, quando se tratar de defeitos do negócio jurídico, o prazo é de 4 (quatro) anos, podendo ter termos iniciais distintos. Assim, no caso de coação, o termo inicial é do dia em que ela cessar (CC, art. 178, I). Na hipótese de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico (CC, art. 178, II). Por fim, no de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade (CC, art. 178, III). 37 Enunciado 153, da III Jornada de Direito Civil: “Na simulação relativa, o negócio simulado (aparente) é nulo, mas o dissimulado será válido se não ofender a lei nem causar prejuízos a terceiros”. 67 Matheus Zuliani O negócio jurídico é nulo, conforme art. 166 do Código Civil, quando celebrado por pessoa absolutamente incapaz; quando for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; quando o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; quando não revestir a forma prescrita em lei; quando for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; quando tiver por objetivo fraudar lei imperativa, e por fim, quando a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. Embora se tenha dito que o negócio jurídico nulo não aceita convalidação, não se pode deixar de mencionar o instituto da conversão substancial. A conversão substancial consiste na possibilidade de convalidação de um negócio nulo em um válido, desde que contenha os requisitos de outro negócio, subsistindo este, e ainda, que se possa presumir que era a intenção das partes, se houvessem previsto a nulidade. É o que vem expresso no art. 170 do Código Civil. Não se confunde com a convalidação livre da anulabilidade, com previsão no art. 172 do Código Civil, em que as partes por livre vontade convalidam o negócio anulável. 2.11.4. DA REPRESENTAÇÃO O Código Civil traz um capítulo sobre o negócio jurídico concluído por meio da representação. É importante constar que os poderes de representação conferem-se por lei ou pelo interessado. Assim, a manifestação de vontade pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em relação ao representado (CC, art. 116). O contrato consigo mesmo, também conhecido na doutrina como autocontrato, tem regulamentação no art. 117 do Código Civil. Dispõe tal dispositivo legal que “salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo”. Dessa forma, o representante só pode fazer contrato consigo mesmo (de um lado ele e do outro ele representando terceiro) quando a lei ou quando o próprio representado der poderes específicos para tanto. Alguns entendem que essa modalidade de contrato não tem validade. Silvio de Salvo Venosa escreveu que: Para muitos, o chamado autocontrato é vedado, ainda que o ordenamento não o faça expressamente, porque faltaria o essencial acordo de vontades: uma única vontade se imporia no negócio, podendo trazer enorme prejuízo ao mandante. (...) verificamos que, para a configuração dos ditos autocontratos é essencial que o negócio jurídico seja concluído por meio do representante (Cavalcanti, 1983:1). Já Carlos Roberto Gonçalves defende a validade, desde que não haja conflito de interesses, sendo essa a melhor posição a ser adotada. Assim, o Desembargador do TJSP, disse: É de se supor que, malgrado a omissão do novo diploma, a jurisprudência continuará exigindo a ausência do conflito de interesses, como condição de admissibilidade do contrato consigo mesmo, como vem ocorrendo. O supratranscrito parágrafo único do art. 117 do novo Código trata de hipótese em que também pode configurar-se o contrato consigo mesmo de maneira indireta, ou seja, quando o próprio representante atua sozinho declarando duas vontades, mas por meio de terceira pessoa, substabelecendo-a para futuramente celebrar negócio com o antigo representante. Ocorrendo esse fenômeno, tem se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em que os poderes houverem sido substabelecidos. 68 Matheus Zuliani Por fim, é anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou (CC, art. 119). Essa ação deve ser ajuizada no prazo de 180 dias a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade. 2.11.5. DA CONDIÇÃO, DO TERMO E DO ENCARGO Condição, termo e encargo são denominados de elementos acidentais do negócio jurídico. Recebem essa denominação porque podem ou não constar do negócio jurídico, a depender da vontade das partes. Eles estão relacionados a eficácia do negócio jurídico. 2.11.5.1. DA CONDIÇÃO A condição é um acontecimento futuro e incerto de que depende a eficácia do negócio jurídico. Estabelece o artigo 121, do Código Civil que “considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto”. A condição como elemento acidental deve-se derivar exclusivamente pela vontade das partes, pois, se imposta pela lei, não se trata da condição que estamos analisando. A expressão “exclusivamente da vontade das partes”, mesmo mencionada à palavra “partes”, no plural, poderá ser imposta unilateralmente. Por exemplo, “te dou um carro se você for aprovado no vestibular do final do ano”. São elementos da condição a voluntariedade, futuridade e a incerteza. A voluntariedade é a que permite que as partes possam instituir a cláusula e não a lei, sob pena de se ter conditio iuris. A Futuridade exige que o objeto da condição seja ser futuro, não podendo versar sobre fatos passados ou presentes. Se assim tratar serão considerados condições impróprias. Por exemplo, “prometo certa quantia se o bilhete for premiado. E nesse caso o sorteio foi ontem”. Por fim, a incerteza é algo que não se sabe se vai acontecer. A condição pode ser classificada de diversas formas. Quanto à licitude, elas podem ser lícitas ou ilícitas. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes (CC, art. 122). As ilícitas, noutro sentido, são as que invalidam o negócio jurídico que lhes são subordinados. Elas podem ser ilícitas ou de fazer coisa ilícita. A condição ilícita invalida o negócio jurídico de forma integral. Quanto à fonte podem ser causais, potestativas ou mistas. São causais as que decorrem de fato alheio à vontade das partes, mesmo que decorra da vontade de terceiro. Por exemplo, “te dou dinheiro se chover amanhã”. As potestativas Decorrem da vontade ou do poder de uma das partes. Podem ser elas puramente potestativas ou simplesmente potestativas. As puramente Potestativas sujeitam os efeitos do negócio jurídico ao puro arbítrio de uma das partes. É a cláusula si voluero (se me aprouver). O artigo 122 inclui como condição defesa, ou seja, vedada pelo ordenamento. As simplesmente potestativas são admitidas por dependerem não só da manifestação de vontade de uma das partes como também de algum acontecimento ou circunstância exterior que escapa do controle da parte. As mistas, por seu turno, dependem da vontade das partes e de um terceiro ao mesmo tempo. Por exemplo, “te dou o dinheiro se você se casar com João”. Dentro das condições vedadas, existem as perplexas, também conhecida como contraditórias. Está prevista no art. 122 do Código Civil, sendo as que privarem de todo efeito o 69 Matheus Zuliani negócio jurídico. O exemplo tradicional é o contrato de locação residência que impede o inquilino de morar no bem locado. Quanto à possibilidade podem ser possíveis ou impossíveis. As possíveis são as fisicamente possíveis de serem cumpridas. As impossíveis são as que podem ser fisicamente impossíveis e juridicamente impossíveis. No primeiro caso tem-se a promessa de um carro se chegar caminhando até a lua. No segundo caso, temos a hipótese de fazer contrato de herança de pessoa viva. Quanto ao modo de atuação podem ser suspensivas ou resolutivas. A condição suspensiva é aquela que impede a aquisição e o exercício do direito. Dessa maneira, não haverá produção de efeitos até a realização do evento futuro e incerto. Por exemplo, “te dou o carro se você for aprovado no vestibular do final do ano”. A aprovação é incerta e o vestibular é futuro. Se houver uma condição impossível e suspensiva, ela invalida todo o negócio jurídico. A condição resolutiva é aquela que não desempenha suspensão da aquisição nem do exercício. Após a ocorrência do evento futuro e incerto, ocorre a extinção do direito. Por exemplo, “te dou o carro enquanto você for aluno CP IURIS”. Na hipótese de condição impossível e resolutiva, é tida por não escrita, todavia, o contrato permanece válido, íntegro e produz seus efeitos. Por exemplo, “te dou o carro se você não respirar”. Sobre a retroatividade da condição, dispõe o art. 128 do Código Civil que sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, a sua realização, salvo disposição em contrário, não tem eficácia quanto aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e conforme aos ditames de boa-fé. Tem-se como exemplo de negócio de execução continuada ou periódica: “te dou uma mesada mensal enquanto você for aluno CP IURIS”. No momento em que a pessoa deixa de ser aluno, a condição resolutiva resolve o negócio jurídico, mas não atinge os atos já praticados. 2.11.5.2. DO TERMO O termo, também elemento acidental do negócio jurídico, é o acontecimento futuro e certo que interfere na eficácia jurídica do negócio. É o dia ou momento em que começa ou se extingue a eficácia do negócio jurídico, podendo ter como unidade de medida a hora, o dia, o mês ou o ano. O termo convencional é cláusula que subordina a eficácia do negócio a evento futuro e certo. Por exemplo, “te dou o carro no natal deste ano”. O termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito (CC, art. 131). O termo não suspende a aquisição do direito por ser evento futuro, mas dotado de certeza, sendo assim, inexiste estado de pendência, podendo o titular, com maior razão, exercer atos de conservação. Pode ainda ocorrer conjugação de termo e condição num mesmo negócio jurídico – “te dou um carro se você se formar em direito até 22 anos de idade”. A morte no contrato de seguro de vida não é condição, é termo. Isso porque é certeza que um dia todos morreremos. No entanto, se a pessoa coloca em contrato que doa ao filho do 70 Matheus Zuliani outro R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) se ele morrer até dezembro de 2025, a morte passa a ser uma condição. O termo pode ser inicial, final, convencional, de direito, de graça, certo e incerto. O termo inicial é o que marca o início, também conhecido como de dies a quo. Tem-se como exemplo, “te dou o carro no dia 10 do próximo mês”. O final é aquele que põe fim ao elemento acidental, também denominado de dies ad quem. Por exemplo, “te dou o carro até o dia 10 do mês que vem”. Termo final não se confunde com condição resolutiva, porque esta pressupõe incerteza, e aquela, certeza de que irá acontecer. Termo convencional é o aposto pela vontade das partes. Termo de direito é o que decorre da lei. Termo de graça é a dilação de prazo concedida ao devedor. Termo certo é o que tem data específica. Termo incerto, noutro giro, é o que não tem data específica para ocorrer, mas é certo que ocorrerá – morte. 2.11.5.3. DO ENCARGO OU MODO Encargo é uma determinação que, imposta pelo autor por liberalidade, obriga o beneficiário. É utilizada em doações ou testamentos. Por exemplo, “te dou minha casa para que você institua uma creche”. Não pode ser aposta em negócio oneroso, pois equivaleria a uma contraprestação. Dispõe o art. 136 do Código Civil que o encargo não suspende a aquisição nem o exercício do direito, salvo quando expressamente imposto no negócio jurídico, pelo disponente, como condição suspensiva. Nesse caso, é preciso fazer uma breve anotação relevante. Se a pessoa doa uma casa em que vive para um cuidador com o elemento acidental dele cuidar do doador até o fim da sua vida, esse elemento acidental é um encargo ou uma condição suspensiva? Caso se entenda que é encargo, então o cuidador se torna dono da casa imediatamente. No entanto, caso se entenda como condição suspensiva, o cuidador somente se torna dono da coisa com a morte, atrelada ao elemento incerto de cuidar da idosa até o fim da sua vida. Portanto, tem que ficar bem atento aos elementos do negócio, devendo vir expressamente como condição suspensiva. E veja bem, não tem que vir que trata-se de condição suspensiva, mas sim, que subordinou o negócio a fazer algo, como no caso de cuidar da idosa. Se o beneficiário morrer antes do cumprimento do encargo a liberalidade prevalece, mesmo se instituída causa mortis. Se o encargo não for cumprido, a liberalidade poderá ser revogada. O terceiro beneficiário pode exigir o cumprimento do encargo, mas não está legitimado a propor ação revocatória que é privativa do instituidor, podendo os herdeiros apenas prosseguir na ação por ele intentada. O instituidor também pode reclamar o cumprimento do encargo e o Ministério Público somente poderá fazê-lo, depois da morte do instituidor se este não o tiver feito, e se o encargo foi imposto no interesse geral. 2.12. DOS ATOS ILÍCITOS E LÍCITOS 2.12.1. DOS ATOS ILÍCITOS O ato ilícito é aquela conduta humana, omissiva ou comissiva, que ofende o ordenamento jurídico. Assim, o ilícito pode ser civil, penal, administrativo, dentre outros. Para nós, o relevante é o ilícito civil. O ilícito civil pode ser extracontratual ou contratual. O ilícito contratual é a ofensa ao contrato firmado entre as partes. É a violação negativa do contrato, que será mais bem estudado no tema dos contratos. 71 Matheus Zuliani O ilícito extracontratual, também conhecido como responsabilidade aquiliana38, é a ofensa a um dever jurídico de não lesar outrem. Encontra previsão no art. 186 do Código Civil que diz que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O ato ilícito é o ato que dá surgimento à responsabilidade civil extracontratual, gerando o dever de indenizar. Se você, teclando no celular, não se atentar para o farol que ficou vermelho logo a sua frente, e abalroar o carro a sua frente, terá infringido o dever jurídico imposto pelo ordenamento jurídico de não lesar outrem (princípio alterum non laedere ou neminem laedere). Nesse momento, terá cometido um ilícito civil, gerando a sua responsabilidade extracontratual, que acarretará no dever de indenizar. Além do ato ilícito extracontratual, é considerado um ato ilícito o ato emulativo. O ato emulativo nada mais é do que o abuso do direito. O abuso do direito encontra regulamentação no art. 187 do Código Civil e diz que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Abuso do direito é o exercício de forma abusiva ou irregular do direito. O ato é originariamente lícito, mas foi exercício fora dos limites impostos pelos seus fins econômicos, social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Aqui há a consagração dos princípios da socialidade e da eticidade. A teoria do abuso de direito está consagrada em quatro conceitos jurídicos indeterminados, ou seja, em cláusulas gerais que serão preenchidas pelo juiz (fins econômicos, social, pela boa-fé ou pelos bons costumes). Para que o abuso do direito esteja configurado, é importante que a pessoa esteja exercendo o direito de forma abusiva ou irregular. É a atuação do exercício irregular do direito. Para tanto, não é necessário que se discuta ou que se levante o elemento culpa. Basta que a conduta exceda manifestamente os parâmetros do art. 187 (fins econômicos, fins sociais, boa-fé objetiva ou pelos bons costumes). Em suma, o abuso de direito é causa de responsabilidade objetiva, não se discutindo a presença ou não de culpa. Inclusive há um enunciado acerca desse tema39. 2.12.2. DOS ATOS LÍCITOS São considerados atos lícitos pelo art. 188 do Código Civil os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido, e ainda, a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Em resumo, são atos lícitos o estado de necessidade, a legítima defesa, e ainda, o exercício regular de um direito. A legítima defesa consiste no ato de se defender de uma agressão injusta e real, ou seja, se ataca alguém quando está sendo atacado. O Código Civil permite isso, tanto como excludente da responsabilidade civil como defesa da posse. 38 “Por volta do final do século III a.C., um Tribuno da Plebe de nome Aquilius, dirigiu uma proposta de lei aos Conselhos da Plebe, com vistas a regulamentar a responsabilidade por atos intrinsecamente ilícitos. Foi votada a proposta e aprovada, tornando-se conhecida pelo nome de Lex Aquilia. A Lex Aquilia era na verdade plebiscito, por ter origem nos Conselhos da Plebe. É lei de circunstância, provocada pelos plebeus que, desse modo, se protegiam contra os prejuízos que lhes causavam os patrícios, nos limites de suas terras. Antes da Lei Aquília imperava o regime da Lei das XII Tábuas (450 a.C.), que continha regras isoladas” (César Fiuza in Por uma nova teoria do ilícito civil]. 39 Enunciado 37 da I Jornada de Direito Civil: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. 72 Matheus Zuliani O estado de necessidade é a lesão a um bem ou a uma pessoa para remover-se de um perigo iminente. Esse o ato somente será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário e não exceder os limites do indispensável para a remoção do perigo. Por fim, o exercício regular de um direito consiste na atuação amparada pelo ordenamento jurídico, como o ato de inscrever o nome do devedor que não lhe paga nos órgãos de proteção ao crédito. Sobre os atos lícitos é preciso fazer uma explanação. A regra é a de que a prática do ato lícito não gera o dever de indenizar. No entanto, existe uma pequena exceção, sendo a hipótese em que um ato lícito gera o dever de indenizar. Quando a pessoa, para remover o perigo iminente e real, volta-se contra o bem ou a pessoa de terceiro, ainda que tenha praticado um ato lícito, terá que indenizar. Trata-se do estado de necessidade agressivo. É o que dispõe o art. 929 do Código Civil, in verbis: “Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram”. Noutro giro, se a agressão ou lesão para remover perigo for contra o próprio causador do perigo ou da agressão, nesse caso, não há o dever de indenizar. Nessa hipótese se está diante de um estado de necessidade defensivo. O art. 930 consagra o direito de regresso daquele que causou o dano em relação ao causador do estado de perigo (hipótese de estado de necessidade agressivo). Portanto, indeniza-se, mas tem o direito de regresso. Embora os arts. 929 e 930 sejam aplicados para o caso de estado de necessidade, a doutrina o aplica, de forma uníssona, para o caso da legitima defesa, por analogia. 2.13. DA PRESCRIÇÃO E DA DECADÊNCIA 2.13.1. DA PRESCRIÇÃO – DISPOSIÇÕES GERAIS A prescrição é a perda da pretensão pelo decurso do tempo. A prescrição na parte geral do código denota uma compreensão de perda. Essa perda é da pretensão. É errado dizer que a prescrição aniquila a ação. Essa afirmação foi feita durante muitos anos atrás, não persistindo. Direito de ação é estudado pelo direito processual civil, a qual advém três institutos: jurisdição, ação e processo. Dessa forma, temos que o direito de ação é a materialização, a corporificação da provocação da jurisdição que, por sua vez, é inerte. Nesse aspecto, temos várias características do direito de ação (dentre eles: público, subjetivo, processual e abstrato), mas, uma delas, é que o direito de ação é imprescritível. Segundo o professor Carlos Roberto Gonçalves, “para evitar o debate sobre a prescrição ou não da ação, adotou-se a tese da prescrição da pretensão, por ser considerada a mais condizente com o Direito Processual contemporâneo”. Após contribuição do direito alemão, Agnelo Amorim Filho e Miguel Reale dirão que o Código Civil de 2002 não comete o erro do Código revogado, uma vez que não há confusão entre o direito de ação e prescrição. A pretensão nasce no momento em que o direito subjetivo da parte é violado. Nesse momento tem o titular desse direito violado a pretensão, que deve ser exercida dentro de um lapso temporal, sob pena de ocorrência da prescrição. 73 Matheus Zuliani A prescrição tem como alicerce um grande princípio constitucional, qual seja, o princípio da segurança jurídica. E por quê? Porque não se pode permitir que o credor se eternize em um crédito, podendo infinitamente exercer esse direito em crédito em face do devedor. Outros institutos também encontram a base no princípio da segurança jurídica: são eles a coisa julgada e o direito adquirido. No que tange à prescrição, é preciso comentar a dualidade conceitual da prescrição. A prescrição, na sua concepção dual, serve ao mesmo tempo para extinguir direitos pelo decurso do tempo, funcionando com uma punição ao seu titular pela sua inércia, e por outro lado, permitir a aquisição de direitos (aquisitiva). No direito brasileiro o termo prescrição aquisitiva recebeu o nome de usucapião, ficando subentendido que o termo prescrição pura e simples se refere a prescrição extintiva. A prescrição aquisitiva é conhecida como usucapião, e é vista no livro especial do direito das coisas. Trataremos da prescrição extintiva, da Parte Geral do Código Civil. Essa modalidade também é conhecida como prescrição liberatória, porque libera o devedor da sujeição a que estava preso (a uma dívida). A importância dessa correlação é para lembrar que se aplica a usucapião as regras gerais da prescrição extintiva, como as hipóteses de suspensão e de interrupção do prazo prescricional. O STJ40 entende que se não estiver contemplado no Código Civil como causa interruptiva ou suspensiva da prescrição o fato não tem o condão de interromper ou suspender o prazo para a usucapião. Dispõe o art. 190 do Código Civil que “a exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão”. A exceção empregada pelo dispositivo em análise se refere à defesa da parte. Portanto, há equívoco em dizer que a defesa é imprescritível. Dessa forma, a matéria que pode ser alegada na ação, poderá ser alegada também na exceção. Pense no caso em que seu vizinho lhe deve R$ 50 mil reais, de uma dívida feita por meio de contrato de empréstimo, há dois anos. Ao notificá-lo para pagamento, o mesmo se nega. Ao ingressar com uma demanda de cobrança, em sua defesa, o vizinho alega que existe uma compensação a ser feita, uma vez que ele pagou, há 10 anos, uma conta de água da sua casa, de R$ 1.000,00 que estava vencendo. A tese de dívida na contestação de R$ 1.000,00 também prescreve, sendo que, no caso, certamente ela está prescrita. O Código Civil permite que haja a renúncia da alegação da prescrição. Explica o art. 191 que “a renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição”. Dessa forma, é possível a renúncia desde que sejam obedecidos alguns requisitos, como feita após a consumação do prazo, e ainda, que não prejudique terceiros. Significa que, para que haja renúncia da parte a quem aproveita a prescrição é preciso que o prazo prescricional tenha se consumado, e ainda, que não há um credor do devedor, uma vez que a consumação da prescrição gera um incremento no patrimônio do devedor. Assim, se existir um credor do devedor não há possibilidade de renunciar a prescrição. Por fim, a renúncia pode ser expressa ou tácita. Renúncia tácita é aquela se presume em razão do comportamento do devedor que são incompatíveis com a vontade de alegar a prescrição. Pense no caso do devedor que faz um acordo para pagamento. Após a assinatura e 40 REsp 149.186/RS 74 Matheus Zuliani antes do pagamento muda de ideia pelo fato da dívida estar prescrita. Sobre a renúncia tácita o STJ afirmou que não é qualquer postura do devedor que leva à renúncia tácita, mas apenas aquela considerada manifesta, patente, explícita, irrefutável e facilmente perceptível41. Ainda sobre a renúncia, o Código Civil não se admite a renúncia prévia da prescrição. Isso porque a prescrição é matéria de ordem pública e uma cláusula contratual impedindo a alegação de prescrição é deixar ao arbítrio das partes, de submeter ou não, a questão ao regime legal da prescrição. A questão da renúncia tem que ser estudada junto com a possibilidade de se reconhecer de ofício a prescrição pelo juiz. Isso porque, embora o juiz possa reconhecer de ofício a prescrição, é importante ouvir as partes para tomar conhecimento se não houve, por parte do devedor, a renúncia expressa, ou então, alguma conduta que possa levar a renúncia tácita. Sabe-se que a prescrição é matéria de ordem pública, e com isso, pode ser reconhecida de ofício pelo juiz. A atenção que se recomenda é imposta pelo Código de Processo Civil, uma vez que, diante no novo código processual, se a prescrição não foi ventilada pelas partes durante o curso do processo, o juiz tem que converter o julgamento em diligência, abrindo-se vista as partes para que elas se manifestem sobre o instituto. Trata-se do princípio da vedação da decisão surpresa, o qual estabelece o seguinte: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Conclui-se que o juiz pode reconhecer de ofício a prescrição e a decadência legal, porém, é necessário consultar as partes antes, a fim de promover o contraditório efetivo. O respectivo contraditório é substancial/material, que tem por finalidade, além de ofertar a manifestação da parte, influenciar na decisão do julgador. Além disso, o art. 487, parágrafo único, trata da matéria de forma específica na sentença, quando diz que, ressalvada a hipótese do art. 332, § 1º, a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se. Ainda sobre a conduta das partes, é importante ressaltar que os prazos prescricionais não podem ser alterados por vontade das partes (CC, art. 192). Isso porque a prescrição é norma cogente, não podendo ser convencionado entre as partes. Outra característica da prescrição é que ela não se curva ao instituto da preclusão. Consoante dispõe o art. 193 do Código Civil, a prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. Nessa senda, embora o requerido não alegue a prescrição da pretensão autoral na primeira oportunidade que fala no processo, ele pode alegar em qualquer grau de jurisdição. Qual a interpretação que se dá “em qualquer grau de jurisdição”? Entende-se que em qualquer grau de jurisdição se aplica somente as instâncias ordinárias, uma vez que, para as extraordinárias, é imprescindível o prequestionamento. Por fim, o antigo Código de Processo Civil continha uma regra de que o réu que, por não arguir na sua resposta fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, dilatar o julgamento da lide, será condenado nas custas a partir do saneamento do processo e perderá, ainda que vencedor na causa, o direito a haver do vencido honorários advocatícios (art. 22 do Código de Processo Civil de 1973). O novo Código de Processo Civil não repetiu essa regra. Com isso, se arguir a prescrição em momento posterior ao da contestação, isso não acarretará a extinção do direito de receber os honorários advocatícios de sucumbência, mesmo sendo vencedor. O Código Civil não deixou desamparado o sujeito que é prejudicado pela conduta daquele que deixou um direito prescrever, ou então, que não alegou a alegou na oportunidade 41 STJ - REsp 1.250.583 75 Matheus Zuliani correta. Assim, os relativamente incapazes e as pessoas jurídicas têm ação contra os seus assistentes ou representantes legais, que derem causa à prescrição, ou não a alegarem oportunamente. É o que dispõe o art. 195 do Código Civil. Uma vez iniciada a prescrição contra uma pessoa ela continua a correr contra o sucessor. É o que dispõe o art. 196 do Código Civil. Desta forma, a sucessão não interfere na prescrição, nem suspendendo, nem interrompendo. O prazo prescricional flui sem ligação subjetiva com os sujeitos envolvidos. Desse modo, ainda que haja a transferência do crédito por ato inter vivos ou por causa mortis, o prazo prescricional não será alterado. Não poderia deixar de comentar a prescrição intercorrente. O novo Código de Processo Civil disciplina com muita precisão a denominada prescrição intercorrente, que constitui causa de suspensão e de extinção da execução. Nota-se que o Código de Processo Civil, no art. 921, III, narra que uma vez não encontrado bens penhoráveis de propriedade do executado o juiz determinará a suspensão do processo pelo prazo de 1 (um) ano, ficando, também, suspensa a prescrição. O § 4º do mesmo dispositivo legal explica que ultrapassado o prazo anuo inicia-se a prescrição intercorrente. José Rogério Tucci42 explica muito bem o procedimento: Atingido tal interregno temporal, o juiz deverá determinar a intimação das partes para que se manifestem no prazo de 15 dias (parágrafo 5º do artigo 921). Justificase esta providência no princípio do contraditório efetivo, caro ao novo Código de Processo Civil (artigo 10), evitando-se decisão escudada em fundamento-surpresa. O exequente, em particular, terá oportunidade de explicar o motivo de sua prolongada inércia. Em seguida, considerando a manifestação das partes, sendo injustificável a paralisação do processo, o juiz, reconhecendo, de ofício, a prescrição intercorrente, proferirá sentença extintiva do processo executivo. 2.13.2. DAS CAUSAS IMPEDITIVAS E SUSPENSIVAS DA PRESCRIÇÃO O Código Civil elenca quais são as hipóteses em que o prazo prescricional não se inicia, ou então, quando iniciado fica suspenso. Assim, as causas impeditivas obstam o início do prazo, enquanto as causas suspensivas suspendem o prazo que já se iniciou. Nessa última, quando o fato se encerra, o prazo continua seu curso, cessando a suspensão. As causas que impedem ou suspendem a prescrição, encontram-se previstas nos artigos 197, 198 e 199 do CC. Em regra, essas causas não se aplicam aos prazos decadenciais; somente em casos excepcionais existem causas que interferem no curso de prazo decadencial, que estão elencados nos artigos 195 e 198, inciso I do Código Civil. São elas o regresso contra o representante e a incapacidade absoluta. Algumas dessas hipóteses merecem observação. Para as outras, basta a leitura simples do dispositivo legal. O art. 198, I, do Código Civil diz que não corre prescrição contra os incapazes que trata o art. 3º do Código Civil. Quando se faz uma leitura acelerada do dispositivo em questão, pode-se gerar uma interpretação, equivocada, diga-se de passagem, que não corre prescrição contra qualquer incapaz, seja ele relativamente ou absolutamente. O art. 3º do Código Civil 42 TUCCI, José Rogério - A prescrição intercorrente no novo CPC e na atual jurisprudência do STJ in CONJUR – publicado no dia 4/10/2016. 76 Matheus Zuliani trata apenas do absolutamente incapaz. Assim, corre prescrição contra o relativamente incapaz (CC, art. 4º). O inciso III afirma que não corre prescrição contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra. É importante mencionar que essa guerra é a declarada. O art. 200 do Código Civil traz uma hipótese em que o prazo fica suspenso/obstando até que a responsabilidade criminal seja definida. É um reflexo da independência das instâncias prevista no art. 935 do Código Civil. Nesse sentido, quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva. Entende-se por sentença definitiva o trânsito em julgado da sentença penal. Por fim, é interessante mencionar que a tramitação de inquérito não tem força para a suspensão do prazo prescricional. O sujeito não pode ficar aguardando a conclusão do inquérito policial acreditando que o prazo prescricional da ação civil está suspenso. O mesmo ocorre quando a denúncia é rejeitada pelo Juiz. Nesse caso, não ocorre a suspensão do prazo prescricional. A prescrição é uma exceção pessoal. Assim, pode ser que ela corra contra uma determinada pessoa e não contra outra (incapaz, por exemplo). Desta forma, em se tratando de diversos devedores, a suspensão da prescrição em favor de um não aproveita ao outro. O Código Civil, no art. 201, segue essa linha dizendo que, mesmo em caso de solidariedade de credores, a suspensão da prescrição em favor de um não aproveita o outro, salvo se a obrigação for indivisível. Assim, a extensão da suspensão pressupõe a indivisibilidade do objeto. 2.13.3. DAS CAUSAS INTERRUPTIVAS DA PRESCRIÇÃO Uma causa interruptiva da prescrição não tem o mesmo significado que uma causa suspensiva da prescrição. Enquanto na suspensão o prazo volta a correr de onde parou, na interrupção ele volta a correr desde o início. Outra diferença é que a suspensão do prazo pode ocorrer por diversas vezes, enquanto a interrupção do prazo prescricional só acontece uma única vez. As causas interruptivas estão nos art. 202, 203 e 204, todos do Código Civil. Da mesma maneira que as causas que obstam e suspendem a prescrição, algumas das causas interruptivas merecem atenção doutrinária, enquanto outras se bastam com a simples leitura da lei. O art. 202, I, do Código Civil diz que a interrupção da prescrição dar-se-á por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual. Nesse ponto, faz-se necessária análise do disposto no artigo 240, §1º do CPC: A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 do Código Civil. § 1º A interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação. Veja, portanto, que a interrupção da prescrição não é efeito da citação válida, mas sim, o despacho do juiz que manda citar. Questiona-se: e a decisão que ordena a emenda da inicial? O art. 321 do Código Civil prevê a possibilidade de o Magistrado ordenar a emenda da inicial para sanar determinado 77 Matheus Zuliani vício da petição inicial. O STJ tem entendimento que a interrupção da prescrição no caso em que se ordena a emenda da inicial ocorre na data em que se ordenou a emenda e não da data do ajuizamento da ação. Sendo assim, entende que A interrupção da prescrição, na forma prevista no § 1º do artigo 219 do Código de Processo Civil, retroagirá à data em que petição inicial reunir condições de desenvolvimento válido e regular do processo, o que, no caso, deu-se apenas com a 43 emenda da inicial, momento em que já havia decorrido o prazo prescricional . Por fim, ainda tratando do inciso I, nos casos dos Juizados Especiais Cíveis e na Justiça do Trabalho, onde não há o despacho inicial, uma vez que o juiz recebe os autos já em audiência, já tendo sido citado o requerido, deve ser considerado como marco a interromper a prescrição a data do ajuizamento da demanda. O art. 202, VI, afirma que interrompe a prescrição por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor. Nesse caso, pouco importa se o ato é judicial ou extrajudicial, qualquer um deles tem o condão de interromper a prescrição. Enquanto todos os demais comportamentos elencados no art. 202 são do credor, nessa hipótese, o comportamento é do devedor, dispensando-se atitude do credor. Pense a hipótese do devedor que paga a dívida, antes da prescrição, pedindo dilação de prazo para pagar os juros de mora vencidos. Nesse caso, estamos diante de uma hipótese em que interrompe o prazo prescricional desse valor. É importante constar que a prescrição pode ser interrompida por qualquer interessado (CC, art. 203). Assim, o terceiro juridicamente interessado pode praticar ato tendente a interromper a prescrição. Ademais, qualquer terceiro pode praticar tal ato, não necessitando ser apenas o terceiro interessado, mas também o terceiro que tem interesse moral ou apenas econômico. Afirmamos, linhas acima, que a prescrição é uma exceção pessoal. Dessa forma, o art. 204 do Código Civil assevera que a interrupção da prescrição por um credor não aproveita aos outros; semelhantemente, a interrupção operada contra o codevedor, ou seu herdeiro, não prejudica aos demais coobrigados. Todavia, ao contrário do que ocorre com a suspensão, a interrupção por um dos credores solidários aproveita aos outros, assim como a interrupção efetuada contra o devedor solidário envolve os demais e seus herdeiros (CC, art. 204, § 1º). Além disso, existe mais uma regra quando se trata de interrupção e solidariedade. A interrupção operada contra um dos herdeiros do devedor solidário não prejudica os outros herdeiros ou devedores, senão quando se trate de obrigações e direitos indivisíveis. Aqui, a ideia do § 2º é a mesma do caso da suspensão prevista no art. 201 do Código Civil. Noutro giro, embora o Código Civil não fale, presume-se que não havendo solidariedade a interrupção não alcança os demais devedores. O STJ entendeu que a citação válida contra devedor solidário interrompe-se a prescrição contra todos (STJ – AgRg no AI 787.029/SP). Por último, ainda dentro do art. 204, a interrupção produzida contra o principal devedor prejudica o fiador. 43 EDcl no RECURSO ESPECIAL Nº 1.527.154 – PR. 78 Matheus Zuliani 2.13.4. DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS O Código Civil elenca, nos artigos 205 e 206, todos os prazos prescricionais. Essa facilitação veio somente com o Código Civil de 2002, em razão do princípio da operabilidade, uma vez que no Código Civil de 1916 tais prazos estavam esparsos pelo Código. Para saber, naquela época, se um prazo era prescricional ou decadencial era preciso se socorrer ao critério de Agnelo Amorim Filho. Agnelo Amorim Filho criou, durante a vigência do CC/16, um critério para fazer a correta diferenciação entre os prazos considerados prescricionais e os prazos decadenciais. Pelo critério desse jurista paraibano, os prazos prescricionais estão diretamente associados com as ações condenatórias, enquanto os prazos decadenciais estão interligados com as ações constitutivas, derivadas do direito potestativo. Por fim, para as ações declaratórias, ligadas à nulidade absoluta, encontram-se os prazos imprescritíveis. Com a entrada em vigor do Código Civil atual, o art. 205 trouxe o prazo residual decenal, enquanto o art. 206 trouxe os prazos específicos, podendo ser de um ano, dois anos, três anos, quatro anos, e por fim, quinquenal. Como se sabe, a prescrição como instituto de direito material conta-se o prazo incluindo o dia da violação do ato, assim, de determinada dívida não foi paga no dia 10 de novembro, esse dia entra na conta. Se o prazo é de 10 anos, no dia 10 de 2023 a pretensão foi fulminada, o último dia é o dia 9. Ao analisar a literalidade do art. 189 do Código Civil é possível extrair uma interpretação equivocada de que o termo inicial da contagem do prazo é o primeiro dia logo após a violação do direito. Essa interpretação é equivocada porque o STJ encampou a teoria da actio nata. Trata-se de um princípio do Direito que consiste no nascimento do prazo prescricional com o conhecimento da violação pelo seu titular, assim como das consequências dessa violação, prestigiando-se, assim, a boa-fé e a confiança. O STJ editou a Súmula 278 no sentido de se acolher a teoria da actio nata. Veja: “O termo inicial do prazo prescricional, na ação de indenização, é a data em que o segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral”. Finalmente, antes de ingressar nos prazos propriamente ditos, é preciso falar um pouco sobre a questão intemporal. Tema que gera muitas dificuldades na prova de sentença é a questão do início do prazo prescricional durante a vigência do CC/16 com interregno no CC/02. Dispõe o art. 2.028 do Código Civil que: “Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”. Nessa senda, para que haja a incidência desse dispositivo legal é preciso que haja conjugação de dois requisitos, o primeiro que o Novo Código Civil tenha reduzido o prazo prescricional previsto na legislação anterior, e, o segundo que na entrada em vigor do novo Código Civil já tenha transcorrido mais da metade do prazo previsto no CC/16. O STJ já decidiu vários casos aplicando o mencionado dispositivo44. O art. 205 do Código Civil traz o prazo geral. Esse prazo é considerado residual porque ele somente terá aplicação para os casos não regulamentados de forma específica nos §§ do 44 REsp 1276316 / RS – Min. Eliana Calmon – julgado em 20/08/2013 79 Matheus Zuliani art. 206. Esse prazo é de dez anos. O art. 206 traz, em seus parágrafos e incisos, prazos específicos para determinadas relações jurídicas. No § 1º temos a pretensão para as causas envolvendo seguro. Porém, pode-se dizer que todas as pretensões envolvendo seguro obedecem ao prazo de 1 ano? Não, o seguro DPVAT tem o prazo prescricional de 3 anos a contar da data em que o segurado teve ciência inequívoca da capacidade laboral (Súmula 278 do STJ). Entende-se que o seguro DPVAT tem natureza indenizatória, e por isso incide no inciso IX do § 3º do art. 206. Ainda sobre o seguro é importante mencionar a súmula 229 do STJ que diz: “o pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”. No § 2º temos a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem. Nesse caso não é a pretensão para o reconhecimento do direito aos alimentos, uma vez que esse direito é imprescritível. O art. 206, § 2º trata da prescrição para cobrar prestações referentes ao direito a alimentos já reconhecidos. No § 3º temos a pretensão geral da indenização para a reparação civil e para o enriquecimento sem causa. Questiona-se: a ação de ressarcimento por dano ao erário também obedece ao prazo de 3 anos? Antes existia o entendimento pacífico, tanto na jurisprudência do STJ45 e do STF que a ação de ressarcimento por danos ao erário é imprescritível. No entanto, o STF mudou tal entendimento. concluiu que, somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/199246. Em relação a todos os demais atos ilícitos, inclusive àqueles atentatórios à probidade da administração não dolosos e aos anteriores à edição da Lei 8.429/1992 aplica-se a prescritibilidade, seguindo a regra geral da prescrição contra a Fazenda Pública. Já para as demais sanções, contra servidor público ocupante de cargo efetivo, a contagem da prescrição se dá à luz do art. 23, II da Lei nº 8.429/1992 e do art. 142 da Lei nº 8.112/1990, tendo como termo a quo a data em que o fato se tornou conhecido da Administração. Ainda no que se refere à responsabilidade civil e ao prazo prescricional, muitos entendiam que o § 3º, V, do art. 206 abrangia tanto a responsabilidade civil contratual quanto a extracontratual. No entanto, o STJ concluiu que: “a partir do exame do Código Civil é possível se inferir que o termo “reparação civil” empregado no artigo 206, §3º, V, somente se repete no título 9 do livro 1º do mesmo diploma, o qual se debruça sobre a responsabilidade civil extracontratual47”. Diante disso, a prescrição para a responsabilidade contratual obedece ao art. 205 do Código Civil, ou seja, prazo decenal. No que tange ao prazo para cobrança de seguro DPVAT, o STJ editou a Súmula 405, a qual expõe que “a ação de cobrança do seguro obrigatório (DPVAT) prescreve em três anos”. Temos, no § 5º, a pretensão para a cobrança de honorários de profissionais liberais. Não se pode dizer que na expressão genérica “profissionais liberais” se encontra os honorários advocatícios. A prescrição para a pretensão de recebimento de honorários advocatícios encontra previsão expressa no art. 25 da Lei nº 8.906/94. Ressalta-se que o prazo previsto na lei especial coincide com o mesmo do Código Civil, ou seja, 5 anos. 45 46 47 STJ - AREsp 1546193 / SP. STF – Tema 897 – RE 636.886. STJ - EREsp 1.281.594 80 Matheus Zuliani 2.13.5. DA INDEPENDÊNCIA DAS JURISDIÇÕES. Dispõe o art. 200 do Código Civil que: “Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva”. Trata-se do princípio da independência das instâncias. Uma conduta pode ser classificada ao mesmo tempo como ilícito penal, civil e administrativo. Nesse caso poderá ocorrer a condenação em todas as esferas ou não, ou seja, na ação civil poderá ser condenado e na ação penal absolvido, pois vale a regra da independência e autonomia entre as instâncias. Mas há exceções, nas quais haverá vinculação entre as instâncias, o que significa que não poderá ser condenado na esfera civil ou administrativa quando for absolvido na esfera penal por inexistência do fato e negativa de autoria. O ordenamento jurídico estabelece a relativa independência entre as jurisdições cível e penal, de tal modo que quem pretende ser ressarcido dos danos sofridos com a prática de um delito pode escolher, de duas, uma das opções: ajuizar a correspondente ação cível de indenização ou aguardar o desfecho da ação penal, para, então, liquidar ou executar o título judicial eventualmente constituído pela sentença penal condenatória transitada em julgado. A decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato [REsp 1.802.170-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 20/02/2020, DJe 26/02/2020 Informativo de jurisprudência n. 666]. 2.13.6. DA DECADÊNCIA A decadência também é conhecida como caducidade. A decadência é o instituto que fulmina o direito. Para entender decadência temos que nos lembrar do conceito de direito potestativo. Inicialmente, vale lembrar que direito potestativo é um simples direito de interferência ou de sujeição, por meio do qual o seu titular, ao exercê-lo, interfere na esfera jurídica de terceiro, sem que esta pessoa nada possa fazer. O direito potestativo é aquele que confere ao titular o direito de interferir na esfera jurídica de outrem sem que haja um dever correspondente. Por isso se diz que ele não tem conteúdo prestacional (não se espera prestação da outra parte). O direito potestativo é simplesmente um dever de interferência. Quando alguém o exerce, o outro simplesmente se sujeita a ele. Existem direitos potestativos sem prazo para o seu exercício. É o caso do direito de divórcio. Quando eu o exerço, o cônjuge apenas sofre a interferência do direito, não podendo gritar aquela célere frase de que não assina. Também existem direitos potestativos com prazo para o seu exercício. Nessa linha, concluímos que toda vez que um direito potestativo tiver prazo para o seu exercício, este será sempre decadencial. Ou seja, o prazo decadencial é o prazo para o exercício de um direito potestativo. Assim temos a decadência legal (prazo decadencial previsto na lei) e a decadência convencional (prazo decadencial previsto contratualmente). 81 Matheus Zuliani Exemplo de prazo decadencial previsto na lei é o prazo para o exercício do direito de anular o negócio jurídico (CC, art. 178). O direito de anular é potestativo, pois ao exercê-lo, não se formula pretensão condenatória contra a parte contrária, isto é, você não espera que a outra parte cumpra um dever. O pedido de perdas e danos é separado. O direito de anular é que é potestativo. Exemplo de prazo decadencial previsto em contrato é o prazo para desistência do negócio. Se o contrato traz a cláusula “o contratante tem o prazo de 30 dias para desistir do negócio”. Essa é uma faculdade conferida pelo contrato. Tem natureza de prazo decadencial convencional. Em suma, prazo prescricional está sempre na lei, mas o prazo decadencial (que se refere ao exercício de direito potestativo) pode estar na lei ou nos contratos (legais ou convencionais). Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição (CC, art. 207). Afirmar que a decadência nunca se suspende é um erro. Excepcionalmente, poderá haver a suspensão do prazo decadencial. É o caso do Código de Defesa do Consumidor, no art. 26, § 2º. O prazo decadencial para exercer o direito de reclamar no âmbito do Direito do Consumidor é de 30 dias para bens não duráveis e 90 dias para bens duráveis. No Código de Defesa do Consumidor está dito que algumas situações podem interromper o prazo decadencial. É o caso de ser protocolar uma reclamação sobre o produto. Enquanto esta não me der uma resposta, o prazo não começa a correr. O art. 209 do Código Civil afirma ser nula a renúncia à decadência fixada em lei. A decadência estipulada em lei é de ordem pública, e por isso não pode haver a disposição pelas partes. No entanto, quando se trata da decadência prevista contratualmente a renúncia pela parte mostra-se perfeitamente possível. Como afirmado, a decadência é matéria de ordem pública (decadência legal). Assim, deve o juiz, de ofício, conhecer da decadência, quando estabelecida por lei. É o que dispõe o art. 210 do Código Civil. O mesmo raciocínio não se aplica ao caso de decadência convencional. Essa modalidade de decadência o juiz está impedido de reconhecer de ofício, porque as partes podem dispor. 82 Aurélio Bouret CAPÍTULO 3 – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES 1. TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES 1.1. INTRODUÇÃO Consoante às lições do professor Carlos Roberto Gonçalves, podemos conceituar o direito obrigacional com sendo: O vínculo jurídico que confere ao credor (sujeito ativo) o direito de exigir do devedor (sujeito passivo) o cumprimento de determinada prestação. Corresponde a uma relação de natureza pessoal, de crédito e débito, de caráter transitório, cujo objeto consiste numa prestação economicamente aferível. Desse modo, obrigações são relações jurídicas que possuem conteúdo econômico; vínculo ou sujeição da pessoa e a submissão a uma regra de conduta. Todavia, será que podemos afirmar que todas as obrigações possuem vínculo patrimonial? Há uma obrigação estudada no Direito da Família e no campo da bioética, que não possui natureza econômica, mas que gera uma obrigação de dar, na modalidade entregar/restituir, que é obrigação decorrente da gestação em útero alheio, também conhecida como “barriga de aluguel ou barriga em comodato”, em que a gestante tem a obrigação de cumprir a prestação de entregar a criança para os pais. 1.1.1. ESTRUTURA DO LIVRO DAS OBRIGAÇÕES NO CÓDIGO CIVIL CONTEÚDO DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES DISPOSIÇÃO LEGAL CÓDIGO CIVIL Modalidade das obrigações: obrigação de Arts. 233 ao 285 do CC; dar; de fazer; de não fazer. Abrangendo multiplicidade de situações que podem ocorrer, como: solidariedade; divisibilidade; indivisibilidade, contextualização dos institutos, características e etc. Transmissão das obrigações: por meio dos Arts. 286 ao 303 do CC; institutos da cessão de crédito ou cessão de débito, tem-se a possibilidade de transmissão de um crédito ou débito, respectivamente. Adimplemento e extinção das obrigações: a Arts. 304 ao 388 do CC; extinção normal de uma obrigação é exatamente o seu adimplemento. O adimplemento normal é aquele que observa quem deve pagar; a quem deve receber; objeto/tempo/lugar/prova do 83 Aurélio Bouret pagamento. Por outro lado, caso ocorra algum evento diverso do pactuado, ter-se-á formas especiais de pagamento, como: consignação em pagamento, novação, dação em pagamento, compensação, confusão, remissão. Inadimplemento das obrigações e suas Arts. 389 ao 420 do CC. consequências: pode ser absoluto ou relativo. Nesse ponto, estudaremos a mora exre e mora ex persona, cláusula penal, arras ou sinal. 1.1.2. FONTES OBRIGACIONAIS São consideradas fontes obrigacionais: Lei: isso porque da lei pode surgir a obrigação. Como nos Direitos de Vizinhança (art. 1277 do CC). Contrato: é a fonte principal do direito obrigacional. Atos ilícitos: praticado um ato ilícito (art. 186 e 187 do CC) que venha a causar dano a alguém, nasce a obrigação de indenizar a vítima do dano (art. 927 do CC). Atos unilaterais: são as denominadas declarações unilaterais de vontade, como é o caso da promessa de recompensa. Títulos de crédito: de onde surgem as obrigações cambiais. 1.2. DIFERENÇA ENTRE DIREITOS REAIS E DIREITOS OBRIGACIONAIS DIREITOS REAIS DIREITO OBRIGACIONAL Objeto Coisa Prestação Sujeito passivo Indeterminado: pois a figura do sujeito somente surgirá quando houver violação do direito. Os direitos reais são erga omnes, ou seja, oponível contra qualquer sujeito que viole o direito real. Determinados ou determináveis. São determinados ante a existência da figura do credor e devedor. Porém, pode haver, também, uma indeterminabilidade transitória, caracterizada como sujeitos determináveis. 84 Aurélio Bouret Duração São perpétuos. Transitórios: pois a relação obrigacional vai existir enquanto houver vínculo. O vínculo deixa de existir com o adimplemento da obrigação. Formação Criados somente por lei São ilimitados: têm-se (art. 1225 do CC). categorias de obrigação (dar; fazer; não fazer), mas possível à criação de obrigações atípicas. Ação Ação contra sujeito. qualquer Somente em face do sujeito passivo. Dentro da classificação de direitos reais e direitos obrigacionais, temos duas teorias: a teoria unitária e a teoria dualista/clássica. Teoria unitária: Define a união entre os direitos reais e direitos obrigacionais como sendo direitos patrimoniais. Desse modo, não haveria tanta distinção entre ambos os institutos, por essa razão é que não adotamos essa teoria. Teoria dualista/clássica: Direito reais e direitos obrigacionais tratam-se de direitos patrimoniais, contudo, são institutos diferentes. Essa teoria é adotada no nosso ordenamento jurídico. 1.3. FIGURAS HÍBRIDAS Figuras híbridas são aquelas que situam entre o direito real e o direito obrigacional, ou seja, são obrigações com características de direito real e pessoal. São figuras híbridas: obrigações propter rem ou ob rem, ônus reais e obrigações com eficácia real. Obrigação propter rem ou ob rem - É a obrigação que recai sobre o titular do bem, independentemente de ter sido ele ou não que constituiu o débito. Origina-se com a coisa e transmite-se com ela automaticamente (obrigação ambulatorial). O adquirente do direito real não pode negar-se a assumir esta obrigação. Por exemplo, para ser proprietário de um veículo, deve-se assumir a obrigação de pagamento do IPVA; o proprietário de um imóvel se obriga no pagamento do IPTU. Em ambos os casos temos como credor a Fazenda Pública e, como devedor, o proprietário dos respectivos bens. - REsp 846.187/SP – taxa condominial é uma 85 Aurélio Bouret obrigação propter rem. - Quando houver o inadimplemento dessa modalidade de obrigação, as consequências recairão sobre o patrimônio do devedor. Ônus reais - São obrigações que limitam o uso e gozo da propriedade; é um gravame que recai sobre uma coisa, restringindo o direito do titular de um direito real. - O ônus real constitui um limitador do exercício do direito de propriedade, como: usufruto, enfiteuse, superfície, penhor, anticrese, hipoteca. Obrigação com eficácia real - Em sua essência, trata-se de uma obrigação pessoal, como qualquer outra, mas que, em virtude do seu registro, nos termos da lei, passa a ter uma oponibilidade erga omnes. - São obrigações que resultam de contratos e alcançam, por força de lei, a dimensão de direito real. - Por exemplo, havendo o registro no contrato de locação, não impede a venda do bem, no entanto, caso haja a venda desse imóvel, o adquirente deve respeitar o contrato de locação, não podendo retirar o locatário do bem - artigo 576 do CC e art. 8º da Lei nº 8245/91. Desse modo, o contrato de locação tem eficácia real e, portanto, oponível erga omnes. 1.4. RELAÇÃO JURÍDICA OBRIGACIONAL São elementos básicos da relação jurídica obrigacional: elemento subjetivo (credor e devedor); elemento objetivo ou material (prestação); elemento imaterial ou vínculo jurídico (vínculo/liame entre credor e devedor). O objeto da obrigação pode ser imediato ou mediato. Objeto imediato Obrigação de dar; fazer; não fazer Objeto mediato O bem da vida discutido Em um caso hipotético, havendo a celebração de um contrato de compra e venda de um celular, por exemplo, o objeto imediato é a obrigação de dar, ao passo que o objeto mediato é o celular. 86 Aurélio Bouret 1.5. TEORIA DUALISTA DAS OBRIGAÇÕES (BRINZ) A partir do elemento imaterial, também chamado de elemento espiritual ou abstrato, um autor alemão chamado Brinz identificou que a relação obrigacional pode ser dividida em dois momentos distintos, através do binômio: schuld (débito)e haftung (responsabilidade patrimonial). Schuld, portanto, é uma relação estática do direito civil, criada a relação obrigacional nasce o débito, e quem detém o débito é o devedor. O haftung, por sua vez, constitui uma relação dinâmica do direito processual civil e, portanto, trata-se da responsabilidade patrimonial, não cumprida a prestação pactuada (débito ou schuld), nasce a responsabilidade (haftung) pelo inadimplemento. No campo do processo civil, este se revela através do princípio da patrimonialidade, pois, em caso de não cumprimento da obrigação pelo devedor, este responderá com seus bens. 1.5.1. RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DO DEVEDOR Nos primórdios do Direito Romano o devedor respondia pessoalmente com seu próprio corpo por suas dívidas, podendo ser açoitado, escravizado ou até morto como forma de punição pelo inadimplemento. Hoje impera a responsabilidade patrimonial do devedor, que não irá mais responder com seu próprio corpo pelo inadimplemento, irá responder com seu próprio patrimônio. Podemos dividir a responsabilidade patrimonial de duas maneiras: Responsabilidade patrimonial primária (art. 391 do CC e 789 do CPC), que se revela naquela em que o patrimônio do próprio devedor vai responder pela obrigação (devedor é detentor do schuld e do haftung). Responsabilidade patrimonial secundária, que diz respeito àquela responsabilidade que recai sobre o patrimônio de pessoa diversa do devedor (terceiro é detentor somente do haftung). Tal modalidade de responsabilidade encontra-se disciplinada no art. 790 do CPC. Cumpre destacar que há um resquício de responsabilidade pessoal do devedor no nosso ordenamento jurídico. É o caso do permissivo constitucional de prisão civil (leia-se prisão por dívida) no caso de depositário infiel e devedor inescusável de alimentos (art. 5º LXVII da CRFB). Lembre-se que apesar da previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel, essa não é mais possível em razão do controle de convencionalidade exercido em face do Pacto de São José da Costa Rica, que só permite a prisão civil no caso de devedor inescusável de alimentos (SV. 25 do STF). 1.5.2. OBRIGAÇÕES PERFEITAS E IMPERFEITAS A partir da teoria dualista das obrigações, podemos classificar as obrigações em perfeitas e imperfeitas. Obrigações perfeitas seriam aquelas em que débito (schuld) e responsabilidade (haftung) recaem sobre o mesmo sujeito. Já obrigações imperfeitas seriam aquelas em que há o débito (schuld), mas não há a responsabilidade (haftung), ou aquelas em que débito e responsabilidade recaem sobre pessoas distintas. São exemplos de obrigações imperfeitas em que há o débito, mas não há a responsabilidade pelo inadimplemento, as obrigações naturais, que são inexigíveis, tais como dívida de jogo e dívida prescrita, em que há o débito presente, mas não há a responsabilidade pelo inadimplemento. 87 Aurélio Bouret São exemplos de obrigações imperfeitas em que há a responsabilidade pelo o adimplemento mesmo sem ter constituído o débito, as obrigações do avalista ou do fiador, que são responsáveis pelo inadimplemento do devedor principal, sem nunca terem constituído o débito. O fiador, portanto, tem o haftung, mas não constituiu o schuld. Débito e responsabilidade recaem sobre pessoas distintas. 1.6. OBRIGAÇÃO COMO UM PROCESSO A partir de uma teoria do renomado autor alemão Karl Larenz, trazida para o Brasil por Clóvis Couto e Silva, atualmente há uma nova concepção de obrigação. Ela não é vista apenas como um mero vínculo jurídico que se presta apenas à satisfação do interesse do credor. Hoje, a obrigação é vista com um processo. Segundo essa tese, a obrigação se revela como um conceito dinâmico e deve ser vista como um processo, uma série de atos relacionados entre si que, desde o início, caminha com uma finalidade, qual seja, a satisfação da prestação. Não mais deve prevalecer a ideia formal de vínculo que subordina o devedor ao credor, mas sim a noção de que a relação jurídica é voltada para o adimplemento de forma mais satisfativa para o credor e menos onerosa para o devedor, que são “parceiros de um bem comum”. Atendendo assim ao princípio da boa-fé objetiva. Como exemplo de aplicação da nova concepção da obrigação como um processo, podemos citar o chamado duty to mitgate the loss. 1.6.1. DUTY TO MITIGATE THE LOSS (DEVER DE MITIGAR AS PRÓPRIAS PERDAS O duty to mitage the loss ou o dever de mitigar as próprias perdas consiste em uma vedação ao abuso do direito do credor. O credor deve evitar que o seu devedor fique em situação cada vez mais delicada, deve evitar o agravamento da situação do devedor. Configura abuso do direito do credor estimular situações que deixam o devedor cada vez mais preso com as suas próprias dívidas. Isso se releva em diversas situações, sobretudo nas questões sobre o superendividamento. Exemplo: quando se fala se em superendividamento, como nos casos de cheque especial em banco quando o devedor procura seguradora financeira menor que diz que empresta dinheiro sem consulta ao SPC e ao SERASA. Ele pega o dinheiro emprestado para saldar a dívida com o banco, depois pega dinheiro emprestado para pagar a seguradora anterior e vira uma bola de neve. O indivíduo fica superendividado. Conceder crédito só vai agravar a situação. O credor tem o dever de evitar a agravação do prejuízo, ou seja, tem o dever de evitar as próprias perdas. Ao final, quem vai perder é também o credor, pois não irá receber. Não estamos tratando de calote. Isso é um fundamento para o devedor, reconhecido nessa situação de superendividamento, pleitear em juízo uma revisão contratual, uma dilatação dos prazos, reduzir juros abusivos. Esse dever de mitigar as próprias perdas revela mais uma aplicação do princípio da boa-fé objetiva, ressaltando os deveres anexos de lealdade, proteção, confiança e cooperação, evitando assim o abuso de direito do credor. 88 Aurélio Bouret 2. ATOS UNILATERAIS 2.1. INTRODUÇÃO Nas declarações unilaterais de vontade, a obrigação nasce de uma simples declaração de uma única parte. Essa declaração, uma vez emitida, torna plenamente exigível aquilo que foi declarado. Ao chegar ao conhecimento daquele em que foi direcionada a obrigação, se o sujeito cumpriu, terá direito ao que foi emitido. O Código Civil consagra expressamente alguns atos unilaterais: promessa de recompensa; gestão de negócios; pagamento indevido; enriquecimento sem causa. 2.2. PROMESSA DE RECOMPENSA O art. 854 diz que, aquele que, por anúncios públicos, se comprometer a recompensar, ou gratificar, a quem preencha certa condição, ou desempenhe certo serviço, contrai obrigação de cumprir o prometido. A pessoa que cumpriu a tarefa, ainda que não tivesse movida pelo interesse da promessa de recompensa, poderá exigir a recompensa (art. 855). 2.2.1. REVOGAÇÃO DA PROMESSA O sujeito poderá revogar a promessa de recompensa, mas essa só é possível antes de prestado o serviço. Ainda, para que a revogação surta efeitos, deverá ser feita com a mesma publicidade da declaração. Então, antes de o sujeito prestar o serviço, poderá ser feita a revogação da promessa, mas deve ser feita com a mesma publicidade da declaração. No caso de revogação, se algum candidato de boa-fé tiver efetuado despesas para cumprir o serviço realizado para obter a recompensa, estas despesas deverão ser reembolsadas por quem havia prometido e revogou. 2.2.2. EXECUÇÃO CONJUNTA E SIMULTÂNEA Se o ato contemplado na promessa foi praticado por mais de um indivíduo, terá direito à recompensa quem primeiro executou a tarefa (art. 857). Sendo a execução simultânea, cada um tocará quinhão igual na recompensa. E se for estipulada como recompensa um bem indivisível? Nesse caso, não dá para dividir o bem, situação na qual deverá haver um sorteio, e aquele que obtiver a coisa dará ao outro o valor de seu quinhão. 2.2.3. PRAZO E JULGAMENTO Nos concursos que se abrirem com promessa pública de recompensa, é condição essencial, para valerem, a fixação de um prazo. 89 Aurélio Bouret A decisão da pessoa nomeada, nos anúncios, como juiz, obriga os interessados. Em falta de pessoa designada para julgar o mérito dos trabalhos que se apresentarem, entenderse-á que o promitente se reservou essa função. Tais obras premiadas, nos concursos mencionados, só ficarão pertencendo ao promitente, se assim for estipulado na publicação da promessa. 2.3. GESTÃO DE NEGÓCIOS Na gestão de negócios há uma atuação sem poderes. Ou seja, a parte atua sem receber a incumbência do sujeito que seria o mandatário. O gestor de negócios não tem direito à remuneração e deve agir conforme a vontade presumível da vontade do dono do negócio, pois, do contrário, responderá pelos danos que causar. Se a gestão foi iniciada contra a vontade manifesta ou presumível do interessado, o gestor irá responder, inclusive por casos fortuitos ou força maior, não provando que teriam sobrevindo, ainda quando se houvesse abatido. Em regra, a responsabilidade é subjetiva. No entanto, caso aja contra a vontade do dono do negócio, responderá objetivamente, inclusive força maior e caso fortuito. Se os prejuízos da gestão excederem o seu proveito, o dono do negócio pode exigir do gestor que ele restitua as coisas ao estado anterior, ou o indenize da diferença. Ex.: João viajou e o seu vizinho percebeu que em sua casa estava pegando fogo. Com isso, arrombou a porta (primeiro dano) e apagou o fogo com o tapete persa de João (segundo dano). No entanto, evitou um prejuízo enorme, e agiu conforme a vontade presumível do seu dono, João. Em regra, o gestor só será responsabilizado se tiver agido com culpa, conforme a responsabilidade subjetiva do art. 866 do CC. Ou seja, o gestor envidará toda sua diligência habitual na administração do negócio, ressarcindo ao dono o prejuízo resultante de qualquer culpa na gestão. Se o gestor se fizer substituir por outrem, responderá pelas faltas do substituto. Ou seja, se o gestor eleger alguém para atuar, responderá pelas faltas do seu substituto. Atente-se que a responsabilidade por fato de terceiro é objetiva e solidária. Se a gestão for conjunta, prestada por várias pessoas ao mesmo tempo, existe responsabilidade solidária entre todos os gestores, consagrada no art. 867, parágrafo único. Quando o dono do negócio retorna, há duas opções: concordar e ratificar a gestão, convertendo a atuação do vizinho em mandato, devendo ressarcir o gestor por todas as despesas necessárias e úteis pela sua atuação. Essa ratificação retroage ao dia do começa da gestão, tendo efeito ex tunc (art. 873); desaprovar a atuação do gestor, situação na qual poderá pleitear perdas e danos, ainda que se trate de operações arriscadas no caso fortuito ou força maior, mesmo que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste em proveito de interesses seus. Observa-se que o dono do negócio só pode recusar a ratificar a atuação do gestor se provar que sua atuação foi contrária aos seus interesses diretos. A lei presume a boa-fé. Se o gestor atuou com boa-fé, não se pode recusar a ratificação dos atos do gestor, devendo provar que ele não agiu de acordo com seus interesses diretos. 90 Aurélio Bouret 2.4. PAGAMENTO INDEVIDO O pagamento indevido é o pagamento sem o débito. Segundo o art. 876, todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir. Portanto, o pagamento indevido, que é um ato unilateral, faz nascer a obrigação de restituir. Pagamento indevido é espécie do gênero enriquecimento sem causa. O art. 878 dispõe que aos frutos, acessões, benfeitorias e deteriorações sobrevindas à coisa dada em pagamento indevido, aplica-se o disposto quanto ao possuidor de boa-fé ou de má-fé, a depender da existência de boa-fé ou má-fé de quem recebeu o pagamento. Ex.: alguém recebe o imóvel de boa-fé à título de pagamento. Nesse caso, terá direito aos frutos colhidos na vigência em que ele teve o imóvel consigo. Em razão disso, terá direito de indenização e direito de retenção quanto às benfeitorias úteis e necessárias. Questiona-se: e se essa pessoa recebeu o imóvel como pagamento sabendo da inexistência da dívida, ou seja, de má-fé? Nesse caso, não há direito aos frutos, nem direito de retenção, podendo ser indenizado apenas quanto às benfeitorias necessárias. Fica isento de restituir pagamento indevido quem, recebendo como parte de dívida verdadeira, inutilizou o título, deixou prescrever a pretensão ou abriu mão das garantias que asseguravam seu direito (art. 880). Porém, aquele que pagou dispõe de ação regressiva contra o verdadeiro devedor e seu fiador. Atente-se que a regra é a restituição simples do valor pago, não em dobro. No entanto, a lei consagra hipóteses em que cabe restituição em dobro: aquele que demanda por dívida já paga ficará obrigado a pagar em dobro o que houver cobrado do devedor (art. 940); o CDC, no art. 42, p.ú., diz que o consumidor poderá pleitear a restituição do pagamento indevido em dobro. O CC afasta a possibilidade de repetição de indébito quando se tratar de obrigação natural ou quando se tratar de pagamento de obrigação imoral. Com relação à obrigação natural, não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível, pois existe o schuld, apesar de não existir o haftung. Em relação à obrigação imoral, quem paga recompensa a alguém por ter matado outrem, não tem direito a esta restituição. Isto é, não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei. Neste caso, o que se deu reverterá em favor de estabelecimento local de beneficência, a critério do juiz. Se o pagamento indevido tiver consistido no desempenho de obrigação de fazer ou para eximir-se da obrigação de não fazer, aquele que recebeu a prestação fica na obrigação de indenizar o que a cumpriu, na medida do lucro obtido. 2.5. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA Segundo o art. 884, aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. São pressupostos para que haja direito à restituição: enriquecimento de quem recebe; empobrecimento de quem paga (não é pacífico); 91 Aurélio Bouret relação de causalidade entre o enriquecimento de um e o empobrecimento do outro; inexistência de causa jurídica que justifique isso; inexistência de ação específica. Não caberá a restituição por enriquecimento sem causa, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido. Isto é, a ação de enriquecimento sem causa é subsidiária. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido. Portanto, a restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir. 3. CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES 3.1. CLASSIFICAÇÃO BÁSICA DAS OBRIGAÇÕES Quanto à classificação das obrigações, elas podem ser básica ou especial. A classificação básica é dividida em: obrigação positiva - consubstanciada em uma obrigação de dar (coisa certa ou incerta) e de fazer; obrigação negativa - trata-se da obrigação de não fazer. 3.2. CLASSIFICAÇÃO ESPECIAL DAS OBRIGAÇÕES A classificação especial possui as seguintes divisões. 3.2.1. QUANTO AO ELEMENTO SUBJETIVO (OS SUJEITOS) a) Fracionárias: pluralidade de devedores ou credores, cada um deles responde apenas por parte da dívida. b) Conjuntas: pluralidade de devedores ou credores, impondo-se a todos o pagamento conjunto de toda a dívida, não se autorizando aos credores exigi-la individualmente. c) Disjuntivas: devedores se obrigam alternativamente ao pagamento da dívida. Se um cumpre a obrigação, os demais são exonerados. d) Solidárias: existe solidariedade quando, na mesma obrigação, concorre uma pluralidade de credores, cada um com direito à dívida toda (solidariedade ativa), ou uma pluralidade de devedores, cada um obrigado à dívida por inteiro (solidariedade passiva). 3.2.2. QUANTO AO ELEMENTO OBJETIVO (A PRESTAÇÃO) a) Alternativas: aquelas que têm por objeto duas ou mais prestações, sendo que o devedor exonera-se cumprindo apenas uma delas. b) Facultativas: aquelas que têm um único objeto e o devedor tem a faculdade de substituir a prestação devida por outra de natureza diversa. 92 Aurélio Bouret c) Cumulativas: aquelas que têm por objeto uma pluralidade de prestações a serem cumpridas conjuntamente. d) Divisíveis e indivisíveis: as obrigações divisíveis admitem o cumprimento fracionado ou parcial da prestação; nas obrigações indivisíveis só podem ser cumpridas por inteiro. e) Líquidas e ilíquidas: obrigações líquidas são aquelas certas quanto à existência e determinadas quanto ao objeto; nas ilíquidas não há especificação do quantum para o seu cumprimento. 3.2.3. QUANTO AO ELEMENTO ACIDENTAL a) Obrigação condicional: condicionadas a evento futuro e incerto. b) Obrigação a termo: exigibilidade subordinada a evento futuro e certo. c) Obrigação modal: possuem um encargo (ônus) imposto a uma das partes, que experimentará benefício maior. 3.2.4. QUANTO AO CONTEÚDO a) Obrigações de meio: o devedor se obriga a empreender a atividade sem garantir o resultado esperado. b) Obrigações de resultado: o devedor se obriga não apenas a empreender a atividade, mas, principalmente, produzir o resultado. c) Obrigações de garantia: eliminar riscos que pesam sobre o credor, reparando suas consequências. 4. OBRIGAÇÕES DE DAR 4.1. INTRODUÇÃO É a obrigação que tem por objeto a prestação de COISA. A expressão “dar” se divide em duas situações: (i) dar na modalidade entregar e; (ii) dar na modalidade restituir. Veja que nas obrigações de dar, não é simplesmente dar de entregar, mas também como forma de restituição da coisa. Dessa forma, o verbo “dar” em direito civil tem o sentido de “entregar” (transferir a propriedade ou posse) ou de “restituir” (devolução da coisa ao proprietário). Na obrigação de dar, como na compra e venda de um celular, por exemplo, impõe-se o dever de entregar o bem ao comprador. Noutro sentido, tem-se a obrigação de restituir, quando a pessoa empresta o celular para outra, por exemplo, por pequeno período tempo, mas a propriedade continua sendo do dono e, após o uso, deve-se restituir o celular ao proprietário. OBS.: O CPC denomina ação de restituição de obrigação reipersecutória. A obrigação de dar pode ser dividida: obrigação de dar coisa certa e obrigação de dar coisa incerta. Obrigação de dar coisa certa: envolve uma coisa já qualificada; quantificada; especificada; individualizada. Por exemplo, “te darei este iphone”. 93 Aurélio Bouret Obrigação de dar coisa incerta: é aquela cuja incerteza é temporária, pois logo após, conseguirei discriminar a coisa. Por exemplo, “vou te dar um iphone”. 4.2. OBRIGAÇÃO DE DAR COISA CERTA A regra de ouro inserida no campo do direito das obrigações se encontra prevista no artigo 313 do CC, que diz que “o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa”. É por isso que o credor deve receber exatamente aquilo que foi pactuado, mas, em razão da autonomia da vontade, o credor poderá consentir em receber prestação diversa da devida. Contudo, a entrega de coisa diversa somente poderá ocorrer com o consentimento do credor, no caso dação em pagamento (credor recebe coisa diversa da devida, por sua própria vontade). Art. 321 c/c 346 do CC. 4.2.1. PERECIMENTO/DETERIORAÇÃO DA COISA Acerca do assunto, deve-se identificar se o dar é entregar ou restituir, após, deve-se definir quem é o dono e quem é o devedor. O perecimento da coisa segue a regra do res perit domino, ou seja, a coisa perece para o dono. O dono da coisa na modalidade de entregar é devedor (enquanto a coisa permanece com o proprietário – antes da tradição –, ele é dono, mas após a relação jurídica, o proprietário passa a ser devedor, pois cabe a ele a entrega do bem). Na modalidade restituir, o dono da coisa é o próprio credor (aquele que emprestou o bem, por exemplo, é o dono, e aquele que deve restituir o bem é devedor). Dessa forma: Coisa se perder COM culpa: incidirá perdas e danos. Coisa se perder SEM culpa: a coisa perece para o dono. A obrigação se resolve sem ônus para as partes. Exemplo na obrigação de dar: se em um contrato de compra e venda de um celular, antes da entrega do bem, a coisa perece nas mãos do proprietário, sem culpa sua. Quem sofrerá a perda é o dono da coisa, devendo este devolver o valor que foi pago pelo comprador. Porém, se antes da entrega, a coisa perecer por culpa do proprietário, a coisa perecerá ao dono + incidência de indenização por perdas e danos pelo não cumprimento da obrigação + devolução do equivalente (valor que foi pago). Exemplo na obrigação de restituir: se “A” pede emprestado o celular de “B”. E no momento do uso a coisa vem a se perder sem culpa de “A”, “B” sofrerá a perda do bem em virtude de ser o dono. Agora, se o perecimento do celular ocorre por culpa de “A”, muito embora o credor sofra com a perda, “A” deverá indenizar “B” com perdas e danos em razão do não cumprimento da obrigação. 94 Aurélio Bouret 4.2.2. REGRAS SOBRE PERDA E DETERIORAÇÃO DO OBJETO Quem suporta o prejuízo? Se antes da tradição, o prejuízo é do dono res perit domino. Perecimento É a perda total. Deterioração É a perda parcial. Perecimento na entrega Sem culpa: (art. 234 - 1ª parte) Obrigação extinta para ambas as partes, que voltam ao status quo ante; se já recebeu pela coisa tem que devolver o valor (art. 492). Com culpa: (art. 234 - 2ª parte) Responde o devedor por perdas e danos mais o equivalente. Deterioração na entrega Sem culpa: (art. 235) Credor pode resolver a obrigação ou aceitar a coisa, abatido do preço o valor que perdeu. Com culpa: (art. 236) Credor pode exigir o equivalente ou aceitar a coisa no estado em que se acha, com direito de reclamar perdas e danos. Perecimento na restituição Sem culpa: (art. 238) O credor sofre a perda, ressalvados os direitos até o dia da perda. Com culpa: (art. 239) Responde equivalente mais perdas e danos. Deterioração na restituição pelo Sem culpa: (art. 240) Credor recebe como se encontra a coisa e sem direito a indenização. Com culpa: (art. 239) Responde equivalente mais perdas e danos. pelo OBS.: perdas e danos constituem somatório de indenização que a parte pode pleitear em virtude do não cumprimento de uma obrigação. Por exemplo, dano moral, lucro cessante, dano emergente, honorários de advogado, entre outras. 95 Aurélio Bouret 4.2.3. ARTIGOS MAIS COBRADOS EM PROVAS Art. 237 do CC. Até a tradição pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e acrescidos, pelos quais poderá exigir aumento no preço; se o credor não anuir, poderá o devedor resolver a obrigação. Parágrafo único. Os frutos percebidos são do devedor, cabendo ao credor os pendentes. Veja que o dispositivo acima diz respeito à obrigação de dar na modalidade entregar e, portanto, o dono é o devedor. Resolver a obrigação no direito civil significa desfazer a obrigação, é o retorno do status quo ante. Ex.: se na compra e venda de uma fazenda, por exemplo, mas antes da tradição, temse a ocorrência da avulsão (deslocamento terra e acréscimo na propriedade), fazendo com que a propriedade fique ainda maior. O vendedor pode exigir aumento no preço, mas se não houver concordância do comprador, haverá devolução do valor, desfazendo-se o negócio. Isso porque, os melhoramentos e os acrescidos da coisa autorizam o aumento do preço. Obs.: frutos pendentes são aqueles que ainda não foram colhidos, pois não estão no momento de serem retirados da coisa. Art. 238. Se a obrigação for de restituir coisa certa, e esta, sem culpa do devedor, se perder antes da tradição, sofrerá o credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até o dia da perda. Lembre-se, na restituição, o dono é o próprio credor Ex.: se até o dia da perda da coisa, o devedor pagava ao credor aluguel pelo uso do celular, serão devidos os alugueis até o dia do perecimento, se ocorreu sem culpa do devedor. Art. 239. Se a coisa se perder por culpa do devedor, responderá este pelo equivalente, mais perdas e danos. Art. 240. Se a coisa restituível se deteriorar sem culpa do devedor, recebê-la-á o credor, tal qual se ache, sem direito a indenização; se por culpa do devedor, observar-se-á o disposto no art. 239. Art. 241. Se, no caso do art. 238, sobrevier melhoramento ou acréscimo à coisa, sem despesa ou trabalho do devedor, lucrará o credor, desobrigado de indenização. Art. 242. Se para o melhoramento, ou aumento, empregou o devedor trabalho ou dispêndio, o caso se regulará pelas normas deste Código atinentes às benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa-fé ou de má-fé. Parágrafo único. Quanto aos frutos percebidos, observar-se-á, do mesmo modo, o disposto neste Código, acerca do possuidor de boa-fé ou de má-fé. Na obrigação de dar na modalidade entregar, os melhoramentos cabem ao devedor, que pode exigir aumento do preço. Ao passo que quando o melhoramento ocorrer na restituição é preciso analisar se aquele que deve restituir, ou seja, o devedor trabalhou para aquele acréscimo ou não. Em caso negativo, este não possui direito a nada, mas se sim, o credor deverá indenizá-lo. Aplica-se a regra do possuidor de boa-fé ou má-fé (art. 1219 e 1220 do CC). 96 Aurélio Bouret Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso. Deve-se observar que, na obrigação de dar coisa certa, envolvem-se os acessórios que sejam frutos, produtos e benfeitorias (constituem partes integrantes do bem). As pertenças que são bens móveis inseridos nos bens imóveis com caráter de definitividade, a qual assume as características de imobilidade, não acompanham o principal (Informativo 629 do STJ). Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos. Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu. 4.3. OBRIGAÇÃO DE DAR COISA INCERTA A coisa incerta é indicada apenas pelo gênero e pela quantidade, não há uma indicação da qualidade – são obrigações genéricas. Por exemplo, “vou te dar um (quantidade) iphone (gênero)”. A coisa é incerta até que seja escolhida, pois se disser “vou te dar este iphone”, a coisa já foi escolhida e, portanto, a coisa passa a ser certa. Conforme artigo 243 do CC. Indeterminabilidade é temporária – há momento certo para escolha. No momento em que a coisa passa a ser certa, aplicam-se as regras para as obrigações de dar coisa certa. Via de regra, quando estivermos diante de coisa incerta, a escolha cabe ao devedor, contudo, é possível que as partes convencionem de forma diversa. É o dispõe o artigo 244, do CC. No momento da escolha ou concentração da obrigação esta deve ser feita pela média, não pode ser a pior e nem mesmo a melhor. É a chamada virtude da prestação média, art. 244 parte final do CC. Via de regra, o gênero nunca perece. A partir disso, dispõe o artigo 246 do CC que “antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito”. Contudo, o professor Pablo Stolze, nesse ponto, faz uma ponderação reflexiva, o qual afirma que o artigo 246 é falho, pois quando se fala em gênero limitado na natureza, poderá perecer. Por exemplo, obrigação de entregar determinada espécie em extinção. Caso ocorra a morte do animal, não é possível fazê-lo substituir, tendo em vista o perecimento do gênero. 5. OBRIGAÇÕES DE FAZER E NÃO FAZER 5.1. OBRIGAÇÃO DE FAZER É a obrigação que tem por objeto a prestação de um fato, podendo ser, personalíssima (infungível) ou não personalíssima (fungível).Abrange o serviço humano em geral, seja material ou imaterial. Constitui-se de atos e serviços - qualquer atividade lícita, possível e vantajosa. Por exemplo, a pessoa contrata um advogado para redigir um contrato; contrata cantor para cantar na festa de casamento; contrata um pedreiro para construir uma casa, dentre outras variadas possibilidades de obrigação de fazer. 97 Aurélio Bouret Obrigação personalíssima - Também chamada de obrigação infungível, tratase de uma obrigação de fazer que deva ser prestada exatamente por aquela pessoa que foi contratada. Por exemplo, se contratada Ivete Sangalo para tocar na festa de casamento, a cantora é insubstituível. A obrigação de fazer infungível é definida pela pessoa contratada, por suas qualidades ou pela própria instituição em contrato. Obrigação não personalíssima -Também denominada de obrigação fungível, é a possibilidade de substituição daquele que deve prestar o serviço. Por exemplo, contrato pedreiro para construir o muro, nada impede que em caso de não cumprimento da obrigação, ele seja substituído por outro. Desse modo, em se tratando de uma obrigação infungível e o devedor não cumpre a obrigação por sua culpa, incidirá perdas e danos. Vejamos: “Art. 247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exequível.” Na mesma linha, o não cumprimento de uma obrigação fungível, sem culpa do devedor, não incidirá perdas e danos, mas, havendo culpa, incidirá. “Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolverse-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.” Ademais, caso o devedor em uma obrigação fungível não cumpre a obrigação, o terceiro pode cumprir em seu lugar. Em caso de urgência, a contratação do terceiro pode ser feita sem autorização do magistrado. Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível. Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido. Notadamente, as obrigações alhures mencionadas possuem íntima ligação com o direito processual civil, especialmente, no estudo do processo de execução. Pois, quando se fala em execução tem-se o cumprimento de uma obrigação (direito subjetivo de crédito). Assim sendo, o princípio da especialidade é a busca da tutela específica, ou seja, é conceder aquilo que foi pactuado entre as partes; que é de direito do credor. Diante disso, as técnicas executivas devem ser suficientes para alcançar ao credor a tutela específica. As técnicas indiretas executivas de coerção que são utilizadas para fazer cumprir uma obrigação de fazer podem ser de duas modalidades: prisão, utilizada para prisão civil do devedor de alimentos; multas, que podem ser: o multas legais (previstas na lei – obrigação de dar quantia certa) e; o multa judicial - astreintes (podem ser fixadas pelo juiz na sentença e na execução, não transitam em julgado, pode ser majorada se insuficiente, ou reduzida se excessivamente onerosa). Vale mencionar que as astreintes são fixadas de acordo com o caso concreto e a favor do credor. Nesse trilhar, caberá ao credor além da tutela específica, o pagamento da quantia referente às astreintes, que são fixadas por dia e somente se encerra com a satisfação da obrigação. 98 Aurélio Bouret Art. 814. Na execução de obrigação de fazer ou de não fazer fundada em título extrajudicial, ao despachar a inicial, o juiz fixará multa por período de atraso no cumprimento da obrigação e a data a partir da qual será devida. 5.1.1. NÃO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE FAZER Primeiramente, deve-se verificar se a obrigação é fungível ou infungível. Fungível: terceiro poderá satisfazer a obrigação às custas do devedor OU converter em perdas e danos (art. 816, do CPC). Infungível: são obrigações que somente o devedor pode cumprir, caso em que o inadimplemento se converte em perdas e danos. 5.2. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER A obrigação de não fazer tem por objeto uma prestação negativa, um comportamento omissivo do devedor, e está regulada nos artigos 250 e 251 do CC. É um dever de abstenção de um fato. Desse modo, a execução da obrigação de não fazer, é um fazer, e o credor requererá o desfazimento daquilo que não deveria ser sido feito. Obs.: o artigo 814 do CPC também é aplicado nas obrigações de não fazer. “Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.” Art. 251. Praticado pelo devedor o ato, a cuja abstenção se obrigara, o credor pode exigir dele que o desfaça, sob pena de se desfazer à sua custa, ressarcindo o culpado perdas e danos. Parágrafo único. Em caso de urgência, poderá o credor desfazer ou mandar desfazer, independentemente de autorização judicial, sem prejuízo do ressarcimento devido. 5.2.1. DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER Deve-se verificar se a obrigação é permanente/contínua ou instantânea. Permanente/contínua: terceiro poderá satisfazer a obrigação às custas do devedor MAIS perdas e danos. Instantânea: são obrigações que não admitem serem desfeitas, em caso de inadimplemento, converte-se em perdas e danos. Art. 822 do CPC. Se o executado praticou ato a cuja abstenção estava obrigado por lei ou por contrato, o exequente requererá ao juiz que assine prazo ao executado para desfazê-lo. Art. 823 do CPC. Havendo recusa ou mora do executado, o exequente requererá ao juiz que mande desfazer o ato à custa daquele, que responderá por perdas e danos. Parágrafo único. Não sendo possível desfazer-se o ato, a obrigação resolve-se em perdas e danos, caso em que, após a liquidação, se observará o procedimento de execução por quantia certa. 99 Aurélio Bouret 6. OBRIGAÇÕES ALTERNATIVAS E FACULTATIVAS 6.1. OBRIGAÇÕES ALTERNATIVAS Obrigações alternativas são aquelas em que há uma pluralidade de objetos, desde o início o devedor se compromete a cumprir uma prestação em caráter alternativo, ele só irá se desobrigar entregando um objeto ou outro. As obrigações alternativas não envolvem incertezas, mas envolve a prestação dois objetos ou mais. Por exemplo, “você tem que me entregar o pincel preto ou o pincel vermelho”. Em regra, dá-se ao devedor a alternativa de escolha. Contudo, nada impede que seja estipulado de forma diversa, por exemplo, pactuam que a escolha será do credor; do terceiro; por sorteio etc. (art. 252 do CC). Desse modo, se eventualmente o credor interpuser uma ação de execução decorrente de um título executivo extrajudicial em face do devedor, a qual prevê o cumprimento de uma obrigação alternativa, deve-se oportunizar ao devedor seu direito de escolha. As obrigações alternativas encontram-se guarida nos arts. 252 ao 256 do CC. Art. 252. Nas obrigações alternativas, a escolha cabe ao devedor, se outra coisa não se estipulou. § 1º Não pode o devedor obrigar o credor a receber parte em uma prestação e parte em outra. Ex.: o devedor deve entregar ao credor 50 computadores ou 50 impressoras e à escolha cabe ao devedor. O que não pode ser feito neste caso, é o cumprimento da obrigação mediante entrega de 25 computadores e 25 impressoras. Tal situação encontra respaldo na regra de ouro disposta no artigo 313, do CC: “O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa”. Todavia, caso o devedor consinta em receber prestação diversa, ter-se-á dação em pagamento. “Art. 252 § 2º Quando a obrigação for de prestações periódicas, a faculdade de opção poderá ser exercida em cada período.” Prestações periódicas são aquelas que se prolonga no tempo. Se, por exemplo, durante o lapso temporal de 12 meses e no dia 10 de cada mês o devedor deva entregar ao credor 50 computadores ou 50 impressoras. Optando o devedor no primeiro mês pela entrega de 50 computadores, não significa que nos demais meses ele deverá entregar tão somente os computadores. Isto é, as escolhas serão renovadas periodicamente. “Art. 252 § 3º No caso de pluralidade de optantes, não havendo acordo unânime entre eles, decidirá o juiz, findo o prazo por este assinado para a deliberação.” Em uma situação hipotética em que dois são os devedores, a escolha deve ser feita de forma conjunta. Havendo divergência na escolha do objeto, caberá ao magistrado a escolha. “Art. 252 § 4º Se o título deferir a opção a terceiro, e este não quiser, ou não puder exercê-la, caberá ao juiz a escolha se não houver acordo entre as partes.” Competindo a escolha a um terceiro, e esse não puder ou não quiser exercer a escolha, caberá ao magistrado à escolha. Cuidado! A escolha somente será do credor se o contrato assim o prever. “Art. 253. Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexequível, subsistirá o débito quanto à outra.” Desse modo, se alguma das prestações tornarem inexequível, por exemplo, por perecimento do objeto, a outra subsistirá. 100 Aurélio Bouret Art. 254. Se, por culpa do devedor, não se puder cumprir nenhuma das prestações, não competindo ao credor a escolha, ficará aquele obrigado a pagar o valor da que por último se impossibilitou, mais as perdas e danos que o caso determinar. Havendo perecimento de um dos objetos, a escolha persistirá naquele que se encontra íntegro (objeto que sobrou). Contudo, havendo perecimento deste último também, por culpa do devedor, caberá a este o pagamento do objeto escolhido (aquele objeto que havia sobrado), mais perdas e danos. Art. 255. Quando a escolha couber ao credor e uma das prestações tornar-se impossível por culpa do devedor, o credor terá direito de exigir a prestação subsistente ou o valor da outra, com perdas e danos; se, por culpa do devedor, ambas as prestações se tornarem inexequíveis, poderá o credor reclamar o valor de qualquer das duas, além da indenização por perdas e danos. “Art. 256. Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação.” Inexistindo culpa do devedor, resolve-se a obrigação, é o retorno do status quo ante. 6.2. OBRIGAÇÕES FACULTATIVAS As obrigações facultativas não estão previstas em lei, mas são reconhecidas pela doutrina e jurisprudência. Na obrigação facultativa o devedor se compromete a cumprir uma prestação, mas reservando-se a faculdade de se desobrigar cumprindo outra prestação. Ex.: João se compromete a entregar um carro para Maria, podendo também se liberar entregando uma lancha. Neste caso a faculdade de substituição será sempre do devedor. Caso o objeto da prestação principal venha a se perder antes do cumprimento da obrigação, sem culpa do devedor, a obrigação se resolve sem ônus para qualquer das partes. Não há que se falar em concentração da prestação restante, uma vez que o devedor só se obrigou ao cumprimento de uma prestação, a outra era facultativa. 7. OBRIGAÇÕES DIVISÍVEIS E INDIVISÍVEIS Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam. Por exemplo, o dinheiro, saca de café etc. Já os bens indivisíveis são aqueles que não admitem fracionamento, pois, se houver, perdem sua qualidade. Têm-se como exemplo de bens indivisíveis os animais. Torna-se relevante o estudo das obrigações divisíveis e indivisíveis quando houver pluralidade de credores. Desse modo, havendo um credor e um devedor, não há relevância em sabermos se a obrigação é divisível ou indivisível. A problemática reside na situação em que houver um credor com vários devedores ou vários credores com apenas um devedor – nessa situação, é necessário sabermos se a obrigação é divisível ou não. Desse modo, em uma obrigação divisível, por exemplo, em que três devedores devem três mil reais ao credor, cada devedor está obrigado ao pagamento de mil reais – fracionam-se as obrigações em quantos forem os sujeitos. Por outro norte, se a prestação envolver uma obrigação indivisível, por exemplo, em que dois devedores devem entregar ao credor um cavalo que custa dois mil reais, cada devedor estará obrigado pela dívida toda. No entanto, se a obrigação for cumprida por apenas um dos devedores, este se subroga no direito do credor em relação ao outro devedor. A partir disso, aquele devedor que não 101 Aurélio Bouret cumpriu a obrigação torna-se devedor daquele que pagou na quantia de mil reais – quota parte na obrigação (art. 259, parágrafo único do CC). 7.1. DISPOSITIVOS RELEVANTES “Art. 257. Havendo mais de um devedor ou mais de um credor em obrigação divisível, esta presume-se dividida em tantas obrigações, iguais e distintas, quantos os credores ou devedores.” Em suma, quando a obrigação é divisível cada sujeito terá o direito de pagar ou de receber, a sua quota parte. Desse modo, se em uma obrigação possui somente um devedor com vários credores, cada credor poderá exigir do devedor sua referida quota. “Art. 258. A obrigação é indivisível quando a prestação tem por objeto uma coisa ou um fato não suscetíveis de divisão, por sua natureza, por motivo de ordem econômica, ou dada a razão determinante do negócio jurídico.” Conforme visto em parte geral, a indivisibilidade da obrigação pode ser determinada pela vontade das partes. Porém, na maioria das situações, a indivisibilidade é inerente ao próprio objeto da obrigação. Art. 259. Se, havendo dois ou mais devedores, a prestação não for divisível, cada um será obrigado pela dívida toda. Parágrafo único. O devedor, que paga a dívida, sub-roga-se no direito do credor em relação aos outros coobrigados. Art. 260. Se a pluralidade for dos credores, poderá cada um destes exigir a dívida inteira; mas o devedor ou devedores se desobrigarão, pagando: I - a todos conjuntamente; II - a um, dando este caução de ratificação dos outros credores. “Art. 261. Se um só dos credores receber a prestação por inteiro, a cada um dos outros assistirá o direito de exigir dele em dinheiro a parte que lhe caiba no total.” 7.2. REMISSÃO OU PERDÃO Art. 262. Se um dos credores remitir a dívida, a obrigação não ficará extinta para com os outros; mas estes só a poderão exigir, descontada a quota do credor remitente. Parágrafo único. O mesmo critério se observará no caso de transação, novação, compensação ou confusão. Transação = acordo. Novação = extinção de uma obrigação, para criação de outra. Compensação = compensar as dívidas. Confusão = quando a pessoa do credor e do devedor se concentrarem na mesma pessoa. 102 Aurélio Bouret 7.3. PERDA DO OBJETO E FIM DA INDIVISIBILIDADE “Art. 263. Perde a qualidade de indivisível a obrigação que se resolver em perdas e danos.” No momento em que o bem deixa de ser indivisível, cessa as regras de indivisibilidade. Por conta disso, se o devedor está obrigado a entregar um cavalo para dois credores, e o animal morre, o devedor deverá pagar a quantia de dois mil reais (valor do bem). Tendo em vista que dinheiro é divisível, aplicam-se as regras de divisibilidade. “§ 1º Se, para efeito do disposto neste artigo, houver culpa de todos os devedores, responderão todos por partes iguais.” Seguindo o exemplo apresentado acima, havendo dois devedores obrigados na entrega de um cavalo no valor de dois mil reais. Se a coisa vier a se perder por culpa dos devedores, cada um responderá pelo valor de mil reais (equivalente - valor do animal) mais a importância referente às perdas e danos. “§ 2º Se for de um só a culpa, ficarão exonerados os outros, respondendo só esse pelas perdas e danos.” Havendo culpa apenas de um dos devedores, o valor sobre o equivalente continua sendo dos dois devedores, mas o culpado na morte do cavalo deverá arcar com as perdas e danos. 8. OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS 8.1. INTRODUÇÃO Obrigações solidárias são aquelas em que concorrem mais de um credor ou mais de um devedor em uma obrigação – pluralidade de sujeitos. Solidariedade ativa é aquela em que há uma pluralidade de credores; na solidariedade passiva, tem-se uma pluralidade de devedores. Regras básicas relacionadas à solidariedade: “Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda.” Na solidariedade ativa, pressupõe vários credores, cada um possui o direito ao recebimento do todo. Na solidariedade passiva, cada devedor tem obrigação pelo pagamento do todo. A solidariedade “é um por todos”. “Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.” Exemplo de solidariedade legal: no contrato de fiança, se os fiadores renunciarem o benefício de ordem (exigência de que seja executado por primeiro os bens do devedor, para em seguida atingir os bens dos fiadores), serão considerados devedores solidários juntamente com o devedor principal. Atente-se: se uma situação hipotética for cobrada em prova envolvendo solidariedade, deve-se fazer a seguinte indagação. Essa situação enseja solidariedade legal ou não? Se considerar que NÃO, somente pode-se considerar que há solidariedade se tiver constando na situação hipotética que de fato há uma solidariedade. Haja vista que a solidariedade não se presume. Nas obrigações solidárias pouco importa se as obrigações são divisíveis ou indivisíveis, pois o credor ou os credores terão direito ao todo, e o devedor ou os devedores terão a obrigação pelo todo. 103 Aurélio Bouret “Art. 266. A obrigação solidária pode ser pura e simples para um dos co-credores ou co-devedores, e condicional, ou a prazo, ou pagável em lugar diferente, para o outro.” Embora tenha pluralidade de sujeitos, têm-se várias relações jurídicas/vínculos jurídicos de cada credor, em face de cada devedor. Sendo possível, portanto, que em face de um dos devedores subsista uma condição; em face do outro, o lugar do cumprimento da obrigação é distinto dos demais; e em relação a outro devedor, o prazo para pagamento é diferenciado etc. Não é porque existe solidariedade que todas as relações jurídicas serão estritamente iguais, permite-se que haja peculiaridades diferenciadas dentro das respectivas classes de devedores e/ou credores. 8.2. DA SOLIDARIEDADE ATIVA A solidariedade ativa consiste na pluralidade de credores. Sendo possível que haja pluralidade de sujeitos em ambos os polos da demanda. Dispositivos pertinentes: “Art. 267. Cada um dos credores solidários tem direito a exigir do devedor o cumprimento da prestação por inteiro.” Na hipótese de haver quatro credores solidários e um devedor, referente a um montante de quatro mil reais. Cada co-credor tem direito de receber e cobrar a totalidade da dívida em face do devedor. “Art. 268. Enquanto alguns dos credores solidários não demandarem o devedor comum, a qualquer daqueles poderá este pagar.” Nesse caso, enquanto nenhum dos credores ingressa com ação em face do devedor, este poderá pagar para qualquer deles. No que diz respeito à divisibilidade e indivisibilidade, a regra é diversa. E no caso de obrigação divisível, o devedor deverá pagar para cada credor sua quota parte, ao passo que na obrigação indivisível o bem é entregue a todos os credores de forma conjunta ou ocorre à entrega para um deles, mediante caução de ratificação dos demais. Havendo solidariedade ativa em face de uma obrigação indivisível, na entrega de um cavalo, por exemplo, não é necessária caução de ratificação e nem mesmo a entrega do bem de forma conjunta. Visto que existe uma prévia autorização imposta pela própria solidariedade ativa de que qualquer credor pode receber a obrigação na totalidade, seja um bem divisível, seja bem indivisível. Além do mais, se apenas um credor ingressa com ação em face do devedor, este deverá adimplir a obrigação em face daquele que ajuizou a ação, por própria disposição do artigo 268. Em virtude disso, a demanda fará coisa julgada material, ou seja, atingirão os demais credores, haja vista que o devedor se desonera da obrigação pagando a qualquer deles. São modalidades de coisa julgada material: Coisa julgada inter partes: é a regra, atinge as partes do processo. Coisa julgada ultra partes: é aquela que atinge pessoa que não seja participante do processo. Coisa julgada erga omnes: é aquela presente nos processos abstratos, que discutem, por exemplo, controle de constitucionalidade. A decisão atinge todos os jurisdicionados. 104 Aurélio Bouret A solidariedade ativa e passiva é exemplo de coisa julgada material ultra partes. Isso porque, a coisa julgada na demanda proposta por um dos credores solidários atingirá os demais. Ou seja, tem-se uma coisa julgada que atinge quem não é parte - pois todos os credores poderiam ajuizar ação conjuntamente formando litisconsórcio ativo. Nesse contexto, ter-se-á um litisconsórcio facultativo unitário, ou seja, a decisão será unânime para todos. É importante ponderar, ainda, que caso o juiz entenda necessário, poderá determinar a citação de interessados/credores, é a chamada intervenção iussu iudicis, ou seja, é aquela provocada pelo juiz a qual determina o ingresso daqueles que poderiam participar do processo em virtude de um litisconsórcio facultativo, mas como é unitária, a decisão daquele processo poderá atingir todos. “Art. 269. O pagamento feito a um dos credores solidários extingue a dívida até o montante do que foi pago.” Art. 270. Se um dos credores solidários falecer deixando herdeiros, cada um destes só terá direito a exigir e receber a quota do crédito que corresponder ao seu quinhão hereditário, salvo se a obrigação for indivisível. Por exemplo, em uma relação obrigacional composta por um devedor e quatro credores, em virtude de um montante de quatro mil reais. Havendo falecimento do credor 1, deixando como herdeiro seus dois filhos, estes terão direito de receber a quota parte que era devido ao falecido. Desse modo, se a dívida era de quatro mil reais, cada credor poderá exigir o valor total da dívida, mas os herdeiros não poderão exigir o montante integral, pois cada filho do de cujus receberá a quota do crédito que corresponde seu quinhão hereditário, que no caso seria 500 reais. Agora, se a obrigação for indivisível, tendo por objeto a entrega de um cavalo, por exemplo, os filhos do de cujus poderiam exigir o bem – em razão da invisibilidade do objeto. “Art. 271. Convertendo-se a prestação em perdas e danos, subsiste, para todos os efeitos, a solidariedade.” Em se tratando de obrigação solidária na entrega do cavalo, havendo morte do animal, todos os devedores permanecem obrigados pelo valor integral do animal. “Art. 272. O credor que tiver remitido a dívida ou recebido o pagamento responderá aos outros pela parte que lhes caiba.” Havendo o perdão da dívida por um dos credores solidários, significa que ele está perdoando a dívida inteira, de modo que o respectivo credor se obriga ao pagamento da quota parte dos demais. “Art. 273. A um dos credores solidários não pode o devedor opor as exceções pessoais oponíveis aos outros.” Exceção pessoal é defesa pessoal. O devedor poderá apresentar defesa geral e defesa pessoal. No entanto, a defesa pessoal fica atrelada ao devedor/demandado e o credor/demandante. De modo que o devedor/demandado não poderá opor exceção pessoal de outro co-devedor. Art. 274. O julgamento contrário a um dos credores solidários não atinge os demais, mas o julgamento favorável aproveita-lhes, sem prejuízo de exceção pessoal que o devedor tenha direito de invocar em relação a qualquer deles. O art. 274 do CC é um típico exemplo de coisa julgada ultra partes. 105 Aurélio Bouret 8.3. DA SOLIDARIEDADE PASSIVA Solidariedade passiva é aquela que possui pluralidade de devedores, e o credor, por sua vez, pode exigir de qualquer devedor o cumprimento da obrigação por inteiro, seja o bem divisível ou indivisível. Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto. Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores. Art. 276. Se um dos devedores solidários falecer deixando herdeiros, nenhum destes será obrigado a pagar senão a quota que corresponder ao seu quinhão hereditário, salvo se a obrigação for indivisível; mas todos reunidos serão considerados como um devedor solidário em relação aos demais devedores. Em uma relação processual em que há único credor e onze devedores solidários na quantia de onze mil reais. Havendo o falecimento de um dos devedores, deixando dois herdeiros – filhos -, o credor somente poderá exigir de cada herdeiro a quota do quinhão hereditário de cada um (mil reais), salvo se a obrigação for indivisível. Contudo, será possível ainda, que o credor ajuíze ação em face de um dos filhos do de cujus cobrando a respectiva quota. Além do mais, tendo em vista que a herança constitui um todo, o credor poderá cobrar toda a dívida do herdeiro, e este sub-roga nos direitos do credor para cobrar os demais devedores. Vale destacar que no momento do falecimento do autor da herança, através do princípio da saisine, tem-se a transmissão imediata dos ônus e dos bônus. De modo que se o de cujus tinha crédito a receber, os créditos serão transferidos para os herdeiros; em caso de dívidas, também haverá responsabilização pelo pagamento até os limites da herança. “Art. 277. O pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por ele obtida não aproveitam aos outros devedores, senão até à concorrência da quantia paga ou relevada.” Seguindo o exemplo acima, se um dos devedores solidários paga a quantia de mil reais, continua existia solidariedade em relação ao restante da obrigação. Bem como, perdoando o credor um dos devedores, continua existindo solidariedade em relação ao restante da dívida, que seria dez mil reais. “Art. 278. Qualquer cláusula, condição ou obrigação adicional, estipulada entre um dos devedores solidários e o credor, não poderá agravar a posição dos outros sem consentimento destes.” Havendo solidariedade passiva em relação aos onze mil reais. E, realizado acordo entre credor e um dos devedores, impondo-o outra obrigação, este acordo não vincula/obriga os demais devedores. “Art. 279. Impossibilitando-se a prestação por culpa de um dos devedores solidários, subsiste para todos o encargo de pagar o equivalente; mas pelas perdas e danos só responde o culpado.” Suponhamos que os devedores devem entregar um cavalo que corresponde à quantia de onze mil reais. Se o animal vier a falecer por culpa de um dos devedores, os demais devedores ficam obrigados pelo pagamento do equivalente (valor do animal). Aquele que agiu com culpa responderá também pelas perdas e danos. 106 Aurélio Bouret “Art. 280. Todos os devedores respondem pelos juros da mora, ainda que a ação tenha sido proposta somente contra um; mas o culpado responde aos outros pela obrigação acrescida.” Não havendo o cumprimento da obrigação até a data estipulada, todos os devedores respondem pelos juros da mora, ainda que a ação tenha sido proposta somente contra um dos devedores. Todavia, aquele devedor que agiu com culpa e deu causa ao acréscimo, estará obrigado ao pagamento desse acréscimo. “Art. 281. O devedor demandado pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais e as comuns a todos; não lhe aproveitando as exceções pessoais a outro co-devedor.” É por isso que o devedor que esta sendo demandado em uma ação judicial, não poderá opor exceção pessoal de outro devedor que foi coagido pelo credor, por exemplo. Art. 282. O credor pode renunciar à solidariedade em favor de um, de alguns ou de todos os devedores. (Dispositivo recorrente em provas). Parágrafo único. Se o credor exonerar da solidariedade um ou mais devedores, subsistirá a dos demais. Renunciar a solidariedade não significa perdoar a dívida. Desse modo, se o credor renunciar a solidariedade a um dos devedores, em relação aos demais, a solidariedade permanece íntegro e o credor cobrará o restante da obrigação de qualquer deles (dez mil reais). “Art. 283. O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos co-devedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-devedores.” Havendo algum devedor insolvente – aquele que não tem bens para pagamento da dívida – a quota parte que seria dele, devem ser partilhados entre os demais devedores solidários para cumprimento da obrigação. “Art. 284. No caso de rateio entre os co-devedores, contribuirão também os exonerados da solidariedade pelo credor, pela parte que na obrigação incumbia ao insolvente.” Quando o credor libera da solidariedade qualquer um dos devedores, a quota do insolvente também integrará a quota daquele que foi exonerado da solidariedade. “Art. 285. Se a dívida solidária interessar exclusivamente a um dos devedores, responderá este por toda ela para com aquele que pagar.” Havendo solidariedade entre o locatário e fiador (este somente é devedor em razão da renúncia ao benefício de ordem da fiança, por exemplo). Se este paga a dívida por inteiro, cobrará a integralidade da dívida do locatário, visto que a responsabilidade do fiador somente ocorreu em razão do não cumprimento de uma obrigação que cabia ao locatário. 9. ADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES 9.1. INTRODUÇÃO A obrigação nasce para ser adimplida, e existem três formas de adimplemento: pagamento direto – quando o devedor satisfaz direta e imediatamente o interesse do credor; pagamento indireto – quando o devedor satisfaz de forma indireta, mediata, o interesse do credor; 107 Aurélio Bouret formas especiais de adimplemento – quando o interesse do credor não é satisfeito, mas mesmo assim a obrigação é extinta pelo adimplemento. 9.2. PAGAMENTO DIRETO O pagamento direto representa a satisfação direta e imediata dos interesses do credor por parte do devedor. Ao estudar o pagamento direto precisamos analisar cinco pontos: sujeitos do pagamento; objeto do pagamento; prova do pagamento; lugar do pagamento. tempo do pagamento; 9.2.1. SUJEITOS DO PAGAMENTO 9.2.1.1. SOLVENS É aquele que irá solver a obrigação, ou seja, é quem vai pagar. Via de regra, o solvens é o devedor, mas outras pessoas também podem pagar. O art. 304 do CC diz que qualquer interessado na extinção da dívida pode pagar, usando-se, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor. Quem é o terceiro interessado na dívida? É aquela pessoa que tenha interesse patrimonial na extinção daquela dívida, como o fiador, avalista, herdeiro, etc. Havendo o pagamento pelo interessado, ele irá se sub-rogar nos direitos do credor. Há uma sub-rogação legal. O pai que paga a dívida do filho não é terceiro interessado, devendo haver interesse jurídico. Cabe ressaltar que o solvens poderá ser o terceiro não interessado. Se o terceiro não interessado fizer o pagamento em seu próprio nome, terá direito ao reembolso, não se subrogando nas posições do credor. Na verdade, terá direito apenas ao reembolso. Se pagar a dívida antes do vencimento, só terá direito ao reembolso quando houver o vencimento daquela dívida. Questiona-se: e se o terceiro não interessado fizer o pagamento em nome do devedor, e em conta desse devedor? Não existindo oposição do devedor quanto a este pagamento, que o terceiro não interessado faz em seu nome, este terceiro não interessado não terá direito a nada. Nesse caso, considera-se como se tivesse feito uma doação, já que fez em nome do devedor e não houve oposição desse devedor. Diferente é o art. 306, que diz que realizado o pagamento por terceiro não interessado, em seu próprio nome (terceiro), sem conhecimento ou havendo oposição do devedor, não existirá a obrigação de reembolso em relação a este terceiro, se o devedor provar que ele tinha meios para ilidir a ação do credor. Ex.: disser que a dívida estava prescrita, situação na qual não poderá cobrar do devedor. Por outro lado, se o devedor não prova que tinha meio para ilidir a ação do credor, aí é claro que deverá pagar ao terceiro não interessado, a despeito de ter pagado com a oposição, visto que o sujeito deveria ter de pagar de alguma forma ao credor. Porém, como o terceiro pagou, terá esse direito ao reembolso. Isso porque a lei veda o enriquecimento sem causa. O que obsta o direito ao reembolso é considerar que o devedor poderia dizer que não pagaria o credor, pois ele era devia ao devedor, razão pela qual seria compensada a dívida, ou 108 Aurélio Bouret a dívida estava prescrita, ou ainda havia confusão. Se o devedor conseguir provar que não iria pagar a dívida, o terceiro não interessado não terá direito a reembolso. O art. 307 estabelece que só terá eficácia o pagamento que importar transmissão da propriedade, quando feito por quem possa alienar o objeto em que ele consistiu. Isto é, vedase a venda a non domino, ou seja, alienação por quem não é dono. O parágrafo único diz que, se a parte der em pagamento coisa fungível que pertença a um terceiro, não será mais possível que este terceiro reclame do credor que recebeu de boa-fé a coisa fungível e que a consumiu, ainda que o solvente não tivesse o direito de aliená-la. 9.2.1.2. ACCIPIENS É quem vai receber o pagamento, ou seja, a quem se deve pagar. Quem recebe normalmente é o credor, mas o pagamento pode ser feito a um representante do credor, que tenha poderes para receber o pagamento. Caso este representante não tenha poderes, este pagamento só irá valer após uma ratificação do credor, ou ainda se o devedor provar que houve a reversão do pagamento em proveito do credor. O art. 309 do CC é válido o pagamento ao credor putativo, ou seja, aquele que parece credor, mas que não o é, desde que o credor tenha agido com boa-fé. Este dispositivo aplica a teoria da aparência. Vamos pegar um exemplo, Eduardo é locatário de um imóvel e vem fazendo pagamentos do aluguel na imobiliária X. Após um ano, o locador mudou para imobiliária Y, sem informar ao locatário. Neste caso, Eduardo continuou depositando em favor da imobiliária X. Este é credor putativo, pois o devedor fez pagamentos por meio da teoria da aparência. Segundo o art. 310, não vale o pagamento cientemente feito ao credor incapaz de dar quitação, salvo se o devedor provar que houve reversão do valor pago em favor daquele credor incapaz de dar quitação. É preciso conferir uma interpretação extensiva para esta incapacidade, não abrangendo apenas a incapacidade stricto sensu (absoluta e relativa), funcionando também como tal o credor que não tinha autorização para isso. Neste caso, o pagamento deve acontecer novamente. O art. 311 diz que deve ser autorizado para receber o pagamento quem está munido do documento representativo da quitação. Presume-se autorizado a receber o pagamento quem detém o recibo nas mãos, salvo se as circunstâncias contrariarem a presunção daí resultante. Já o art. 312 enuncia que, se o devedor pagar ao credor, apesar de já ter sido intimado da penhora feita sobre o crédito, ou sobre a impugnação feita sobre aquele crédito por uma terceira pessoa, não deve ser tido como válido o pagamento perante o terceiro. Na verdade, será considerado ineficaz, apesar de a lei falar em invalidade. Ex.: João é credor do Samer, tendo um cheque de 30 mil reais. João está devendo José, o qual promove ação de execução contra João. O cheque é penhorado, e Samer já tem ciência disso. Samer faz o pagamento da dívida em favor de João. Este pagamento é inválido, segundo a lei, em face de José. 9.2.2. DO OBJETO DO PAGAMENTO DIRETO O art. 313 diz que o objeto da prova é a prestação, e o credor poderá se recusar a receber o que não foi pactuado, ainda que esta coisa seja mais valiosa do que aquilo que foi pactuado. 109 Aurélio Bouret Além disso, se não tiver sido acordado o pagamento parceladamente, não se pode obrigar o credor a receber de forma parcelada, e nem o devedor a pagar parceladamente, salvo se o contrato tiver previsão nesse sentido. Todavia, há uma exceção legal, conforme o art. 916, o qual diz que, no prazo para embargos, reconhecendo o crédito do exequente, e comprovando o depósito de 30% do valor da execução, acrescido de custas e honorários de advogado, o executado pode requerer que lhe seja permitido pagar o restante em até 6 parcelas mensais. Trata-se de uma imposição legal de recebimento parcelado da dívida. O art. 314 enuncia que, ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou. Já o art. 315 afirma que, as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subsequentes. Trata-se de aplicação do princípio do nominalismo, o qual sofrerá temperamentos porque poderá se estar diante de uma hipótese de correção monetária. Para se evitar os efeitos da inflação, aplicam-se índices de correção monetária, sendo absolutamente válido, encontrando previsão no art. 316, o qual afirma que é lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas, e, nesse caso, tem-se uma cláusula de escala móvel ou escolamento, pois aí consegue vislumbrar a manutenção do poder aquisitivo ou do valor real da prestação. O art. 317 estabelece que, quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o valor do momento de sua execução, poderá o juiz corrigir essa desproporção, desde que haja pedido da parte, de modo a assegurar o valor real da prestação. Este dispositivo traz a revisão contratual por um fato superveniente diante de uma imprevisibilidade que resultou em onerosidade excessiva. É a denominada teoria da imprevisão. O art. 318 diz que são nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, também são nulas as convenções que prevejam a possibilidade de compensar o valor de uma prestação com a comparação entre a moeda nacional e uma moeda estrangeira. Existem exceções, casos em que serão ressalvados pela legislação, como é o caso do art. 2 do DL 857/69, que diz serem essas proibições inaplicáveis aos: contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias; contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens e serviços vendidos a crédito para o exterior; contratos de compra e venda de câmbio em geral; empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional; contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no país. 110 Aurélio Bouret 9.2.3. PROVA DO PAGAMENTO DIRETO O devedor que paga tem direito a quitação pelo credor, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada. Essa quitação deverá ter os seguintes requisitos, previstos no art. 320: valor expresso da obrigação; dívida que está sendo quitada (especificidade); identificação do devedor, ou de quem está pagando em seu lugar; tempo e lugar do pagamento; assinatura do credor, ou de seu representante. O parágrafo único do art. 320 diz que, ainda que a quitação não tenha os requisitos estabelecidos, valerá a quitação, se de seus termos ou das circunstâncias conseguir se perceber que a dívida foi paga. Deve-se obstar o enriquecimento sem causa do credor. Existem algumas regras que fazem nascer a presunção de pagamento. Esta presunção é relativa, admitindo prova em contrário: nas obrigações de trato sucessivo, a quitação da última estabelece a presunção de que foram solvidas as prestações anteriores, salvo se houver ressalva expressa da quitação; se for dada quitação ao capital, sem a reserva dos juros, presume-se que houve o pagamento dos juros também. Trata-se de aplicação do princípio da gravitação jurídica; a entrega do título ao devedor firma a presunção relativa do pagamento, mas esta presunção de quitação fica sem efeito se o credor provar em 60 dias que não houve o pagamento. Flávio Tartuce diz que tal presunção se dará apenas em relação aos títulos de crédito, pois se for outro instrumento contratual, será presumido o perdão da dívida. Presumem-se a cargo do devedor as despesas com o pagamento e a quitação. Isto é, se o contrato não tratar sobre de quem serão as despesas, correrão por conta do devedor. Agora, se houver um aumento dessas despesas por fato imputado ao credor, em relação a este acréscimo, quem deverá suportar será o credor. Se houver o pagamento por medida ou por peso, e havendo silêncio das partes, presume-se que foram adotados os critérios do lugar da execução da obrigação. Vamos pegar um exemplo, Samer compra 10 alqueires no Estado de SP, e ele mora em Goiás. Porém, qual seria a metragem do alqueire? Não foi falado. Em São Paulo, 1 alqueire é 24.000m, enquanto no Goiás 1 alqueire é 48.000m. Dessa forma, presume-se que a medida seguirá o critério do lugar da coisa. 9.2.4. DO LUGAR DO PAGAMENTO DIRETO Com relação ao lugar do pagamento, a obrigação pode ser classificada em: 111 Aurélio Bouret obrigação quesível: é a regra. O devedor fica quieto, não saindo do lugar, pois o pagamento é feito no seu domicílio. É o credor que vai buscar o pagamento. Há uma presunção relativa de que as obrigações têm pagamento quesível, salvo se o instrumento negocial, ou a natureza da própria obrigação, ou mesmo a lei, impuser uma lei em sentido contrário; obrigação portável: o local de cumprimento é o domicílio do credor, ou um terceiro lugar. Designados dois ou mais lugares para o pagamento ser feito, quem escolhe entre eles é o credor. Se o pagamento consistir na tradição de um imóvel, ou em prestações relativas à imóvel, este pagamento será feito no lugar em que se encontra o imóvel (o bem). O art. 329 estabelece que, se ocorrer um motivo grave para que se não justifique o pagamento no lugar determinado, poderá o devedor fazer o pagamento em outro lugar, sem que gere prejuízo para o credor. Motivo grave será dito pelo juiz, como enchente, greve no serviço público, etc. O art. 330 estabelece que o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir a renúncia do credor relativamente ao lugar previsto no contrato. Trata-se da consagração do princípio da boa-fé objetiva, nascendo a surrectio para o devedor e a supressio para o credor. Supressio: é uma supressão, por uma renúncia tácita de um direito pelo seu não exercício pelo passar do tempo. Surrectio: é o nascimento de um direito para a parte em razão do não exercício da outra parte. 9.2.5. DO TEMPO DO PAGAMENTO O devedor deverá pagar quando houver o vencimento da obrigação. O vencimento é o momento em que a obrigação deverá ser satisfeita. Lembre-se que, salvo disposição legal em contrário, não se ajustando o tempo do pagamento, poderá o credor exigir imediatamente. As obrigações condicionais devem ser cumpridas na data em que ocorrerá a condição, cabendo ao credor a prova de que deste teve ciência o devedor. A obrigação poderá ser: obrigação de execução instantânea: é a obrigação em que é cumprida imediatamente após a sua constituição. Ex.: compra de pão na padaria; obrigação de execução diferida: neste caso, o cumprimento se dá de uma vez só, mas ocorre no futuro, de forma diferida. Ex.: Samer compra um bem por 10 mil reais, mas ele quer 30 dias para pagar o valor; obrigação de execução continuada (ou de trato sucessivo): o cumprimento da obrigação se dará por subvenções periódicas. Ex.: comprou um bem por 10 mil reais, mas pagou em 10 meses. O art. 333 traz um rol de situações em que há o vencimento antecipado da dívida. Se a dívida deve ser paga no momento do seu vencimento, e se há um rol de vencimento antecipado, há uma antecipação do pagamento desta dívida. O vencimento antecipado da dívida poderá ocorrer, situação na qual terá o credor direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado: quando há falência do devedor, ou de concurso de credores; 112 Aurélio Bouret quando os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor; quando se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, tendo sido intimado, se negou a reforçar as garantias. Nestas situações, haverá o vencimento antecipado da dívida. Porém, e se houver uma solidariedade passiva, o devedor solidário também sofrerá o vencimento antecipado? Não. Não irá se reputar antecipado o vencimento com relação aos demais devedores solventes. Lembrando que o rol acima é meramente exemplificativo. 9.3. DAS FORMAS ESPECIAIS DE PAGAMENTO E DAS FORMAS DE PAGAMENTO INDIRETO 9.3.1. DO PAGAMENTO EM CONSIGNAÇÃO Conceitua-se como um depósito feito pelo devedor da coisa devida, a fim de que o devedor se libere de uma obrigação, podendo ocorrer na esfera judicial ou na esfera extrajudicial, neste caso o dinheiro é depositado em estabelecimento bancário oficial. O pagamento em consignação é um meio indireto de o devedor exonerar-se do liame obrigacional que vincula o devedor ao credor. Está sempre relacionada a uma obrigação de dar, não podendo estar relacionada a uma obrigação de fazer ou não fazer, visto que é necessário depositar a coisa. O art. 335 estabelece um rol de situações em que a consignação poderá acontecer: poderá haver consignação em pagamento se o credor não puder, ou, sem justa causa, recusar receber o pagamento, ou se recusar a dar quitação; poderá haver consignação em pagamento se o credor não for, nem mandar representante para receber a coisa no lugar, tempo e condição devidos (obrigação quesível); poderá haver consignação em pagamento se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado ausente, ou se o credor residir em lugar incerto ou de acesso perigoso ou difícil; poderá haver consignação em pagamento se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o objeto do pagamento; poderá haver consignação em pagamento se pender litígio sobre o objeto do pagamento. Para que a consignação em pagamento seja válida e eficaz, é necessário que o devedor observe todos os requisitos do pagamento direto, como pessoas, objeto, modo e tempo do pagamento e todos os requisitos sem os quais não é válido o pagamento. Promovida a ação de consignação em pagamento, será citado o credor para que apresente contestação. Na contestação, o credor poderá alegar: não houve recusa do pagamento; que houve justa recusa; que o depósito não foi efetuado no prazo e no lugar do pagamento; que o depósito não foi integral, situação na qual deverá indicar o valor. O art. 546 do NCPC estabelece que, julgado procedente o pedido, o juiz declarará extinta a obrigação e condenará o réu ao pagamento de custas e honorários advocatícios. É o princípio da causalidade. 113 Aurélio Bouret O CC, no art. 339, diz que, julgado procedente o depósito, o devedor já não poderá levantar o objeto da consignação, eis que o levantamento da quantia consignada só será possível se os outros devedores concordarem e os fiadores concordarem. Tanto é que o art. 340 do CC diz que o credor que, depois de contestar a lide ou aceitar o depósito, aquiescer no levantamento, perderá a preferência e a garantia que lhe competiam com respeito à coisa consignada, ficando para logo desobrigados os codevedores e fiadores que não tenham anuído. Se o credor anuiu, a despeito da concordância dos fiadores, eles “lavaram as mãos”, não respondendo mais em relação àquela dívida. O art. 342 diz que, se houver a obrigação de dar coisa incerta, é preciso que se faça a escolha (concentração). Se esta escolha couber ao credor, será ele citado para promover a concentração, sob pena de não o fazendo perder o direito de escolha, e ser depositada a coisa à escolha do devedor. O devedor de uma obrigação litigiosa se exonerará através de consignação. Supondo que o devedor pague a um dos pretendidos credores, tendo o conhecimento do litígio. Neste caso, o devedor de obrigação litigiosa assumirá o risco do pagamento. Se ele achou que João venceria e João vencer, não há problema. O problema surge se Pedro pagou a João, mas quem venceu foi José. Então deverá pagar a José, visto que assumiu o risco, a despeito do litígio que pesava sob o objeto. Se a dívida vencer, pendendo litígio entre os credores, pode qualquer dos credores requerer a consignação. Veja, via de regra, a consignação é requerida pelo devedor, mas no caso do art. 345 é o credor que pede a consignação (art. 345). Se houver prestações sucessivas e houver consignação de uma delas, o devedor pode continuar depositando as que forem se vencendo no curso do processo, sem maiores formalidades. Deverá fazer este depósito no prazo de 5 dias, contados da data do respectivo vencimento de cada uma das prestações em que forem se vencendo no curso do processo. O §1º do art. 539 do NCPC estabelece que em se tratando de obrigação em dinheiro, poderá o valor ser depositado em estabelecimento bancário, oficial onde houver, situado no lugar do pagamento, cientificando-se o credor por carta com aviso de recebimento, dando o prazo de 10 (dez) dias para a manifestação de recusa. Decorrido o prazo de 10 dias, contado do retorno do aviso de recebimento, sem a manifestação de recusa, será liberado o devedor da obrigação, ficando à disposição do credor a quantia depositada. No entanto, se houver recusa, poderá ser proposta, dentro de 1 (um) mês, a ação de consignação, promovida pelo devedor, instruindo a inicial com o comprovante do depósito e comprovante da recusa pelo credor. Não propondo a ação, o depósito ficará sem efeito, podendo o devedor levantar este depósito. 9.3.2. DA IMPUTAÇÃO DO PAGAMENTO Imputar é apontar para alguém ou para algo. Uma pessoa que está obrigada por dois ou mais débitos da mesma natureza, a um só credor, tem a pessoa o direito de indicar a qual deles oferece pagamento, se todos forem líquidos e vencidos. Ex.: Samer deve a João 50 mil reais de um cheque, outro de 50 mil reais e mais um de 50 mil reais. Cada um desses cheques venceu em 3 meses, 2 meses e 1 mês, respectivamente. Samer deposita 50 mil reais. 114 Aurélio Bouret A imputação é dizer qual é a dívida que está sendo paga. Esta escolha geralmente cabe ao devedor, sendo possível ao contrato estabelecer que esta escolha caiba ao credor. Caso o devedor não fazer qualquer declaração, transfere-se o direito de escolha ao credor. Caso não haja manifestação do credor, quem fará a imputação é a própria lei. A ordem de imputação é a seguinte: havendo capital e juros, o pagamento será feito primeiro em relação aos juros; havendo duas dívidas, será imputado o pagamento à dívida mais antiga; havendo as dívidas com mesmo vencimento, será imputada à dívida mais onerosa; não havendo dívida mais onerosa, a imputação será feita a todas as dívidas, na mesma proporção, apesar de ausência de previsão legal. Perceba que há uma ordem legal quando o devedor e o credor não exercem esse direito que a lei lhes concede. O ato de imputação é um ato unilateral, razão pela qual é consagrado como uma regra especial de pagamento. 9.3.3. DO PAGAMENTO COM SUB-ROGAÇÃO Sub-rogar-se é substituir uma coisa por outra. Coloca-se uma coisa no lugar da coisa primitiva. E esta nova coisa terá os mesmo ônus e mesmos atributos. Porém, se fizer uma substituição não de uma coisa, mas de uma pessoa por outra, tendo esta os mesmos direitos e as mesmas ações daquela pessoa antiga, haverá uma subrogação pessoal. Na sub-rogação pessoal ativa, troca-se o credor. O que se percebe é que não há extinção da obrigação, só sendo trocado o credor. Isto é, uma terceira pessoa passa a ser o credor da relação jurídica obrigacional. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: do credor que paga a dívida do devedor comum; do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel; do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte. O art. 349 afirma que a sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias que o credor primitivo tinha, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores. A sub-rogação poderá ser classificada em: sub-rogação legal; sub-rogação convencional. 9.3.3.1. SUB-ROGAÇÃO LEGAL São as hipóteses de pagamento feitas por terceiro interessado, o qual irá se sub-rogar na posição do credor. Ex.: o credor paga a dívida do devedor comum a outro credor. Samer e 115 Aurélio Bouret João são credores de José de 100 mil reais. Samer dá 50 mil reais a João, passando a ter o crédito de 100 mil reais de José. Neste caso, há sub-rogação legal. Também tem sub-rogação legal o adquirente de um imóvel hipotecado que paga ao credor hipotecário, situação na qual ficará sub-rogado na posição de credor hipotecário. Também será possível a sub-rogação do terceiro interessado que paga a dívida pela qual podia ser responsabilizado. 9.3.3.2. SUB-ROGAÇÃO CONVENCIONAL O pagamento efetivado por terceiro não interessado, via de regra, não gera subrogação, mas poderá gerar se estiver previsto em contrato. Quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus direitos, há aqui uma subrogação convencional. Quando uma terceira pessoa empresta ao devedor uma quantia necessária para que o devedor solva sua dívida, mas com a condição de que deste que está emprestando (mutuante) ficar sub-rogado nos direitos do credor satisfeito, também haverá sub-rogação convencional. Segundo o CC, a sub-rogação é convencional: quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus direitos; quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida, sob a condição expressa de ficar o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito. Nesta hipótese, aplicam-se as regras da cessão do crédito. Em relação à sub-rogação legal, o sub-rogado pode exercer todos os direitos do credor até a soma do que ele tiver desembolsado para desobrigar o devedor. Não há intuito de lucro, havendo caráter gratuito na sub-rogação legal. Veja, se o terceiro pagou 100 mil para se sub-rogar no direito de credor, só poderá cobrar do devedor 100 mil, e não 150 mil, que era a dívida originária, por exemplo. O que se discute é saber se a sub-rogação legal pode justificar que o sub-rogado cobre valor a mais, não havendo definição aos entendimentos. Flávio Tartuce entende que não pode, pois, do contrário, a sub-rogação passaria a ter a mesma feição da cessão de créditos, a qual tem natureza onerosa. Ele entende que a subrogação só pode ter natureza gratuita. Existe outra corrente que entenda que possa ter caráter oneroso, com base no princípio da autonomia privada (Maria Helena Diniz). Relativamente ao credor originário, que só em parte for reembolsado, somente ele vai ter preferência em relação ao sub-rogado parcial, na cobrança da dívida restante. Isto se os bens do devedor não forem suficientes para saldar inteiramente o que dever ao credor originário e agora dever ao sub-rogado parcial. É o teor do art. 351, o qual dispõe que o credor originário, só em parte reembolsado, terá preferência ao sub-rogado, na cobrança da dívida restante, se os bens do devedor não chegarem para saldar inteiramente o que a um e outro dever. Vamos pensar num exemplo, João é credor de José de 100 mil reais. Samer dá 50 mil reais a João, e irá se sub-rogar parcialmente. Samer poderá cobrar 50 mil reais de José nas mesmas condições que João, mas ele é credor originário. No entanto, se José só tiver 50 mil reais para pagar, ele irá pagar João, visto que ele tem preferência em relação ao sub-rogado. 116 Aurélio Bouret 9.3.4. DA DAÇÃO EM PAGAMENTO Dação em pagamento é uma forma de pagamento indireto. Trata-se da hipótese em que o credor consente em receber prestação diversa da que lhe é devida. Há um acordo privado entre os sujeitos da relação obrigacional, em que pactuam a substituição do objeto obrigacional por outro. Ex.: João deve 100 mil reais a Pedro. Pedro dá um lote para João e resta quitada a dívida. Houve aqui uma dação em pagamento. O art. 358 diz que, se for título de crédito a coisa dada em pagamento, a transferência importará em cessão. Ex.: João deve 100 mil reais a Samer, mas ele resolve dar um cheque de 100 mil que era de José. Nesse caso, se a coisa dada é título de crédito, haverá uma cessão. Não existe identidade entre cessão de crédito e dação em pagamento. Na cessão de crédito, há uma transmissão de uma posição contratual, ou seja, da obrigação. Na dação, há o pagamento indireto. Neste caso, é preciso interpretar o art. 358, no sentido de que serão aplicadas as regras da cessão de crédito por analogia. Supondo que o terceiro, devedor do título, não tenha sido notificado, é necessário notificar, visto que é necessário saber quem é o credor do título. Na cessão ele seria notificado, razão pela qual aqui na dação também o será. Se o credor for evicto da coisa recebida em pagamento, a obrigação primitiva será restabelecida e ficará sem efeito a quitação dada, ressalvados os direitos de terceiros de boafé. Ex.: João deve um cavalo a Pedro, mas este aceitou um lote de Pedro. Feita a dação. No entanto, por conta de uma ação, houve evicção lote, voltando João a dever um cavalo a Pedro. Ocorre que, no período, o cavalo havia sido vendido para um terceiro de boa-fé. Neste caso, João deverá para Pedro um valor equivalente ao cavalo. 9.3.5. DA NOVAÇÃO A dação em pagamento não se confunde com novação real. Na dação não há substituição de uma obrigação por outra. O que há é a substituição do objeto da prestação. Na novação, a dívida anterior se extingue e nasce uma nova. A novação também é uma forma de pagamento indireto, ocorrendo a substituição de uma obrigação por outra obrigação nova. O principal efeito da novação é a extinção de uma dívida primitiva, com todos os acessórios e garantias, com o surgimento de uma dívida nova. Pode ser que seja ressalvada, mantendo-se os acessórios e as garantias. Porém, nesse caso, Tartuce afirma que se houver essa previsão, significa que não houve a novação total, mas parcial, pois parte dela foi mantida. Art. 364. A novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário. Não aproveitará, contudo, ao credor ressalvar o penhor, a hipoteca ou a anticrese, se os bens dados em garantia pertencerem a terceiro que não foi parte na novação. 9.3.5.1. ELEMENTOS ESSENCIAIS DA NOVAÇÃO existência de obrigação anterior; 117 Aurélio Bouret obrigação nova surgir; intenção de novar (animus novandi). Segundo o art. 360, dá-se a novação: quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior; quando novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com o credor; quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo, ficando o devedor quite com este. Segundo o art. 361, o ânimo de novar poderá ser expresso ou tácito, mas deverá ser inequívoco. Não podem ser validadas por novação obrigações nulas ou obrigações extintas, visto que não se pode novar o que não existe, e a obrigação já extinta inexiste. Também não se pode novar obrigação que não produz efeitos jurídicos, e, portanto, obrigação nula. Por outro lado, a obrigação anulável, que produz efeitos, poderá ser confirmada pela novação, sendo, portanto, uma forma de convalidação. Se a obrigação é nula, a novação é nula. Supondo que a obrigação anterior era válida, e aí veio a novação, a qual seria nula. Nesse caso, se a novação é nula, vai prevalecer a obrigação antiga, visto que deverá retroagir. 9.3.5.2. ESPÉCIES DE NOVAÇÃO Novação objetiva (real): o devedor vai contrair com o credor uma nova dívida, mas o credor e devedor são os mesmos. Novação subjetiva (pessoal): há alteração dos sujeitos da relação, podendo ser classificada em: o Novação subjetiva ativa: há substituição do credor. Para isso, a lei traz alguns requisitos: i) consentimento do devedor perante o novo credor; ii) consinta o antigo credor; iii) consinta do novo credor. Todos precisam consentir. o Novação subjetiva passiva: há a extinção da dívida anterior por uma nova, mas com a substituição do devedor. Aqui também há uma subclassificação: novação subjetiva passiva por expromissão: em que o terceiro assume a dívida do devedor originário, substituindo o devedor originário, mas sem consentimento do devedor originário. E por isso expromissão. novação subjetiva passiva por delegação: nesse caso, é feita com consentimento do devedor originário, concordando em ser substituído. novação subjetiva mista: há alteração do objeto e a alteração dos sujeitos da relação jurídica. Ex.: Samer devia um cavalo a José. Agora, quem deve é João, e não mais um cavalo, e sim um boi. Houve uma novação subjetiva e objetiva. No caso da novação subjetiva passiva: altera-se o devedor. A obrigação anterior está extinta e se altera a obrigação com um novo devedor. Caso este novo devedor seja insolvente, o credor não terá direito de regresso contra o antigo devedor, visto que a dívida anterior está extinta. Isto, salvo se o credor demonstrar que o devedor originário obteve esta novação passiva por má-fé. Em outras palavras, se o novo devedor for insolvente, não tem o credor, que o aceitou, ação regressiva contra o primeiro, salvo se este obteve por má-fé a substituição (art. 363). 118 Aurélio Bouret Se não houver o consentimento do fiador, e for feita uma novação, estará ele exonerado, visto que da nova ele não participou. O art. 365 vai dizer que ocorrendo a novação entre o credor e um dos devedores solidários, somente sobre os bens do que contrair a nova obrigação vão subsistir as preferências e garantias do crédito novado. Isto é, os outros devedores solidários ficam, por esse fato, exonerados. Isto é, se os devedores solidários da obrigação primitiva estão exonerados, visto que aquela dívida se extinguiu. Cabe ressaltar que o STJ tem analisado o instituto da novação com as lentes do princípio da função social do contrato. Esta forma de enxergar a novação fica evidenciada pela Súmula 286 do STJ, que diz que a negociação do contrato bancário, ou a confissão da dívida, não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores. 9.3.6. DA COMPENSAÇÃO Compensação ocorre quando duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, situação na qual as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem. O art. 369 estabelece que compensação efetua-se quando houver: dívidas líquidas; dívidas vencidas; e coisas fungíveis. O art. 370 diz que, embora sejam do mesmo gênero as coisas fungíveis, elas não poderão ser compensadas, se for verificado que elas diferem na qualidade, quando a qualidade estiver especificada no contrato. Por exemplo, se apesar de serem sacas de café, um ser de tipo exportação e o outro não, haverá uma diferença de qualidade, razão pela qual não se poderá fazer compensação legal. O devedor somente pode compensar com o credor o que este lhe dever. Todavia, o fiador pode compensar sua dívida com a de seu credor ao afiançado. Está dizendo que o fiador pode, quando cobrado pelo credor, dizer que o credor deve 10 mil reais ao afiançado, devendo haver a compensação primeiramente. Os prazos de favor (prazos graciosamente concedidos pelo credor), embora consagrados pelo uso geral, não obstam a compensação. Isto é, se o devedor souber que o credor está deve 10 mil, mas está devendo a ele 20 mil, mas o devedor apenas quer cobrar os 10 mil, sem que seja compensado dos 20 mil. Nesse caso, o devedor pede prazo de favor, período no qual cobrará os 10 mil do credor. Quando o credor for dizer que o devedor ainda deve 10 para ele, não poderá alegar que o prazo de favor prolongou o vencimento, situação na qual ocorreria a prorrogação. Em outras palavras, prazos de favor não obstam a compensação. A diferença de causa nas dívidas não impede a compensação, porém existem algumas exceções a esta regra: não haverá compensação se a dívida provier de esbulho, furto ou roubo não será possível a compensação; não haverá compensação se a dívida se originar de comodato, depósito ou alimentos; 119 Aurélio Bouret não haverá compensação se a dívida for de coisa não suscetível de penhora. Portanto, a dívida impenhorável também é incompensável. O art. 375 traz a possibilidade de cláusula excludente de compensação. Isto é, diante da autonomia privada e liberdade contratual, permite-se que as partes consagrem a cláusula de exclusão à compensação. Dessa forma, não haverá compensação quando as partes, por mútuo acordo, a excluírem, ou no caso de renúncia prévia de uma delas. Veja, então, que também se admite a renúncia à compensação. O art. 376 diz que, obrigando-se por terceiro uma pessoa, não pode compensar essa dívida com a que o credor dele lhe dever. O devedor que, notificado, nada opuser à cessão que o credor faz a terceiros dos seus direitos, este devedor não pode opor ao cessionário a compensação, que antes da cessão teria podido opor ao cedente. A lei diz que, quando é feita a cessão, o cessionário receberá o crédito, passando a ser credor do cedido. Depois de cedido, e não tendo se oposto, não poderá alegar que teria à época crédito contra o cedente, pois não havia se manifestado em tempo. Cabe ressaltar que se a cessão lhe não tiver sido notificada, poderá opor ao cessionário compensação do crédito que antes tinha contra o cedente. O art. 379 diz que, se a mesma pessoa for obrigada por várias dívidas compensáveis, serão observadas, no compensá-las, as regras estabelecidas quanto à imputação do pagamento. Isto é, se há várias dívidas compensáveis, o devedor vai dizer qual é a dívida que está compensando. Caso não o faça, quem irá dizer será o próprio credor. Caso ninguém se valha dessa faculdade, quem vai decidir será a lei: havendo capital e juros, o pagamento será feito primeiro em relação aos juros; havendo duas dívidas, será imputado o pagamento à dívida mais antiga; havendo as dívidas com mesmo vencimento, será imputada à dívida mais onerosa; não havendo dívida mais onerosa, a imputação será feita a todas as dívidas, na mesma proporção, apesar de ausência de previsão legal. Por fim, não se admite a compensação em prejuízo de direito de terceiro. O devedor que se torne credor do seu credor, depois de penhorado o crédito deste, não pode opor ao exequente a compensação, de que contra o próprio credor disporia. 9.3.7. DA CONFUSÃO Confusão está presente quando há, na mesma pessoa, credor e devedor. Isso pode ocorrer tanto por ato inter vivos como por ato causa mortis. A confusão operada na pessoa do credor ou devedor solidário só extingue a obrigação até a concorrência da respectiva parte no crédito, ou na dívida, subsistindo quanto ao mais a solidariedade. Confusão ocorre quando o credor e o devedor são a mesma pessoa, situação na qual extinguiu a obrigação. No caso de causa mortis, a confusão poderá ocorrer quando o filho deve ao pai, mas, tendo aquele morrido, o filho recebeu a herança, extinguindo a dívida. 120 Aurélio Bouret No caso do credor solidário, João deve com outros 3 indivíduos 100 mil reais ao pai. João era o único herdeiro. Em relação a ele, houve a confusão. Portanto, 25 mil reais houve confusão, faltando 75 mil reais, situação na qual persistirá a solidariedade, passando João ser o credor do crédito. Cessando a confusão, para logo se restabelece, com todos os seus acessórios, a obrigação anterior. 9.3.8. DA REMISSÃO DAS DÍVIDAS A remissão é o perdão, é o direito exclusivo do credor de exonerar o devedor. O art. 385 estabelece que a remissão da dívida é um negócio jurídico bilateral, ou seja, o perdão deverá ser aceito pelo devedor, situação na qual, se aceita, extinguirá a obrigação, mas sem prejuízo de terceiro. A remissão só poderá ocorrer se não houver prejuízo a terceiros. A remissão concedida a um dos codevedores extingue a dívida na parte a ele correspondente, mas não atinge a solidariedade em relação aos demais, de modo que não possa cobrar o débito sem dedução da parte remitida. Ex.: João é credor de Pedro e mais 4, no valor de 100 mil reais. João perdoa Pedro, mas ainda será credor de 80 mil reais, mantendo a solidariedade em relação aos demais. A devolução voluntária do título da obrigação, quando por escrito particular, prova desoneração do devedor e seus coobrigados, se o credor for capaz de alienar, e o devedor capaz de adquirir. O perdão poderá ser expresso ou tácito. Atente-se que, se houver a entrega do negócio empenhado, não haverá o perdão da dívida, mas tão somente a exoneração da garantia que existia em relação àquela dívida. Ou seja, a restituição voluntária do objeto empenhado prova a renúncia do credor à garantia real, não a extinção da dívida. Não confundir renúncia com remissão, pois renúncia é gênero e remissão é espécie. Na renúncia, é possível recair sobre diversos direitos pessoais, inclusive é um ato unilateral. A remissão é perdão, ou seja, é ato bilateral, só podendo se dar em relação a direitos creditórios. 10. TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES 10.1. INTRODUÇÃO Transmitir é passar para frente. Quando há uma transmissão há uma cessão. E com isso é possível extrair um conceito importante de que é o conceito de cessão. Cessão é a transferência, a título oneroso ou gratuito, de uma posição na relação jurídica obrigacional. O direito brasileiro admite três formas de cessão: cessão do crédito; cessão do débito; cessão do contrato. 121 Aurélio Bouret 10.2. CESSÃO DE CRÉDITO A cessão de crédito pode ser conceituada como um negócio jurídico bilateral, gratuito ou oneroso, através do qual o credor transfere a outrem, totalmente ou parcialmente, a sua posição na relação obrigacional. Isto é, o credor passa para outra pessoa a posição de credor. Há um credor primitivo que cede este crédito, denominado de cedente, bem como uma pessoa que passa a ser credora, denominada cessionário. Há, ainda, o devedor, que é denominado de cedido. Com a cessão, são transferidos todos os elementos da obrigação, tanto os acessórios como as garantias, visto que a obrigação é a mesma, pois há mudança dos sujeitos que compõem a obrigação. No entanto, os acessórios poderão não ser abrangidos, caso haja disposição em contrário. Cabe ressaltar que o cessionário de crédito hipotecário tem o direito de fazer averbar a cessão no registro do imóvel. A verdade é que a cessão de crédito independe da anuência do devedor, mas ele deve ficar sabendo que houve esta cessão. O art. 286 vai dizer: o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou se não houver vedação no contrato (convenção) com o devedor. Essa cláusula proibitiva da cessão, que poderá estar prevista no contrato, não será oponível ao cessionário de boa-fé, se ela não estiver escrita no contrato (instrumento da obrigação). Em regra, a cessão tem eficácia inter partes, e não exige sequer que seja escrita, ou seja, poderá ser verbal. Porém, para ter eficácia perante terceiros, será necessário que seja formulada por um instrumento escrito, já que a cessão é negócio jurídico bilateral. Ou seja, é ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1º do art. 654. Independentemente do conhecimento da cessão pelo devedor, pode o cessionário exercer os atos conservatórios do direito cedido (art. 293). Para a cessão ser válida, é desnecessária a anuência do devedor. Porém, o art. 290 dispõe que a cessão não tem eficácia em relação ao devedor se ele não for notificado. Todavia, considera-se notificado o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita. O devedor pode opor ao cessionário (que passou a ter a condição de credor) as exceções que ele tinha em face do antigo credor ao novo credor, bem como as exceções que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente. Isso significa que quando o cedido for notificado da cessão, poderá alegar uma cessão em face do cedente. A cessão de crédito pode ser onerosa (pode envolver lucro), situação na qual o cedente ficará responsável pela existência do crédito ao tempo que cedeu (pro soluto). Sendo a título gratuito, o cedente também terá responsabilidade, caso tenha procedido de má-fé. 122 Aurélio Bouret Ex.: contrato de faturização (factoring) é exemplo de cessão de crédito onerosa. Há um cheque para receber 10 mil reais daqui a 30 dias, mas o sujeito busca a factoring para obter 9 mil reais hoje. Aqui houve uma cessão de crédito onerosa. O cedente só responderá pela existência do crédito e não pela solvência. O credor originário não responde pela solvência, mas apenas pela existência. A cessão de crédito, em regra, é pro soluto, e não pro solvendo. Todavia, é possível existir esta previsão contratual, no sentido de que a cessão é pro solvendo, ou seja, o cedente terá responsabilidade pelo pagamento do crédito. Nesse caso, a cessão será pro solvendo. Nessa hipótese, o cedente não responderá por mais do que recebeu com os seus respectivos juros, mas tem de ressarcir as despesas da cessão e as que o cessionário houver feito com a cobrança. Ex.: supondo que no contrato com a factoring, Samer tenha recebido 9 mil reais pela cessão do crédito de 10 mil reais. Daqui a 30 dias, se a factoring não receber os 10 mil reais, Samer deverá pagar os 9 mil, mais os respectivos juros durante este intervalo de tempo à factoring. Trata-se de cessão pro solvendo. O crédito, uma vez penhorado, não pode mais ser transferido pelo credor que tiver conhecimento da penhora. Todavia, o devedor que o pagar, não tendo notificação dela, fica exonerado, subsistindo somente contra o credor os direitos de terceiro. Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, ou que, no caso de mais de uma cessão notificada, paga ao cessionário que lhe apresenta, com o título de cessão, o da obrigação cedida; quando o crédito constar de escritura pública, prevalecerá a prioridade da notificação. Segundo o art. 291, ocorrendo várias cessões do mesmo crédito, prevalece a que se completar com a tradição do título do crédito cedido. 10.3. CESSÃO DE DÉBITO (ASSUNÇÃO DE DÍVIDA) Na cessão de débito, haverá um novo devedor. Trata-se de um negócio jurídico bilateral pelo qual um devedor, com anuência do credor, transfere a um terceiro a posição de sujeito passivo da relação obrigacional. O art. 299 estabelece que é facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, desde que haja o consentimento expresso do credor, ficando exonerado o devedor primitivo, salvo se, ao tempo da assunção, o devedor derivado fosse insolvente e o credor o ignorava. Veja, se ficar demonstrado que, ao tempo da assunção, o devedor que ingressava já era insolvente, e o credor desconhecia esta situação. Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que se manifeste, consentindo na assunção da dívida, situação na qual será interpretado o silencia como recusa. Ou seja, quem cala não consente. É preciso que o credor concorde com a assunção da dívida. Na assunção de dívida, há o antigo devedor (cedente), o novo devedor (cessionário) e o credor (cedido). A cessão de débito pode ser classificada de duas formas: Assunção por expromissão: uma terceira pessoa assume espontaneamente o débito da outra, e o devedor principal nem toma parte dessa situação. O devedor originário não anui. Essa assunção de dívida pode ser sub-classificada em liberatória e cumulativa: 123 Aurélio Bouret o assunção por expromissão liberatória: o devedor primitivo se exonera, ingressando um novo devedor, liberando o devedor antigo; o assunção por expromissão cumulativa: o expromitente entra como um novo devedor, mas ao lado do devedor primitivo. O devedor primitivo não é exonerado nessa circunstância. Assunção de delegação: o devedor originário participa dessa relação, transferindo débito para terceiro, com a anuência do credor. Esta é a mais comum de ocorrer. O art. 300 consagra como regra geral que devem ser consideradas extintas todas as garantias especiais dadas ao credor originário, salvo com consentimento expresso do devedor primitivo. Isso significa que as garantias especiais dada pelo credor primitivo, serão consideradas extintas, pois ele está exonerado. O novo devedor passará a responder, salvo se houver consentimento expresso do devedor primitivo, no sentido de que as garantias por ele prestadas continuam valendo. Sendo anulada a assunção de dívida, restaura-se o débito. Sendo ele restaurado, serão restauradas também as suas garantias, salvo garantias prestadas a terceiros, com exceção do caso em que terceiros conheciam o vício da assunção (art. 301). Ou seja, a assunção de dívida é negócio jurídico, podendo ser anulado. Se for anulado, terá efeitos retroativos, motivo pelo qual o devedor primitivo, que outrora estava exonerado, não mais está. Há o retorno ao status anterior, devendo voltar tudo ao normal, inclusive às garantias especiais. No que toca ao terceiro, esta garantia que tinha prestado não volta, salvo se o terceiro tivesse conhecimento desse vício anteriormente, situação na qual também voltará como garantidor. Na assunção de dívida, não poderá o novo devedor opor ao credor as exceções pessoais que competiam ao devedor primitivo. Ou seja, o novo devedor não poderá opor exceções pessoais pertencentes ao devedor primitivo. Ademias, o adquirente de imóvel hipotecado pode tomar a seu cargo o pagamento do crédito garantido. Se o credor, notificado, não impugnar em 30 dias a transferência do débito, entender-se-á dado o assentimento. 10.4. CESSÃO DE CONTRATOS A cessão contratual não está regulamentada em lei, mas ainda assim é válida. Trata-se de um negócio jurídico atípico. É a transferência da inteira posição ativa ou passiva na relação contratual. O que há é a cessão da posição contratual. Na maioria das vezes, nos contratos, as partes são mutuamente credores e devedores de obrigações. Trata-se de uma relação complexa, já que se trata de uma cessão de um complexo de direitos e obrigações. Para que haja a cessão contratual, é indispensável que haja o consentimento do outro contratante. Isso porque o contrato faz lei entre as partes, obrigando as partes que contrataram. O princípio que orienta os contratos é o princípio da relatividade. 124 Aurélio Bouret Ex.: no mandato, o sujeito faz um substabelecimento, situação na qual cede a posição de mandatário. Isto é, há uma cessão contratual. 11. INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES 11.1. INTRODUÇÃO Tem-se como inadimplemento o não cumprimento da obrigação, ou seja, devedor que não cumpriu; credor que não foi buscar; não faz o que deveria ter sido feito; fazer o que não era pra ser feito; não entregar o que era pra ser entregue; não restituir o que era pra ser restituído; inadimplemento por culpa ou sem culpa etc. O inadimplemento deveria ser uma exceção na relação obrigacional. E esse não cumprimento da obrigação pode se dar: por ato culposo do devedor: a expressão “culpa” é aplicada em sentido lato, abrangendo tanto a culpa stricto sensu - imprudência, negligência e imperícia - como o dolo; por fato não imputável ao devedor: quando o inadimplemento da obrigação ocorrer sem culpa do devedor, ou seja, ocorrência de fato invencível, fortuito ou de força maior. 11.2. INADIMPLEMENTO POR ATO CULPOSO DO DEVEDOR (ARTIGO 389 DO CC) O inadimplemento por ato culposo do devedor pode ser absoluto ou relativo. 11.2.1. INADIMPLEMENTO ABSOLUTO Quando ocorre o total descumprimento da obrigação, de modo que a obrigação não possa ser mais cumprida ou não for mais útil ao credor - artigo 389 e 402 do CC. Ex.: “A” se compromete a entregar a “B” um carro no dia de amanhã, mas hoje, “A” sofre acidente acarretando em perda total do veículo. Não há como efetivar a entregar o veículo à “B” por impropriedade do bem e consequente inadimplemento absoluto da obrigação. Ex.: Noiva contrata “A” para confeccionar seu vestido de noiva. Na data estipulada para a realização do casamento, a profissional não entrega/não faz a vestimenta. Embora possa ser entregue após o casamento, o cumprimento a posteriori não é interessante à credora, por inutilidade do bem. “Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.” “Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.” 11.2.2. INADIMPLEMENTO RELATIVO Ocorre quando há o atraso, somente, ou seja, a obrigação não é cumprida no tempo/vencimento que deveria. Porém é possível seu cumprimento posterior, como forma de minimizar os impactos do atraso. 125 Aurélio Bouret Inadimplemento relativo é também chamado de instituto da mora, que ocorrerá quando o pagamento não é feito no tempo, lugar e forma convencionados. O inadimplemento decorrente de ato culposo do devedor enseja ao credor o direito de acionar o mecanismo sancionatório do direito privado para pleitear o cumprimento forçado da obrigação ou, na impossibilidade deste se realizar, a indenização cabível – sempre que houver culpa no não cumprimento da obrigação haverá fixação de indenização. Somente quando o não cumprimento resulta de fato que lhe seja imputável se pode dizer, corretamente, que o devedor falta ao cumprimento. Ou seja, quando o devedor não cumpre a obrigação deve-se analisar o motivo pelo qual não houve esse cumprimento, pois, via de regra, o devedor não responde pelo extraordinário, visto se tratar de acontecimentos que não decorrem da vontade humana. Por exemplo, não entrega o bem na data estipulada, tendo em vista a ocorrência de enchente que ocasionou a deterioração da coisa. Qualquer que seja a prestação prometida (dar, fazer ou não fazer), o devedor está obrigado a cumpri-la, e tem o credor o direito de receber exatamente o bem, serviço ou valor estipulado na convenção, não sendo obrigado a receber coisa diversa, ainda que mais valiosa (art. 313, do CC). Como explanado, no inadimplemento relativo temos o fenômeno da mora em razão do atraso no cumprimento da obrigação. Portanto, a mora pode ser tanto do devedor quanto do credor, vejamos: 11.2.2.1. MORA DO DEVEDOR Também chamado de mora debendi; mora solvendi; mora debitoris – configura-se mora do devedor quando ocorre o descumprimento ou cumprimento imperfeito da obrigação por parte deste, por causa a ele imputável. Veja que somente haverá responsabilidade do devedor pela mora, quando houver culpa deste em relação ao não cumprimento da obrigação. É preciso dívida líquida e certa; dívida exigível e, vale lembrar que, se a obrigação tem vencimento certo, a regra é de que a mora seja ex re, é preciso viabilidade do cumprimento tardio da obrigação. Sobre viabilidade, não é justo analisar se é viável mediante arbítrio do devedor, mas deve partir de uma análise objetiva. O enunciado 162 da III Jornada de Direito Civil adverte que a análise da viabilidade ou não do cumprimento tardio da obrigação deve ser feita objetivamente e de acordo com a boa-fé. É o que preceitua o parágrafo único, do artigo 395 do CC. Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos. A mora pode ser de duas espécies: mora ex re (em razão de fato previsto na lei): configura-se quando o devedor nela incorre automaticamente, sem necessidade de qualquer ação por parte do credor, o que sucede: 126 Aurélio Bouret o quando a prestação deve realizar-se em um termo prefixado e se trata de dívida portável. O devedor incorrerá em mora ipso iure desde o momento do vencimento dies interpellat pro homine – o dia interpela pelo homem; o nos débitos derivados de um ato ilícito extracontratual, em que a mora começa no exato momento da prática do ato; o quando o devedor houver declarado por escrito que não pretende cumprir a prestação. mora ex persona: dá-se a mora ex persona em todos os demais casos. Será, então, necessária uma interpelação ou notificação por escrito para a constituição em mora. o Ex.: em um contrato de empréstimo em que “A” empresta veículo a “B”, sem que houvesse estipulação da data de devolução. Para que haja exigência da devolução do veículo, é necessário que “A” constitui “B” em mora, e assim o faz através de interpelação ou notificação. A mora do devedor gera dois efeitos básicos: A responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao credor (art. 395, do CC). “Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros de mora, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.” Durante a mora, o devedor é responsável pela integridade da coisa devida, ainda que o dano resulte de caso fortuito ou força maior (inadimplemento objetivamente imputável – perpetuatio obligationis – art. 399). Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. Em suma, o devedor não responde pelo extraordinário, via de regra. No entanto, se o devedor não cumpre a obrigação de forma voluntária por culpa ou dolo, tem-se configurado o inadimplemento absoluto ou a incidência de mora, ou seja, é o que chamamos de inadimplemento subjetivamente imputável. Por outro lado, o devedor responderá pela impossibilidade da prestação, quando ocorrer o que chamamos de inadimplemento objetivamente imputável, ou seja, quando no momento em que ocorreu o caso fortuito ou força maior o devedor estava inadimplente perante o credor, salvo se provar que o extraordinário teria acontecido de qualquer forma, ou seja, estando o bem em suas mãos ou não. 11.2.2.2. MORA DO CREDOR Também chamada de mora cedendi, mora accipiendi ou mora creditoris – professor Silvio Rodrigues diz que a mora do credor existe e a análise da culpa do credor é desnecessária – ou seja, mesmo que a culpa não esteja presente haverá responsabilidade do credor. Dessa forma, em uma obrigação quérable, por exemplo, em que o credor deve ir até o devedor para buscar um cavalo e não o faz na data estipulada. Quem responde pelo inadimplemento é o credor. Segundo o jurista Washington de Barros Monteiro, 127 Aurélio Bouret configura-se a mora do credor quando ele se recusa a receber o pagamento no tempo e lugar indicados no título constitutivo da obrigação, exigindo-o por forma diferente ou pretendendo que a obrigação se cumpra de modo diverso. Decorre ela, pois, de sua falta de cooperação com o devedor para que o adimplemento possa ser feito do modo como a lei ou a convenção estabelecer (art. 395, do CC). Constituem efeitos da mora do credor: Art. 400. A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação. 1ª parte: se o credor não recebe a coisa, durante o tempo que o devedor ficar com a coisa não responde pela conservação, salvo se agir com dolo. 2ª parte: se o devedor tiver despesa para conservar a coisa, o credor deve indenizar o devedor. 3ª parte: se houver uma obrigação a ser cumprida em determinada data, considera-se o valor do dia. Caso o pagamento não tenha sido feito no dia por culpa do credor, será considerado o valor mais benéfico ao devedor entre estas datas. 11.2.2.3. VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO A violação positiva do contrato consiste em mais uma forma de inadimplemento — ao lado de inadimplemento absoluto e inadimplemento relativo (mora) —, derivada da violação dos deveres anexos da boa-fé objetiva, deveres tais como lealdade, informação, proteção, cooperação e confiança. Na violação positiva do contrato, temos um cumprimento imperfeito da obrigação na medida em que há uma lesão à boa-fé objetiva. Em decorrência do princípio da boa-fé objetiva, há um padrão ético de comportamento que se espera de todos em sociedade, e ética impõe os chamados deveres anexos da boa-fé objetiva, deveres esses que estão presentes implicitamente em toda e qualquer relação obrigacional. São eles: dever de lealdade, informação, proteção, confiança e cooperação. Dessa forma, ainda que o devedor não tenha incorrido em inadimplemento absoluto ou relativo, caso seja violado um desses deveres, estaremos diante também de uma forma de inadimplemento. Podemos citar o exemplo da compra e venda de um imóvel em que o vendedor entrega o apartamento em perfeito estado e na data avençada. Ou seja, não houve inadimplemento absoluto nem relativo; porém, se o vendedor deixou de informar que existia no prédio um vizinho extremamente inconveniente que perturbava o sossego de quem residia no referido apartamento, estaremos diante de uma quebra do dever de informação, um inadimplemento por violação positiva do contrato. 11.3. INADIMPLEMENTO POR FATO NÃO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR O inadimplemento decorrente de fato não imputável ao devedor, mas “necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir” (art. 393, do CC), denominado caso fortuito ou força maior, configura-se o inadimplemento fortuito da obrigação. Nesse caso, o devedor não responde pelos danos causados ao credor, “se expressamente não se houver por eles responsabilizado” (art. 393, do CC). 128 Aurélio Bouret Em geral, o inadimplemento fortuito extingue a obrigação sem que haja consequente obrigação de indenizar (art. 393, do CC). Numa relação obrigacional, existe o credor e o devedor, não havendo o pagamento, entra-se no campo do inadimplemento. Quando a obrigação é descumprida por fortuito há o inadimplemento total, absoluto, sem obrigação de indenização a se pagar. Às vezes mesmo havendo o fortuito ou força maior, em algumas situações, ainda assim haverá responsabilidade civil. Nesse contexto, o inadimplemento pode ser dividido em imputável ou inimputável. Inadimplemento imputável: quando as consequências são atribuídas ao devedor. Podendo ser inadimplemento subjetivamente imputável, quando o devedor agiu com culpa ou inadimplemento objetivamente imputável quando a inexecução tenha decorrido de fato alheio e não imputável ao devedor, como o fortuito e a força maior, mas ao tempo do evento já estava em mora. Inadimplemento inimputável: é o inadimplemento cujas consequências não podem ser atribuídas ao devedor, por ausência de culpa. Quando ocorre o descumprimento dos deveres anexos de boa-fé dentro da relação contratual, tem-se o chamado adimplemento ruim, que ocorre quando a obrigação é cumprida, mas cumprida de maneira ruim ou violando os deveres anexos de boa-fé - os deveres da boa-fé observam-se a analise da lealdade, da proteção, de esclarecimento entre os contraentes. Para a teoria do substancial performance ou adimplemento substancial, os contratos que gozam que execução continuada/diferida com parcelas substancialmente adimplidas (ou seja, restando três parcelas para o término, por exemplo) e sendo a mora irrelevante, não ensejará em extinção da obrigação, podendo incidir, além da cobrança, a indenização por perdas e danos. Contudo, o STJ possui entendimento de que NÃO é possível a alegação da teoria do adimplemento substancial quando a obrigação envolver alimentos e nos contratos de financiamento regidos pelo Decreto n° 911. 11.4. CLÁUSULA PENAL E ARRAS Cláusula Penal Arras - A cláusula penal é um pacto acessório de - Arras constituem verdadeiro sinal e têm natureza pessoal, previsto nos artigos 408 a natureza de direito real – artigos 417 a 420 416 do CC. do CC. - Trata-se uma antecipação, ou seja, prognose de possíveis perdas e danos. Diante disso, é possível que as partes, de antemão, consignem no contrato a possibilidade de cláusula penal em caso de não cumprimento da obrigação. - É a possibilidade de desistência do contrato ou de confirmação da obrigação. - As arras podem ser confirmatórias ou penitenciais: a) Confirmatórias: reforçam a obrigatoriedade contratual; cumulável com - A cláusula penal embutida no contrato não perdas e danos ou execução parcial da pode ultrapassar o valor da obrigação 129 Aurélio Bouret principal. obrigação. - Segundo entendimento recente no STJ no informativo n° 627, é possível a redução de cláusula penal de ofício pelo juiz, quando excessiva. Nessa modalidade de arras, a parte dá o sinal, mas deve ser devolvido no momento em que o negócio jurídico é efetivado ou compensado. - Têm-se duas modalidades de cláusula penal: b) Penitenciais: viabiliza eventual arrependimento; não admite cumulação com a) Moratória: é fixada para o caso de perdas e danos. Servem como forma de inadimplemento relativo e admite indenização em caso de desistência da cumulação com pedido indenizatório celebração do negócio jurídico. (cláusula penal + indenização); b) Compensatória: é fixada para o caso de inadimplemento absoluto; é uma forma de antecipação das perdas e danos, mas não admite cumulação com indenização. Constatado o caráter manifestamente excessivo da cláusula penal contratada, o magistrado deverá, independentemente de requerimento do devedor, proceder à sua redução. Fundamento: CC/Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio. STJ. 4ª Turma. REsp 1.447.247-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 19/04/2018 (Info 627). Na hipótese de inexecução do contrato, revela-se inadmissível a cumulação das arras com a cláusula penal compensatória, sob pena de ofensa ao princípio do non bis in idem.Ex: João celebrou contrato de promessa de compra e venda com uma incorporadora imobiliária para aquisição de um apartamento. João comprometeuse a pagar 80 parcelas de R$ 3 mil e, em troca, receberia um apartamento. No início do contrato, João foi obrigado a pagar R$ 20 mil a título de arras. No contrato, havia uma cláusula penal compensatória prevendo que, em caso de inadimplemento por parte de João, a incorporadora poderia reter 10% das prestações que foram pagas por ele. Trata-se de cláusula penal compensatória. Suponhamos que, após pagar 30 parcelas, João tenha parado de pagar as prestações. Neste caso, João perderá apenas as arras, mas não será obrigado a pagar também a cláusula penal compensatória. Não é possível a cumulação da perda das arras com a imposição da cláusula penal compensatória. Logo, decretada a rescisão do contrato, fica a incorporadora autorizada a apenas reter o valor das arras, sem direito à cláusula penal. STJ. 3ª Turma. REsp 1.617.652-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 26/09/2017 (Info 613). Se a proporção entre a quantia paga inicialmente e o preço total ajustado evidenciar que o pagamento inicial englobava mais do que o sinal, não se pode declarar a perda integral daquela quantia inicial como se arras confirmatórias fosse, sendo legítima a redução equitativa do valor a ser retido. STJ. 3ª Turma. REsp 1.513.259-MS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 16/2/2016 (Info 577). QUESTÕES 130 Aurélio Bouret 1- (FCC – Juiz Substituto – MS/2020) O pagamento a) feito de boa-fé ao credor putativo é válido, salvo se provado depois que ele não era credor. b) deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente, sob pena de só valer depois de por ele ratificado, ou tanto quanto reverter em seu proveito. c) não vale quando cientemente feito ao credor incapaz de quitar, em nenhuma hipótese. d) autoriza-se a recebê-lo o portador da quitação, fato que origina presunção absoluta. e) feito pelo devedor ao credor, apesar de intimado da penhora feita sobre o crédito, ou da impugnação a ele oposta por terceiros, não valerá contra estes, que poderão constranger o devedor a pagar de novo, prejudicado o direito de regresso contra o credor. 2- (FCC – Juiz Substituto – MS/2020) Quanto à mora e às perdas e danos, é correto afirmar: a) A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação. b) Havendo fato ou omissão imputável ao devedor, este não incorre em mora. c) Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora a partir do ajuizamento da ação indenizatória correspondente. d) O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, salvo, em qualquer caso, se essa impossibilidade resultar de caso fortuito ou força maior. e) Salvo se a inexecução resultar de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. 3- (VUNESP – Juiz Substituto – RJ/2019) Uma dívida prescrita, o penhor oferecido por terceiro, uma dívida de jogo e a fiança representam, respectivamente, obrigação: a) com Schuld sem Haftung, com Haftung sem Schuld próprio, com Schuld sem Haftung e com Haftung sem Schuld atual. b) sem Schuld e sem Haftung, com Haftung sem Schuld próprio, com Schuld sem Haftung e com Haftung sem Schuld atual. c) com Schuld sem Haftung, com Haftung sem Schuld próprio, sem Schulde sem Haftung e com Haftung sem Schuld atual. d) com Haftung sem Schuld, com Haftung sem Schuld atual, com Schuld sem Haftung e com Haftung sem Schuld próprio. e) com Haftung sem Schuld, com Schuld sem Haftung, com Haftung sem Schuld atual, e com Haftung sem Schuld próprio. 4- (VUNESP – Juiz de Direito Substituto – RO/2019) Tício cedeu onerosamente um crédito que tinha contra Mélvio para Caio, constante de um instrumento particular de confissão de dívida. No instrumento de cessão, constou que o cedente não se responsabiliza pela solvência do devedor, mas era omisso acerca da responsabilidade pela existência do crédito. Apesar de notificado da cessão do crédito, Mélvio não se manifestou. No dia do vencimento da dívida, entretanto, Mélvio alegou que o crédito foi obtido mediante coação realizada por Tício. A suposta coação ocorreu há exatamente três anos e um dia. Acerca do caso hipotético, pode-se corretamente afirmar que 131 Aurélio Bouret a) caso provada a coação, não responderá Tício a Caio pelo valor devido, tendo em vista que somente se responsabilizaria se houvesse previsão expressa no termo de cessão. b) caso provada a coação, responderá Tício a Caio pelo valor devido, mesmo não havendo previsão expressa no termo de cessão. c) somente seria oponível a Caio a alegação de coação se este soubesse ou devesse saber acerca da existência do vício do consentimento. d) a alegação da ocorrência de coação não é oponível a Caio, tendo em vista que Mélvio deveria ter, imediatamente após tomar conhecimento da cessão do crédito, alegado a existência do vício de consentimento. e) decorreu o prazo decadencial para que Mélvio pudesse pleitear a desconstituição do crédito em razão do vício de consentimento. 5- (FCC – Juiz Substituto – AL/2019) Acerca das preferências e privilégios creditórios, segundo o Código Civil, considere as seguintes proposições: I. O credor por benfeitorias necessárias tem privilégio geral sobre a coisa beneficiada. II. O crédito real prefere ao crédito pessoal privilegiado. III. O crédito por despesas com a doença de que faleceu o devedor goza de privilégio especial. IV. Os credores hipotecários conservam seu direito sobre o valor da indenização mesmo se a coisa hipotecada for desapropriada. V. Direitos reais não são títulos legais de preferência, embora confiram prioridade sobre o produto da alienação. É correto o que se afirma APENAS em a) I e II. b) I e III. c) II e IV. d) III e V. e) IV e V. 6- (FCC – Juiz Substituto – AL/2019) Por conta de mútuo oneroso, João devia a Teresa a importância de cem mil reais. No intuito de ajudar o amigo em dificuldade, Leopoldo assumiu para si a obrigação de João, para o que houve expressa anuência de Teresa. Nesse caso, a) João ficará exonerado da dívida, salvo se Leopoldo, ao tempo da assunção, fosse insolvente e Teresa ignorasse essa sua condição. b) Leopoldo poderá opor a Teresa as exceções pessoais que competiam a João. c) se a substituição do devedor vier a ser anulada, restaura-se o débito de João, sem nenhuma garantia, independentemente de quem a tenha prestado. d) preservam-se as garantias especiais originariamente dadas a Teresa por João, independentemente do assentimento dele. e) João responderá apenas pela metade da dívida, ainda que Leopoldo não cumpra a obrigação assumida perante Teresa. 7- (FCC– Promotor de Justiça Substituto– MT/2019) No tocante ao pagamento, a) não é lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas, pela insegurança patrimonial causada ao devedor. 132 Aurélio Bouret b) o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, salvo se mais valiosa, pois nesse caso faltará interesse econômico à rejeição. c) quando feito de boa-fé ao credor putativo é válido, salvo se provado depois que não era credor. d) em qualquer hipótese considera-se autorizado a receber o pagamento o portador da quitação, pela presunção legal absoluta daí decorrente. e) o terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a reembolsar-se do que pagar, mas não se sub-roga nos direitos do credor; se pagar antes de vencida a dívida, só terá direito ao reembolso no vencimento. 8- (FCC – Promotor de Justiça Substituto – MT/2019) Em relação às obrigações de dar coisa certa, é correto afirmar que, a) como regra geral, a obrigação de dar coisa certa não abrange os acessórios, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso. b) se a obrigação for de restituir coisa certa, e esta, sem culpa do devedor, se perder antes da tradição, sofrerá o credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até o dia da perda. c) sendo culpado o devedor, poderá o credor exigir o equivalente, ou aceitar a coisa no estado em que se acha, nesses casos sem direito a reclamar perdas e danos. d) até a tradição, pertence a coisa ao credor, com seus acréscimos, pelos quais poderá exigir aumento do preço, com ou sem anuência do devedor. e) deteriorada a coisa, sem culpa do devedor, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, nesse caso sem abatimento do preço pela referida ausência de culpa do devedor. 9- (MPE/SP – Promotor de Justiça Substituto – SP/2019) Gabriel Vieira, Paulo Martins, Carlos Andrade e Marcelo Pereira emprestaram de Jorge Manuel a quantia de R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) para a compra de um carro esportivo. As partes estabeleceram que o referido valor seria dividido em quatro parcelas iguais e sucessivas bem como que todos os devedores ficariam obrigados pelo valor integral da dívida. Diante dessa situação, assinale a alternativa correta. a) O pagamento parcial feito por Carlos e a remissão dele obtida pelo credor Jorge Manuel não aproveitam aos outros devedores, senão até a concorrência da quantia paga ou relevada. b) Se houver atraso injustificado no cumprimento da obrigação por culpa de Paulo, somente este responderá perante Jorge Manuel pelos juros da mora decorrentes do atraso. c) Se Gabriel falecer deixando herdeiros, o credor Jorge Manuel poderá cobrar de qualquer um dos herdeiros a integralidade da dívida. d) A propositura de ação pelo credor Jorge Manuel contra Paulo e Carlos importará na renúncia da solidariedade em relação a Gabriel e Marcelo. e) Sendo Paulo demandado judicialmente pelo total da dívida, pode ele opor ao credor Jorge Manuel as exceções que lhe forem pessoais, as comuns a todos, além das exceções pessoais dos demais codevedores, por se tratar de obrigação solidária. 10- (MPE/SC – Promotor de Justiça – Matutina – SC/2019) Nos termos do Código Civil, quanto ao lugar do pagamento, efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes 133 Aurélio Bouret convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias. Designados dois ou mais lugares, cabe ao devedor escolher entre eles. ( ) Certo ( ) Errado 11- (CESPE – Defensor Público – DF/2019) Tendo como referência as disposições do Código Civil a respeito de sucessão provisória, perdas e danos e venda com reserva de domínio, julgue o item subsecutivo. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, devem compreender as custas e os honorários advocatícios e, além da atualização monetária, os juros de mora a partir do descumprimento contratual. ( ) Certo ( ) Errado 12- (CESPE – Juiz Substituto – SC/2019) A multa estipulada em contrato que tenha por objeto evitar o inadimplemento da obrigação principal é denominada a) multa penitencial. b) cláusula penal. c) perdas e danos. d) arras penitenciais. e) multa pura e simples. 13- (CESPE – Juiz Substituto – PR/2019) De acordo com o Código Civil, nas consignações em pagamento, o ato de depósito efetuado pelo devedor faz cessar a) os riscos, mas os juros da dívida continuam a correr até a declaração de aceitação do credor. b) os riscos e os juros da dívida, podendo o devedor requerer o levantamento do depósito mesmo após a aceitação do credor. c) os juros da dívida e impede o levantamento do valor depositado pelo devedor até que seja aceito ou impugnado pelo credor. d) os riscos e os juros da dívida; uma vez declarada a aceitação pelo credor, o depósito não mais pode ser levantado pelo devedor. 14- (CESPE – Promotor de Justiça Substituto – PI/2019) Acerca do conceito, das formas e de consequências das obrigações, é correto afirmar que a) a lei é uma fonte de obrigações, porque estabelece o dever de cada indivíduo em função de seu comportamento, o que não é viável pela vontade humana ou manifestação volitiva. b) a responsabilidade objetiva cria obrigações que são verificadas independentemente da configuração da ilicitude ou licitude da conduta do agente, bastando, para isso, verificar o nexo causal entre a ação do ofensor e o dano. c) o credor, em caso de obrigações por coisa certa, na impossibilidade de cumprimento do acordado, poderá ser compelido a receber outra coisa desde que mais valiosa que a inicialmente pactuada. d) a obrigação que tenha por objeto prestação divisível poderá ser cumprida de forma parcial, ainda que não tenha sido assim convencionado anteriormente pelas partes. 134 Aurélio Bouret e) o comportamento desejado, em situação de obrigações de fazer, deverá ser desempenhado pelo próprio devedor, sendo vedada a substituição do ato por terceiros, mesmo que isso não gere nenhum prejuízo ao credor. 15- (MPE-PR – Promotor Substituto – PR/2019) Sobre pagamento, assinale a alternativa correta: a) O terceiro não interessado que paga a dívida em seu próprio nome se sub-roga nos direitos do credor. b) O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é sempre inválido. c) A entrega do título ao devedor firma a presunção do pagamento. d) O credor é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, se ela for mais valiosa. e) É ilícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas. 16- (FCC – Defensor Público – MA/2018) Lucas e Bruno realizaram um contrato de trato sucessivo em que se estampava uma obrigação portável. Entretanto, reiteradamente, o pagamento era feito de forma diversa da que fora pactuada, sem que os envolvidos apresentassem objeção. Neste caso, os pagamentos realizados são: a) inválidos, porque realizado de forma diversa daquela constante do instrumento da avença, e o credor poderá exigir que o pagamento passe a ser realizado da forma constante do instrumento da avença, uma vez que não há fundamento para se presumir a renúncia ao previsto no contrato nessas circunstâncias. b) válidos, e o credor não poderá exigir que o pagamento passe a ser realizado da forma constante do instrumento da avença, uma vez que se presume que o credor renunciou ao previsto no contrato. c) inválidos, porque realizado de forma diversa daquela constante do instrumento da avença, mas o credor não poderá exigir que o pagamento passe a ser realizado da forma constante do instrumento da avença, uma vez que se presume que o credor renunciou ao previsto no contrato. d) válidos, mas o credor poderá exigir que o pagamento passe a ser realizado da forma constante do instrumento da avença, uma vez que não há fundamento para se presumir a renúncia ao previsto no contrato nessas circunstâncias. e) válidos, e o credor não poderá exigir que o pagamento passe a ser realizado da forma constante do instrumento da avença, uma vez que, apesar de não existir fundamento para a renúncia, é caso de duty to mitigate the loss. 17- (FCC – Defensor Público – MA/2018) No direito das obrigações, a novação a) exige a inequívoca intenção de novar, mas ela pode ser expressa ou tácita. b) somente se configura caso se refira a todos os elementos da obrigação anterior, pois inexiste novação parcial. c) é presumida diante da modificação unilateral da forma de cumprimento da obrigação originalmente estatuída. d) pode ser utilizada licitamente como meio de validar obrigações nulas ou extintas. e) da obrigação principal não tem reflexos sobre as obrigações acessórias, tal como a fiança. 18- (VUNESP – Juiz Substituto – SP/2018) A solidariedade pode ser ativa ou passiva, mas não se identifica com a indivisibilidade, pois, 135 Aurélio Bouret a) nesta, a fim de que os devedores se exonerem para com todos os credores, exige-se o pagamento conjunto ou mediante caução, enquanto naquela não se exige tal cautela; a obrigação indivisível, quando se resolver em perdas e danos, torna-se divisível, enquanto a obrigação solidária conserva sua natureza; a remissão de dívida não extingue a obrigação indivisível para com os outros credores, entretanto, extingue-a a solidariedade até o montante do que foi pago, e pode a obrigação ser solidária e divisível ou indivisível e não solidária. b) nesta, a fim de que os devedores se exonerem para com todos os credores, exige-se o pagamento conjunto ou mediante caução, enquanto naquela não se exige tal cautela; a obrigação indivisível, quando se resolver em perdas e danos, torna-se divisível, enquanto a obrigação solidária conserva sua natureza; a remissão de dívida não extingue a obrigação indivisível para com os outros credores, entretanto, extingue-a a solidariedade, até o montante do que foi pago, não podendo, porém, a obrigação ser solidária e divisível ou indivisível e não solidária. c) naquela, para que os devedores se exonerem com todos os credores, exige-se o pagamento conjunto ou mediante caução, enquanto nesta não se exige tal cautela; a obrigação solidária, quando se resolver em perdas e danos, torna-se divisível, enquanto a obrigação indivisível conservará sua natureza; a remissão de dívida não extingue a obrigação solidária para com os outros credores, entretanto, extingue-a a obrigação indivisível, não podendo a obrigação ser solidária e divisível ou não solidária e indivisível. d) naquela, para que os devedores se exonerem com todos os credores, exige-se o pagamento conjunto ou mediante caução, enquanto nesta não se exige tal cautela; a obrigação solidária, quando se resolver em perdas e danos, torna-se divisível, enquanto a obrigação indivisível conservará sua natureza; a remissão de dívida não extingue a obrigação solidária para com os outros credores, entretanto, extingue-a a obrigação indivisível, e pode a obrigação ser indivisível e não solidária ou divisível e solidária. 19- (VUNESP – Juiz de Direito Substituto – RS/2018) João emprestou a José, Joaquim e Manuel o valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais); foi previsto no instrumento contratual a solidariedade passiva. Manuel faleceu, deixando dois herdeiros, Paulo e André. É possível afirmar que João poderá a) cobrar de Paulo e André, reunidos, somente até o valor da parte relativa a Manuel, ou seja, R$ 100.000,00 (cem mil reais), tendo em vista que o falecimento de um dos devedores extingue a solidariedade em relação aos herdeiros do falecido. b) cobrar a totalidade da dívida somente se acionar conjuntamente todos os devedores, tendo em vista que o falecimento de um dos devedores solidários ocasiona a extinção da solidariedade em relação a toda a obrigação. c) cobrar de Paulo e André a totalidade da dívida, tendo em vista que ambos, reunidos, são considerados como um devedor solidário em relação aos demais devedores; porém, isoladamente, somente podem ser demandados pelo valor correspondente ao seu quinhão hereditário. d) cobrar o valor da totalidade da dívida de José, Joaquim, Paulo ou André, isolada ou conjuntamente, tendo em vista que, após o falecimento de Manuel, resultou numa obrigação solidária passiva com 4 (quatro) devedores. e) cobrar de Paulo ou André, isoladamente, a importância de R$ 100.000,00 (cem mil reais) tendo em vista que o quinhão hereditário de Manuel é uma prestação indivisível em relação aos herdeiros. 136 Aurélio Bouret 20- (MPE/MS – Promotor de Justiça Substituto – MS/2018) Considere como Verdadeiras (V) ou Falsas (F) as proposições a seguir: I. Quanto aos bens reciprocamente considerados, podemos afirmar que a pertença é um acessório sobre o qual não incide o princípio da gravitação jurídica. II. Na hipótese da inexecução de contrato, não é possível a cumulação da perda das arras com a imposição da cláusula penal compensatória, sob pena de ofensa ao princípio do non bis in idem. III. É imprescritível a ação de investigação de paternidade e a de petição de herança, por abordar direito fundamental, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal. IV. Os juros moratórios fluem do evento danoso tão somente nos casos de responsabilidade aquiliana. V. A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide a partir da citação válida. Assinale a alternativa correta da sequência: a) V, V, F, F, V b) V, F, V, V, V. c) F, V, F, F, F. d) F, F, V, V, V. e) V, V, F, V, F. 21- (FCC – Defensor Público – Reaplicação – AM/2018) No tocante ao adimplemento e extinção das obrigações, considere as afirmações a seguir: I. Nos débitos, cuja quitação consista na devolução do título, perdido este, poderá o devedor exigir, retendo o pagamento, declaração do credor que inutilize o título desaparecido. II. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal, mas não contra os fiadores, por se tratar a fiança de contrato acessório e benéfico. III. Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros vencidos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar a quitação por conta do capital; essa regra não se aplica às hipóteses de compensação tributária. IV. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas ou não, mas desde que fungíveis entre si. V. Salvo as obrigações simplesmente anuláveis, não podem ser objeto de novação obrigações nulas ou extintas. Está correto o que se afirma APENAS em a) II, III, IV e V. b) I, II, III e IV. c) III, IV e V. d) I, III e V. e) I, II e IV. GABARITO 1. B 137 Aurélio Bouret 2. A 3. A 4. B 5. C 6. A 7. E 8. B 9. A 10. Errado 11. Errado 12. B 13. D 14. B 15. C 16. B 17. A 18. A 19. C 20. E 21. D 138 Aurélio Bouret CAPÍTULO 4 — DIREITO DOS CONTRATOS: TEORIA GERAL DOS CONTRATOS 1. PRINCÍPIOS CONTRATUAIS 1.1. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS CONTRATOS Previsto a partir do artigo 421, do Código Civil, contratos é a mais comum e mais importante fonte de obrigação ao lado das declarações unilaterais de vontade (testamento) e os atos ilícitos (responsabilidade civil). O contrato constitui uma das principais formas de movimentação da economia, sendo, portanto, o responsável pela circulação de riquezas. Tudo que fazemos gira em torno de relações contratuais, por exemplo, se você compra um livro da editora “X”, tem-se um contrato; se você recebe sinal de TV a cabo, há uma relação contratual. Há quem diga, ainda, que na seara do direito de família, o casamento é espécie contratual. Notadamente, nesta oportunidade, estudaremos sobre um ato jurídico lícito, ou seja, a vontade humana prevista na elaboração do contrato está direcionada para as consequências do ato. Por exemplo, se “A” celebra contrato de compra e venda de um celular com “B”, o contrato é assinado por ambas às partes. Contudo, faz-se necessário a seguinte indagação: a vontade de vender o celular é exteriorizada por meio da assinatura do contrato? Não, a vontade de “A” está voltada para as consequências, ou seja, a entrega do celular e o recebimento do dinheiro. Dessa forma, tem-se como contrato, espécie de negócio jurídico, que depende, para sua formação, da participação de pelo menos duas vontades, sendo, portanto, negócios jurídicos bilaterais (manifestação de duas vontades) ou plurilaterais (manifestação de mais de duas vontades). Logo, levando-se em consideração a classificação de negócio jurídico, todos os contratos são negócios jurídicos bilaterais, porém, admite-se negócio jurídico unilateral. Negócio jurídico bilateral é aquele que está direcionado a produção de vantagens, como no contrato de doação pura, que é unilateral no que diz respeito à vantagem, mas com relação à manifestação de vontade, é bilateral. Isso porque o doador manifesta-se a vontade de doar e o donatário a vontade de receber, com a prevalência do silêncio em algumas situações (art. 539 do CC). Em resumo: Quando se fala em contrato, tem-se um negócio jurídico bilateral ou plurilateral, não existe contrato formalizado com uma única manifestação de vontade, pois, neste caso, estaremos diante de ato unilateral. Diante disso, sempre que na classificação de contratos houver unilateralidade, estará relacionada à produção de vantagens. Segundos os ensinamentos do professor Clóvis Beviláqua: “contrato é acordo de vontades para o fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir relações jurídicas”. A autonomia da vontade é um princípio clássico do direito contratual, tendo em vista que a elaboração do contrato ocorre por meio da manifestação de vontade dos contratantes. Consequentemente, o contrato de aperfeiçoa, pura e simplesmente, pela manifestação de vontade, não há maiores formalidades. Salienta-se ainda que, anteriormente, tínhamos a autonomia da vontade como um princípio absoluto, o que não ocorre nos dias atuais. O anterior Código Civil (1.916) era um sistema extremamente preocupado com questões patrimoniais, ou seja, buscava proteger tão somente o patrimônio dos sujeitos. Havia figuras específicas neste código, por exemplo: 139 Aurélio Bouret (i) o homem que tomava as decisões nas relações familiares - o homem fixava domicílio conjugal; ele que autoriza a esposa a trabalhar; o salário da esposa era regido pelo homem, bem como, poderia ser retido por ele; o homem detinha o pátrio poder sob os filhos; (ii) o testador nas relações sucessórias, poderia dispor livremente e da forma que quisesse os seus bens; (iii) os contratantes poderiam contratar da forma que melhor lhe convier; sobre o objeto que quisesse; estipulavam as cláusulas contratuais; total ausência de aplicação da teoria da imprevisão e aplicação do princípio pacta sunt servanda – o contrato faz lei entre as partes; (iv) os proprietários poderiam utilizar a propriedade da maneira que pretendia. 1.2. FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS Nesta seara, verificam-se alguns princípios basilares que regem o direito civil contemporâneo, também chamado de “pedras de toque” do direito civil moderno, como: princípio da socialidade, princípio da eticidade e princípio da operabilidade, concretude ou simplicidade. O princípio da função social dos contratos decorre do princípio da socialidade. Isto é, continua-se presente a autonomia da vontade, mas, limitado pela “ética, boa-fé, probidade”. É importante ponderar, que as expressões alhures mencionadas, encontra-se positivado no Código Civil, em seu artigo 422, que diz: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Ademais, informa o princípio da operabilidade, concreto ou simplicidade que o direito deve ser concretizado. Assim, para não engessar o direito, o legislador insere no ordenamento jurídico cláusulas/normas gerais, conceitos indeterminados, vagos ou abstratos, a serem interpretados no caso concreto. Tem-se, portanto, como função social dos contratos, transmitir um sentido social. Em outras palavras, “é a retirada do sentido egoísta enraizado desde o CC/16, para algo extremamente preocupado com a coletividade”. Ou seja, o princípio da socialidade coloca as avenças em um plano transindividual. Nesse sentido, dispõe o artigo 421, do CC: “Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)” A expressão “função social” é vaga, ou seja, trata-se de um conceito aberto, desse modo, deve-se realizar uma interpretação do que venha a ser função social no caso concreto. É por isso que é vedada a utilização do contrato como forma de “esmagamento social”. Por exemplo, não é permitido em contrato de financiamento com instituição bancária, cláusulas que transcendem os limites do egoísmo, ou seja, que rompe a função social do contrato e as bases do diploma civilista, com utilização autoritária e exacerbada para satisfação da vontade das partes. Com o advento do CC/2002 e segundo os ensinamentos de Judith Martins, atualmente, vive-se a era da autonomia da vontade solidária, ou seja, os contratantes continuam tendo autonomia da vontade, de modo que podem contratar com quem quiser; o objeto do contrato é escolhido pelas partes; contratam quando querem e da forma que desejam, contudo, devese observância a função social dos contratos. Há uma grande probabilidade de ser cobrada em provas subjetivas a seguinte indagação: Discorra acerca da função social do contrato e a autonomia da vontade contratual 140 Aurélio Bouret Conclui-se, portanto, que a autonomia da vontade sempre esteve presente do campo do direito civil, ao passo que se o sujeito não pode manifestar sua vontade, considera-se incapaz. Com efeito, enquanto a autonomia da vontade perante o sistema civilista revogado era absoluta, hoje, continua-se coexistindo essa autonomia, mas com algumas limitações, o que não descaracteriza o regime privado, mas aproxima-se com a preocupação com o coletivo, inerente ao direito público. Notadamente, nós tínhamos uma relação entre o direito público e direito privado marcada por uma verdadeira dicotomia, ou seja, um não tinha relação com o outro. O direito público era pensado para reger as relações de direito público, ou seja, do Estado. Por sua vez, o direito privado, para reger as relações privadas, dos particulares. Tal dicotomia refere-se à chamada summa divisio, e podemos citar como exemplo, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas. Em decorrência da função social do contrato, importante se faz algumas ponderações: o contrato deve ser concluído em benefício dos contratantes sem conflito com o interesse público; o contrato não pode ser usado como instrumento de atividades abusivas, causando dano à parte contrária ou terceiros; complementa a aplicação da boa-fé, pois, caso contrário, não se fala em preocupação com o coletivo; questão de ordem pública, ou seja, verificando o magistrado que houve violação a função social do contrato, ele poderá reconhecê-las de ofício. Tem-se como exemplo, a boa-fé, função social do contrato, interpretação de cláusulas gerais, etc.; consoante às lições do professor Caio Mario: “A autonomia da vontade, à luz da função social, somente sofrerá restrição quando em confronto com interesses sociais. Assim, é fonte de equilíbrio social”. 2. PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL São princípios clássicos dos contratos: autonomia da vontade, relatividade dos contratos, obrigatoriedade dos contratos dentre outros. Nessa linha, tem-se, ainda, uma principiologia contemporânea, consubstanciada a luz do direito civil constitucionalizado, de modo que a interpretação do direito privado deva ser realizada conforme regras e ditames da Constituição Federal. 2.1. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE O princípio da autonomia da vontade nos conduz a uma liberdade contratual, de modo que a pessoa é livre para contratar; estipular cláusulas contratuais; escolher com quem irá contratar; a escolha do objeto contratual. Hodiernamente, tem-se uma autonomia da vontade que não é absoluta, ou seja, comporta algumas limitações, e estas, por sua vez, podem ser visualizadas por meio da função social dos contratos e de cláusulas gerais, como é o caso da boa-fé objetiva. Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019) 141 Aurélio Bouret Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)” 142 Aurélio Bouret 2.1.1. ENUNCIADOS DA JORNADA DE DIREITO CIVIL Enunciado 21: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.” Tem-se como exemplo de terceiro atuando na relação contratual, na estipulação em favor de terceiro. Enunciado 22: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.” Dessa forma, sempre que houver a possibilidade de desfazimento do contrato, pela aplicabilidade da teoria da imprevisão, por exemplo, deve-se verificar a possibilidade de conservação do contrato antes do seu desfazimento. A conservação do contrato ocorre justamente em razão da função social do contrato. Enunciado 23: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana. Enunciado 166: “A frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil.” Enunciado 167: Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos. Teoria geral dos contratos assentada na boa-fé objetiva. Enunciado 360: “O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes.” Muito embora a função social do contrato seja vista com uma preocupação com a coletividade, a função social em sentido stricto sensu, está intimamente ligada à própria essência contratual do que temos atualmente. Ex.: ser ético no contrato, ter boa-fé – ou seja, a função social é aplicada no que diz respeito à intimidade dos contratantes. Enunciado 361: “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.” O entendimento sumular 302 do STJ prevê uma forma de descumprimento da função social do contrato e limita a autonomia da vontade, in verbis: “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita o tempo de internação hospitalar do segurado." 2.2. PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA ORDEM PÚBLICA A liberdade de contratar pode gerar desequilíbrio e exploração econômica dos mais fracos, principalmente, em setores mais sensíveis, onde há uma fiscalização do estado nos 143 Aurélio Bouret contratos privados que tenham uma atuação maior no direito público – coletividade - do que no direito privado, é o que chamamos de dirigismo contratual. Por exemplo, os contratos de telecomunicações, de seguros, de sistema financeiro, etc. Acerca do seguro de vida, entendeu o STJ quando da edição do Informativo 594: Não é devida a indenização securitária decorrente de contrato de seguro de automóvel quando o causador do sinistro – preposto da empresa segurada – estiver em estado de embriaguez, salvo se o segurado demonstrar que o infortúnio ocorreria independentemente dessa circunstância. STJ. 3ª Turma. REsp 1.485.717SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 22/11/2016 (Info 594). Nesse trilhar, prevê o artigo 2035, parágrafo único, do Código Civil. Artigo 2035, parágrafo único: Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. O dispositivo acima assinalado é bastante estudado quando falamos em LINDB, haja vista que uma lei nova, quando entra no ordenamento jurídico, é aplicada imediatamente, inclusive em casos pendentes. Porquanto, com a vigência do CC/2002, houve a aplicação imediata das novas regras civis assentados sobre os novos princípios, aos contratos que se encontravam em andamento, ou seja, aqueles de trato sucessivo. Dessa forma, o dirigismo contratual decorre justamente da preocupação com a função social do contrato e a dignidade da pessoa humana no âmbito contratual. Embora no dirigismo contratual tenha a atuação firme e efetiva do estado na fiscalização de contratos privados, alguns doutrinadores, sobretudo, defendem que o dirigismo contratual é o mesmo que publicização do direito privado, o que é equivocado. Pois, em verdade, dirigismo contratual trata-se do princípio da supremacia da ordem pública no âmbito dos contratos e, por outro lado, publicização do direito civil estaria intrinsecamente ligado a uma constitucionalização do diploma civilista, o que é muito mais amplo. 2.3. PRINCÍPIO DO CONSENSUALISMO Pelo princípio do consensualismo, os contratos se formam pela manifestação da vontade e, via de regra, a forma é livre, conforme mencionado quando do estudo dos elementos de existência do negócio jurídico – agente, vontade, objeto e forma. Forma, portanto, é a exteriorização da vontade, e a lei não impõe forma específica, no entanto, quando a lei exigir forma ou solenidade específica, deve ser compulsoriamente observada, pois, caso contrário, o contrato será nulo - conforme alusão ao artigo 166, do Código Civil. Tem-se como exemplo do princípio em comento: quando “A” pergunta a “B” se este deseja comprar um celular, e este diz que sim, o contrato está formado e pode-se exigir o adimplemento contratual. Mesmo que o bem ainda esteja com “A”, isso porque, nesse contrato, a lei não impõe a tradição (entrega do bem). Ademais, como mencionado, para formar um contrato não se faz necessário a tradição. Porém, o direito real só se transmite com a observância dos artigos 1226 e 1227 do CC, ou seja, se o bem for móvel, será com a tradição (entrega), sendo o bem imóvel, a transmissão se dará com o registro ou tradição solene. 144 Aurélio Bouret Desse modo, se houver a celebração de um contrato com determinada pessoa cujo objeto é um bem móvel, e não ocorre à entrega do bem, a pessoa que comprou e pagou pelo que foi pactuado, em nenhum momento foi proprietário. Agora, se o alienante vende e transfere esse mesmo bem a um terceiro, o bem será do terceiro, porque houve a tradição. Nesse contexto, o sujeito que realizou o pagamento e não lhe foi entregue o bem, NÃO poderá pleitear ação reivindicatória, tendo em vista que este nunca foi proprietário. Todavia, ante a formalização do contrato que não foi adimplido, o sujeito terá duas opções: (i) exigir o adimplemento contratual, se a obrigação for incerta ou; (ii) desfazimento do contrato (devolução do montante + perdas e danos). Importante: não confundir contratos que estabelecem obrigações com direitos reais. Via de regra, os contratos são consensuais. Excepcionalmente, tem-se os contratos reais, que se formam por meio da entrega da coisa, por exemplo, no contrato de comodato (empréstimo de uso) e no contrato de depósito (cuidado com a coisa). 2.4. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS CONTRATOS Em regra, o contrato só produz efeitos em relação às pessoas que dele participam e que manifestaram suas vontades. Todavia, de forma excepcional, pode atingir terceiro. Portanto, trata-se de um princípio não absoluto. O atingimento do terceiro ocorrerá, quando houver estipulação em favor de terceiro. Exemplo disso ocorre no contrato de seguro de vida, em que os beneficiários do de cujus poderão exigir o pagamento referente ao seguro. 2.5. PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DOS CONTRATOS O princípio da obrigatoriedade dos contratos refere-se à intangibilidade dos contratos, ou seja, força vinculante dos contratos. Dessa forma, uma vez contratado, as partes estão obrigadas. Pontos básicos: segurança jurídica + pacta sunt servanda - o contrato faz lei entre as partes. Atualmente, vive-se uma relativização da obrigatoriedade. A doutrina, por sua vez, estabelece uma limitação clássica (existente desde o CC/16) e uma limitação moderna (criada através do CC/02). Logo, o inadimplemento da parte, ocorrerá em duas situações: Imputável: quando as consequências são atribuídas ao devedor. Podendo ser inadimplemento subjetivamente imputável, quando o devedor agiu com culpa ou inadimplemento objetivamente imputável quando a inexecução tenha decorrido de fato alheio e não imputável ao devedor, como o fortuito e a força maior, mas ao tempo do evento já estava em mora. Inimputável: é o inadimplemento cujas consequências não podem ser atribuídas ao devedor, por ausência de culpa (Essa é a limitação clássica – artigo 393, parágrafo único, CC). 2.6. PRINCÍPIO DA REVISÃO DOS CONTRATOS OU DA ONEROSIDADE EXCESSIVA A teoria da imprevisão é uma mitigação moderna à obrigatoriedade dos contratos (ausência no CC/16) – artigo 478 e 479, do CC. 145 Aurélio Bouret Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. Aplica-se a teoria da imprevisão: (i) nos contratos de execução continuada ou diferida; (ii) quando houver desequilíbrio nas prestações; (iii) em contrato comutativo (aquele em que as prestações estão previamente definidas). Trata-se de circunstâncias não contemporâneas à formação do contrato. Os contratantes, por sua vez, recorrem ao judiciário a fim de alterar o convencionado entre as partes, no que tange as prestações futuras. A teoria da imprevisão, também conhecida como cláusula rebus sic stantibus, é aquela em que, ainda que não prevista no contrato primitivo, é inerente aos contratos de execução continuada ou diferida. Logo, como se trata de cláusula implícita, gera revisão ou resolução do contrato, mantendo-se o negócio íntegro, mas objetivando o equilíbrio entre os contratantes – conservação do negócio jurídico e função social do contrato. Pressupostos de incidência da teoria da imprevisão: Imprevisibilidade: é objetiva, ou seja, não há como ninguém prever; o Atenção: a análise subjetiva está relacionada a imprevistos, e estes são não aplicados na teoria da imprevisão. Excepcionalidade do fato; Desequilíbrio entre as prestações mesmo sem demonstrar o “efeito gangorra”: esse efeito é aquele em que uma das partes detém vantagem e a outra não; Não se aplica aos contratos aleatórios. Com a aplicação a teoria da imprevisão, deve-se observar a tentativa de manutenção da conservação do contrato, mas caso não seja possível, faz-se necessário à resolução contratual. É o que prevê o artigo 479, do CC. Por derradeiro, calha mencionar, que o STJ reconhece a aplicação da teoria da imprevisão aos contratos consumeristas, entendendo que é possível contabilizar imprevistos para revisão de contratos dessa natureza, na qual chamamos de teoria da quebra da base. Ademais, importante ponderar, que a teoria da imprevisão é inaplicável aos contratos aleatórios, vejamos: PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. COMPRA E VENDA DE SOJA. ENTREGA FUTURA. RESCISÃO. ONEROSIDADE EXCESSIVA. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE. 1. Reconhecidas no acórdão de origem as bases fáticas em que se fundamenta o mérito, não configura reexame de fatos e provas sua mera valoração. 146 Aurélio Bouret 2. Nos contratos agrícolas de venda para entrega futura, o risco é inerente ao negócio. Nele não se cogita a imprevisão. 3. Agravo não provido. (AgRg no REsp 1210389/MS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/09/2013, DJe 27/09/2013). Contratos aleatórios, por sua vez, são aqueles que possuem a álea – risco - e envolvem sorte ou azar aos contratantes. São modalidades de contrato aleatório: emptio spei – compra da esperança – e emptio rei speratae – compra da coisa esperada. Geralmente, no próprio contrato aleatório há a incidência de fatos imprevisíveis, desse modo, se uma das partes propõe a outra, a entrega de sementes de tomates para plantio, comprometendo-se a comprar todos os tomates que nascerem dessa safra, pelo valor de R$ 1,00 cada, na qual costumeiramente perfaz a produção de mil tomates. Independentemente da quantidade de tomates que nascerem nesta safra, aquele que se obrigou, deve pagar pelo que compactuou. Obs.: se no contrato aleatório, o fato imprevisível não estiver inerente à álea, é possível a aplicação da teoria da imprevisão, tendo em vista que esta teoria é implícita nos contratos aleatórios. Tem-se como exemplo, o preço. Desse modo, se a parte se compromete a pagar um dólar por tomate, e a moeda esteja valendo R$ 3,15. Havendo modificação na economia e passando o dólar a valer R$ 1,00, haverá prejuízo a uma das partes. 2.7. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E PROBIDADE Sob a perspectiva do Código Civil de 2002, especialmente no artigo 422, encontra-se presente o princípio da probidade e da boa-fé, tendo como princípio básico, a eticidade. “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” O princípio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. O juiz presume a boa-fé, devendo a má-fé ser provado por quem alega. O previsto no artigo 422, do CC, trata-se de uma cláusula geral, devendo ser interpretada no caso concreto. A boa-fé se divide em: boa-fé subjetiva ou aspecto psicológico da boa-fé: trata-se da boa-fé interiorizada na mente do sujeito; nas crenças internas de cada indivíduo; boa-fé objetiva ou aspecto ético da boa-fé: trata-se de um padrão comportamental ético, pautada na confiança adjetivada – eticização da conduta social – na qual não oscila de sujeito para sujeito. A boa-fé principiológica que estudamos é a objetiva. 2.7.1. TEORIA DO ABUSO DE DIREITO No novo CC, a matéria do abuso de direito tem real destaque; é o novo regime dos atos ilícitos. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 147 Aurélio Bouret Quando violada a boa-fé objetiva, ocorre à quebra da confiança, que tem como reflexo, o cometimento do ato ilícito. São vertentes da boa-fé objetiva em relação aos contratantes: dever de informação; dever de proteção; dever de cooperação e dever de lealdade. Atente-se, o inadimplemento não ocorre tão somente com o inadimplemento da obrigação, mas também, com o adimplemento ruim da obrigação e, consequentemente, há quebra da confiança, o que enseja o pagamento pelas perdas e danos. Convém mencionar ainda, que a responsabilidade em decorrência de ato ilícito pelo abuso de direito, é objetiva, de forma que o sujeito responderá independentemente de ter agido com culpa. O dispositivo dispensa o “sentimento mau” e introduz o sistema da culpa social residente no comportamento excessivo. São figuras comuns que retratam o rompimento da confiança: venire contra factum proprium; suppressio, surrectio, tu quoque, duty to mitigate the loss. 2.7.1.1. VENIRE CONTRA FACTUMPROPIUM Pune o exercício do direito subjetivo quando se caracterizar abuso da posição jurídica, ou seja, trata-se do aproveitamento da própria torpeza. Funda-se na proteção da confiança – teoria dos atos próprios. Requisitos: conduta inicial (factumproprium); confiança da parte contrária; comportamento contrário à conduta inicial (violador da legítima confiança); dano ou potencial dano a partir da contradição. Constitui exemplo de venire contra factumproprium, a Súmula 370 do STJ, que diz: que “caracteriza dano moral a apresentação antecipada do cheque pré-datado”. Ex.: João realiza compras na loja de José, e aquele, pergunta a José se ele aceita que o pagamento seja feito mediante entrega de cheque pré-datado, José diz que sim (conduta inicial). João entrega o cheque (confiança), mas no mesmo instante, José deposita o cheque (comportamento contrário à conduta inicial). A responsabilidade civil de José, neste caso, é objetiva. Resta caracterizado, portanto, abuso do direito, pois, muito embora José tenha o direito de depositar o cheque, age com abuso de direito, ante a violação do dever de confiança. 2.7.1.2. SUPRESSIO E SURRECTIO O supressio, expressão alemã verwirkun, é, a priori, a perda de um direito pelo seu não exercício no tempo; um protelamento desleal do exercício de um direito. Requisitos para caracterização da supressio: omissão no exercício de um direito; transcurso de um período de tempo; objetiva deslealdade; intolerabilidade do posterior exercício. 148 Aurélio Bouret Na surrectio, por sua vez, o raciocínio é o inverso; este configura o surgimento do direito pelo costume ou comportamento de uma das partes; constituição de novo direitos. São três os requisitos que caracterizam a surrectio: certo lapso de tempo; conjunção de fatores que apontem a criação deste novo direito; ausência de condições que impeçam a surrectio. Verifica-se, portanto, que supressio e surrectio possuem o mesmo enfoque, onde tem uma, tem-se presente a outra. Ex.1: na convenção condominial de um prédio, ficou convencionado entre os proprietários, que tais imóveis seriam utilizados para moradia, ou seja, imóveis residenciais – quitinetes. Contudo, alguns proprietários passaram a alugar os referidos imóveis com o objetivo de, ali, instalarem salas comerciais. Por longos anos, o condomínio era composto por salas comercias e residenciais. Todavia, um ocupante das salas comerciais, passou a realizar atividades com bastantes ruídos/barulhos, causando incomodo nos demais usuários. O condomínio, por sua vez, ajuíza ação requerendo o cumprimento da convenção condominial, ou seja, que tais imóveis fossem utilizados para fins de moradia, somente. O Tribunal entendeu que já havia se passado muito tempo, para, só agora, requererem o cumprimento da convenção condominial. De modo que, com o passar dos anos, a atividade comercial foi sendo tolerada pelos condôminos, perdendo-se, portanto, o direito de exigir o disposto na convenção. Ex. 2: em um contrato de locação ficou consignado que o locatário deveria realizar o pagamento dos alugueres na imobiliária, no dia 10 de cada mês. Após a assinatura do contrato, ficou estabelecido, verbalmente, que determinado funcionário da imobiliária passaria na residência do locatário para recebimento dos alugueres, durante todos os meses de vigência do contrato. Durante o primeiro ano, realizou-se dessa forma. Contudo, no 13º mês, o funcionário não passou para receber o aluguel. Em contato com o locador, este alega ao locatário, que ele deveria ir até a imobiliária realizar o pagamento, tendo em vista que haviam pactuado uma dívida portável. Porém, veja que, consoante o disposto no artigo 330, do CC: “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. Dessa forma, não pode locatário cobrar multa em razão da mora. Verifica-se, portanto, que o locador tem o direito de cobrar o aluguel, mas assim o faz, com abuso do direito. Pois, para o locador ocorreu a supressio – perda do direito de exigir uma dívida portável – e para o locatário, ocorreu a surrectio – direito de ter uma dívida quérable. 2.7.1.3. TU QUOQUE A expressão tu quoque tem origem na frase dita pelo governante romano Júlio Cesar, a seu filho adotivo Marcus Brutus: “Tu quoque, Brute, fili mi?”. O fenômeno da tu quoque se encontra estampado no artigo 476 do CC, o qual se refere à doutrina do exceptio non adimplente contractus, ou seja, exceção (defesa) do contrato não cumprido. Por exemplo, as partes convencionam que o veículo somente será entregue após o pagamento de trinta mil reais. Porém, mesmo não efetuando o pagamento da obrigação, o devedor ajuíza ação em face do credor, requerendo o adimplemento do contrato. O credor, por sua vez, apresentará defesa alegando a tese da exceptio non adimplente contractus. 149 Aurélio Bouret Dispõe o artigo 476 do CC: “Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.” Igualmente, no âmbito dos contratos, pode ser consignado, ainda, a chamada cláusula solve et repete, que trata-se da renúncia à exceção do contrato não cumprido. Ou seja, as partes pactuam que, mesmo havendo o não cumprimento da obrigação por uma delas, à outra se submete ao cumprimento da obrigação que lhe cabe. Ademais, temos ainda, a exceção ao contrato não cumprido em relação ao modo de cumprimento da obrigação, que ocorrerá quando a parte cumpre a obrigação que lhe compete, mas o faz de maneira diversa. Isto é, viola o meio pelo qual deva ser cumprida a obrigação pactuada. (Tema já cobrado em prova subjetiva) Prevê o artigo 477 do CC: Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la. O dispositivo acima mencionado assegura o inadimplemento da obrigação de forma antecipada, ou seja, a parte visualiza que a outra não conseguirá cumprir com o pactuado e, por essa razão, também não cumpre o que lhe cabe. Em outras palavras, a teoria da exceptio non adimpletii contractus assegura que, aquele que descumpriu norma legal ou contratual, atingindo com isso determinada posição jurídica, não pode exigir do outro o cumprimento do preceito que ele próprio já descumprira (não faça aquilo que não quer que lhe façam) – espécie da teoria dos atos próprios. Acerca do tema, disporá a Súmula 385 do STJ: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento”. 2.7.1.4. DUTY TO MITIGATE THE LOSS Este instituto tem origem no direito norte-americano e tem seu reconhecimento perante o STJ e na doutrina civilista. Trata-se, portanto, do dever de mitigar as próprias perdas. Logo, tal instituto, é uma vertente da confiança e da boa-fé objetiva. Dessa forma, embora o sujeito tenha o direito de exigir do devedor o adimplemento da obrigação, se o credor não mitigar suas perdas, ou seja, reduzir as perdas, acaba por prejudicar o devedor. Além de gerar desconforto sob a égide da função social do contrato, descumprem-se, também, as regras de boa-fé objetiva por abuso de direito, sendo, o violador, responsabilizado civilmente, independentemente de culpa. É confirmado pelo enunciado 169 do Conselho da Justiça Federal, que prevê: “Art. 422: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. Reflete a exigência imposta ao credor de atuar para minimizar os próprios danos, os quais serão reparados posteriormente pelo devedor (autor do fato que gerou o dano), na medida do possível. Caso o credor não observe a incumbência imposta pelo ordenamento, deverá suportar consequências de natureza econômica. Ou seja, deverá haver uma redução proporcional do 150 Aurélio Bouret valor a ser pago como indenização, isto em razão do ato ilícito também praticado pelo credor (vítima do dano). Trata-se de parcial inadimplemento contratual (dever anexo de reduzir o dano) que gera uma compensação. Exemplos: 1ª hipótese: João verifica algumas faíscas de fogo saindo do motor de seu veículo, muito embora o automóvel tenha seguro, João tenta conter o incêndio (mesmo que tenha danificado parte do veículo). 2ª hipótese: por outro lado, se João, deixar que o fogo se espalhe, nada fazendo para minimizar os prejuízos. Mesmo que João tenha direito de acionar a seguradora, também possui o dever de reduzir as próprias perdas. Sendo devidamente comprovada esta última situação, João age com abuso do direito, tendo em vista que o mesmo não procurou evitar um prejuízo maior - com inobservância da boa-fé objetiva no caso concreto. 3. FORMAÇÃO DOS CONTRATOS 3.1. INTRODUÇÃO De antemão, é importante memorar, que o princípio do consensualismo ganha destaque, quando do estudado de contratos, isso porque, via de regra, os contratos são formados pela manifestação de vontade. Todo contrato, é negócio jurídico bilateral ou plurilateral, ou seja, deve ter, ao menos, duas manifestações de vontade. Atente-se, o contrato também pode ser visualizado na doação pura, pois o doador manifesta-se a vontade de doar e o donatário a vontade de receber. Calhar mencionar que, excepcionalmente, temos os contratos reais, que se formam por meio da entrega da coisa (tradição), como ocorre no contrato de comodato (empréstimo de uso) e no contrato de depósito (cuidado com a coisa). Ademais, em algumas situações, a lei exige certas formalidades/solenidades para a formação dos contratos, trata-se da chamada ad solemnitatem, exemplo disso, é o que prevê o artigo 108, do CC: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”. 3.2. FASES PARA A FORMAÇÃO DOS CONTRATOS a) Negociações preliminares ou fase de puntuação: envolve as conversas prévias, ou seja, é o momento em que as partes pontuam o que será contratado. No entanto, as negociações preliminares não fazem parte do direito contratual (ou seja, não há vinculação contratual) e, portanto, a responsabilidade civil nessa fase é aquilina, ou seja, trata-se de responsabilidade civil extracontratual. É importante ponderar que a responsabilidade civil decorrente das relações jurídicas contratuais é uma responsabilidade civil contratual. b) Fase de proposta ou policitação: tem-se o início da formação do contrato, que é feita pela declaração/proposta do proponetente/policitante, e a aceitação, é feita pelo aceitante/oblato. A proposta, por sua vez, trata-se de declaração receptícia de vontade, devendo ser séria, concreta, pautada na boa-fé objetiva. 151 Aurélio Bouret Proponente ou policitante = denominação conferida àquele que faz a proposta. Aceitante ou oblato = denominação conferida àquele que aceita a oferta. "Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.” Atente-se: a proposta é vinculante – vincula o proponente. Dessa forma, a mera proposta e aceitação da mesma, inicia a formação de um contrato, não necessitando da efetiva entrega da coisa – tendo em vista que o contrato de compra e venda não se trata de contrato real. Somente os contratos reais se formam com a tradição. Diante disso, a propriedade de bem móvel se transmite com a tradição, e de bem imóvel, através da tradição solene, ou seja, com o registro, ou ainda, quando a lei exigir tal solenidade. Cuidado! Sendo realizada a proposta, tem-se um contrato, e este, por sua vez, é fonte de obrigação. Neste contexto, muito embora o objeto do contrato envolva um direito real que é a propriedade do bem, não se pode confundir direitos reais com direitos obrigacionais. Haja vista que o direito real é daquele que o credor entregou o bem, ainda que a entrega não seja realizada para o efetivo comprador. Desse modo, se houver a celebração de um contrato com determinada pessoa cujo objeto é um bem móvel, e não ocorre à entrega do bem, a pessoa que comprou e pagou pelo que foi pactuado, em nenhum momento foi proprietário. Agora, se o alienante vende e transfere esse mesmo bem a um terceiro, o bem será do terceiro, porque houve a tradição. Ademais, o sujeito que realizou o pagamento e não lhe foi entregue o bem, NÃO poderá pleitear ação reivindicatória, tendo em vista que este nunca foi proprietário. Como dito, a proposta obriga o proponente, salvo no que tange as excepcionalidades consignadas no artigo 427 do CC. “Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos delaA, da natureza do negócioB, ou das circunstâncias do casoC.” a) A oferta não obriga o proponente se contiver cláusula expressa a respeito. É quando o próprio proponente declara que não é definitiva e reserva o direito de retirá-la. Muitas vezes a aludida cláusula contém dizeres: “proposta sujeita a confirmação” ou “não vale como proposta”. Isso faz com que o oblato (aceitante) tenha conhecimento de que o proponente não se vincula. Nessa situação, tem-se a vontade do ofertante em não vincular-se. b) A proposta não obriga o proponente em razão da natureza do negócio. É o caso, por exemplo, das chamadas propostas abertas ao público que se consideram limitadas ao estoque existente (artigo 429 do CC). Isto é, não há potestatividade do aceitante, pois, pode-se ter algo alheio a vontade do ofertante na qual limita o nascimento do contrato e obrigatoriedade da proposta; Nessa situação, em razão da própria da natureza do negócio, extrapola a vontade do ofertante em se vincular do caso. c) Em razão das circunstâncias do caso: não são quaisquer circunstâncias, mas as mencionadas no artigo 428 do CC. Dessa forma, disporá o artigo 428 do Código Civil: Art. 428. Deixa de ser obrigatória a proposta: I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-se também presente a 152 Aurélio Bouret pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante; II - se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo suficiente para chegar a resposta ao conhecimento do proponente; III - se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro do prazo dado; IV - se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente. Proposta feita entre Presentes (ou seja, pessoa presente, com comunicação imediata, instantânea,como por exemplo, proposta feita por telefone). - Sem prazo: deve ser imediatamente aceita, sob pena de perder a eficácia (art. 428, I); é o caso do “pegar ou largar”, se o oblato não aceita de imediato, o policitante está desobrigado. - - Com prazo: é obrigatória durante o prazo assinado. Proposta feita entre Ausentes (ou seja, sem comunicação imediata ou instantânea, como por exemplo, proposta realizada por carta, por e-mail). - - Sem prazo: perde a validade se a resposta não chegar ao proponente em prazo razoável - “prazo moral” - (art. 428, II). Tem-se como prazo razoável, uma cláusula geral, que deve ser interpretada no caso concreto. - Com prazo: é obrigatória durante o prazo, não se formando o contrato se a aceitação for expedida depois de vencido. Ou seja, a aceitação deve ser exteriorizada/expedida antes de escoado o prazo, ainda que chegue ao conhecimento do proponente fora desse prazo. Obs.: as declarações que visem simplesmente à aproximação e o “convite a fazer oferta” não configuram oferta. Obs.: a oferta pode ser feita a pessoa indeterminada (oferta ao público), valendo, nesse caso, como proposta e não como “convite a fazer oferta” (art. 429 do CC). Ex.: proposta realizada em outdoor. 4. FORMAS CONTRATUAIS 4.1. CONTRATO PRELIMINAR Dispõe o artigo 462 do CC: “Art. 462. O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado.” O contrato preliminar é um pré-contrato, ou seja, um contrato de promessa, que tem por objeto a celebração de outro contrato no futuro. 153 Aurélio Bouret Por exemplo, João se desloca até uma construtora e relata sua intenção em adquirir um apartamento alocado no décimo andar de determinado prédio que mesma construirá. João celebra contrato preliminar com a construtora, por meio de um contrato de promessa de compra e venda. Não se trata de um contrato de compra e venda, pois, quando se trata de bem imóvel cujo valor excede a trinta salários mínimos, faz-se necessário a escritura pública. Contudo, para haver escritura pública, é preciso ter o bem, mas o imóvel ainda não foi construído (não existe). Dessa forma, com intenção de criar vínculo entre as partes, o que pode ser feito no momento, é um contrato de promessa de compra e venda – ou seja, promete-se que será realizado um contrato definitivo posteriormente. Art. 463. Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra para que o efetive. Parágrafo único. O contrato preliminar deverá ser levado ao registro competente. “Art. 464. Esgotado o prazo (para que efetive o contrato definitivo), poderá o juiz, a pedido do interessado, suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar, salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação.” “Art. 465. Se o estipulante não der execução ao contrato preliminar, poderá a outra parte considerá-lo desfeito, e pedir perdas e danos.” “Art. 466. Se a promessa de contrato for unilateral, o credor, sob pena de ficar a mesma sem efeito, deverá manifestar-se no prazo nela previsto, ou, inexistindo este, no que lhe for razoavelmente assinado pelo devedor.” O contrato preliminar, também conhecido como pactum de contrahendo ou contrato promessa, é aquele que tem por objetivo garantir a realização de um contrato definitivo. Tal contrato possui caráter provisório, interino e apenas é celebrado quando as partes se comprometem a convencionar, posteriormente, um contrato definitivo. Normalmente é utilizado nos casos em que as partes têm interesse recíproco no negócio jurídico, porém, por algum inconveniente momentâneo, a contratação definitiva é efetivada em circunstância oportuna subsequente. Não se confunde com acordos provisórios – minutas, esboços ou cartas de intenção e negociações preliminares. Notadamente, os contratos preliminares possuem as mesmas regras e requisitos do contrato definitivo, exceto quanto à forma. Entendimento sumular e enunciado acerca do tema: Súmula 84 do STJ: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro.” Súmula 308 do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.” Súmula 413 do STF: “O compromisso de compra e venda de imóveis, ainda que não loteados, dá direito à execução compulsória, quando reunidos os requisitos legais.” Enunciado 30 da Jornada de Direito Civil: “A disposição do parágrafo único do art. 463 do novo Código Civil deve ser interpretada como fator de eficácia perante terceiros.” 154 Aurélio Bouret 4.2. ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIROS – ARTIGOS 436 A 438 DO CC Consigna o princípio da relativização dos contratos que, via de regra, os contratos produzem efeitos entre as partes, ou seja, entre contratante e contratado. Todavia, excepcionalmente, o contrato pode atingir terceiros. Dessa forma, o instituto em comento, trata-se de uma hipótese de atingimento de terceiro no contrato. Exemplo disso é o seguro de vida, em que o sujeito celebra contrato com instituição bancária, e neste caso, tem-se a estipulação de um beneficiário (terceiro). Contudo, o terceiro somente atuará neste contrato, quando este produzir seus efeitos, que ocorrerá por meio da morte do estipulante. Atente-se, a morte é termo no contrato de seguro de vida. Consoante os ensinamentos do doutrinador Orlando Gomes: “A estipulação em favor de terceiro é o contrato por via do qual uma das partes se obriga a atribuir vantagem patrimonial gratuita a pessoa estranha à formação do vínculo contratual”. Na estipulação em favor de terceiro, tem-se as seguintes figuras: estipulante (estipula a vantagem a terceiro); promitente (promete a cumprir algo relacionado ao terceiro) e; beneficiário (próprio terceiro) Esse contrato se forma com o consentimento do estipulante e do promitente, sendo necessário apenas que o terceiro (beneficiário) seja determinável (inclusive pessoa futura). É importante ponderar que a estipulação em favor de terceiro é muito utilizada nos contratos de seguro em geral, especialmente, nos seguros de vida e de veículo etc. Regras: o terceiro torna-se credor do promitente. Podendo aquele, ajuizar ações em face do promitente para assegurar seu direito, mesmo não sendo parte na relação contratual; o direito subjetivo do terceiro nasce com o contrato; o terceiro pode recusar-se a receber; se o estipulante falece antes de indicar o beneficiário: negócio jurídico é inexistente; se o beneficiário falece antes de tomar ciência: aplicam-se as regras de sucessão causa mortis; se o beneficiário não detém legitimidade: negócio jurídico é nulo (art. 104 do CC/2002). o estipulante pode exigir o cumprimento da obrigação; o estipulante pode trocar o beneficiário por ato inter vivos ou causa mortis – testamento. 4.3. PROMESSA DE FATO DE TERCEIRO – ARTIGOS 439 E 440 DO CC Prescreve o artigo 439 do Código Civil: “Art. 439. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar.” A promessa de fato de terceiro trata-se de contrato por outrem, ou seja, promete-se um fato que o terceiro irá cumprir. 155 Aurélio Bouret O único vinculado é o que promete, assumindo obrigação de fazer que, não sendo executada, resolve-se em perdas e danos. Dessa forma, ninguém pode vincular o terceiro a uma obrigação. As obrigações têm como fonte somente a própria manifestação da vontade do devedor, da lei ou eventual ato ilícito por ele praticado. Inovação: art. 439, parágrafo único: “Tal responsabilidade não existirá se o terceiro for o cônjuge do promitente, dependendo da sua anuência o ato a ser praticado, e desde que, pelo regime do casamento, a indenização, de algum modo, venha a recair sobre os seus bens”. Por exemplo, quando um dos cônjuges – casado sob o regime da comunhão um universal de bens – se compromete a ser fiador em determinado imóvel e, garante ao estipulante, que seu cônjuge também assinará o contrato na qualidade de fiador. Porém, ao final, este último se recusa a assinar o contrato. Diante dessas situações, a regra é que aquele que prometeu fato de terceiro responderá por perdas e danos, contudo, no caso apresentado, tendo em vista que em decorrência dessa responsabilização, os bens do terceiro, que é cônjuge do promitente, poderão ser atingidos na hipótese de eventual inadimplemento do contrato, não haverá qualquer tipo de responsabilização em face do promitente. Assim sendo, a proteção de um dos cônjuges contra desatinos do outro, negando eficácia à promessa de fato de terceiro quando este for cônjuge do promitente, o ato a ser por ele praticado depender da sua anuência e, em virtude do regime de casamento, os bens do casal venham a responder pelo descumprimento da promessa. 4.4. CONTRATO ALEATÓRIO – ARTIGOS 458 A 461 DO CC Os contratos aleatórios são aqueles que possuem a álea – risco - e envolvem sorte ou azar aos contratantes. Se no contrato aleatório, o fato imprevisível não estiver inerente à álea, é possível a aplicação da teoria da imprevisão. Em outras palavras, trata-se de contratos onerosos em que a prestação de uma ou mais partes contém elementos de incerteza quanto à sua existência, verificação, quantidade ou qualidade, ficando sua plena definição na dependência de fato futuro. Nessa seara, importante se faz a distinção entre contratos comutativos e contratos aleatórios. No contrato comutativo, sabe-se exatamente qual é o objeto do contrato – ou seja, tem ciência do que vai receber e do que será pago. Noutro sentido, os contratos aleatórios pressupõem incerteza, e podem ser divididos em naturalmente aleatórios e acidentalmente aleatórios, vejamos: naturalmente aleatórios: contrato de seguro (o sujeito sabe quanto deverá pagar pelo seguro, mas a seguradora não sabe quando irá indenizá-lo, em virtude de um sinistro, por exemplo), jogo e aposta; acidentalmente aleatórios: trata-se de contratos naturalmente comutativos, mas em razão de circunstâncias ou cláusula, tornou-se aleatório – contrato de compra e venda. Obs.: o contrato pode ser aleatório para ambas as partes ou para apenas uma delas. Obs.: o disposto no artigo 458, diz respeito tão somente dos contratos acidentalmente aleatórios. Tendo em vista que os contratos naturalmente aleatórios serão estudados no campo dos “contratos em espécie”. Ou seja, o contrato de seguro, por exemplo, encontra-se previsão nos artigos 757 e seguintes; jogo e a aposta, nos artigos 814 e seguintes. Assim sendo, os contratos acidentalmente aleatórios, podem ser de duas espécies: 1. Compra e venda de coisa futura: 156 Aurélio Bouret a) Emptio spei - compra da esperança: assume o risco da coisa existir ou não (risco total). Por exemplo, João propõe a José que este pesque e pegue a quantia de mil peixes (objeto do contrato), na qual pagará um real por peixe, totalizando o montante de mil reais (valor do contrato). Naquele dia, José pescou dez mil peixes, em razão deste contrato, João deve pagar a José a quantia mil reais. Por outro lado, se José tivesse pescado novecentos peixes, por exemplo, ainda assim, João teria que lhe pagar a quantia pactuada, ou seja, mil reais. Outro exemplo, é a compra de safra futura. Tal modalidade de contrato encontra-se previsão no artigo 458 do CC. b) Emptio rei speratae - compra da coisa esperada: não assume o risco da inexistência, mas da quantidade (risco parcial). Por exemplo, João quer mil peixes na qual pagará a quantia de mil reais. José lhe traz dez mil peixes, João deve pagar a quantia de mil reais; se José trouxer dois mil peixes, João deve pagar mil reais; se José não trouxer peixe, João não terá que pagar nenhuma quantia, pois, no caso em comento, assume-se tão somente o risco da quantidade e não da existência. Com efeito, a teoria da imprevisão poderá ser aplicada nessas modalidades de contrato, mas desde que NÃO seja em relação ao emptio spei em razão da existência da coisa e no emptio rei speratae, no que tange a quantidade da coisa. Dessa forma, se no contrato aleatório, o fato imprevisível não estiver inerente à álea, como no caso do preço, por exemplo, é possível a aplicação da teoria da imprevisão. A parte somente não ficará obrigada pelo que pactuou se ficar definido que houve desídia da parte contrária pelo não cumprimento do contrato. 2. Coisas existentes expostas a risco: coisa existe, mas está exposta a risco; Assunção do risco pelo adquirente, ainda que a coisa não mais exista, no todo em parte, no dia do contrato. Anulação caso o alienante tivesse conhecimento da consumação do risco. “Art. 460. Se for aleatório o contrato, por se referir a coisas existentes, mas expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante a todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em parte, ou de todo, no dia do contrato.” Por exemplo, o adquirente faz compra pela internet de coisa sujeita a risco de deterioração. O adquirente assume o risco do transporte. O alienante, nessa situação, não será responsabilizado, caso o objeto, no destino, esteja danificado/deteriorado. “Art. 461. A alienação aleatória a que se refere o artigo antecedente poderá ser anulada como dolosa pelo prejudicado, se provar que o outro contratante não ignorava a consumação do risco, a que no contrato se considerava exposta a coisa.” 5. VÍCIOS REDIBITÓRIOS E EVICÇÃO 5.1. DEFINIÇÃO DE VÍCIOS REDIBITÓRIOS O vício redibitório é uma garantia implícita imposta nos contratos comutativos e ao alienante. Uma vez que, aquele que aliena o bem, deve ser responsável pela integridade, fruição e funcionamento da coisa. Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor. 157 Aurélio Bouret Parágrafo único. É aplicável a disposição deste artigo às doações onerosas. É possível que os contratos tenham, basicamente, três tipos de garantias: (i) garantias materiais: que são os vícios redibitórios; (ii) garantias jurídicas: consiste na evicção e; (iii) garantias atípicas: impostas/criadas pelas partes. O vício redibitório trata-se de um defeito material da coisa (garantia material implícita) existente nos contratos onerosos e comutativos ou, na doação onerosa (trata-se de doação com encargo, por exemplo, “lhe dou este carro para você promova o transporte das crianças”). O vício redibitório nunca pode ser aplicado nos contratos aleatórios ou gratuitos. Este vício é um defeito grave que torna uma coisa inadequada a certos fins ou funções a que se propõe - princípios de probidade e boa-fé. Dessa forma, aquele que aliena o bem de forma onerosa, deve garantir a fruição da coisa, pois se houver algum vício sobre o bem objeto da alienação, estamos diante de um vício redibitório, vício oculto, interiorizado na coisa. Dessa forma, mesmo que no contrato não haja garantia do vício redibitório, ainda assim, persistirá. Paira mencionar que, nas relações consumeristas, a análise desses vícios difere do campo civilista, porque naquele, tem-se os denominados vícios aparentes e não aparentes. Redibir significa anular judicialmente uma venda ou outro contrato comutativo em que a coisa negociada foi entregue com vícios ou defeitos ocultos, que impossibilitam o uso ao qual se destina ou que lhe diminuem o valor. São defeitos ocultos em coisa recebida – descobertos: ocorrerá a redibição da coisa, ou seja, torna-se sem efeito o contrato, acarretando-lhe a resolução, com a restituição da coisa defeituosa ao seu antigo dono ou sendo concedido um abatimento no preço, se preferir o adquirente. 5.1.1. AÇÕES EDILÍCIAS Constatando a presença de vício redibitório, cabe ao sujeito a escolha de um dos meios de reclamação: AÇÃO REDIBITÓRIA: objeto da demanda é o desfazimento do contrato – redibir o negócio (uso impossível). A natureza jurídica do pedido de desfazimento do contrato e, consequentemente, da sentença proferida neste processo, será desconstitutiva ou constitutiva negativa (Natureza jurídica do mérito da ação é a mesma natureza jurídica da sentença). AÇÃO QUANTI MINORIS OU ESTIMATÓRIA: objeto da demanda será o abatimento do preço e manutenção do negócio. A natureza jurídica do pedido e da sentença será condenatória. Atente-se: não é porque o bem possa ser utilizado ainda, que o adquirente terá o dever de exigir tão somente o abatimento do preço. Isso porque, ainda que a coisa esteja funcionando, pode-se requerer o desfazimento do contrato, tendo em vista que o adquirente não é obrigado a permanecer com um bem na qual acreditava que funcionaria. Indaga-se: responde pelo vício redibitório em caso de boa fé, não ciência do defeito? R: Sim, tendo em vista que no vício redibitório não exige má-fé do alienante. Dessa forma, se de boa-fé o alienante, haverá a resolução do contrato; se de má-fé, além da resolução do contrato, incumbe ao alienante à condenação por perdas e danos (inclusive dano moral). 158 Aurélio Bouret Assertiva de prova: Para configuração do vício redibitório é importante à caracterização da culpa do alienante Incorreta, pois no vício redibitório a analise é objetiva, ou seja, independe de culpa. 5.1.1.1. PRAZOS PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO REDIBITÓRIA E AÇÃO QUANTI MINORIS Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade. Vamos fazer uma ponderação reflexiva: Nas ações quanti minoris – estimatória – não se aplica o dispositivo acima mencionado, tendo em vista que a sentença é condenatória e a relação entre credor e devedor é de direito subjetivo. Os direitos subjetivos, por sua vez, estão sujeitos a prazos prescricionais, enquanto os prazos decadenciais estão ligados a direitos potestativos. Dessa forma: redibir o contrato direito potestativo; cobrar o abatimento do preço direito subjetivo. Desta maneira, para a ação quanti minoris, aplicam-se as regras de prazo prescricional – 03 anos -; e para ação redibitória, aplica-se o prazo decadencial previsto no artigo 445 do CC. Nesse contexto, quando da leitura do artigo 445, deve-se excluir a expressão “abatimento no preço”. Todavia, se em prova objetiva for cobrada a literalidade do dispositivo, deve-se assinalar como correta. Possibilidade de burlar o prazo: Se as partes num contrato de compra e venda de um bem móvel, por exemplo, realizam a entrega desse bem na data de hoje, mas somente formalizam o contrato de compra e venda no dia de amanhã. Tendo em vista que no momento da formalização do contrato o adquirente já estava na posse do bem, o prazo para o ajuizamento de redibitória cai para 15 dias. Essa redução é realizada, independentemente de quanto tempo faz que o adquirente se encontre na posse do bem. 5.2. EVICÇÃO – GARANTIA IMPLÍCITA IMPOSTA AO ALIENANTE O instituto da evicção trata-se de uma garantia jurídica, pois o vício/defeito encontrase na relação jurídica e não na coisa, como ocorre no vício redibitório. Podem ocorrer nos contratos onerosos e comutativos ou, na doação onerosa. A evicção ocorre quando quem vendeu não poderia ter vendido e quem comprou perde o bem para o verdadeiro proprietário. Em outras palavras, evicção é a perda ou desapossamento de um bem, judicial ou, excepcionalmente administrativa, em razão de um defeito jurídico anterior à alienação. Tem-se como exemplo de evicção administrativa, a apreensão de veículo por falsificação de documento realizado pelo antigo dono. A má-fé na evicção é latente. Cabe ao alienante a obrigação da evicção. Trata-se de uma obrigação de fazer garantir a propriedade ou vir a indenizar pela impossibilidade da manutenção de tal benefício em favor do adquirente. Possui íntima conexidade com o princípio da boa-fé objetiva. 159 Aurélio Bouret São figuras inerentes a evicção: evicto (quem perde o bem); evictor (quem retoma o bem); alienante. O evicto, ao exercer o seu direito, resultante da evicção, formulará, em face do alienante, uma pretensão tipicamente indenizatória. Inclusive, a prática de atos conservatórios em casos de cláusulas condicionais. O evicto poderá pleitear, pois, salvo estipulação em contrário, a restituição integral do preço ou das quantias que pagou (art. 450 do CC): a) a indenização dos frutos que tiver sido obrigado a restituir; b) a indenização pelas despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente resultarem da evicção; c) as custas judiciais e os honorários do advogado por ele constituído. Obs.: dispõe o artigo 457 do CC: “Não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era alheia ou litigiosa”. Típico exemplo de grilagem de terra. Que ocorrerá quando o indivíduo invade área pública para vendê-la e, aquele que compra sabendo de tal situação, não poderá, posteriormente, demandar evicção. Obs.: ação edilícia deve ser observado o prazo prescricional de 3 (três) anos, na forma do art. 206, § 3º, inciso V, CC. Os prazos de evicção são prescricionais de 03 anos - evicção possui a mesma natureza da ação quanti minoris. Aquele que perde o bem (adquirente) tem duas opções: (i) proprietário ajuíza ação contra ele e, após, ajuíza-se ação em face do alienante ou; (ii) o verdadeiro proprietário ajuíza ação em face do adquirente, e este denuncia a lide ao alienante. É importante ponderar que a denunciação da lide é uma opção do adquirente. Art. 125 do CPC. É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes: I - ao alienante imediato, no processo relativo à coisa cujo domínio foi transferido ao denunciante, a fim de que possa exercer os direitos que da evicção lhe resultam; “Art. 448 do CC. Podem as parte, por cláusula expressa, reforçar, diminuir ou excluir a responsabilidade pela evicção.” 6. REVISÃO DOS CONTRATOS Em razão do princípio da força obrigatória dos contratos, a princípio, o contrato deve ser cumprido, conforme avençado pelas partes. No entanto, nada impede que as partes, em comum acordo, possam revisar as cláusulas contratuais, inserindo modificações na avença estabelecida. Fica evidente que, da mesma forma que as partes têm liberdade para contratar, elas também têm liberdade para consensualmente reajustar o contrato. A questão que se revela mais dificultosa é a possibilidade de uma das partes unilateralmente exigir a revisão do contrato. Diante da pretensão resistida de uma parte que 160 Aurélio Bouret busca a revisão e da outra parte que espera o cumprimento do contrato nos termos em que foi ajustado, nasce a necessidade da chamada revisão judicial dos contratos. A revisão judicial dos contratos pode se dar com a aplicação de duas teorias: (i) teoria da imprevisão; e (ii) teoria da quebra da base objetiva do negócio. 6.1. TEORIA DA IMPREVISÃO A teoria da imprevisão, disciplinada nos arts. 317 e 478 do CC, exige três elementos para que o contrato seja revisado: Fato superveniente; Fato imprevisível; Onerosidade excessiva. Toda vez que a superveniente imprevisibilidade fática acarretar um desequilíbrio entre as prestações (onerosidade excessiva) será possível exigir a revisão do contrato ou, em último caso, a sua extinção, sem ônus para qualquer das partes, conforme art. 478, CC. Exemplo: XYZ Distribuidora Ltda., situada na cidade de Niterói, fixa contrato de um ano de distribuição de laticínios com uma rede de padarias com filiais situadas na cidade do Rio de Janeiro. O contrato estabeleceu a forma de cumprimento e o preço, de acordo com a vontade das partes. Para fixar o preço, a XYZ calculou os gastos referentes a combustível, manutenção e verbas trabalhistas para a entrega dos produtos. Dois meses após a celebração do contrato, surge uma rachadura no vão central da ponte Rio-Niterói, via de acesso mais rápido entre as duas cidades. Diante disso, a empresa distribuidora ingressou com ação de revisão judicial do contrato para reajustar o valor devido, uma vez que diante dessa situação para entregar os produtos no Rio de Janeiro terá que utilizar um trajeto mais longo, com estradas mal conservadas, causando consequentemente maior gasto com combustível e manutenção dos veículos. Conforme se verifica, estamos claramente diante de um caso em que houve um fato superveniente à celebração do contrato (rachadura no vão central da ponte Rio-Niterói), que também se mostra como algo imprevisível, e que acarretou a desproporção entre as prestações (onerosidade excessiva). 6.2. TEORIA DA QUEBRA DA BASE OBJETIVA DO NEGÓCIO (ART. 6º, V, CDC) O CDC prevê como direito básico do consumidor a possibilidade de exigir a revisão de um contrato toda vez que um fato superveniente acarretar uma onerosidade excessiva. Conforme se verifica, a teoria da quebra da base objetiva do negócio exige apenas dois requisitos para a revisão: Fato superveniente; Onerosidade excessiva. Dessa forma, diferentemente da teoria da imprevisão, verifica-se que o consumidor não precisa demonstrar que o fato que gerou a desproporção entre as prestações era imprevisível. Como exemplo, podemos mencionar a situação de um contrato de leasing de um veículo automotor pelo prazo de 48 meses, com índice de atualização das prestações atrelado à variação cambial do dólar. Nesse caso, ocorrendo uma alta valorização da moeda americana, a prestação que o consumidor irá pagar será excessivamente onerosa. Contudo, não se pode dizer que esse fato era imprevisível, uma vez que a variação cambial é esperada no mercado. 161 Aurélio Bouret Dessa forma, pode-se afirmar que não seria possível aplicar a teoria da imprevisão, porém, estando o contrato de leasing inserido em uma relação de consumo, o consumidor poderia exigir a revisão contratual com fulcro na teoria da quebra da base objetiva do negócio. 7. COVID-19 E IMPACTOS NOS CONTRATOS A pandemia da Covid-19 trouxe diversos desafios, e mais uma vez o Direito Civil é conclamado para resolver os principais conflitos daí advindos no âmbito das relações privadas. Em um primeiro momento, pode parecer que as restrições impostas à população em geral para conter a disseminação do vírus, que geraram impacto nas relações contratuais, podem ser resolvidas com a pura e simples aplicação da teoria da imprevisão. No entanto, as soluções vão muito além disso, e dependem do caso concreto. Destarte, de acordo com Tartuce, é o momento adequado para relembrar institutos que podem ser invocados para resolver problemas decorrentes da pandemia: 7.1. INSTITUTOS PERTINENTES 7.1.1. ALEGAÇÃO DE CASO FORTUITO Evento totalmente imprevisível — ou força maior: evento previsível, mas inevitável —, nos termos do art. 393 do Código Civil, para justificar o inadimplemento. Por esse comando, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes desses eventos se expressamente não se houver por eles responsabilizado, por força do contrato. 7.1.2. RESOLUÇÃO OU REVISÃO DO CONTRATO COM BASE NA TEORIA DA IMPREVISÃO OU DA ONEROSIDADE EXCESSIVA: Tem fundamento, nas relações civis, nos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil. Nunca é demais lembrar que a codificação privada exige, além da onerosidade excessiva, que o fato novo superveniente que causou o desequilíbrio seja, ao menos, imprevisível, afirmação que vale para a pandemia de Covid-19. Quanto aos contratos de consumo, a revisão ou resolução contratual dispensa a imprevisibilidade, bastando um fato novo que cause a quebra da base objetiva do negócio, da proporcionalidade das prestações (art. 6º, inc. V, da Lei n. 8.078/1990). 7.1.3. UTILIZAÇÃO DO INSTITUTO DA IMPOSSIBILIDADE DA PRESTAÇÃO: Mesmo que sem culpa da parte da relação obrigacional, o que gera a sua resolução ou extinção, sem a imputação de perdas e danos, ou seja, sem que surja o dever de responder por eventuais prejuízos causados pela extinção do negócio. A impossibilidade tem por fundamento o art. 234 do Código Civil — no caso de obrigação de dar —, o seu art. 248 — em se tratando de 162 Aurélio Bouret obrigação de fazer — e o art. 250 da codificação privada - presente a obrigação de não fazer. 7.1.4. ALEGAÇÃO DA FRUSTRAÇÃO DO FIM DA CAUSA DO CONTRATO. Como se retira do Enunciado n. 166 da III Jornada de Direito Civil, outra afirmação doutrinária interessante para os dias atuais: "a frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil". Apesar de o Código Civil Brasileiro não ter adotado expressamente a teoria da causa do contrato ou do negócio jurídico — como fez, por exemplo, o Código Civil Italiano (arts. 1.325, 1.343 a 1.345) —, tem-se associado a tese da frustração do fim com a função social do contrato, em sua eficácia interna, o que conta com o meu apoio doutrinário. Assim sendo, se, por um motivo estranho às partes, o contrato perder sua razão de ser, será reputado extinto, mais uma vez com a resolução sem perdas e danos. 7.2. TRÊS GRUPOS OU HIPÓTESES DE CONTRATOS O professor Flávio Tartuce salienta que não é possível criar uma regra geral de como resolver as questões provenientes da pandemia. Será necessário analisar caso a caso. Para tanto ele dividiu os contratos em três grandes grupos para facilitar a aplicação dos institutos supramencionados. De acordo com Tartuce são esses os grupos: 1º Grupo: No primeiro grupo estão aqueles contratos em que houve a intervenção do Estado por atos normativos para fazer cessar as atividades, um fato do príncipe, como nos casos de cinemas, restaurantes, teatros e lojas em shopping centers ou fora deles. Para esses negócios, os autores sugerem a incidência da impossibilidade da prestação, com a suspensão de pagamentos ou eventual resolução no futuro, sem imputação de culpa a qualquer uma das partes. 2º Grupo: No segundo grupo de contratos situam-se os negócios em que não há ato normativo de intervenção, mas está presente a falta de interesse da parte quanto ao seu conteúdo, o que se verifica para as compras de passagens áreas. Nesses, incide a tese da frustração do fim da causa, que, como visto, tem relação com a função social do contrato, resolvendo-se este sem a imputação de culpa a qualquer uma das partes. De todo modo, não se pode admitir, com essa solução, uma proteção exagerada de qualquer uma dos partes para que, por exemplo, os valores sejam devolvidos somente após um longo período de tempo, fora da esperada razoabilidade. Assim, um prazo de doze meses para a devolução dos valores relativos às passagens áreas me parece algo excessivo. 163 Aurélio Bouret 3º Grupo: No terceiro grupo temos os contratos em que houve um agravamento do sacrifício econômico para uma ou ambas as partes, caso de grandes contratos de fornecimento entre empresas, ou empréstimos bancários para o incremento do capital de giro. Aqui, devem ser subsumidos os preceitos relacionados à revisão ou mesmo resolução por onerosidade excessiva, caso dos arts. 317 e 478 do Código Civil. Não se pode esquecer que, diante do princípio da conservação e da correspondente função social do contrato, a extinção do contrato deve ser a última medida a ser tomada. Nesse contexto, podemos citar o Enunciado n. 176 da III Jornada de Direito Civil: "em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual". 7.2.1. EXEMPLOS DE ANÁLISE CASUÍSTICA: Vejamos a situação de um contrato de aluguel em que o locatário, profissional autônomo, teve a sua renda reduzida em 70% em razão da pandemia. Com isso, ele tem dificuldade de continuar pagando R$ 1.000,00 referentes ao aluguel do imóvel em que reside com a sua família. Nesse caso, o locatário não poderia invocar a teoria da imprevisão para revisar o preço do seu aluguel porque, muito embora tenha ocorrido um fato superveniente e imprevisível, qual seja, a crise econômica decorrente da pandemia, não estamos diante de uma onerosidade excessiva. A onerosidade excessiva é verificada no desequilíbrio entre as prestações, ou seja, nesse caso, o valor do aluguel teria que ser desproporcional em relação à coisa alugada. Mesmo diante de uma crise econômica, os valores de mercado dos imóveis residenciais não sofreram impacto a ponto de provocar uma desvalorização no valor dos aluguéis. Pode-se dizer que, infelizmente, o valor do aluguel é justo. O problema é que o locatário não tem recursos para pagar. Obs.: diante de um ordenamento jurídico que tem como princípios regentes a boa-fé objetiva e a função social dos contratos, decorrentes do valor constitucional da solidariedade (art. 3º, I, CRFB), é salutar que as partes busquem um acordo no caso concreto, buscando formas de viabilizar o cumprimento do contrato de maneira a atender às possibilidades do devedor e também satisfazer a contento os interesses do credor. Na busca por soluções, podemos mencionar a possibilidade de Moratória legal, prevista no art. 916 do Código de Processo Civil. Vejamos agora outro exemplo. Em um cenário de locação não residencial, como nos casos de shopping centers, algumas medidas restritivas em razão da pandemia determinaram o fechamento desses centros comerciais por longo período de tempo, o que gerou evidente prejuízo para os lojistas, que perderam o acesso à sua clientela. Nesse caso, estaríamos diante dos três elementos da teoria da imprevisão. A pandemia que culminou nas medidas restritivas de fechamento dos shopping centers estaria em um contexto de fato superveniente e imprevisível, enquanto a onerosidade excessiva estaria evidenciada pelo fato de o lojista ter que continuar pagando um valor de aluguel em um imóvel comercial que obrigatoriamente estará fechado. 164 Aurélio Bouret Por isso, há um desequilíbrio evidente entre as prestações: aquilo que o locatário está dispendendo não corresponde ao benefício que está sendo auferido, sendo assim possível exigir a revisão do contrato para, por exemplo, suspender os pagamentos de aluguel durante a vigência das medidas restritivas da pandemia. 165 Aurélio Bouret CAPÍTULO 5 – DIREITO DOS CONTRATOS: CONTRATOS EM ESPÉCIE 1. COMPRE E VENDA 1.1. CONCEITO O art. 481 conceitua compra e venda, pois estabelece que, pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro. Trata-se de um contrato translativo, mas o contrato de compra e venda por si só não transmite a propriedade, pois a propriedade móvel se transfere através da tradição, e a transferência da propriedade imóvel se dá por meio do registro no cartório de registro imobiliário. O contrato de compra e venda só traz o compromisso do vendedor de transmitir essa propriedade e promover a tradição ou o registro. 1.2. NATUREZA JURÍDICA A respeito da natureza jurídica da compra e venda, esta possui algumas características: Contrato bilateral. Contrato sinalagmático: as duas partes prestam e sabem, como regra, o que estão prestando. Contrato oneroso: há sacrifício patrimonial para ambas as partes. Contrato comutativo: sabe de antemão quais são as prestações. Poderá assumir a forma de contrato aleatório, como é o caso de compra da esperança (ex.: compra da colheita futura). Contrato consensual: reputa-se celebrado o contrato a partir do momento em que há encontro das vontades. O art. 482 diz que, a compra e venda, quando pura, considera-se obrigatória e perfeita, desde que as partes acordem quanto ao objeto e quanto ao preço. 1.3. ELEMENTOS CONSTITUTIVOS São elementos constitutivos da compra e venda: Partes: as partes devem ser capazes. Coisa: a coisa deve ser lícita, determinada ou determinável. A coisa deve ser de propriedade do vendedor, pois se estiver vendendo coisa que não é dele, será denominado de venda a non domino. Nesse caso, a lei nos faz concluir que a venda a non domino é caso de ineficácia perante o seu real proprietário. Preço: deve ser certo e determinado, em moeda nacional corrente, e por um valor nominal, com base no princípio do nominalismo. Categorias especiais de preço - existem algumas categorias especiais de preço: preço por cotação: admitido no art. 487 do CC. Nos casos de compra e venda em que o preço está fixado com base num índice, há um preço por cotação. Este índice permite uma objetiva determinação, pois não há arbitrariedade de uma das partes. Poderá o preço ser fixados com base na taxa de mercado, na bolsa de valores, etc.; 166 Aurélio Bouret preço por avaliação: o art. 485 permite que o preço seja arbitrado pelas partes ou por um terceiro de sua confiança. Ex.: venda de um imóvel, mas chamarão três imobiliárias para fazerem a avaliação; preço tabelado ou preço médio: não são a mesma coisa. O art. 488 do CC diz que, convencionada a venda sem fixação do preço ou sem a fixação de critérios para fixação do preço, senão houver tabelamento oficial (preço fixado pelo Estado), entende-se que as partes se sujeitaram ao preço médio ou corrente, nas vendas habituais do vendedor. o O parágrafo único vai dizer que, não havendo acordo sobre o preço, vai prevalecer o preço médio. Isto é, na falta de acordo sobre o preço, não se presume que está concluída a compra e venda. O parágrafo único do art. 488 somente se aplica se houver uma diversidade de preços habitualmente praticado pelo vendedor. Se o vendedor possui diversos preços praticados, vai valer o termo médio; preço unilateral: o art. 489 consagra a nulidade da compra e venda se a fixação do preço for deixada ao livre arbítrio de uma das partes. No entanto, o preço unilateral é o preço fixado por uma das partes unilateralmente, mas sem que haja a arbitrariedade, sem a liberdade de arbítrio. O que o comando legal veda é o preço manipulado por cartéis. 1.4. ESTRUTURA SINALAGMÁTICA E OS EFEITOS DA COMPRA E VENDA O conceito de sinalagma tem uma relação íntima com o equilíbrio contratual. O direito do comprador é de receber a coisa, mas o devedor tem o direito de receber o preço. Dessa estrutura sinalagmática é possível extrair que os riscos relacionados à coisa, ao preço, ao transporte da coisa, ao registro, vão correr ora por parte do comprador ora por parte do vendedor. Risco em relação a coisa correm por conta do vendedor: é o vendedor que tem a obrigação de entregar a coisa ao comprador. Enquanto não ocorre essa tradição, a coisa é do vendedor. É a tradição que transmite a propriedade (res perit domino). Risco do preço corre por conta do comprador: isso porque ainda não houve a tradição. Despesas com transporte da coisa: via de regra correm por conta do vendedor, salvo se estipularem de forma diferente. Despesas com escritura e despesas com o registro: são pagas pelo comprador. O art. 491 do CC diz que não sendo a venda à crédito ou à prazo, o vendedor não é obrigado entregar a coisa antes de receber o preço. O art. 492 traz a regra que diz que, até o momento da tradição, os riscos correm por conta do vendedor, e os riscos do preço peço comprador. Os casos fortuitos que ocorrerem no ato de contar, marcar ou de assinalar as coisas (ex.: gado marcado e pesado), se elas já estiverem à disposição do comprador, os riscos correrão pelo comprador. Ex.: o vendedor já levou os gados para a fazenda do comprador, situação em que ele já está marcando o gado. Se naquele momento ocorrer um caso fortuito e o gado vier a se perder, os riscos do gado correrão por conta do comprador, visto que a coisa já estava à disposição do comprador. Também correrão os riscos por conta do comprador, se este estiver em mora de receber as coisas, desde que estejam à sua disposição no tempo em que foi ajustado, no modo e da forma ajustada. 167 Aurélio Bouret Em relação à tradição da coisa vendida, se não houver estipulação entre as partes, a tradição irá ocorrer no lugar onde se encontrava a coisa ao tempo em que foi celebrada a venda. As despesas com a tradição via de regra correm pelo vendedor, mas a coisa deverá ser entregue no lugar onde estava quando foi pactuado o contrato, salvo se houver disposição diversa. É possível que as partes negociem a expedição da coisa por parte do vendedor. Isso é comum nas vendas realizadas fora do estabelecimento comercial. Nesses casos, se a coisa é expedida para um lugar diverso, por ordem e por conta do comprador, correrão os riscos por conta dele, salvo se o vendedor não seguir as instruções do comprador. O art. 495 do CC diz que, não obstante o prazo ajustado para o pagamento, se antes da tradição o comprador cair em insolvência civil, poderá o vendedor sobrestar a entrega da coisa até que o comprador lhe dê garantias, seja real ou fidejussória, de que vai pagar o preço por aquela coisa. H, aqui, exceptio non adimpleti contractus, um inadimplemento antes da entrega da coisa. 1.5. RESTRIÇÕES À AUTONOMIA PRIVADA NA COMPRA E VENDA 1.5.1. VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE O art. 496 do CC diz que é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido. O parágrafo único desse dispositivo dispensa o consentimento do cônjuge se o regime for de separação obrigatória de bens. Este dispositivo é uma norma restritiva de direitos, não admitindo interpretação extensiva e nem analogia aos casos de união estável. O prazo para anular essa venda de ascendente para descendente é um prazo decadencial de 2 anos, contado da celebração do negócio. O Enunciado 545 do CJF diz que o prazo para anular esse contrato de 2 anos é contado da ciência do ato, e que esta ciência se presume absolutamente quando houver um registro dessa transferência. A jurisprudência do STJ tem entendido que a anulação da venda de ascendente para descendente só será admissível se houver prova do prejuízo para a parte que levantou essa anulabilidade. 1.5.2. VENDA ENTRE CÔNJUGES Há outra espécie de restrição à autonomia privada. Cônjuge pode comprar do outro cônjuge bens, mas não qualquer bem. O art. 499 possibilita a compra e venda entre cônjuges, desde que o contrato de compra e venda seja compatível com o regime de bens adotado pelo casal. Isso porque só é possível compra e venda de bens excluídos da comunhão. Se o bem estiver dentre aqueles constantes da comunhão, a compra e venda será nula, visto que há a impossibilidade do objeto (art. 166, II). 168 Aurélio Bouret É possível que haja a compra e venda de bens entre cônjuges mesmo que se trate de comunhão universal, pois existem bens excluídos do regime da comunhão universal, como são os bens de uso pessoal e utensílios de trabalho dos cônjuges. Regime de comunhão parcial: a compra e venda poderá se dar desde que seja de bens particulares. Regime de comunhão universal: a compra e venda poderá se dar desde que seja de bens incomunicáveis. Regime de participação final nos aquestos: a compra e venda poderá se dar em relação ao bens que não entram na participação. Regime de separação legal ou convencional: a compra e venda poderá se dar, desde que não haja fraude ou ilicitude. Lembre-se que a má-fé não se presume. Não é porque o indivíduo é casado sob o regime de separação que não poderá vender bens ao seu cônjuge. 1.5.3. VENDA DE BENS SOB ADMINISTRAÇÃO O art. 497 diz que não podem ser comprados, ainda que estejam em hasta pública, pelos tutores, curadores, testamenteiros, administradores, os bens confiados à sua guarda ou administração. Neste caso, haveria um conflito de interesses. Ademais, é vedada a compra pelos servidores públicos em geral dos bens e dos direitos da pessoa jurídica a que estes servidores servirem ou dos bens que estiverem sob a sua administração direta ou indireta. A lei está buscando impedir a ocorrência de situações nas quais a atividade funcional da pessoa possa influir no negócio que será firmado, e o agente ser beneficiado pela influência que sustenta. É ainda vedada a compra pelos juízes e serventuários em geral dos bens a que se litigar no tribunal em que servirem, tanto o juiz quanto os serventuários da justiça. Também não poderá comprar os bens o leiloeiro ou seus pressupostos quanto aos bens cuja venda esteja encarregado. Perceba que há uma vedação de cunho moral. Mais uma vez o STJ faz uma interpretação no sentido de que o juiz não pode comprar um bem que esteja no seu tribunal, mas poderá comprar em outro tribunal, assim como os servidores. Isso porque se não há risco da influência não há prejuízo e nem ilegalidade. 1.5.4. VENDA DE BENS EM CONDOMÍNIO O art. 504 do CC diz que um condômino não pode, em relação ao condomínio de coisa indivisível, vender a sua parte a estranhos se outro condômino quiser tanto por tanto, ou seja, em igualdade de condições. Há uma espécie de preempção legal. O condômino, se não tiver o conhecimento da venda, poderá simplesmente depositar o preço, e haver para si a coisa vendida para um terceiro ou estranho, desde que o faça em 180 dias. Este prazo é decadencial. Contudo, o STJ julgou recentemente um caso em que, ao conceder o direito de preferência aos demais condôminos, o que o legislador procurou foi conciliar objetivos particulares do vendedor com o intuito da comunidade dos coproprietários. É a ideia de que a função social recomenda que é mais cômodo manter a propriedade entre os seus titulares, 169 Aurélio Bouret evitando que haja desentendimentos naquele condomínio pela entrada de um estranho. É uma hipótese de preferência legal. O STJ entende que, se o imóvel se encontra em estado de indivisão, apesar de este imóvel ser divisível, ainda assim há de se reconhecer o direito de preferência do condômino que pretenda adquirir o quinhão do comunheiro. Há uma restrição da autonomia privada. Ou seja, se o vendedor condômino quiser vender por 100 mil reais o imóvel a um terceiro, mas o condômino oferecer 100 mil reais, deverá vender a este. Parte da doutrina entende que, sendo preterido o condômino, deverá propor a ação anulatória da compra e venda feita. Porém, encontra-se um entendimento no sentido de que deve ser proposta uma ação de adjudicação, pois o principal efeito da ação é constituir positivamente a venda para o condômino que foi preterido. Portanto, estaríamos diante de uma ação de adjudicação e não anulatória. Questiona-se: o prazo de 180 dias é contado de quando? A lei não diz. Maria Helena Diniz diz que esse prazo de 180 dias é contado da data da alienação do bem. Sílvio Venosa diz que o prazo começa a correr da data em que o condômino tomar ciência do negócio, ou do registro imobiliário, no caso de imóvel. Sendo muitos os condôminos, como se saber qual tem a preferência? A lei traz uma ordem que deve ser respeitada: 1. quem tiver benfeitoria de maior valor; 2. quem tiver o maior quinhão; 3. quem depositar judicialmente o preço. 1.6. REGRAS ESPECIAIS DA COMPRA E VENDA 1.6.1. VENDA POR AMOSTRA (POR PROTÓTIPO OU POR MODELO) É uma compra e venda que funciona como condição suspensiva. Isso é comum no caso dos mascates que passavam nas casas com amostras de tecidos. Caso a pessoa se interessasse por aquele pedaço de tecido, faria um pedido de 5, 10, 20, 40 metros, e o vendedor pediria para a fábrica fazer. Havia ali uma promessa de entrega das peças ou do tecido, conforme o mostruário. A venda por amostra tem a eficácia suspensiva, de forma que não ocorre o aperfeiçoamento do negócio até que haja a tradição com a qualidade esperada do bem que foi adquirido. Se os bens não foram entregues conforme o que foi contratado, o contratante poderá simplesmente não aceitar. O contrato de compra e venda será desfeito, por uma condição resolutiva, visto que o produto não tem a qualidade da amostra do produto apresentado. O parágrafo único do art. 484 do CC diz que vai prevalecer a amostra, se houver uma contradição ou ao modo de descrição da coisa no contrato. O dispositivo está dizendo que se o sujeito apareceu na loja e disse que era egípcio e depois constar no contrato de que o fio era chinês, a amostra irá prevalecer, por uma questão de boa-fé. 170 Aurélio Bouret 1.6.2. VENDA A CONTENTO OU SUJEITA À PROVA A venda a contento ou sujeita à prova são tratadas como cláusulas especiais no contrato de compra e venda. Muitas vezes serão presumidas em alguns contratos, não precisando de previsão expressa algumas vezes. Ex.: no caso dos vinhos, o garçom coloca um pouco para que o cliente verifique a qualidade do vinho. No momento em que concorda, a pessoa concorda com a venda, estando implementada a condição suspensiva. A venda não se aperfeiçoa enquanto o comprador não se declara satisfeito com o bem que está sendo adquirido. Há uma condição suspensiva. Na venda a contento, a tradição não transfere a propriedade, mas apenas da posse. Há a posse direta, pois, enquanto o comprador não manifestar a vontade, as obrigações que ele teria é de simples comodatário. A rejeição funcionará como uma condição resolutiva do contrato. No caso de venda a contento, o prazo para manifestação do comprador, quando não for de imediato (como no vinho), o vendedor tem o direito de intimar esse comprador, judicial ou extrajudicialmente, para que se manifeste sobre a venda (art. 582). Quando é intimado, surge para o comprador o dever de pagar até a restituição da coisa um aluguel que será arbitrado pelo comodante a título de pena, e será cabível eventual reintegração de posse. Foi promovida uma venda a contento, mas o sujeito não se manifestou. O vendedor interpelou o comprador para que ele se manifestasse em 2 dias, para que este se manifestasse ou para que este pagasse a coisa. Se ele não paga e nem devolve, passados os 2 dias, considera-se como se houve uma locação, havendo a necessidade de pagar um aluguel cabível, bem como ação de reintegração de posse. Qual a diferença entre venda a contento e a venda sujeita a prova? Na venda a contento, o comprador não conhece o bem, sendo necessário provar e manifestar a vontade de celebrar o contrato. Na venda sujeita à prova, a coisa já é conhecida, mas o comprador somente necessita da prova de que o bem é o mesmo que ele já conhece, tendo todas as qualidades assegurada ao vendedor. 1.6.3. VENDA POR MEDIDA A venda por medida, também denominada de venda ad mensuram. Nesse caso, as partes podem estipular um preço por medida de extensão. Nessa situação, a medida passa a ser uma condição essencial do contrato. Na venda ad mensuram, a área do imóvel não é apenas enunciativa, sendo simplesmente enunciativa no caso da venda ad corpus, situação em que se vende um corpo certo (ex.: rancho, chácara, etc.). Na venda ad mensuram, o comprador está comprando com base na metragem,caso em que a compra e venda terá a área como essencial, como é o caso de compra e venda de imóvel por metro quadrado. No caso de venda por extensão, admite-se que haja uma variação de até 5% (ou seja, até um vigésimo da área). Existe uma presunção relativa de que essa variação de 5% a mais ou a menos é tolerável pelo comprador. No entanto, se houver uma variação superior ao tolerável, então haverá um vício. Neste caso, o comprador poderá exigir: 171 Aurélio Bouret complementação da área; abatimento do preço (ação quanti minoris); resolução do contrato. Nesse caso, se ficar evidenciada a má-fé do vendedor, vem cumulada com perdas e danos, com uma indenização em razão do comportamento. O prazo decadencial é de 1 ano, contado do registro do título, conforme art. 501 do CC. O prazo não corre enquanto o interessado não for imitido na posse. Se a venda for realizada ad corpus, ou seja, imóvel vendido como coisa certa, não caberão os pedidos de complementação, abatimento do preço ou resolução do contrato. 1.6.4. VENDA DE COISAS CONJUNTAS Não se confunde com a venda casada, que é vedado. A prática do contrato de venda permite a venda de coisas conjuntas permite. Ex.: compra de um rebanho bovino. Há uma universalidade de fato. Nas coisas vendidas conjuntamente, o defeito oculto de uma coisa não autoriza a rejeição de todas. Se for comprado um rebanho bovino e somente uma vaca apresentar vício, impede-se a rejeição de todos os bovinos. O art. 503, que se refere a vendas conjuntas, não pode ser aplicado a casos em que a venda seja coletiva, que é diferente daquelas. No caso de venda coletiva, as coisas vendidas formam um todo só. Por exemplo, se a compra de um par de sapatos, um deles apresentar problema, poderá devolver os dois para adquirir novos, pois a venda é coletiva. 1.7. CLÁUSULAS ESPECIAIS DA COMPRA E VENDA Há aqui previsões que alteram os efeitos da compra e venda, dando a ela uma feição diferenciada. O CC consagra: cláusula de retrovenda; cláusula de venda a contento ou venda sujeita à prova; cláusula de preempção convencional; cláusula de venda com reserva de domínio; cláusula de venda de documentos. As cláusulas especiais, para que tenham eficácia e validade, devem estar expressamente previstas no instrumento. Este é um ponto em que se diferenciam das regras especiais. Nas regras especiais não é necessário que conste expressamente esta previsão. 1.7.1. CLÁUSULA DE RETROVENDA Cláusula de retrovenda é um pacto inserido no contrato pelo qual o vendedor reserva-se o direito de reaver o imóvel dentro de um certo prazo. Nesse caso, restitui o preço e as despesas feitas pelo comprador, mas reaverá o imóvel. O prazo máximo que decorre o direito à retrovenda é de 3 anos. 172 Aurélio Bouret Cláusula de retrovenda só é admitida nos contratos de compra e venda de bens imóveis. Essa cláusula torna a propriedade resolúvel, e portanto tem-se aqui uma cláusula resolutiva expressa. Se o comprador se recusa as quantias a que ele faz jus, o vendedor deverá depositar judicialmente esse valor, propondo uma ação de resgate (art. 506). O direito de resgate poderá ser exercido pelo vendedor e também pelos herdeiros e legatários, isso em relação ao terceiro adquirente, já que consta cláusula expressa registrada. Perceba-se que há uma transmissão causa mortis da cláusula de retrovenda, discutindo a doutrina se seria possível a transmissão inter vivos da cláusula de retrovenda, inclusive de forma onerosa. A lei diz que é transmissível da cláusula de retrovenda do vendedor para os herdeiros e legatários. No caso de transmissão onerosa da cláusula de retrovenda, a professora Maria Helena Diniz diz não ser possível, pois traria um direito personalíssimo do vendedor. Paulo Lôbo diz ser possível em virtude de que não há qualquer proibição nesse sentido pelo Código Civil. O art. 508 do CC trata da retrovenda feita por condôminos, quando duas ou mais pessoas têm o direito de retrato, mas apenas uma delas o exerce, o comprador poderá intimar a outra ou as outras para acordarem com essa retrovenda. Mesmo nesse caso, prevalecerá o pacto em favor de quem tenha depositado o valor pago pela coisa e pelas despesas do comprador, desde que esse valor seja integral. 1.7.2. CLÁUSULA DE PREEMPÇÃO A cláusula de preempção é a cláusula pela qual o comprador de um bem móvel ou imóvel tem a obrigação de oferecer este bem àquele que o vendeu, podendo essa intimação ser judicial ou extrajudicial, a fim de que o vendedor use o seu direito de prelação, em igualdade de condições com o terceiro. Isso se o comprador decidir vender a coisa. Essa cláusula poderá estar prevista no contrato. O art. 513, parágrafo único, diz que a preferência abrangerá o prazo de 180 dias se for bem móvel, ou de até 2 anos se for bem imóvel. Tais prazos devem ser contados da data da realização da venda. Após o decurso desses prazos, é finda a preferência. Portanto, é possível a venda do bem a outrem, sem direito de preferência. Se, dentro do período de preferência, o comprador decidir vender o bem, o vendedor deverá ser notificado judicial ou extrajudicialmente. O direito de preferência caducará se a coisa for móvel, se não exercer esse direito de preferência em 3 dias. Sendo a coisa imóvel, terá o prazo de 60 dias para exercer o direito de preferência, a contar da data em que o vendedor foi notificado pelo comprador para exercer o direito de preferência. O Código Civil diz que, aquele que exerce a preferência tem a obrigação de pagar o preço ajustado ou encontrado em igualdade de condições com terceiro, sob pena de perder o direito de preferência. 173 Aurélio Bouret O vendedor que tenha sido preterido no seu direito de preferência, caso seja a preempção convencional, o vendedor não poderá anular a venda. Se fosse uma prelação legal (ex.: condômino), poderá fazer a adjudicação do bem. No entanto, no caso de preempção convencional, se o vendedor for preterido, caberá apenas o direito de ação visando a reparação de danos, mesmo que o adquirente tenha adquirido o bem por má-fé (art. 518). O art. 519 diz que, se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destinado para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado o direito de preferência pelo preço atual da coisa. Este dispositivo consagra o direito de retrocessão. Indaga-se: esse direito de preferência terá natureza real ou natureza pessoal? O STJ já entendeu que os efeitos são de natureza meramente pessoais, cabendo portanto ao expropriado o direito de pleitear perdas e danos no caso de tredestinação. Por outro lado, também há decisões do STJ reconhecendo eficácia real do direito de retrocessão. Tartuce concorda que esse direito de retrocessão tem natureza real. O art. 520 diz que o direito de preferência não se pode ceder, e também não passa aos herdeiros. É, aqui, reconhecida a intransmissibilidade do direito de preferência, seja mortis causa, seja inter vivos. A preferência convencional não se transmite aos herdeiros. 1.7.3. CLÁUSULA DE VENDA SOBRE DOCUMENTOS Pela cláusula de venda sobre documentos, que tem por objeto bens móveis, a tradição será substituída pela entrega de um documento correspondente à propriedade (título representativo do domínio), conforme art. 529 do CC. Se estiver prevista essa cláusula de venda sobre documentos, e essa documentação estiver em ordem, o comprador não pode recusar pagamento, alegando que há um defeito na qualidade da cosia ou no estado da coisa, salvo se o defeito estiver efetivamente comprovado. Veja, o parágrafo único do art. 529 diz que, achando-se a documentação em ordem, não pode o comprador recusar o pagamento, a pretexto de defeito de qualidade ou do estado da coisa vendida, salvo se o defeito já houver sido comprovado. Isso porque o comprador ainda nem sequer tem a coisa consigo. Com essa transferência do documento que transfere a propriedade, o pagamento deverá ocorrer na data e no lugar em que ocorrer essa entrega do documento. Quando o documento é entregue, o preço deverá ser pago. O art. 532 diz que, estipulado o pagamento por intermédio de estabelecimento bancário, caberá ao banco efetuar esse pagamento com a entrega dos documentos, não tendo o banco a obrigação de verificar a coisa vendida, pela qual não responde. O parágrafo único diz que, nesse caso, somente após a recusa do estabelecimento bancário a efetuar o pagamento, poderá o vendedor pretendê-lo, diretamente do comprador. 1.7.4. CLÁUSULA DE VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO Ocorre a cláusula de venda com reserva de domínio quando o vendedor vende a coisa, mas continua tendo o domínio. Por meio dessa cláusula, inserida no contrato de coisa móvel infungível, o vendedor mantém o domínio da coisa, mas até que haja o pagamento integral pelo comprador. 174 Aurélio Bouret O comprador receberá a posse direta da coisa, mas a propriedade continua sendo do vendedor, sendo esta resolúvel, visto que, uma vez pagando o comprador, a propriedade passa a ser dele. Pelos riscos da coisa, responderá o comprador (res perit emptoris), ou seja, é uma exceção à res perit domino, sendo uma forma de viabilizar a cláusula com reserva de domínio. O art. 522 consagra como formalidade para a cláusula de venda com reserva de domínio que sua estipulação se dê por escrito e haja registro no cartório de títulos e documentos do domicílio do comprador. Segundo o CC, esta é uma condição de validade perante terceiros de boa-fé. Em verdade não é uma condição de validade, mas sim de eficácia, pois não levando a registro não deixará de ser válida, e sim ineficaz perante terceiros. E se houver mora ou inadimplemento absoluto? O vendedor poderá promover uma ação de cobrança das parcelas vencidas e que não foram efetivamente pagas. Essa é uma opção. A segunda é o vendedor recuperar a posse da coisa, já que ele é o proprietário da coisa. No entanto, como é que o vendedor vai recuperar a posse da coisa? Flávio Tartuce entende que será por meio da reintegração de posse. Daniel Assunção entende que será o procedimento comum com tutela de urgência, mas não se sabe como a jurisprudência vai se posicionar. O art. 525 diz que o vendedor somente poderá executar a cláusula de reserva de domínio após constituir o comprador em mora, mediante protesto do título ou interpelação judicial. Vale ressaltar que a teoria do adimplemento substancial também vai promover mudanças e mitigações na chamada cláusula de reserva de domínio. Ex.: sujeito pagou 90% das parcelas, não poderá o contrato simplesmente ser desfeito, devendo preservá-lo e promover a ação de cobrança, a fim de que cobre as parcelas vencidas e as vincendas. É preciso diferenciar da cláusula de venda de reserva com domínio de contrato de alienação fiduciária e do leasing (arrendamento mercantil): cláusula de venda com reserva com domínio: há uma cláusula especial de compra e venda. Implica que o domínio permaneça nas mãos do devedor; alienação fiduciária: há um direito real de garantia. O devedor é o fiduciante que compra o bem de um terceiro, mas não podendo pagar, pegará o dinheiro com a instituição financeira, e para garantir o pagamento a esta instituição financeira, transferirá a propriedade a esse credor fiduciário. Há aqui também uma propriedade resolúvel, mas esta é de terceiro, e não do próprio vendedor; leasing (arrendamento mercantil): há um contrato. Há um contrato de locação com opção de compra. A opção de compra se dá com o pagamento do valor residual garantido (VRG). 1.8. TERRENOS DA MARINHA Terrenos de marinha são todos aqueles que, banhados pelas águas do mar ou dos rios e lagoas navegáveis, vão até a distância de 33 metros para a parte da terra contados da linha do preamar médio, medida em 1831. Os terrenos de marinha são bens da União. Isso se justifica por se tratar de uma região estratégica em termos de defesa e de segurança nacional. 175 Aurélio Bouret Segundo José dos Santos, em algumas regiões, a União permitiu que particulares utilizassem, de forma privada, imóveis localizados em terrenos de marinha. Como essas áreas pertencem à União, o uso por particulares é admitido pelo regime da enfiteuse (aforamento). A enfiteuse funciona da seguinte forma, a União (senhorio direto) transfere ao particular (enfiteuta) o domínio útil, este particular passa a ter a obrigação de pagar anualmente uma importância a título de foro ou pensão. O particular (enfiteuta) pode transferir para outras pessoas o domínio útil que exerce sobre o bem. Todavia, a pessoa que transferir o domínio útil do imóvel deverá pagar 5% do valor do domínio útil à União. Esse valor é chamado de laudêmio e seu pagamento está previsto no art. 3º do Decreto-Lei nº 2.398/87. O STJ entende que será nulo o contrato o contrato firmado entre particulares de compra e venda de imóvel de propriedade da União quando ausente o prévio recolhimento do laudêmio e a certidão da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), ainda que o pacto tenha sido registrado no Cartório competente. Vale ressaltar que a prévia autorização da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) não é mera formalidade, pois, segundo entende o STJ, a comunicação do negócio jurídico formalizado entre o ocupante e terceiro à SPU não se reveste de ato de mera formalidade, mas se constitui em medida de essencial importância e que produz efeitos jurídicos relevantes, uma vez que a União é a proprietária do terreno de marinha e, nessa qualidade, deverá estar sempre a par e consentir com a utilização de bem que lhe pertence. Tais bens públicos são da espécie “bens dominicais”, os quais, apesar de não estarem sendo utilizados para a realização de uma finalidade pública, o regime jurídico dos bens dominicais é híbrido, aplicando-se as normas de direito público e de direito privado. O contrato de compra e venda de um bem dominical deve respeitar formalidades legais mais rígidas do que se fosse um bem de um particular. O tabelião de notas poderia ter lavrado a escritura de compra e venda e o oficial do Registro de Imóveis não pode registrar o título sem a prova do pagamento do laudêmio. É dever dos tabeliães e registradores, antes de lavrar ou registrar a escritura, exigir a certidão da SPU, na qual estará declarado que houve o pagamento do laudêmio e cumprimento das demais formalidades. 2. TROCA OU PERMUTA 2.1. CONCEITO Troca ou permuta é conceituado como sendo um contrato através do qual as partes se obrigam a dar uma coisa para receber outra coisa, não podendo esta coisa ser dinheiro, pois do contrário haveria compra e venda. Há aqui um contrato bilateral, oneroso (as duas partes realizam sacrifício patrimonial), comutativo (as duas partes conhecem as prestações a que se submetem), translativo da propriedade (cada uma das partes assume essa propriedade), contrato consensual (o contrato se aperfeiçoa com o simples encontro das vontades). A permuta vai gerar para cada contratante a obrigação de transferir ao outro contratante o domínio da coisa, que é o objeto da prestação. Em relação às despesas com a tradição, o art. 533, I, vai consagrar, via de regra, a divisão em igualdade, mas o contrato poderá dispor de forma diferente. Aplicam-se, residualmente, à troca as disposições referentes à compra e venda. 176 Aurélio Bouret Ressalte-se a distinção de que, na compra e venda, o vendedor, após a entrega da coisa vendida, não poderá pedir a devolução da coisa pelo fato de não ter recebido o preço. Na troca, o tradente (permutante) tem o direito de pedir de volta o que deu se a outra parte não lhe entregar o objeto permutado, ou seja, não cumprir a sua obrigação. 2.2. TROCA ENTRE ASCENDENTES E DESCENDENTES O art. 533, II, diz que é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, se não houver o consentimento dos demais descendentes e do cônjuge do alienante. Veja que o art. 533 fala de trocas desiguais. Ou seja, se estiver diante de troca s coisas iguais, não é necessário o consentimento dos demais descendentes e do cônjuge do alienante. O raciocínio é o mesmo para o caso em que o descendente der coisa mais valiosa ao ascendente e este dá a ele uma coisa menos valiosa, sendo desnecessário o consentimento dos demais descendentes e do cônjuge. 3. CONTRATO ESTIMÁTORIO 3.1. CONCEITO O contrato estimatório é também denominado de venda em consignação. Nesse contrato, o consignante vai transferir ao consignatário bem móveis, a fim de que o consignatário venda esses bens por um preço estimado. Ou o consignatário vende esses bens, pagando um preço estimado, ou terminado o contrato sem venda, devolverá esses bens no prazo ajustado (art. 534). Há aqui um contrato bilateral, oneroso, real (pois se aperfeiçoa com a entrega da cosia consignada) e comutativo. Parcela da doutrina vai dizer que, na verdade, esse contrato não seria bilateral, pois quando ele nasce apenas uma das partes tem a obrigação. Antes de nascer, o consignante entrega a coisa, mas quando termina de entregar a coisa é que nasce o contrato estimatório, passando a apenas o consignatário a ter a obrigação de pagar ou de devolver. Portanto, seria um contrato unilateral, mas oneroso. 3.2. NATUREZA JURÍDICA Há um grande debate sobre a natureza jurídica da obrigação assumida pelo consignatário. 1ª Corrente: Alguns autores vão entender que essa obrigação assumida por ele é alternativa. Isso se dá pelo fato de poder escolher se ele devolve a coisa ou se ele paga o preço. Caio Mário, Tartuce, Lôbo e Samer. 2ª Corrente: Outros dizem que a obrigação é facultativa, devendo ele pagar, mas caso não queira poderá devolver. Maria Helena Diniz, Simão e Venosa entendem dessa forma. O consignatário poderá devolver a coisa ou pagar. Isso é majoritário. 177 Aurélio Bouret O consignante mantém a condição de proprietário da coisa. O art. 536 diz que a coisa consignada não pode ser objeto de penhora ou sequestro pelos credores do consignatário, enquanto não pagar integralmente o preço. Isso porque a coisa não é dele. O art. 537 diz que o consignante não pode dispor da coisa antes de lhe ser restituída ou de lhe ser comunicada a restituição. Isso quer dizer que há exigência de um comportamento de boa-fé, dentro do esperado pelo consignante. Findo o prazo do contrato, o consignante tem duas opções: cobrar o preço de estima ou promover a ação de reintegração da posse, a fim de reaver o bem cedido. Lógico que isto se considerarmos a obrigação alternativa. Caso seja considerada obrigação facultativa, o único dever que o consignatário tem é de pagar a coisa. Findo o prazo, o credor poderia apenas propor a ação de cobrança e não poderia propor a ação de reintegração de posse. Daí a importância de se definir se a obrigação é alternativa ou facultativa. 3.3. RESPONSABILIDADE PELA PERDA DA COISA CONSIGNADA O art. 535 diz que o consignatário não se exonera da obrigação de pagar o preço, se a restituição da coisa, em sua integridade, se tornar impossível, ainda que por fato a ele não imputável. Percebe-se que deverá ter de pagar a coisa, já que não consegue devolver. Isso porque passa a ser de sua responsabilidade. 4. DOAÇÃO 4.1. INTRODUÇÃO Doação é um contrato benéfico, unilateral e gratuito. Por essa razão só será admitida interpretação restritiva, conforme art. 114. Em relação à doação com encargo (modal), entende-se que continua diante de um contrato unilateral, mas unilateral imperfeito. Isso porque existe o encargo, mas este não constitui uma contraprestação. O encargo é um ônus, mas que não tem o peso de uma contraprestação. Existe entendimento em sentido diverso, mas este é o que prevalece. A controvérsia existe em relação à aceitação do donatário. A aceitação do donatário é requisito essencial do contrato de doação? Maria Helena Diniz diz que a doação não se aperfeiçoa enquanto o donatário não manifestar a sua aceitação. Paulo Luiz Netto Lôbo vai dizer que a aceitação é simplesmente um elemento complementar, ligado à eficácia da doação, não sendo elemento essencial da doação. Flávio Tartuce concorda com esse entendimento, dizendo que a aceitação se encontra no plano da eficácia e não da validade. O art. 539 diz que o doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não se manifeste dentro dele a declaração, entende-se que a aceitou, desde que a doação seja pura, ou seja, não seja sujeita a encargo (modal). Eventual silencio do doador traz uma presunção relativa de aceitação. 178 Aurélio Bouret Inclusive, dispensa-se a aceitação expressa quando se tratar de doação pura, feita em favor de absolutamente incapaz. É o que diz no art. 543. A aceitação ainda pode ser tácita, na hipótese de doação feita em contemplação a casamento futuro. Quando os nubentes se casam, há uma aceitação tácita. Pode ser feita de um nubente para eles, de um terceiro em favor dos nubentes, aos filhos que no futuro casamento advierem, etc. Havendo casamento, há uma aceitação tácita. O art. 546 diz que, nessa situação, a celebração do casamento gera uma presunção de aceitação. São características do contrato de doação o fato de ser um contrato consensual (aperfeiçoa com o encontro de vontades), contrato formal (pode ser solene, escrito, e eventualmente até pode ser verbal). A doação solene ocorrerá nos casos de doação de imóvel com valor superior a 30 salários mínimos. A doação será formal e não solene, nos casos envolvendo casos de imóvel inferior ou igual a 30 salários mínimos e nos bens móveis. O art. 541, parágrafo único, diz que a doação de bens móveis e de pequeno valor poderá ser verbal seguida da tradição. 4.2. MODALIDADES DE DOAÇÃO 4.2.1. DOAÇÃO REMUNERATÓRIA A doação remuneratória é uma doação em forma de remuneração. Tem como característica a retribuição de um serviço prestado pelo donatário. Todavia, vale lembrar que esse serviço originariamente não seria cobrado pelo donatário. Ex.: doação de um automóvel feita ao médico que salvou a vida do doador. Neste caso, o carro vale 40 mil e a cirurgia feita pelo médico vale 30 mil, ainda que tenha sido gratuita. Porém, em relação aos 10 mil é que haverá a liberalidade. A lei diz que só há liberalidade na parte que excede o valor do serviço prestado. A análise da doação remuneratória é interessante por três razões principais: cabe alegação de vício redibitório em relação ao bem doado, já que a doação é remuneratória; mesmo nos casos de ingratidão, as doações remuneratórias não podem ser revogadas; as doações remuneratórias de serviços feitos ao ascendente não estão sujeitas à colação, não devendo ser trazidas ao inventário. 4.2.2. DOAÇÃO CONTEMPLATIVA A doação contemplativa (ou meritória) é baseada na condição pessoal do indivíduo, baseada no merecimento do donatário. O art. 540 diz que a doação contemplativa é aquela feita em contemplação a um merecimento do donatário, de modo que esta não perde o caráter de liberalidade. O doador declara expressamente quais os motivos da sua doação. Normalmente o doador leva em consideração uma característica pessoal do donatário. Ex.: doam-se os livros ao professor, pois é um excelente leitor e estudioso. 179 Aurélio Bouret 4.2.3. DOAÇÃO AO NASCITURO O art. 542 diz que a doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal. Será o representante legal que aceita a doação ao nascituro. Na doação ao nascituro, o contrato está válido, mas a eficácia da doação depende do nascimento com vida do donatário, estando em uma condição suspensiva. Portanto, se está diante de uma doação condicional. Entende-se possível a doação a uma prole eventual, nem ter sido concebida ainda. Este entendimento é confirmado pelo art. 1.800, §4º, que diz que se, decorridos 2 anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos. O doador morreu, mas antes de morrer doou o bem a uma prole eventual. Se depois da morte, passados 2 anos, a prole eventual não foi concebida, passa-se os bens aos herdeiros, objeto da doação. 4.2.4. DOAÇÃO SOB FORMA DE SUBVENÇÃO PERIÓDICA Subvenção periódica é dar a alguém algo periodicamente. Há aqui uma doação de trato sucessivo, situação na qual o doador vai estipular rendas a favor do donatário (art. 545). Em regra, terá como causa extintiva a doação sob forma de subvenção periódica a morte do doador ou do donatário. Quem morrer primeiro extinguirá a doação. Atente-se que a doação sob forma de subvenção periódica poderá ultrapassar a vida do doador, se houver previsão contratual nesse sentido. Nunca vai ultrapassar a vida do donatário, tendo como característica intuito personae. 4.2.5. DOAÇÃO EM CONTEMPLAÇÃO DE CASAMENTO FUTURO A doação em contemplação de casamento futuro é aquela em que o sujeito diz que se João casar com Maria, eles receberão um imóvel. É a denominada doação propter nuptias. Essa doação é feita a pessoa certa e determinada, e, portanto, é uma doação condicional. Essa doação pode ser feita entre os nubentes, por um terceiro que faça a um deles ou a ambos, ou a favor dos filhos que nascerem àquele casamento. 4.2.6. DOAÇÃO PODERÁ SER DE ASCENDENTES A DESCENDENTES E DOAÇÃO ENTRE CÔNJUGES A doação poderá ser de ascendentes a descendentes e doação entre cônjuges. O art. 544 diz que as doações de ascendentes a descendentes e doação entre cônjuges importam em adiantamento do que lhes cabe por herança. Há uma preocupação com a legítima. Há uma presunção de que aquilo que foi recebido antes será adiantamento da herança. Então, quando for aberto o inventário deverá ser trazido o bem ao processo. 180 Aurélio Bouret No caso de doação de ascendentes a descendentes, os bens deverão ser colacionados ao processo de inventário pelo descendente que recebeu o bem, sob pena de ser considerado sonegado, perdendo o direito que tem sobre a coisa. É possível que o doador dispense essa colação, caso em que o donatário não precisará trazer o bem ao inventário. A doação entre cônjuges é plenamente válida e possível, desde que o bem doado não seja integrante de patrimônio comum do casal, como é o bem particular. O que não se admite é a doação de bem comum do casal. 4.2.7. DOAÇÃO COM CLÁUSULA DE REVERSÃO A doação com cláusula de reversão é aquela em que o doador estipula que os bens doados voltem ao patrimônio do doador, caso ele sobreviva ao donatário. O que há aqui é uma condição resolutiva expressa (art. 547). Atente-se que não se pode estipular que, se o donatário morrer, os bens serão destinados a João, pois estaria havendo pacta corvina, discutindo herança de pessoa viva. Se o doador morrer antes do donatário, esta condição jamais ocorrerá, incorporandose os bens definitivamente ao patrimônio do donatário, pois a condição resolutiva não se implementará. A cláusula de reversão não torna o bem inalienável, podendo o donatário alienar o bem. Porém, se alienar o bem e vier a falecer antes do doador, essa alienação é sem efeito perante o doador. Torna-se com a implementação da condição resolutiva, conforme art. 1.359. 4.2.8. DOAÇÃO CONJUNTIVA A doação conjuntiva é aquela que conta com a presença de 2 ou mais donatários, havendo uma obrigação divisível, e que será doado o bem para 2, 3 ou 4 donatários. Há uma presunção relativa de divisão igualitária da coisa entre os donatários. Em regra, não existe direito de acrescer entre os donatários. Isto é, foi doado um bem a 4 pessoas, mas um dos donatários morreu, agora a parte dele vai para os herdeiros, não havendo direito de acrescer aos demais. Isso é a regra, tendo em vista que o direito de acrescer poderá estar previsto no contrato, ou mesmo em lei, conforme o art. 551, parágrafo único. O art. 551, parágrafo único, traz o direito de acrescer legal quando os donatários forem marido e mulher, caso em que, caso a mulher morra, passa tudo para o marido. 4.2.9. DOAÇÃO MANUAL A doação manual é a doação com a mão, situação em que há uma tradição imediata, tratando-se da doação que se dá com a tradição. Lembre-se que é o caso da doação verbal que se consuma com a tradição, sendo certo que se trata de coisa de pequeno valor (art. 541, parágrafo único). 181 Aurélio Bouret 4.2.10. DOAÇÃO INOFICIOSA A doação inoficiosa é aquela prevista no art. 549, a qual estabelece que é nula a doação quanto à parte que exceder o limite de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. É a doação que prejudica a legítima. Não é toda doação que é considerada nula, atingindo somente a parte que exceder à legítima. Ex.: João tem um patrimônio de 1 milhão de reais, tendo 79 anos e dois filhos. Arrumou uma namorada de 18 anos, decidindo doar a ela 700 mil reais. João não poderia doar 700 mil, pois 50% do seu patrimônio integra a legítima. Portanto se doou 700 mil, considera-se 200 mil nulos, angariando 500 mil. Segundo o STJ, aplicam-se às pretensões declaratória de nulidade de doações inoficiosas o prazo prescricional de 10 anos para o ajuizamento dessa ação. A ação só pode ser proposta por quem é interessado na declaração de nulidade, ou seja, pelos herdeiros do doador. 4.2.11. DOAÇÃO UNIVERSAL A doação universal é a doação do universo de bens. O art. 548 diz que é nula a doação de todos os bens sem a reserva do mínimo para a sobrevivência do doador. Portanto a doação universal é vedada, caso não haja reserva para sobrevivência do doador. Há a consagração do estatuto do patrimônio mínimo do Ministro Luiz Edson Fachin. É preciso fazer uma leitura adequada do art. 548, chegando à conclusão de que poderá a pessoa doar todo o seu patrimônio, desde que faça reserva de usufruto ou de rendas a seu favor. Ex.: sujeito doa o seu único apartamento com a cláusula de usufruto de que os valores do aluguel serão dele. 4.2.12. DOAÇÃO DO CÔNJUGE ADÚLTERO AO SEU CÚMPLICE O art. 550 diz que a doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice na traição é anulável, desde que proposta a ação anulatória pelo outro cônjuge ou pelos herdeiros necessários, até 2 anos após a dissolução da sociedade conjugal. Essa dissolução vem com a separação judicial ou divórcio. Esse dispositivo não pode ser aplicado quando o doador vive em união estável com o donatário. Isto ocorre quando o doador está separado de fato do cônjuge. 4.2.13. DOAÇÃO A ENTIDADE FUTURA Doação a entidade futura ocorre quando a entidade irá existir. 182 Aurélio Bouret A doação feita por uma pessoa a uma pessoa jurídica que ainda não existe, condicionando a eficácia da doação à regular constituição dessa sociedade é a doação a entidade futura. Caso a entidade não seja constituída no prazo de 2 anos, a contar da doação, caducará a doação. 4.3. PROMESSA DE DOAÇÃO Existe uma discussão se é possível um contrato preliminar de doação, o qual será unilateral sobre uma liberalidade futura. Uma das partes compromete-se a celebrar um contrato de doação no futuro. Tartuce entende que é possível. Admitida a validade e eficácia do negócio, o futuro beneficiário, que tem um contrato preliminar a seu favor, terá o direito de exigir o cumprimento dessa promessa. 4.4. REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO A revogação da doação é uma forma de resilição unilateral, por conta da perda da confiança. É reconhecido esse instituto como um direito potestativo em favor do doador. A revogação poderá se dar por dois motivos: ingratidão do donatário; O art. 556 proíbe que exista a renúncia prévia do doador ao direito de revogar a doação por ingratidão. Isso não impede que, tendo ocorrido o ato de ingratidão, ainda assim não revogue. O que não pode é renunciar previamente. O art. 557 traz um rol exemplificativo de casos que podem motivar a revogação por ingratidão: donatário atentou contra a vida do doador: se conseguir consumar a morte do doador, quem terá legitimidade será os seus herdeiros; donatário atentou fisicamente contra o doador; donatário injuriou gravemente o doador ou se caluniou; se, podendo ministrar alimentos ao doador, o donatário tenha se recusado a prestar; quando o donatário causar uma das hipóteses acima em face do cônjuge, ascendente, descendente, ainda que adotivo, ou irmão do doador. O art. 561 diz que, no caso de homicídio doloso do doador, a ação caberá aos seus herdeiros, exceto se aquele houver perdoado. A única opção de perdoar o donatário no caso de ter sido morto pelo donatário, é o caso em que tenha sido vítima da tentativa de homicídio e ter sido internado no hospital, momento em que, em sã consciência, perdoou o donatário, e posteriormente viesse a morrer. Neste caso, obviamente não caberia a revogação da doação. A revogação por ingratidão não vai prejudicar direitos adquiridos por terceiros, e nem vai obrigar o donatário a restituir frutos que percebeu antes da citação válida da ação que intenta a revogação da doação. Antes da citação ele é possuidor de boa-fé, então o adquirente terceiro de boa-fé e os frutos percebidos não devem ser restituídos. Se o donatário já alienou o bem terá o direito do valor da coisa alienada. Existem casos em que não se admite a revogação por ingratidão, como é o caso de: doação puramente remuneratória: somente admite-se a revogação naquilo que exceder a prestação do serviço, ou seja, na parte da liberalidade; 183 Aurélio Bouret doação com encargo quando já cumprido o encargo: também não podem ser revogadas as doações com encargo quando já cumprido o encargo; doação relacionada com o cumprimento de uma obrigação natural: apesar de não existir responsabilidade, existe débito, não cabendo a revogação; doação propter nuptias: não caberá a revogação de doação no caso de doação em contemplação de casamento futuro. O prazo para revogação da doação, segundo o art. 559, deverá ser pleiteada no prazo de 1 ano, a contar de quando chegue o conhecimento do doador o fato que autoriza ao doador o fato que autoriza a revogação da doação, e chegue ao seu conhecimento de que o autor daquele fato é o donatário, começando a contar esse prazo de 1 ano. Como a ação de revogação é constitutiva negativa, esse prazo é decadencial. inexecução do encargo ou modo para executar. No caso de revogação da doação por inexecução do encargo, apesar de existir uma certa controvérsia, é majoritário o entendimento de que o prazo para revogação da doação por descumprimento de encargo é prescricional de 10 anos, pois teria ocorrido a violação ao direito subjetivo do doador de ver cumprido o encargo. O art. 560 diz que o direito de revogar a doação não se transmite aos herdeiros do doador e nem prejudica os herdeiros do donatário. A verdade é que o direito de revogar a doação se transmite aos herdeiros do doador se a ação já foi iniciada. O direito de revogar não foi transmitido ao herdeiros do doador, mas sim a possibilidade de prosseguir a ação que foi iniciada pelo doador visando a revogação da doação. Portanto, eles poderão continuar contra o donatário, inclusive continuar contra os herdeiros do donatário, caso ele venha a falecer depois do ajuizamento do pleito revogatório. A respeito da revogação da doação onerosa, por inexecução do encargo, não se pode confundir o legitimado da revogação da doação com os legitimados para exigir a execução do encargo, que pode ser o doador, terceiro ou até o Ministério Público, caso o encargo tenha interesse geral. Não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar o donatário judicialmente para que dentro de um prazo razoável cumpra a obrigação (art. 562). Após o decurso do prazo, poderá começar o prazo para doação. 5. LOCAÇÃO DE COISAS NO CÓDIGO CIVIL 5.1. INTRODUÇÃO O contrato de locação é um contrato por meio do qual uma das partes se obriga a ceder a outra parte por um tempo o uso e gozo de uma coisa infungível, por meio de uma certa remuneração que é denominado aluguel. A primeira característica é que é um contrato bilateral, contrato oneroso (existe remuneração, ou seja, o sacrifício por ambas), contrato comutativo (as partes já sabem as suas prestações), contrato consensual (aperfeiçoa-se com o encontro das vontades), contrato informal (não depende de forma escrita e nem escritura pública) e é um contrato de execução continuada ou de trato sucessivo. O Código Civil trata da locação de bens móveis e bens imóveis. Em relação aos bens imóveis, o CC tratará das locações que não estejam sujeitas à Lei nº 8.245/91, a qual trata da locação de imóveis urbanos, levando em consideração a destinação desse imóvel. Se o imóvel for destinado à residência, indústria, comércio e para prestação de serviços, será regido pela Lei nº 8.245/91. 184 Aurélio Bouret Se for destinado para outros fins, será regido para outros fins, como agricultura, pecuária, extrativismo, etc., incidindo o Estatuto da Terra ou o Código Civil. Além disso, o art. 1º da Lei de Locações excluiu alguns imóveis do âmbito de aplicação, como imóveis públicos (Lei nº 8.666), vagas autônomas de garagem, espaços publicitários, locação de espaços de apart-hotel, flats, equiparados (CC e CDC), arrendamento mercantil e leasing (resoluções do BACEN). O que se percebe é que o Código Civil tem uma aplicação reduzida em relação aos imóveis. 5.2. DEVERES DAS PARTES NUMA LOCAÇÃO O locador é obrigado a: entregar ao locatário a coisa com todas as suas pertenças e condições de ser utilizadas; manter o bem no estado de utilização pacífica pelo locatário; se ocorrer a deterioração da coisa no prazo da locação e não sendo essa deterioração culpa do locatário, poderá ele propor a redução do aluguel, ou até mesmo resolver o contrato, pois a coisa não lhe serve mais (art. 567); resguardar o locatário contra turbações e esbulhos cometidos por terceiros. Tanto o locador quanto o locatário serão legitimados para ações possessórias. O locatário é obrigado a (art. 569): servir-se da coisa alugada para seus usos convencionados ou presumidos conforme a natureza da coisa; pagar pontualmente o aluguel; levar ao conhecimento do locador as turbações feitas por terceiros ; restituir a coisa no estado em que há recebeu, salvo as deteriorações naturais da coisa. O art. 571 diz que se a locação for estipulada com prazo fixo, antes do vencimento prazo não poderá ser reavida pelo locador, salvo se o locador indenizar o locatário pelas perdas e danos resultantes da quebra contratual. Neste caso, o locatário terá o direito de retenção do bem até que haja o seu pagamento. Da mesma forma, o locatário somente pode devolver a coisa antes do pactuado pagando a multa prevista no contrato, proporcionalmente ao tempo que restar para o término daquele contrato. O art. 572 vai dizer que a multa ou a obrigação de pagar o aluguel pelo tempo que restar do contrato, se ela constituir uma obrigação excessiva, poderá o juiz reduzi-la em bases razoáveis. 5.3. EXTINÇÃO DO CONTRATO DE LOCAÇÃO Se a locação é por prazo determinado, cessará de pleno direito com o esgotamento do prazo. Findo o prazo da locação, se o locatário continuar na posse da coisa alugada e o locador não se opor. Neste caso, presume-se que a locação tenha sido prorrogada pelo tempo indeterminado e com o mesmo valor de aluguel (art. 574). 185 Aurélio Bouret Nessas circunstâncias, a qualquer tempo, poderá o locador notificar o locatário para que ele restitua ao locador o bem. É a denominada denúncia vazia, resilição unilateral. Se a coisa, objeto de locação, foi alienada pelo locador, havendo um novo proprietário, este não é obrigado a respeitar o contrato, pois o contrato só vale entre as partes. Todavia, se o contrato, estando em sua vigência, por prazo determinado, tenha uma cláusula de vigência no caso de alienação, e esta cláusula conste no registro de imóveis ou no cartório de títulos e documentos, situação na qual terá eficácia perante terceiros. Nos casos envolvendo imóvel, caso o novo locador não esteja obrigado a respeitar o contrato, não poderá simplesmente despejar o locatário, devendo observar o prazo de 90 dias para o locatário desocupar o bem, situação na qual começará a contar o prazo de notificação, visando a desocupação do imóvel. Em relação às benfeitorias, o locatário tem direito de retenção quanto às benfeitorias necessárias, até ser indenizado por ela. Em relação às benfeitorias úteis, terá direito de retenção se a implementação delas tenha sido autorizada pelo locador. O STJ vai trazer a Súmula 335 que vai dizer que nos contratos de locação é válida a cláusula de renúncia às benfeitorias e ao direito de retenção. 6. EMPRÉSTIMO: COMODATO E MÚTUO 6.1. INTRODUÇÃO O contrato de empréstimo é um negócio jurídico pelo qual uma pessoa entrega uma coisa a outra pessoa e de forma gratuita, situação na qual essa pessoa se obriga a devolver a coisa emprestada ao final do contrato. Se esta coisa for consumível, esta coisa deverá ser restituída na mesma espécie e na mesma quantidade. Há duas espécies de contrato de empréstimo: comodato: empréstimo de bem infungível; mútuo: empréstimo de bem fungível. Os dois contratos de empréstimos, além de serem gratuitos e unilaterais, ou seja, benéficos, como regra, também são comutativos e informais, e reais, percebendo a características de unilateralidade. 6.1.1. COMODATO O comodato, que é o empréstimo de bem infungível, pode ter por objeto tanto bens móveis como imóveis. A parte que empresta é o comodante e a parte que recebe é o comodatário. O contrato é baseado na confiança. Por isso o contrato é intuito personae. A doutrina aponta a possibilidade de comodato de bens fungíveis, desde que esses bens sejam utilizados para enfeites ou para ornamentação. Trata-se do comodato ad pompam vel ad ostentationem. Quer dizer que, por convenção das partes, um bem que, por sua natureza é fungível, acaba se tornando infungível. 186 Aurélio Bouret O art. 580 diz que tutores, curadores e administradores de bens alheios em geral não podem dar em comodato, sem autorização especial, dos bens que estão sob sua guarda. O contrato de comodato é temporário, pois do contrário seria doação. Esse prazo pode ser determinado ou indeterminado. Caso seja indeterminado, presume-se que o prazo é aquele para o uso a que se destinou o empréstimo. Nesse caso, não pode o comodante, salvo necessidade urgente e imprevista, assim reconhecida pelo juiz, suspender o uso ou gozo da coisa emprestada antes do cumprimento do fim a que se propôs. Essa regra também vale para o comodato com prazo determinado, visto que, antes do prazo, o comodante não pode reaver a coisa, salvo necessidade e urgência imprevistas. A parte final do art. 582 do CC diz que o comodatário constituído em mora, além de por ela responder, irá pagar até restituí-la o aluguel da coisa, que será aquele arbitrado pelo comodante. É um aluguel-pena. O STJ entende que esse aluguel é uma verdadeira pena privada e não será tido como indenização pela ocupação. O objetivo aqui coagir o comodatário a fim de que ele restitua o mais rapidamente possível a coisa emprestada. Se houver um arbitramento exagerado, poderá ser objeto de controle judicial. Segundo o STJ, o aluguel-pena não pode ser superior ao dobro do valor do aluguel cobrado em média pelo mercado. A primeira parte do art. 582 diz que o comodatário é obrigado a conservar, como se sua fosse sua, não podendo usar a coisa emprestada em desacordo com o que prevê o contrato de comodato ou da própria natureza da coisa. Se assim o fizer, responderá poder perdas e danos. O art. 583 diz que, se caindo em risco a coisa emprestada, o comodatário deixar de salvar essa coisa para salvar coisa própria, responderá pelo dano ocorrido na coisa objeto do comodato, ainda que este dano seja fruto de caso fortuito ou força maior. O comodatário não pode recobrar do comodante despesas que ele teve para usar e gozar da coisa emprestada (art. 584). Havendo pluralidade de comodatários, haverá responsabilidade solidária entre eles (art. 585). É um caso de solidariedade passiva legal. 6.1.2. MÚTUO O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis, havendo de um lado o mutuante (cede a coisa) e do outro o mutuário (recebe a coisa). Em regra, é um contrato unilateral, real (aperfeiçoa-se com a entrega da coisa), gratuito (exceção ao mútuo feneratício), comutativo, temporário e informal. Exemplo é o empréstimo de dinheiro. O mútuo somente pode ter por objeto bens móveis, pois só recai sobre bens fungíveis, e todos os bens imóveis são infungíveis. Como a coisa é transferida para outrem e este outrem a consome, devolvendo uma nova coisa com o mesmo gênero, mesma qualidade e com a mesma quantidade, é forçoso convir que este contrato é translativo da propriedade, pois transfere o domínio da coisa empresada ao mutuário. Portanto, por conta do mutuário correrão todos os riscos da coisa, desde o momento da tradição. 187 Aurélio Bouret O art. 590 diz que o mutuante pode exigir do mutuário uma garantia real ou fidejussória, se antes do vencimento do contrato o mutuário sofrer uma notória mutação na sua situação econômica. Caso o mutuário não atenda essa solicitação do mutante para constituir uma garantia real ou fidejussória, haverá neste caso o vencimento antecipado da dívida. Em regra, o mútuo, quando feito a um menor de idade, a lei vai dizer que se for feito a um menor sem autorização do seu representante, não poderá ser reavido do mutuário, e nem mesmo dos seus fiadores, pois o mútuo foi feito a um menor sem autorização do representante (art. 588). Essa regra comporta exceções. O art. 589 diz que não se aplica a regra do art. 588 quando: a pessoa, de cuja autorização necessitava o mutuário para contrair o empréstimo, o ratificar posteriormente; o menor, estando ausente essa pessoa, se viu obrigado a contrair o empréstimo para os seus alimentos habituais; se o menor tiver bens ganhos com o seu trabalho. Porém, em tal caso, a execução do credor não lhes poderá ultrapassar as forças; se o empréstimo reverteu em benefício do menor; se o menor obteve o empréstimo maliciosamente. 6.1.2.1. MÚTUO ONEROSO (MÚTUO FENERATÍCIO) O mútuo poderá ser oneroso, tratado no art. 591. Segundo esse artigo, destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual. Isto é, o mútuo feneratício está limitado a 1% ao mês. No entanto, a jurisprudência superior entende pacificamente que entidades bancárias não estão sujeitas a esse limite, pois não se sujeitam à Lei de Usura. Há inclusive a edição de três súmulas sobre o tema: Súmula 382: a estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade. Súmula 379: nos contratos bancários, não regidos por legislações específicas, os juros moratórios podem ser convencionados até o limite de 1% ao mês, mas são os contratos bancários não regidos por legislação específica. Essa súmula atinge as empresas de factoring. Súmula 530: nos contratos bancários, na impossibilidade de se comprovar a taxa de juros efetivamente contratada, por não ter sido juntado o instrumento de pactuação aos autos, será aplicada a média de mercado divulgada pelo BACEN, salvo se a taxa cobrada pelo banco for mais vantajosa para o consumidor. O art. 592 do CC traz os prazos do contrato, caso não haja previsão no instrumento do mútuo. No caso de mútuo de produtos agrícolas, tanto para consumo quanto para semeadura, presume-se o prazo até a próxima colheita. No caso de empréstimo de dinheiro, o prazo é de 30 dias, contados da sua celebração, caso não haja previsão. 188 Aurélio Bouret Nos demais casos, coisa fungível presume-se o prazo que declarar o mutuante de qualquer forma. Esse prazo será fixado por aquele que emprestou a coisa por meio de interpelação judicial feita ao mandatário, o que não obsta que o magistrado venha a aumentar esse prazo efetivamente, a depender das circunstâncias evidenciadas. 7. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO 7.1. INTRODUÇÃO É um negócio jurídico através do qual alguém (prestador) se compromete a realizar uma determinada atividade, a qual é exercida no interesse de uma outra pessoa (tomador). No entanto, essa pessoa que se compromete por meio de outrem é denominado remuneração. Há, aqui, um contrato bilateral, oneroso, consensual, comutativo e informal. Bilateral, pois há pessoas que vão prestar de ambos os lados. Consensual, pois se aperfeiçoa com acordo de vontades. Comutativo, pois ambas as partes prestam alguma coisa. Informal, pois pode ser oral, escrito, ou seja, não depende de forma escrita. 7.2. REGRAS DA PRESTAÇÃO E SERVIÇO NO CC/02 O art. 594 diz que toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratado mediante remuneração. Percebe-se que a prestação de serviço deve ser de um serviço lícito. A licitude deve ser analisado em sentido amplo, bastando que haja uma contrariedade à função social do contrato, à boa-fé, função econômica, etc. Dessa forma, o contrato, pelo menos em alguma parte, será nulo. Se a remuneração não estiver sido estipulada ou não tiver acordo entre as partes, a fixação dessa remuneração será feita por arbitramento, levando em conta os costumes do local, tempo de serviço e qualidade do serviço executado, e impedindo o enriquecimento sem causa das partes. O art. 597 diz que a retribuição será paga depois de prestado o serviço, se não houver uma convenção ou costume que disponha de forma diversa, ou seja, que o pagamento será adiantado ou que o pagamento será em prestações. O art. 598 diz que prestação de serviço não se poderá convencionar por mais de 4 anos. É um teto, pois não poderá ter caráter perpétuo. Se houver um contrato em que o prazo da prestação de serviço é fixada em um período superior a 4 anos, o contrato deverá ser reputado extinto em relação ao excesso. Preserva-se o contrato, mas naquilo que ultrapassar 4 anos, será considerado extinto. O CJF trouxe um enunciado estabelecendo que, nos contratos de prestação de serviço, nos quais haja de um lado e de outro empresários, e sendo a função econômica relacionada à exploração de uma atividade empresarial, as partes podem convencionar um prazo superior ao prazo de 4 anos. Este prazo de 4 anos não será aplicado quando houver um contrato firmado entre duas pessoas jurídicas no exercício de atividade empresarial. Flavio Tartuce discorda. 189 Aurélio Bouret 7.3. EXTINÇÃO DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO O art. 599 diz que, sendo o negócio da prestação de serviço celebrado sem prazo, não podendo o elemento temporal ser retirado de sua natureza ou do costume do lugar, pode qualquer uma das partes, mediante aviso prévio, resolver o contrato. O parágrafo único do art. 599 vai consagrar prazos para essa denúncia do contrato: aviso com antecedência de 8 dias, se o salário se houver fixado por tempo de um mês, ou mais; aviso com antecipação de 4 dias, se o salário se tiver ajustado por semana, ou quinzena; aviso de véspera, quando se tenha contratado por menos de sete dias. Decorrem esses prazos da boa-fé objetiva e do direito de informação. O prestador de serviço contratado por um tempo certo ou contratado por uma obra determinada deverá cumprir esse prazo, não podendo se ausentar ou se despedir sem justa causa. Do contrário, apesar de ter direito à retribuição daquilo que prestou, deverá pagar perdas e danos ao tomador (art. 602). Isso vai se valer na hipótese de o prestador ter sido demitido por justa causa, visto que neste caso está sendo despedido por uma falha dele. Terá direito à retribuição, mas deverá pagar uma indenização ao tomador. Por outro lado, se o prestador de serviço for demitido sem justa causa, o tomador deverá pagar, além da retribuição vencida, a metade dos valores que teria direito até o termo final do contrato. O art. 605 do CC vai dizer que o tomador não pode transferir para outra pessoa o direito aos serviços ajustados. E o prestador não pode, sem a concordância com tomador, se substituir por outra pessoa. Há aqui a consagração de que a prestação de serviço tem o caráter intuito personae. A prestação de serviço é um negócio personalíssimo, motivo pelo qual, se uma das partes morre, o contrato também será extinto. Também se extingue o contrato de prestação de serviços pelo escoamento do prazo, se tiver prazo determinado; pela finalização da obra, se for uma obra certa; pela rescisão do contrato, se tiver aviso prévio; por inadimplemento de uma das partes; pela impossibilidade de continuidade do contrato por motivo de força maior. 7.4. TUTELA EXTERNA DO CONTRATO O art. 608 consagra a denominada tutela externa do crédito, estabelecendo que aquela pessoa que aliciar outra pessoa que estava obrigada em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante 2 anos. Quem chega para aliciar a pessoa que está contratada por outrem para prestar o serviço vai pagar a outra pessoa o valor que esse prestador teria direito durante 2 anos em face dessa outra pessoa. Há uma fixação de uma indenização contra um terceiro que interfere numa relação contratual que não celebrou. Por isso, tutela externa do contrato, pois há responsabilização do terceiro que desrespeitou o contrato. Há uma exceção muito clara ao princípio da relatividade. 190 Aurélio Bouret 7.5. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO AGRÍCOLA O art. 609 estabelece que a alienação do prédio agrícola, onde a prestação dos serviços se opera, não importa a rescisão do contrato, ressalvando-se ao prestador opção entre continuar esse contrato com o adquirente da propriedade ou com o primitivo contratante. A pessoa que comprou a propriedade agrícola deverá continuar com o sujeito que está prestando o serviço até o término do serviço. Há aqui uma obrigação que assume uma eficácia real perante o adquirente do prédio agrícola, pois terá de perceber esse contrato em relação à pessoa que nem participou. Trata-se de uma exceção ao princípio da relatividade. 8. CONTRATO DE EMPREITADA 8.1. INTRODUÇÃO A empreitada é o contrato por meio do qual uma das partes (empreiteiro) vai se obrigar a fazer ou mandar fazer determinada obra mediante remuneração. Esta obra será feita em favor de outra pessoa, que é denominado de tomador ou dono da obra. A doutrina diz que são três as modalidades de empreitada, conforma art. 610: empreitada sob administração: o empreiteiro apenas administra as pessoas que foram contratadas pelo dono da obra; empreitada sob mão de obra: o empreiteiro fornece a mão de obra, sendo o material fornecido pelo dono da obra. Nesse caso, o empreiteiro não apenas gerencia, mas contrata as pessoas; empreitada mista ou de lavor e materiais: o empreiteiro fornece a mão de obra e também os materiais, se comprometendo a executar a obra inteira. Há aqui uma obrigação de resultado. Por isso, é o empreiteiro que contrata o pessoal e fornece os materiais. Há, aqui, um contrato bilateral, oneroso, comutativo, consensual e informal. 8.2. REGRAS DA EMPREITADA NO CC/02 O art. 611 diz que na hipótese de o empreiteiro fornecer os materiais (empreitada mista), correrão por conta do empreiteiro os riscos até o momento de entrega da obra. Se o dono da obra estiver em mora para receber a obra, os riscos serão por conta do dono da obra. O art. 612 diz que se o empreiteiro só forneceu a mão de obra, todos os riscos pelos quais ele não tenha culpa correrão por conta do dono da obra. Quando a empiteirada é de mão de obra apenas, a obrigação do empreiteiro passa a ser uma obrigação de meio, e não de resultado, ao contrário da empreitada de lavor e materiais. Sendo a empreitada de mão de obra, se a coisa perece antes de ser entregue e não há mora do dono ou culpa do empreiteiro, ele não responderá, mas também não terá direito à retribuição, pois não houve culpa do prestador e do tomador. Todavia, se o empreiteiro comprovar que a coisa pereceu por conta dos defeitos dos materiais fornecidos pelo dono da obra, e que ele reclamou tempestivamente contra aquela quantidade de materiais ou contra aquela qualidade de materiais. Nesse caso, o código diz que há direito sim a retribuição. 191 Aurélio Bouret O art. 618 diz que, nos contratos de empreitada de edifício, ou de outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e de lavor responderá pelo prazo irredutível de 5 anos pela solidez e pela segurança do trabalho. Isso em razão dos materiais ou do solo, por exemplo. Aqui há um prazo de garantia legal. Haverá decadência do direito do dono da obra se não propuser a ação contra o empreiteiro, nos 180 seguintes ao aparecimento do vício ou defeito. Em relação ao prazo para pleitear indenização por descumprimento de contrato, e tendo isso causado prejuízo (responsabilidade civil contratual), o STJ entende que há um prazo de 10 anos. Concluída a obra, de acordo com o ajustado, o dono da obra é obrigado a receber essa obra. Poderá o dono da obra rejeitar quando o empreiteiro tiver se afastado das suas instruções, ou de seus planos dados a ele, ou se tiver se afastado das regras técnicas para construção. Eventualmente, poderá o dono da obra requerer que haja o abatimento proporcional do preço contratado. Isso se o serviço não tiver sido prestado a contento, evitando um enriquecimento sem causa de quem prestou o serviço (art. 616). Em relação ao pagamento da remuneração, o art. 614 vai dizer que se a obra constar de partes distintas (ex.: 10 salas de um prédio comercial, e ele vai reformar as 10), ou for obra em que se determina por medidas, o empreiteiro tem direito de receber ou de exigir o pagamento na proporção em que a obra foi executada. O preço da empreitada pode ser estipulado pela obra inteira, denominando-se preço global. O art. 614, §1º, cria uma presunção relativa, dizendo que tudo o que foi pago presume-se verificado. No §2º, o CC estabelece que o que se mediu presume-se verificado se, em 30 dias, a contar da medição, não forem denunciados os vícios ou defeitos pelo dono da obra ou por quem estiver incumbido da sua fiscalização. Essa presunção exige dois comportamentos: comissivo (medir a obra) e omissivo (ausência de denúncia da obra no prazo de 30 dias, situação na qual caso não seja denunciado haverá presunção de que foi verificado e que está de acordo com o projeto). O art. 619 trata da denominada empreitada com preço fixo. Essa empreitada pode ser por preço fixado absoluto ou por preço fixo relativo. O empreiteiro que se compromete a executar uma obra inteira, conforme o plano que foi aceito, terá ele direito de receber a prestação que ele convencionou, mas não terá direito de acréscimo do preço, pois houve uma empreitada com preço fixo absoluto. Agora, se forem introduzidas modificações no projeto, a não ser que resultem de instruções escritas pelo dono da obra, haverá a possibilidade de ser acrescido um valor ao preço fixo originariamente fixado. Eventualmente, ainda que não exista autorização escrita do dono da obra, será este obrigado a pagar o empreiteiro todos os aumentos, se o dono da obra estiver sempre presente na obra, e ele não podia ignorar o que estava sendo feito no local, não tendo jamais protestado com o que estava ocorrendo. 192 Aurélio Bouret Neste caso, ainda que não tenha dado instruções escritas, o parágrafo único do art. 619 diz que deverá o dono da obra pagar. Trata-se de aplicação da boa-fé. Haveria uma autorização tácita. Se houver uma diminuição do preço do material ou mesmo da mão de obra, que seja superior a 10% do preço global convencionado, poderá o valor do preço global ser revisto, se houver pedido do dono da obra nesse sentido. 8.3. SUB-EMPREITADA A execução da obra poderá ser transferida a um terceiro. Quando o código autoriza a empreitada de mão de obra, que há uma sub-empreitada, há uma exceção. Ao contrário da prestação de serviços, que tem caráter personalíssimo, a empreitada pode ser cedida a outrem. Essa sub-empreitada pode ser total ou parcial. Mesmo depois de iniciada a construção, o dono da obra pode suspender essa construção. Isso desde que pague ao empreiteiro as despesas que o empreiteiro teve, o lucro que o dono da obra já experimentou pelo serviço já feito e ainda uma indenização razoável por suspensão da obra. O art. 625 autoriza a suspensão da obra, situação na qual será autorizada a suspensão da obra nas seguintes hipóteses: suspensão da obra por culpa do dono; suspensão da obra por motivo de força maior; suspensão da obra quando, no decorrer dos serviços, forem manifestadas dificuldades imprevisíveis de execução do serviço, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços; suspensão da obra se as modificações exigidas pelo dono da obra, por seu vulto e natureza, forem desproporcionais ao projeto aprovado, ainda que o dono se disponha a arcar com o acréscimo de preço. Como dito, o contrato de empreitada não é personalíssimo, tanto que o art. 626 afirma que o contrato de empreitada não se extingue pela morte de qualquer das partes, salvo se ajustado em consideração às qualidades pessoais do empreiteiro. 9. CONTRATO DE DEPÓSITO 9.1. INTRODUÇÃO O contrato de depósito traz um depositário, que recebe um objeto móvel e corpóreo para guarda, até que o depositante reclame desse objeto. O objeto pode ser classificado como: depósito voluntário: há o depósito por vontade do depositante; depósito necessário: há o depósito por imposição. depósito necessário legal: decorre da lei; depósito necessário miserável: decorre de uma calamidade pública. Em relação ao objeto do depósito, poderá ser classificado em: depósito regular: o objeto é uma coisa infungível; 193 Aurélio Bouret depósito irregular: o objeto é uma coisa fungível. O contrato de depósito, em regra, é unilateral e gratuito. No entanto, é possível que seja bilateral e oneroso. Percebe-se que há depósito oneroso em guarda de cofre de banco. Nesse caso, este depósito é remunerado, apesar de que, via de regra, o contrato ser gratuito. O contrato de depósito é comutativo e é personalíssimo, pois se confia na pessoa que guarda a coisa. O contrato de depósito é real, aperfeiçoando-se com a entrega da coisa. O art. 646 diz que o depósito voluntário se prova por escrito. Não quer dizer que o contrato seja formal, mas sim formal, pois para sua celebração não necessita da forma escrita. Para o depósito ser provado, deverá ele estar escrito. O dispositivo trata da prova da existência do contrato de depósito, e não da sua existência em si. Para sua eficácia perante terceiros, talvez seja necessário a prova escrita para provar a sua existência. O contrato de depósito não se confunde com o comodato, apesar de ambos, via de regra, serem gratuitos. A diferença é que o comodatário goza e utiliza da coisa, enquanto o depositário apenas guarda a coisa. 9.2. REGRAS QUANTO AO DEPÓSITO VOLUNTÁRIO O depósito é voluntário porque as partes acordaram nesse sentido. No caso do depósito voluntário, o depositário é obrigado a ter a guarda do bem. Além disso, é obrigado a ter em relação à coisa o mesmo cuidado que teria com uma coisa que lhe pertence. Ainda, o depositário tem o dever de restituir a coisa com todos os frutos e acrescidos que ela experimentou (art. 629). Isso porque o depositário não goza da coisa, motivo pelo qual deverá devolver a coisa com os frutos gerados durante o período. Se a coisa tiver sido depositada em benefício de um terceiro, sendo notificado o depositário disso, não poderá o depositário se exonerar restituindo a coisa a este, sem consentimento do terceiro. Ainda que o contrato fixe um prazo para restituição, o depositário ainda assim deverá entregar a coisa logo que ela for exigida pelo depositante. Porém, o art. 636 também excepciona a regra, estabelecendo que o depositário não é obrigado a devolver a coisa quando: tiver direito de retenção por conta das despesas para conservação da coisa em razão dos prejuízos que experimentou em razão do depósito; o objeto foi judicialmente embargado; sobre objeto pendeu uma execução notificada ao depositário; houver uma suspeita fundada de que a coisa foi dolosamente obtida, requerendo o depositário que a coisa seja depositada em depósito público. O contrato de depósito é personalíssimo, pois se baseia na confiança. Dessa forma, conclui-se que a morte do depositário ou do depositante implica extinção do contrato. O CC reconhece a possibilidade de o depósito voluntário ser feito de forma conjunta, tendo dois ou mais depositantes. Se for divisível a coisa depositada, quando for o momento de devolução da coisa, o depositário irá entregar a cada um dos depositantes a sua respectiva parte, salvo se houver entre os depositantes solidariedade. Neste caso, o depositário poderá entregar a coisa toda a um dos depositantes. 194 Aurélio Bouret O contrato de depósito não traz a possibilidade de uso da coisa. Se houver o uso da coisa, haverá motivo suficiente para resolução do contrato, já que o depositário serviu-se da coisa ou alienou a coisa sem expressa autorização do depositante. A exceção existe quando o depositante autoriza o uso da coisa, ou quando permita que uma terceira pessoa use a coisa. Nesse caso, o depositário será responsável se houver prejuízo pela utilização da coisa pelo terceiro que o depositário escolheu, visto que a lei presume que tenha havido culpa na escolha do terceiro (art. 640, parágrafo único). O depositário não responde por caso fortuito ou força maior. A sua responsabilidade é subjetiva, mesmo sendo o contrato gratuito. O depositário tem a obrigação de restituir a coisa assim que o depositante reivindicar. Por outro lado, o depositante também tem obrigações no contrato de depósito, mesmo que gratuito, sendo obrigado a pagar ao depositário as despesas para conservação da coisa e os prejuízos que o depositário experimentou com o depósito, visto que não se permite enriquecimento sem causa. Neste caso, poderá haver direito de retenção do depositário caso não seja ressarcido. 9.3. DEPÓSITO NECESSÁRIO Maria Helena Diniz diz que são três as espécies de depósito necessário: depósito legal: decorre da lei; depósito miserável: decorre de calamidade; depósito do hospedeiro: o hospedeiro é o depositário das bagagens dos hóspedes, de forma que os hospedeiros respondem como depositários se houver a perda da bagagem dentro do hotel. Em regra, o depósito necessário não se presume gratuito, diferentemente do voluntário. Não se admite que haja a prisão civil do depositário infiel, pois o Pacto de San José da Costa Rica tem eficácia supralegal e não admite essa prisão. 10. MANDATO 10.1. INTRODUÇÃO O mandato é o contrato pelo qual o mandante vai transferir poderes a outrem, denominado mandatário, e esse poder é transferido para que o mandante exerça determinados atos ou que administres interesses do mandante. O art. 654 diz que todas as pessoas capazes são aptas a dar procuração por instrumento particular, tendo validade, desde que haja assinatura do mandante. Mandato é o contrato e procuração é o instrumento através do qual o mandato se materializa. O instrumento particular deve conter a indicação do lugar onde foi passado, a qualificação do outorgante e do outorgado, a data da outorga e o objetivo da outorga com a designação e a extensão dos poderes conferidos ao outorgado. O mandado é um contrato unilateral, pois é o mandatário que assumirá as obrigações, via de regra. 195 Aurélio Bouret A vontade das partes ou a natureza profissional do outorgado poderá converter o mandato em contrato bilateral imperfeito, que ocorre quando o mandatário tiver direito a remuneração. Presume-se que o mandato é gratuito quando se está diante de um mandato civil, mas quando se estiver diante de um contrato empresarial, esta representação será onerosa. Em relação ao mandato oneroso, há a regra de que o mandatário deve retribuir a remuneração acordada pelas partes ou a remuneração prevista em lei. Se a lei e o contrato forem omissos, o valor da remuneração do mandatário será determinado pelos usos do lugar. Caso ainda assim não chegue ao valor, será arbitrada pelo juiz de forma razoável. O mandato é consensual, aperfeiçoando-se pela vontade das partes. É o mandato um contrato informal. Mesmo que o mandato seja outorgado por instrumento público, poderá haver substabelecimento do mandato por instrumento particular. Porém, não sempre. Isso porque o art. 657 vai dizer que a outorga do mandato está sujeito à forma exigida em lei para o ato a ser praticado. O mandato verbal não pode ser admitido em casos em que a celebração do contrato para qual o mandato foi celebrado exija a forma escrita. Ex.: mandato para alguém celebrar um contrato de fiança em meu nome. Nesse caso, o mandato deverá ter forma escrita. Para comprar um imóvel, deverá se dar por instrumento público. Feita a nomeação do mandatário, será necessário que ele aceite este encargo. Essa aceitação poderá ser tácita ou expressa. A aceitação tácita resultará do início do cumprimento do contrato celebrado. O contrato de mandato é personalíssimo, pois se baseia na confiança. 10.2. PRINCIPAIS CLASSIFICAÇÕES DO MANDATO Em relação à origem, o mandato pode ser: mandato legal: o mandato decorre da lei. Ex.: pai administra o bem do filho incapaz; mandato judicial: o mandato é conferido por uma ação judicial. Ex.: inventariante representa o espólio; mandato convencional: o mandato decorre de contratos e convenção das partes. mandato ad judicia: representação da pessoa no campo judicial; mandato ad negotia: para administração em geral do interesse do mandante na esfera extrajudicial. Em relação à pessoa do mandatário: mandato singular: quando só há um mandatário; mandato plural: quando há vários mandatários, podendo assumir as seguintes formas: mandato plural conjunto ou simultâneo: nenhum dos mandatários podem agir de forma separados, devendo agir de forma conjunta; mandato plural solidário: qualquer dos mandatários ou dos procuradores podem agir de forma isolada. Em regra, quando há mandato plural, presumese que o mandato é solidário; mandato plural fracionário: a ação que compete a cada mandatário é discriminada no instrumento; 196 Aurélio Bouret mandato plural sucessivo ou substitutivo: o mandatário só pode agir na falta do mandatário principal, havendo uma ordem prevista no instrumento. 10.3. PRINCIPAIS REGRAS DO MANDATO NO CC/02 Primeiramente, atos praticados por quem não tem mandato ou por quem tenha e não tenha poderes suficientes para a prática do ato, serão atos ineficazes em relação ao suposto mandante. Não vinculam o mandante, salvo se ele ratificar os atos praticados, conforme art. 662 do CC, caso em que esta ratificação retroagirá à data do ato. Portanto, essa ratificação terá efeitos ex tunc. Sempre que o mandatário realizar negócios expressamente em nome do mandante, será o responsável o mandante, já que o mandatário não pratica o ato em seu nome. Como o mandatário é um possuidor de boa-fé, poderá reter o objeto da operação que firmou até o recebimento do pagamento de que lhe é devido por conta do mandato, desde que seja oneroso. O mandatário que excede os poderes outorgados pelo mandante ou procede contra os poderes outorgados pelo mandante, será considerado gestor de negócios. Neste caso, enquanto o mandante não ratificar ou confirmar o ato, será considerado gestão de negócios. Após a ratificação será considerado mandato retroativo. O menor relativamente incapaz poderá ser mandante ou mandatário. Se ele é o mandante, os poderes que outorga deverão ser feitos por instrumento público, caso tenha por objeto a prática de atos da vida civil. Se a procuração tiver por objeto a atuação em juízo, nesse caso, o menor poderá outorgar por simples instrumento particular, desde que assistido pelo seu representante legal. Se o relativamente incapaz for mandatário, se for mandato extrajudicial, o mandante não terá ação contra o menor púbere, já que assumiu o risco. 10.4. OBRIGAÇÕES DO MANDATÁRIO São obrigações do mandatário: aplicar toda sua diligência na execução do mandato; prestar contas da sua gerência; não pode compensar prejuízos a que tenha dado causa com proveitos que tenha gerado ao mandante; pelas somas que o mandatário deveria ter entregado ao mandante, mas inclusive tomou para si essas somas, deverá pagar ao mandante juros, desde o momento em que houve abuso da sua representação. se o mandatário comprar em nome próprio algo que deveria comprar ao mandante, poderá o mandante ingressar com a ação reivindicatória para obter a coisa comprada pelo mandante em seu nome. se o mandatário, conhecendo da morte, da interdição ou da mudança de estado do mandante, estiver diante de um negócio que já tenha se iniciado e deve ser concluído se não houver perigo, o mandatário deve concluir o negócio. 197 Aurélio Bouret 10.5. OBRIGAÇÕES DO MANDANTE São obrigações do mandante: deve satisfazer as obrigações contraídas pelo mandatário; deve adiantar as importâncias necessárias para execução do mandato; deve pagar ao mandatário a remuneração ajustada; deve ressarcir ao mandatário as perdas sofridas pela execução do mandato, desde que não resultem de culpa do mandatário; ainda que o mandatário contrarie instruções do mandante, se não se exceder aos limites do mandato, o mandante estará obrigado perante a parte que celebrou negócio com o procurador do mandante. A única coisa é que o mandante tem é o direito de regresso ao mandatário para pleitear perdas e danos; sendo o mandato outorgado por duas ou mais pessoas, cada uma ficará solidariamente responsável perante o mandatário. 10.6. SUBSTABELECIMENTO Substabelecimento é uma cessão parcial de um contrato. O mandatário transferirá partes dos poderes a uma pessoa. Havendo proibição de substabelecer, e o mandatário ainda assim o fizer, responderá o mandatário pelos prejuízos ocorridos sob a gerência do substituto (substabelecido), ainda que esses prejuízos se dêem por caso fortuito ou força maior, salvo se comprovar que teriam ocorrido mesmo que estivesse sob sua gerência. Se houver poderes de substabelecer, ao mandatário só serão imputados os danos que o substabelecido causar se tiver agido com culpa na escolha do substabelecido ou nas instruções passadas ao substabelecido. Se a proibição de substabelecer constar expressamente na procuração, o mandante não se obriga pelas obrigações firmadas pelo substabelecido. Sendo omissa a procuração quanto ao substabelecimento, o mandatário irá responder se o substabelecido proceder culposamente. Trata-se de uma responsabilidade objetiva indireta, visto que, para responsabilizar o mandatário, será necessário demonstrar que houve culpa do substabelecido. Em relação à extensão do substabelecimento, poderá ser: substabelecimento sem reserva de poderes: o sujeito que substabelece transfere ao substabelecido de forma definitiva, renunciando o mandato; substabelecimento com reserva de poderes: o substabelecente outorgará poderes ao substabelecido, mas não irá outorgar poderes. 10.7. EXTINÇÃO DO CONTRATO DE MANDATO O contrato de mandato se extinguirá quando há revogação pelo mandante ou quando há revogação pelo mandatário. A morte ou interdição de qualquer das partes implica fim do mandato. Além disso, também se encerra o mandato pelo escoamento do prazo ou pela conclusão do negócio que justificou o mandato. 198 Aurélio Bouret O CC ainda autoriza a chamada cláusula de irrevogabilidade. Esta cláusula afasta o direito potestativo do mandante de resilir unilateralmente o contrato. Ocorrendo a revogação do mandato pelo mandante, e a notificação somente do mandatário, essa resilição não irá gerar efeitos em relação a terceiros de boa-fé, reputando-se como celebrado o contrato, tendo o mandante direito de regresso contra o mandatário (art. 686). A revogação pode ser expressa ou também poderá ser tácita. A revogação tácita do mandato ocorre quando se comunica ao mandatário a nomeação de outro procurador/mandatário. No caso de morte de uma das partes, apesar de haver a extinção do mandato, serão válidos, em relação aos contratantes de boa-fé, os atos que foram ajustados com esses contratantes de boa-fé em nome do mandante pelo mandatário, enquanto o mandatário ignorar que houve a morte do mandante ou a revogação por qualquer outra causa. 11. CONTRATO DE COMISSÃO; AGÊNCIA E DISTRIBUIÇÃO; CORRETAGEM 11.1. CONTRATO DE COMISSÃO O contrato de comissão é um contrato pelo qual o comissário vai realizar a aquisição ou a venda de um bem em seu próprio nome à conta do comitente. A diferença entre comissão e contrato é de que na comissão o comissário age em seu próprio nome, e não em nome do comitente. O contrato de comissão é bilateral, oneroso, consensual, comutativo e informal. O contrato de comissão é realizado com base na confiança do comissário, constituindo-se caráter intuito personae. O comissário fica obrigado diretamente com a pessoa que ele contratar, não havendo ação dessa pessoa contra o comitente e nem deste contra aquela. 11.1.1. ESPÉCIES DE COMISSÃO São espécies de comissão: comissão imperativa: não há margem de manobra para o comissário; comissão indicativa: há uma margem de atuação do comissário, devendo comunicar ao comitente para saber se este concorda ou não com essa atuação; comissão facultativa: o comitente vai transferir ao comissário as razões do seu interesse nos negócios, mas não há restrição ou observação especial do comissário. A obrigação do comissário é uma obrigação de meio. Portanto, a responsabilidade dele é subjetiva, tanto é que a lei diz que responderá ele por prejuízo, salvo por motivo de força maior. O comissário não responde pela insolvência das pessoas com quem ele tratar, a não ser que haja culpa dele. Todavia, no contrato de comissão, é possível que se estabeleça a chamada cláusula del credere. Nesse caso, quando há cláusula del credere, o comissário responde solidariamente com a pessoa com quem ele tiver tratado. 199 Aurélio Bouret Essa cláusula não é sempre permitida, pois no contrato de representação comercial autônomo, a Lei nº 4.886/65, em seu art. 43, vai vedar expressamente esta cláusula del credere. Em regra, presume-se que o comissário poderá conceder a dilação do prazo para pagamento pelo terceiro, em conformidade com os usos do lugar e não tiver instruções diversas dadas pelo comitente. Havendo morte do comissário ou se por motivo de força maior o comissário não puder concluir o contrato de comissão, o comitente deverá pagar uma remuneração proporcional ao comissário. Porém, obviamente o contrato irá se encerrar, pois o contrato é personalíssimo. Mesmo que o comissário tenha motivado o fim do contrato, terá direito de ser remunerado pelos serviços que já prestou e que se mostrem úteis ao comitente. No caso de dispensa por causa decorrente de culpa do comissário, o comitente terá o direito de exigir do comissário os prejuízos experimentado (art. 703). O art. 709 diz que no contrato de comissão devem ser aplicadas as regras previstas para o contrato de mandato, pois são contratos muito próximos. Segundo o STJ, é válida a cláusula contratual que transfere ao promitente-comprador a obrigação de pagar a comissão de corretagem nos contratos de promessa de compra e venda de unidade autônoma em regime de incorporação imobiliária, desde que previamente informado o preço total da aquisição da unidade autônoma, com o destaque do valor da comissão de corretagem. Todavia, é abusiva a cobrança pelo promitente-vendedor do serviço de assessoria técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere, vinculado à celebração de promessa de compra e venda de imóvel. No mesmo julgado acima, ficou decidido de que a incorporadora tem legitimidade passiva ad causam, na condição de promitente-vendedora, para responder a demanda em que é pleiteada pelo promitente-comprador a restituição dos valores pagos a título de comissão de corretagem e de taxa de assessoria técnico-imobiliária, alegando-se prática abusiva na transferência desses encargos ao consumidor. Essa ação prescreve em 3 anos para restituição dos valores pagos a título de comissão de corretagem ou de serviço de assistência técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere (art. 206, § 3º, IV, CC). 11.2. CONTRATO DE AGÊNCIA E DISTRIBUIÇÃO No contrato de agência, uma pessoa vai assumir, em caráter perene e não eventual, a obrigação de promover à conta de outra pessoa, mediante retribuição, a realização de certos negócios. Ou seja, dentro de uma zona determinada, alguém vai promover negócios à conta e em nome de outra pessoa e será remunerado por isso. Distribuição haverá quando o agente tiver à disposição a coisa que vai ser negociada. Quando se está diante de contrato de agência, há um contrato bilateral, consensual, comutativo, personalíssimo e informal. É ainda uma característica do contrato de agência o fato de ser um contrato de trato sucessivo, pois as obrigações vão sendo cumpridas periodicamente. O contrato de distribuição terá as mesmas características do contrato de agência, sendo consensual, comutativo, personalíssimo e informal, além de ser de trato sucessivo. 200 Aurélio Bouret O contrato de agência e de distribuição são contratos de exclusividade. Tanto é que o art. 711 diz que, salvo ajuste em contrário, o proponente não pode constituir, ao mesmo tempo, mais de um agente, na mesma zona, com idêntica incumbência. Além disso, não pode o agente assumir o encargo de nela tratar de negócios do mesmo gênero, à conta de outros proponentes. O agente deve agir com toda a diligência possível e deve observar as instruções do representado (proponente), sob pena de haver um descumprimento do contrato. O agente e o distribuidor têm direito à remuneração pelos negócios concluídos dentro da sua de exclusividade. Ainda que não tenha interferido naquele negócio, mas que tenha sido celebrado na sua zona, terá ele direito à participação. A isso se dá o nome de comissão. A remuneração é devida também ao agente quando o negócio deixa de ser realizada por conta do representado (proponente). Ou seja, o agente ou distribuidor fez tudo e era para o negócio ser celebrado, mas não foi, terá o proponente direito de receber a sua comissão. Se o proponente sem justa causa cessa o atendimento das propostas ou reduz o atendimento, começando a agir de forma antieconômica a continuação do contrato, o agente ou distribuidor terá direito à indenização. Isso porque houve a quebra da boa-fé. No tocante ao descumprimento do contrato, destacam-se duas regras: mesmo quando dispensado por justa causa, o agente tem direito de ser remunerado pelos serviços úteis que prestou; se a dispensa se der sem culpa do agente, neste caso terá direito à remuneração devida, mas terá direito dos negócios pendentes, pois trabalhou até o momento, havendo a sua dispensa sem ter dado causa. O art. 720 vai dizer que se o contrato for celebrado por tempo indeterminado, qualquer das partes poderá resolver o contrato, desde que tenha aviso prévio de 90 dias de antecedência e que tenha havido prazo compatível com o investimento ou com a natureza do contrato celebrado, ou com o investimento feito pelo agente. Por fim, deve ser aplicado ao contrato de agência ou distribuição, naquilo que forem compatíveis as regras do mandato ou da comissão que estejam no Código Civil ou regras de representação previstas em lei especial. 11.3. CORRETAGEM Corretagem é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa (corretor) se obriga a obter para outra pessoa (comitente) um ou mais negócios, conforme as instruções recebidas pelo comitente. O corretor receberá uma remuneração chamada de comissão. O contrato, portanto, é um contrato bilateral, oneroso, informal e consensual. Trata-se de um contrato acessório, pois visa a celebração de outro contrato, dependendo dessa celebração para surtir efeitos. É um contrato aleatório, pois o corretor de imóveis só irá receber a comissão se o negócio for firmado. Há sujeição do risco. A comissão pode ser variável, fixa ou mista. A obrigação de pagar a comissão de corretagem, segundo o STJ, é de quem contrata o corretor. Se é o vendedor que contrata o corretor para vender o imóvel, quem paga é o vendedor. 201 Aurélio Bouret O art. 725 diz que a remuneração é devida ao corretor uma vez que tenha o corretor conseguido o resultado previsto no contrato de corretagem, ainda que esse contrato não se efetue em razão de arrependimento das partes. O STJ entende que o corretor tem direito à remuneração mesmo tendo sido realizado um negócio que ele intermediou posteriormente ao prazo do contrato de corretagem. Ademais, o STJ entende que a remuneração é devida mesmo havendo inadimplemento por qualquer das partes posteriormente. O que é fundamental é que o contrato de corretagem tenha gerado um resultado útil. O STJ também entende que, ainda que o negócio jurídico de compra e venda não se concretize por inadimplemento do comprador, é devida a comissão de corretagem no caso em que o corretor tenha intermediado esse negócio. As partes firmaram um contrato de promessa de compra e venda, e um dos contratantes lançou um sinal, caso em que o corretor fará jus à remuneração, pois realizada a intermediação. O art. 726 diz que sendo iniciado e concluído o negócio diretamente entre as partes, sem atuação do correto, não terá o corretor direito a nenhuma remuneração, mas se por escrito tiver sido ajustado um contrato de corretagem de exclusividade, por meio de instrumento chamado de opção, terá direito o corretor à remuneração, ainda que o negócio tenha sido realizado sem a sua mediação. Essa remuneração não será devida quando se estiver diante de uma comprovada inércia, ociosidade ou descumprimento do contrato de corretagem pelo corretor. Se houver corretagem conjunta, ou seja, por mais de um corretor, a remuneração será paga a todos em partes iguais, salvo se o ajuste tiver sido feito de forma contrária. 12. CONTRATO DE TRANSPORTE 12.1. INTRODUÇÃO O contrato de transporte é aquele em que alguém (transportador) se obriga a transportar alguém ou alguma coisa a algum lugar, mediante remuneração. Essa obrigação é de resultado. Aqui há uma cláusula de incolumidade, entregando a coisa ou a pessoa incólume ao seu destino. Trata-se de um contrato bilateral, pois o transportado é devedor da passagem e credor do transporte, e há o transportador que é o devedor do transporte e credor da passagem. É comutativo, oneroso e informal, não dependendo de forma escrita ou de escritura pública. 12.2. REGRAS GERAIS PREVISTAS NO CÓDIGO CIVIL O art. 731 do CC diz que o contrato de transporte exercido em virtude de autorização, permissão ou concessão será regido pelas normas regulamentares, sem prejuízo do disposto neste Código. Percebe-se que se há um contrato de transporte com base numa autorização, permissão ou concessão haverá normas de direito administrativo, visto que há uma relação contratual firmada com o Estado, mas sem prejuízo da aplicação das normas de direito civil. 202 Aurélio Bouret 12.2.1. TRANSPORTE AÉREO O art. 732 diz que vão ser aplicadas as normas previstas em leis especiais e tratados e convenções internacionais ao contrato de transporte, desde que essas normas não contrariem aquilo disposto no Código Civil. Há discussões sobre qual regra será aplicada quando há tratado regulamentando transporte específico. Isso é importante em razão da Convenção de Varsóvia e em razão da Convenção de Montreal. Essas duas convenções vão se relacionar a limitações de indenização em caso de perda de voo ou de extravio de bagagens em viagens internacionais, relacionadas a transporte aéreo. A pergunta que se faz é: num contrato de transporte aéreo internacional haverá essa limitação ou não para o estabelecimento de uma indenização? A reparação será proporcional ao dano ou conforme prevê a convenção? No presente caso, temos um conflito entre dois diplomas legais: • • o CDC, que garante ao consumidor o princípio da reparação integral do dano; as Convenções de Varsóvia e de Montreal, que determinam a indenização tarifada em caso de transporte internacional. Assim, a antinomia ocorre entre o art. 14 do CDC, que impõe ao fornecedor do serviço o dever de reparar os danos causados, e o art. 22 da Convenção de Varsóvia, que fixa limite máximo para o valor devido pelo transportador, a título de reparação. Questiona-se: qual dos dois diplomas irá prevalecer? Em caso de extravio de bagagem ocorrido em transporte internacional envolvendo consumidor, aplica-se o CDC ou a indenização tarifada prevista nas Convenções de Varsóvia e de Montreal? As Convenções internacionais. Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 25/05/2017 (repercussão geral) (Info 866). As convenções prevalecem porque a Constituição Federal de 1988 determinou que, em matéria de transporte internacional, deveriam ser aplicadas as normas previstas em tratados internacionais. Veja: “Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.” Assim, em virtude dessa previsão expressa quanto ao transporte internacional, deve-se afastar o Código de Defesa do Consumidor e aplicar o regramento do tratado internacional. A Convenção de Varsóvia, enquanto tratado internacional comum, possui natureza de lei ordinária e, portanto, está no mesmo nível hierárquico que o CDC. Logo, não há diferença de hierarquia entre os diplomas normativos. Diante disso, a solução do conflito envolve a análise dos critérios cronológico e da especialidade. Em relação ao critério cronológico, os acordos internacionais referidos são mais recentes que o CDC. Isso porque, apesar de o Decreto 20.704 ter sido publicado em 1931, ele sofreu sucessivas modificações posteriores ao CDC. 203 Aurélio Bouret Além disso, a Convenção de Varsóvia – e os regramentos internacionais que a modificaram – são normas especiais em relação ao CDC, pois disciplinam modalidade especial de contrato, qual seja, o contrato de transporte aéreo internacional de passageiros. 12.2.1.1. OBSERVAÇÕES SOBRE CONTRATOS DE TRANSPORTES AÉREOS • • • As Convenções de Varsóvia e de Montreal regulam apenas o transporte internacional (art. 178 da CF/88). Em caso de transporte nacional, aplica-se o CDC. A limitação indenizatória prevista nas Convenções de Varsóvia e de Montreal abrange apenas a reparação por danos materiais, não se aplicando para indenizações por danos morais. As Convenções de Varsóvia e de Montreal devem ser aplicadas não apenas na hipótese de extravio de bagagem, mas também em outras questões envolvendo o transporte aéreo internacional. 12.2.2. TRANSPORTE CUMULATIVO O art. 733 do CC trata do transporte cumulativo. É o transporte em que há vários transportadores que se obrigam por determinado percurso. Ex.: uma parte do trecho será rodoviário e outra parte é aquático. Aqui há transportes cumulativos, já que em cada percurso há transporte diferente. O art. 756 diz que no transporte cumulativo, todos os transportadores responderão solidariamente. Uma empresa, no entanto, terá direito de regresso contra a outra. Havendo dano resultante do atraso ou da interrupção da viagem vai ser determinado em razão da totalidade do percurso. Essa ressalva do §1º do art. 733 é interessante, pois se foi contratado uma companhia para levar alguém de Brasília a São Paulo em 12 horas. Quando chega em Goiânia o ônibus quebra. A companhia, após 2 horas, decide pagar o transporte aéreo. O sujeito que chegaria às 6 horas da manhã de ônibus, chegou às 6 horas da manhã de avião. Não houve atraso. Nesse caso, será considerado o trajeto como um todo para verificar se houve o cumprimento tempestivo da obrigação de resultado ou não. 12.2.3. TRANSPORTE DE PESSOAS No caso de transporte de pessoas, há de um lado o transportador e de outro o passageiro. O passageiro é transportado por meio do pagamento de uma passagem. A obrigação assumida é uma obrigação de resultado, não respondendo o transportador apenas em casos de força maior (inclusive caso fortuito). O art. 734 não admite como excludente a cláusula de não indenizar. É inadmissível no contrato de transporte, ainda que não se trate de contrato de consumo. O parágrafo único do art. 734 diz que é lícito ao transportador exigir a declaração do valor que contém a bagagem entregue a ele, a fim de fixar o valor máximo da indenização. O art. 735 diz que a responsabilidade contratual do transportador por acidente com passageiro não é elidida por culpa de terceiro, pois em relação ao terceiro terá direito de ação de regresso. Perceba que há casos em que o Código Civil se mostra mais favorável ao consumidor do que o próprio CDC, visto que a responsabilidade no CDC pode ser elidida por culpa de 204 Aurélio Bouret terceiro, enquanto o art. 735 afirma que, no caso de contrato de transporte, não se admite a culpa do terceiro para excluir a responsabilidade. Portanto, há aqui a necessidade do diálogo das fontes, conforme Cláudia Lima Marques. O transporte ainda pode ser feito de forma gratuita (carona), hipótese em que não se subordina às normas do contrato de transporte, conforme súmula 145 do STJ. A referida súmula afirma que, no transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave. Não se considera gratuito quando há um interesse indireto, ou seja, mesmo que seja sem remuneração, se trouxer remuneração indireta, haverá responsabilização do transportador. Ex.: passageiro paga gasolina ou pedágio, não sendo considerado isso como carona. O art. 738 diz que a pessoa transportada deve se sujeitar às normas estabelecidas pelo transportador, fixada em bilhetes ou à vista do transportado, abstendo-se de quaisquer atos que causem incômodo ou prejuízo aos passageiros, danifiquem o veículo, ou dificultem ou impeçam a execução normal do serviço. Se o prejuízo sofrido pela pessoa transportada for atribuível à transgressão de normas e instruções regulamentares pelo próprio passageiro, o juiz reduzirá equitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano. Há a concorrência da vítima para o dano. E quando isso ocorre, haverá a redução da indenização, visto que era dever legal da vítima observar as normas de segurança e instituídas pelo transportador. O transportador não pode recusar passageiros por qualquer motivo, salvo nos casos previstos em regulamento ou quando as condições de higiene ou de saúde do interessado justificarem essa recusa. O art. 740 trata da chamada resilição unilateral do contrato de transporte. É a resilição feita pelo passageiro, sendo essa possível antes da viagem, e desde que seja feita a comunicação da resilição ao transportador em tempo para que a passagem seja vendida a outra pessoa. Caso a viagem já tenha sido iniciada e o passageiro desista da viagem no meio do percurso, poderá receber de volta o valor proporcional ao percurso, desde que fique comprovado que outra pessoa foi transportada em seu lugar. Do contrário, não terá direito a receber nada de volta. O art. 742 consagra em favor do transportador o direito de retenção da bagagem, como garantia do valor da passagem. Para Tartuce e Venosa, não há nesse caso penhor legal da bagagem, e sim um direito pessoal, colocado à disposição do transportador. Para o Samer, seria uma hipótese de penhor legal, pois pode a empresa ficar com a bagagem para garantir a passagem. 12.2.4. TRANSPORTE DE COISAS No transporte de coisas não há passageiros, mas sim um expedidor, o qual irá entregar um bem corpóreo ao transportador para que ele leve esse bem a um destinatário, que poderá ser o próprio expedidor, recebendo uma remuneração denominado frete. 205 Aurélio Bouret O art. 744 diz que ao receber a coisa, o transportador irá emitir o conhecimento, com a menção dos dados que identificam aquela coisa recebida. Esse conhecimento é um título de crédito, sendo este atípico. O art. 745 diz que, no caso de informação inexata ou falsa descrição no documento que o transportador emitiu com base nas informações prestadas pelo transportado, o transportador indenizado pelo prejuízo que sofrer. Essa ação respectiva deve ser ajuizada no prazo de 120 dias, a contar daquele ato, sob pena de decadência. A doutrina afirma que neste caso o prazo seria prescricional, já que haveria a violação de um direito que gera um prejuízo, situação em que o autor irá buscar a pretensão à indenização. Veja, se o expedidor informar que o transportador está expedindo tijolos, mas na verdade se trata de maconha, o expedidor deverá arcar com o dano, tendo o transportador ter o prazo de 120 dias para propositura dessa ação, a contar do momento em que a informação falsa foi prestada. O art. 750 vai dizer que a responsabilidade do transportador irá se limitar ao valor constante do conhecimento, já que teria o dever de informar. Essa responsabilidade iniciará do momento em que recebe a mercadoria e somente vai se encerrar no momento em que entregar ao destinatário. Caso não encontre o destinatário, será depositada a mercadoria em juízo. O art. 752 afirma que, desembarcadas as mercadorias, o transportador não é obrigado a avisar o destinatário que desembarcou as mercadorias, salvo se houver convenção nesse sentido. Ademais, devem constar do conhecimento de embarque as cláusulas de aviso ou de entrega a domicílio. Cabe mencionar que há uma crítica da doutrina com relação à possível violação da boa-fé objetiva, em virtude de não haver a observância do direito de informação. Ao final do percurso, as mercadorias serão entregues ao destinatário ou quem apresente o documento de frete endossado. Essa pessoa deverá conferir as mercadorias, hipótese em que, se não estiverem elas de acordo, deverá apresentar imediatamente a reclamação, sob pena de decadência. Se o vício da coisa não for perceptível icto oculi no momento de recebimento da mercadoria. Nesse caso, o parágrafo único do art. 754 afirma que, se houver avaria ou perda parcial não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em 10 dias a contar da entrega da mercadoria, sob pena de decadência. O art. 753 diz que, se o transporte não puder ser feito ou sofrer longa interrupção, o transportador solicitará instruções ao remetente, e zelará pela coisa, por cujo perecimento ou deterioração responderá, salvo força maior. Veja que a coisa estará sob responsabilidade do transportador. Se perdurar o impedimento, mas não sendo este imputável ao transportador e se não houver manifestação do remetente, poderá o transportador fazer o depósito judicial da coisa ou vender a coisa transportada, desde que sejam observados os preceitos legais e regulamentares, ou os usos locais, depositando o valor em juízo ou em favor do expedidor. Por outro lado, caso o impedimento se dê por responsabilidade do transportador, poderá este depositar a coisa judicialmente, mas por sua conta e risco. Só será possível vender a coisa transportada, quando o impedimento ser de sua responsabilidade, caso a coisa seja perecível. 206 Aurélio Bouret Seja qual for o caso, o transportador deve informar o remetente da efetivação do depósito ou da venda. Se o transportador mantiver a coisa depositada em seus próprios armazéns, continuará a responder pela sua guarda e conservação, sendo-lhe devida, porém, uma remuneração pela custódia, a qual poderá ser contratualmente ajustada ou se conformará aos usos adotados em cada sistema de transporte. Caso haja dúvida sobre quem seja o destinatário, o transportador deve fazer o depósito judicial da coisa, caso não seja possível obter instruções do remetente. Se a demora puder ocasionar a deterioração da coisa, o transportador deverá vender a coisa, depositando o saldo em juízo. 13. CONTRATO DE SEGURO 13.1. INTRODUÇÃO Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados (Art. 757 do CC). Em outras palavras, no contrato de seguro, uma pessoa física ou jurídica (chamada de segurada) paga uma quantia denominada de prêmio para que uma pessoa jurídica (seguradora) assuma determinado risco. Caso o risco se concretize (o que chamamos de sinistro), a seguradora deverá fornecer à segurada uma quantia previamente estipulada (indenização). Então, há um segurador que recebe um prêmio, situação na qual garante determinados bens ou pessoas contra riscos predeterminados. Há um contrato bilateral, oneroso, consensual, mas é aleatório, pois o risco é um fator determinante. Apesar de parte da doutrina afirmar que o contrato de seguro é comutativo, por conta de cálculos e estatísticas utilizadas pela seguradora. No entanto, ainda prevalece que se trata de um contrato aleatório. Essa comutação ocorrerá entre o prêmio que o segurado paga é a garantia, que é a contraprestação que o segurador dá. Portanto, o segurador recebe o prêmio dando ao segurado uma garantia. Apesar desse entendimento doutrinário, Tartuce entende que o contrato é aleatório. 13.2. REGRAS GERAIS DO SEGURO NO CÓDIGO CIVIL Somente pode ser segurador uma entidade legalmente autorizada para esta finalidade (art. 757). Ou seja, somente sociedades anônimas, grupos de seguro ou cooperativas. Para ser seguradora é indispensável que haja autorização do governo federal. Ressalta-se que as cooperativas para seguro terão por objeto apenas seguros agrícolas. Segundo a lei, a prova do contrato de seguro se dá por meio da apólice ou bilhete de seguro. Na falta, poderá ser comprovado por qualquer documento que comprove o pagamento do prêmio. 207 Aurélio Bouret Veja que a forma é livre, não sendo um contrato formal, pois a lei diz que irá prová-lo por meio da apólice ou bilhete de seguro. Ou seja, se irá prová-lo é porque ele existe. Isso mostra que o contrato de seguro é consensual, pois ele está aperfeiçoado desde o momento em que o acordo de vontades ocorre. A apólice é o instrumento do contrato de seguro. Ela irá conter as regras gerais do negócio, e a sua emissão deverá ser precedida, segundo a lei, por uma proposta escrita com a declaração dos elementos essenciais dos interesses e dos riscos a ser garantidos. O bilhete do seguro é o instrumento mais simplificado do negócio, por meio do qual se pode contratar o seguro. Tanto a apólice quanto o bilhete de seguro podem ser nominativo, à ordem ou ao portador, mencionando em relação a cada um deles os riscos assumidos, início e fim do seguro, limite da garantia e prêmio devido. Apólice ou bilhete de seguro nominativo: menciona o nome do segurador e do segurado. Neste caso, é transferido por meio de cessão civil. Apólice ou bilhete de seguro à ordem: será transmitido em endosso em preto, dizendo quem é que irá receber. Apólice ou bilhete de seguro ao portador: quem portar é o segurado. Serão transmissíveis por simples tradição. O art. 761 vai tratar do denominado cosseguro. No cosseguro, há os riscos de um seguro direto que são assumidos por várias segurados, sendo corresponsáveis pelo risco. Nesse caso, a apólice vai indicar qual é a seguradora líder, dentre as corresponsáveis, que irá administrar o contrato. Não se pode confundir cosseguro com resseguro. Nessa hipótese, há uma seguradora que faz um seguro, mas contrata outra seguradora, temendo os riscos desse contrato anterior. O art. 762 diz que é nulo o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro. O art. 763 irá dizer que, não tem direito à indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação. Flávio Tartuce afirma que este dispositivo deve ser interpretado conforme o adimplemento substancial. Como exemplo, é o caso em que o indivíduo paga o seguro há 10 anos, mas no mês de atraso não paga e a seguradora recusa a garantia. Nesse caso, deverá a seguradora garantir. O fato de se não ter verificado o risco em previsão do qual se faz o seguro não exime o segurado de pagar o prêmio, salvo disposição especial. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes. O art. 766 diz que, se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, este segurado perderá o direito à garantia, e também ficará obrigado ao prêmio vencido. Portanto, se quebrou a boa-fé objetiva, perderá a garantir e ficará obrigado ao prêmio que não pagou. O parágrafo único diz que se a inexatidão ou omissão nas declarações do segurado não resultar de má-fé, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou poderá cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio. 208 Aurélio Bouret No chamado seguro à conta de outrem, o segurador poderá opor ao segurado quaisquer defesas que tenha contra o estipulante, por descumprimento das normas de conclusão do contrato, ou de pagamento do prêmio. Há no art. 767 uma exceção ao princípio da relatividade. Ex.: se o pai fez um seguro em favor do filho, poderá o segurador opor ao filho exceções que teria contra o pai. Ainda que se trate de terceiro, o art. 767 é exceção ao princípio da relatividade. O art. 768 diz que o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato. No entanto, deverá este agravamento se dar de maneira intencional. Por isso ganha discussão na doutrina e na jurisprudência se a embriaguez do segurado em acidentes de trânsito afasta ou não o dever da seguradora de pagar a indenização. No STJ há entendimentos para os dois sentidos. Flávio Tartuce entende que a embriaguez, por si só, não consiste em agravamento intencional do risco, não afastando o dever de indenizar. Todavia, o STJ entendeu que não é devida a indenização securitária decorrente de contrato de seguro de automóvel quando o causador do sinistro (preposto da empresa segurada) estiver em estado de embriaguez, salvo se o segurado demonstrar que o infortúnio ocorreria independentemente dessa circunstância (Inf. 594). Em outras palavras, será devido o pagamento da indenização se a empresa segurada conseguir provar que o acidente ocorreria mesmo que o condutor não estivesse embriagado. O art. 769 do CC diz que o segurado é obrigado a comunicar o segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de, se não informar o segurador, perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé. Há um dever de informar, resultante da boa-fé. Caso não comunique e fique comprovado que silenciou de má-fé, nesta hipótese perderá o direito de indenização. O segurador, desde que o faça nos 15 dias seguintes ao recebimento do aviso da agravação do risco sem culpa do segurado, poderá cientificar, por escrito, de sua decisão de resolver o contrato. Essa resolução, que deve ser comunicada no prazo de 15 dias, só terá eficácia após 30 dias da notificação do segurado, devendo ser restituída pelo segurador a diferença do prêmio. O art. 771 determina que o segurado deverá comunicar imediatamente à seguradora quando ocorrer algum sinistro envolvendo o veículo, já que isso possibilita que esta tome medidas que possam amenizar os prejuízos da realização do risco, bem como a sua propagação. Se não houver esta comunicação imediata, o segurado perderá o direito à indenização. Todavia, o STJ decidiu que, para a perda do direito à indenização, é necessário que fique demonstrada a omissão dolosa do segurado, que beire a má-fé, ou culpa grave, prejudicando, de forma desproporcional, a atuação da seguradora. Ex.: se o segurado demorou 3 dias para comunicar à seguradora sobre o roubo do veículo em razão de ameaças do criminoso, não perderá a indenização, pois não poderia ser dele exigido comportamento diverso. Em regra, a diminuição do risco no curso do contrato não acarreta a redução do prêmio estipulado. Porém, se a redução do risco for considerável, o segurado poderá exigir a revisão do prêmio, ou a resolução do contrato. 209 Aurélio Bouret Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado deve informar o sinistro ao segurador, logo que souber. E ainda o segurado deverá tomar as providências imediatas para minorar a ocorrência do sinistro. Isso é a consagração do dever de mitigar as perdas (duty to mitigate the loss). O art. 773 do CC vai dizer que o segurador, que ao tempo do contrato sabia que o risco estava superado, mas não obstante expediu a apólice irá pagar em dobro o prêmio estipulado. Isso porque se não há risco, não há porque celebrar contrato de seguro. Por conta disso, a doutrina afirma que o contrato é aleatório, pois o risco é elemento essencial do contrato de seguro. É possível que o contrato de seguro traga a cláusula de recondução tácita do contrato pelo mesmo prazo. Se ficarem caladas as partes, o contrato será prorrogado no tempo pelo mesmo prazo. O prolongamento do contrato nas mesmas condições contratadas pelo mesmo prazo. Tal cláusula é válida, mas não pode ocorrer por mais de uma vez (art. 774). Ocorrendo o pagamento pela seguradora, é possível a ação regressiva em face do culpado pelo evento danoso. A seguradora irá pagar o sujeito que está garantido, mas terá direito de ressarcimento ou de regresso em face de quem efetivamente causou o dano. Os agentes autorizados do segurador presumem-se seus representantes para todos os atos relativos aos contratos que agenciarem. O segurador é obrigado a pagar em dinheiro o prejuízo resultante do risco assumido, salvo se convencionada a reposição da coisa. 13.3. SEGURO DE DANO No seguro de dano, a garantia não pode ultrapassar o valor da coisa garantida, ou seja, do valor do interesse segurado. Se o valor segurado for superior ao bem garantido, estará havendo enriquecimento sem causa. Portanto, se o valor segurado for superior ao valor coisa, o segurado vai perder a garantia e pagar o prêmio por quebra da boa-fé e enriquecimento sem causa (art. 778). Em relação à indenização a ser recebida pelo segurado, o art. 781 diz que não poderá ultrapassar o valor do interesse segurado no momento do sinistro. Em hipótese alguma o limite máximo da garantia fixada na apólice. Ex.: foi feito um seguro de um carro de 50 mil reais. Este é o valor do seguro. Após um ano, o sujeito trocou o carro. Quando for avaliar, o segurador pagou 40 mil reais, com base na tabela FIPE. É possível a cumulação de seguros, no caso de seguro de dano, inclusive o seguro duplo. Porém, o valor do seguro não poderá ser superior ao interesse segurado. O art. 783 autoriza o seguro parcial, assegurando o interesse por menos do que ele vale. Se ocorrer um sinistro parcial, a indenização também será reduzida proporcionalmente. Ex.: segura-se 50% do bem, ou seja, se fica segurado 10 mil, receberá 5 mil reais da seguradora. É a denominada cláusula de rateio. Em relação à garantia, esta não inclui o sinistro provocado por vício intrínseco à coisa segurada. Portanto, se o segurado não declarou do vício quando da celebração do contrato, será um vício não segurado. Dessa forma, o vício não é algo que aconteceu, mas sim por algo intrínseco à coisa. A responsabilidade neste caso será do fornecedor. 210 Aurélio Bouret Em regra, o contrato de seguro de dano não é personalíssimo, podendo transferir a terceiro a condição de segurado do bem. Todavia, é possível que o contrato preveja a cláusula proibitiva de cessão. O STF entende que, sendo paga a indenização, o segurador vai se sub-rogar nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competem ao segurado, contra o autor do dano. Essa regra não se aplica ao seguro de pessoas, pois o art. 800 do CC é explícito, estabelecendo que, nos seguros de pessoa, o segurador não pode se sub-rogar nos direitos e ações do segurado ou do beneficiado, contra quem causou o sinistro. Há aqui apenas a vedação legal à sub-rogação para o seguro de pessoa. O Código Civil prevê que a seguradora que paga a indenização sub-roga-se nos direitos do segurado. Ou seja, o art. 786 estabelece que, paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano. Este inclusive já era o teor da Súmula 188 do STF, a qual diz que o segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro. Segundo o §2º do art. 786, é ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo. Tal dispositivo previu, de forma expressa e inequívoca, a ineficácia, perante o segurador, de atos de disposição praticados pelo segurado juntamente ao autor do dano. Desse modo, eventual termo de renúncia ou quitação outorgado pelo segurado ao terceiro causador do dano não impede o exercício do direito de regresso pelo segurador. O legislador buscou proteger o direito do segurador de ser ressarcido da quantia que gastou para indenizar o segurado. Assim, se o segurado optou por acionar o seguro, cobrando a garantia contratada, não lhe cabe firmar com o causador do dano qualquer tipo de transação que possa importar na extinção ou diminuição do direito de regresso do segurador. Se o fizer, o ato será absolutamente ineficaz em relação ao segurador. Por exemplo, o acordo celebrado entre o causador do dano e o segurado, em que este “fica com pena” da motorista e pede para que ela pague apenas a franquia do seu seguro, é válido e eficaz entre eles (contratantes). No entanto, não se pode admitir que os efeitos dessa avença sejam estendidos ao segurador que, além de não ter participado do ajuste, possui, por força de lei, o direito de ser reembolsado de todos os valores gastos com o reparo do bem sinistrado. Portanto, mesmo que o segurado tenha outorgado termo de quitação ou renúncia ao causador do sinistro, o segurador terá direito de ser ressarcido, em ação regressiva contra o autor do dano, pelas despesas que efetuou com o reparo ou substituição do bem sinistrado. Tudo que foi dito acima é a regra. Haverá exceção no caso de má-fé do segurado e boa-fé do autor do dano. Ex.: Pedro, negligente, bateu no carro de João, que não revela que tem seguro. Pedro paga o conserto a João e este assina a quitação integral. No entanto, João, de má-fé, aciona o seguro pedindo o conserto do carro, o que é feito. Após, a seguradora ajuíza ação regressiva contra Pedro cobrando a quantia do conserto do carro segurado. Nessa hipótese específica e excepcional, o STJ entende que o terceiro (Pedro), ao ser demandado na ação regressiva, poderá se eximir do ressarcimento das despesas com o bem sinistrado, bastando que, nos termos do art. 373, II do CPC, prove que já realizou a reparação completa dos prejuízos causados, apresentando o recibo assinado pelo segurado ou eventuais documentos que comprovem o custeio das despesas. Neste caso, o juiz deverá julgar improcedente o pedido regressivo formulado, restando à seguradora a alternativa de demandar contra o próprio segurado, por locupletamento ilícito, tendo em vista que, em 211 Aurélio Bouret evidente ato de má-fé contratual, requereu, indevidamente, a cobertura securitária mesmo já tendo sido indenizado diretamente pelo autor do dano. Também merece destaque o art. 786, §1º, o qual estabelece que, salvo dolo, a subrogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge do segurado, ascendente ou descendente, seja consanguíneo ou afim. Esse dispositivo fala que o segurador irá se sub-rogar no direito do segurado e vai propor a ação contra o causador do dano. Porém, se o causador do dano for a mulher, filho ou pai da pessoa, não haverá sub-rogação. A exceção é em relação ao dolo. O seguro de responsabilidade civil é uma modalidade de seguro de dano. No seguro de responsabilidade civil, a seguradora se compromete a cobrir danos causados por atos ilícitos cometidos pelo segurado ao terceiro. O Código Civil é expresso ao proibir o segurado de reconhecer a sua responsabilidade ou confessar a ação, ou mesmo transigir com o terceiro indenizado ou mesmo de indenizá-lo, sem que haja a anuência expressa do segurador nos casos de seguro de responsabilidade civil. No caso de seguro de responsabilidade civil, se foi intentado uma ação contra o segurado, o segurado deverá dar ciência ao segurador a respeito da lide. Essa ciência será dada através da denunciação da lide. Não havendo, poderá posteriormente em acionar o segurador. O STJ, na súmula 537, estabelece que, em ação de reparação de danos, a seguradora denunciada, se aceitar a denunciação ou contestar o pedido do autor, pode ser condenada, direta e solidariamente junto com o segurado, ao pagamento da indenização devida à vítima, nos limites contratados na apólice. É bom lembrar que o fato de poder ser condenada diretamente e solidariamente não autoriza que ela seja acionada unicamente e exclusivamente pelo terceiro. Tanto é que a súmula 529 estabelece que no seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano. Há seguros de responsabilidade civil que são obrigatórios, como é o caso do DPVAT. Nesses seguros, a indenização pelo sinistro será paga pelo segurador diretamente ao terceiro prejudicado (art. 788). Vale mencionar a Súmula 246 do STJ, a qual diz que o valor do seguro obrigatório deve ser deduzido da indenização judicialmente fixada. 13.3.1. SEGURO DPVAT O DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestres) é um seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre, ou por sua carga, a pessoas, transportadas ou não. Qualquer pessoa que sofrer danos pessoais causados por um veículo automotor, ou por sua carga, em vias terrestres, tem direito a receber a indenização do DPVAT. Isso abrange os motoristas, os passageiros, os pedestres ou, em caso de morte, os seus respectivos herdeiros. Para receber indenização, não importa quem foi o culpado. O DPVAT não paga indenização por prejuízos decorrentes de danos patrimoniais, somente danos pessoais. O STJ já se manifestou no sentido de que o DPVAT não cobre os danos de acidente ocasionado por trem. 212 Aurélio Bouret Qual é o valor da indenização de DPVAT prevista na lei? no caso de morte: R$ 13.500,00 (por vítima); no caso de invalidez permanente: até R$ 13.500,00 (por vítima); no caso de despesas de assistência médica e suplementares: até R$ 2.700,00 como reembolso a cada vítima. A incidência de atualização monetária nas indenizações por morte ou invalidez do seguro DPVAT opera-se desde a data do evento danoso, conforme súmula 580 do STJ. Quem são os beneficiários do seguro DPVAT? Quem tem direito de receber a indenização? No caso de morte: metade será paga ao cônjuge do falecido, desde que eles não fossem separados judicialmente, e o restante aos herdeiros da vítima, obedecida a ordem da vocação hereditária. Não havendo cônjuge nem herdeiros, serão beneficiários os que provarem que a morte da vítima os privou dos meios necessários à subsistência. Segundo o STJ, é válido o pagamento de indenização aos pais do de cujus no caso em que os genitores, os quais se apresentaram como únicos herdeiros, diante da apresentação da certidão de óbito que afirmava que o falecido era solteiro e não tinha filhos. Nada impede, porém, que o filho exerça seu direito de ingressar com ação cobrando a quantia dos pais do falecido que receberam a indenização de forma indevida. No caso de invalidez permanente: a própria vítima. No caso de despesas de assistência médica e suplementares: a própria vítima. O STJ decidiu que, se uma gestante envolve-se em acidente de carro e, em virtude disso, sofre um aborto, ela terá direito de receber a indenização por morte do DPVAT, nos termos do art. 3º, I da Lei nº 6.194/74. Segundo o Ministro Relator, “o ordenamento jurídico como um todo se alinhou-se mais à teoria concepcionista para a construção da situação jurídica do nascituro, conclusão enfaticamente sufragada pela majoritária doutrina contemporânea” (Inf. 547). A ação de cobrança do DPVAT prescreve em 3 anos, iniciando o prazo da data em que teve ciência inequívoca do caráter permanente da invalidez ou da morte. O prazo prescricional começa no dia que foi realizado o pagamento administrativo que o beneficiário considera que tenha sido menor que o devido. A súmula 573 do STJ estabelece que, nas ações de indenização decorrente de seguro DPVAT, a ciência inequívoca do caráter permanente da invalidez, para fins de contagem do prazo prescricional, depende de laudo médico, exceto nos casos de invalidez permanente notória ou naqueles em que o conhecimento anterior resulte comprovado na fase de instrução. Para obter a indenização, a pessoa deverá procurar uma das empresas seguradoras que seja consorciada ao DPVAT e apresentar a documentação necessária. Para requerer o seguro DPVAT não é necessário advogado, despachante ou qualquer outra ajuda de terceiros. Segundo o STJ, o Ministério Público tem legitimidade para ajuizar ação civil pública em defesa dos direitos individuais homogêneos dos beneficiários do seguro DPVAT, dado o interesse social qualificado presente na tutela dos referidos direitos subjetivos. Na ação de cobrança do seguro DPVAT, constitui faculdade do autor escolher entre: foro do domicílio do autor; foro do local do acidente; ou foro do domicílio do réu. 213 Aurélio Bouret Caso a pessoa beneficiária do DPVAT não receba a indenização ou não concorde com o valor pago pela seguradora, ela poderá buscar auxílio do Poder Judiciário, por meio de uma ação de cobrança contra a seguradora objetivando a indenização decorrente de DPVAT. Consoante o entendimento do STJ, em ação de cobrança de seguro DPVAT, a intimação da parte para o comparecimento à perícia médica deve ser pessoal, e não por intermédio de advogado (Info 589). Segundo o STJ, o espólio, ainda que representado pelo inventariante, não possui legitimidade ativa para ajuizar ação de cobrança do seguro obrigatório (DPVAT) em caso de morte da vítima no acidente de trânsito. Segundo a Lei do DPVAT, o valor indenizatório deve ser pago metade ao cônjuge não separado judicialmente e o restante aos herdeiros da vítima, segundo a ordem de vocação hereditária (art. 4º da Lei nº 6.194/1974). O valor oriundo do DPVAT não integra o patrimônio da vítima de acidente de trânsito. Em outras palavras, o valor da indenização não é um crédito da vítima falecida. Não integra o patrimônio deixado pelo morto. O valor da indenização do DPVAT, em caso de morte, passa diretamente para os beneficiários (cônjuge supérstite e demais herdeiros). 13.4. SEGURO DE PESSOA O contrato de seguro de pessoa visa assegurar a pessoa humana, protegendo ela contra riscos de morte, comprometimento de saúde, incapacidades em geral, etc. O art. 789 diz que nos seguros de pessoas, o capital segurado é livremente estipulado pelo proponente, que pode contratar mais de um seguro sobre o mesmo interesse, com o mesmo ou diversos seguradores. A primeira diferença entre o seguro de dano e o seguro de pessoa é de que este não tem limites, pois a vida humana não é quantificável. Se a pessoa quiser fazer 10 seguros de vida, será possível. No seguro de vida e no seguro sobre a vida de outros, o proponente é obrigado a declarar, sob pena de falsidade, o interesse de assegurar a vida do outro. Deve declarar qual é o interesse para assegurar. Presume-se esse interesse quando o segurado for ascendente, descendente ou cônjuge do proponente, pois do contrário deverá explicar a razão de fazer o seguro. O contrato de seguro de pessoas pode instituir um terceiro beneficiário, o qual receberá a indenização em caso da morte do segurado. Na falta de indicação do terceiro, o capital será pago metade ao cônjuge e a outra metade aos herdeiros do segurado. Se não for casado e não tiver herdeiros necessários, vão ser beneficiados aqueles que provaram que com a morte do segurado ficaram privados dos meios necessários à subsistência (art. 792, parágrafo único). Também é válida na instituição do seguro como beneficiário o companheiro, desde que, ao tempo do contrato, o beneficiário estivesse separado judicialmente ou mesmo separado de fato (art. 793). Nos casos de seguro de vida ou acidentes pessoais geradores de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, pois não é herança. Ainda a respeito do seguro de vida, o STJ tem uma decisão no sentido de que, na hipótese em que o contrato de seguro de vida é renovado ano a ano, não pode a seguradora 214 Aurélio Bouret modificar subitamente as condições da avença, e nem deixar de renová-la em razão da idade do segurado. No seguro de vida por causa de morte, é lícito estipular um prazo de carência. Durante o período de carência, o segurador não responderá pela ocorrência do sinistro (art. 797). Nessas hipóteses, ocorrendo o sinistro, o segurador é obrigado a devolver ao beneficiário o montante da reserva técnica. A reserva técnica é aquilo que já foi pago. Em relação ao beneficiário do seguro, este não tem direito ao capital estipulado quando o segurado comete suicídio nos 2 primeiros anos da vigência do contrato ou nos 2 primeiros anos da recondução de um contrato que estava suspenso. A pessoa receberá a reserva técnica, mas o capital não irá receber (art. 798). Não interessa mais se o suicídio foi premeditado ou não. Ressalvada essa hipótese, é nula cláusula contratual que exclua pagamento de capital por causa de suicídio do segurado. Passados estes 2 anos, tem total direito de receber. Esse seguro de pessoas pode ser estipulado por uma pessoa natural ou por pessoa jurídica, em proveito de um grupo que essa pessoa jurídica de qualquer modo se vincule. É o denominado seguro de vida em grupo. Nesse caso, o estipulante é o único responsável para com o segurador. Se houver modificação do valor da apólice, será necessária a anuência expressa dos segurados que correspondam a 3/4 dos integrantes do grupo (art. 801). 14. CONSTITUIÇÃO DE RENDA E JOGO E APOSTA 14.1. CONSTITUIÇÃO DE RENDA Por meio da constituição de renda uma pessoa (instituidor) entregará uma determinada quantia em dinheiro, bem móvel ou imóvel, a outra pessoa (rendeiro). O rendeiro fica obrigado a pagar ao instituidor, temporariamente, certa renda, a qual poderá ser estipulada em favor do próprio rendeiro. Perceba que, em regra, essa transmissão ocorre de forma gratuita, por meio de atividade benevolente. Não há qualquer contraprestação por parte do rendeiro, pois ele seria o beneficiário. Em regra, o contrato é unilateral, gratuito, comutativo, real, temporário e solene. Veja, o contrato de constituição de renda deve se dar por escritura pública. A constituição de renda pode ser instituída por ato inter vivos ou por ato causa mortis (testamento). Nesse caso, o testamento deve ser público, conforme a doutrina. A constituição da renda pode se dar por meio de sentença judicial, como quando há o pagamento de alimentos indenizatórios. A constituição de renda é feita por prazo certo, mas pode ser feito inclusive por vida, ou seja, até que se ultime a vida do devedor (rendeiro), situação na qual que, ocorrendo, retornará o bem ao instituidor. Não pode a constituição de renda ser pela vida do instituidor, pois se este morrer, a família daquele que necessitava dos alimentos ou da renda não poderá ficar sem nada. Se o rendeiro deixar de cumprir uma obrigação estipulada, o credor (instituidor) poderá acioná-lo. Esse credor também poderá ser terceiro, em benefício do qual a renda foi 215 Aurélio Bouret instituída. Esse credor também poderá acioná-lo para que ele pague o que deve, ou para que apresente garantias de que vai pagar o que deve, ou que deverá a partir daquele momento, sob pena de rescindir o contrato de constituição de renda (art. 810). Via de regra, não existe direito de acrescer entre os beneficiários da renda. Se falece o rendeiro, o outro continuará recebendo a mesma coisa que recebida, sendo extinto o benefício contra aquele que faleceu. A exceção está na chamada constituição de renda gratuita em que há o direito de acrescer entre os cônjuges. É o caso da constituição de renda legal, em que, morrendo um dos cônjuges, o outro passar a receber a renda do outro. Além desse direito de acrescer legal, é possível o direito de acrescer convencional, em que haja previsão nesse sentido. 14.2. JOGO E APOSTA Apesar de o Código tratar de forma conjunta, não se confundem os contratos. O contrato de jogo ocorre quando duas ou mais pessoas prometem entre si que vão pagar certa soma àquela pessoa que conseguir um resultado favorável de um acontecimento incerto. A aposta está presente quando duas ou mais pessoas têm opiniões discordantes entre qualquer assunto, e elas prometem entre si que vão pagar certa quantia ou entregar determinado bem à pessoa cuja opinião prevalecer, por conta de um evento incerto. Em ambos os casos há contratos bilaterais, onerosos, consensual, informal, mas é essencialmente aleatório, visto que a aposto e o jogo decorrem de um risco. Em regra, as dívidas de jogo e aposta constituem obrigações naturais, pois há o schuld sem haftung, ou seja, há débito, mas não há responsabilidade. Essa regra vai se estender para qualquer contrato que encubra a dívida do jogo ou da aposta, mesmo que seja um reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo. Essa regra tem aplicação ainda que o jogo não seja proibido. Mesmo assim a obrigação será natural. A única exceção é se houver um jogo ou aposta legalmente permitidos, tais como as loterias oficiais: mega-sena, lotomania, etc. Nesses casos, a dívida poderá ser cobrada judicialmente. Ainda há uma exceção aos denominados prêmios oferecidos para o vencedor de uma competição de natureza desportiva, artística ou intelectual. Em verdade, o que se tem aqui é uma promessa de recompensa, sendo um ato unilateral que constitui uma fonte de obrigação. 15. CONTRATO DE FIANÇA 15.1. INTRODUÇÃO Fiança é um contrato pelo qual o fiador garante que vai satisfazer ao credor uma obrigação que é assumida pelo devedor, caso este não cumpra a obrigação. Perceba que a fiança é um contrato acessório, firmado entre fiador e credor. Por isso, em regra, há o benefício de ordem do fiador. 216 Aurélio Bouret O contrato de fiança traz duas relações jurídicas: uma que é interna do próprio contrato, que é a relação entre o fiador e o credor do devedor, mas também há uma relação externa, que é a relação entre o fiador e o devedor. O art. 820 diz que a fiança pode ser estipulada, ainda que sem o consentimento do devedor, e mesmo contra a sua vontade, visto que é um contrato diferente do contrato firmado entre credor e devedor. Na fiança, há um contrato unilateral, pois quem tem obrigação é apenas o fiador. Em regra, é um contrato gratuito, salvo quando as instituições financeiras são as fiadoras, situação em que serão remuneradas e o contrato passará a ser oneroso. A fiança será formal, pois exige a forma escrita. O art. 819 diz que a fiança não admite interpretação extensiva, pois se está diante de um contrato benéfico. O STJ, na Súmula 214, diz que o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu. Há aplicação do princípio da relatividade do contrato. Segundo o STJ, a fiança limitada decorre da lei e do contrato, de modo que o fiador não pode ser compelido a pagar valor superior ao que foi avençado, devendo responder tão somente até o limite da garantia por ele assumida, o que afasta sua responsabilização em relação aos acessórios da dívida principal e aos honorários advocatícios, que deverão ser cobrados apenas do devedor afiançado. Por se tratar de contrato benéfico, as disposições relativas à fiança devem ser interpretadas de forma restritiva (art. 819 do CC), razão pela qual, nos casos em que ela é limitada (art. 822), a responsabilidade do fiador não pode superar os limites nela indicados. Ex: indivíduo outorgou fiança limitada a R$ 30 mil; significa que ele não terá obrigação de pagar o que superar esta quantia, mesmo que esse valor a maior seja decorrente das custas processuais e dos honorários advocatícios (Inf. 595). Atente-se ao caso da fiança que garante a locação urbana (Lei de Locações). Salvo disposição em contrário, qualquer das garantias da locação vai se estender até que o imóvel seja devolvido, ainda que essa prorrogação tenha se dado por prazo indeterminado. Então a fiança será prorrogada, conforme seja prorrogada automaticamente a fiança. Por isso a lei diz que, passando a fiança a ter prazo indeterminado, o fiador poderá se exonerar por uma notificação dirigida ao locador. Nesse caso, ficará garantida a dívida ainda por mais 120 dias após a notificação. Em julho de 2015 o STJ entendeu que essa tese da prorrogação da fiança se estenderá também para fianças prestadas em contratos bancários. Nesse caso, o fiador poderá se exonerar para não mais afiançar o débito. Se o contrato principal for nulo, a fiança será nula, pois se trata de contrato acessório, mas o contrário não ocorrerá da mesma forma. 15.2. EFEITOS E REGRAS DA FIANÇA NO CÓDIGO CIVIL A fiança pode ser total ou parcial, podendo afiançar parte da dívida ou a dívida toda. O que não se pode fazer é afiançar um valor superior ao valor do débito principal. Em regra, a fiança será total, garantindo a dívida com todos os seus acessórios, juros, multa, despesas judiciais com citação do fiador, etc., tendo ele direito de regresso contra o afiançado. 217 Aurélio Bouret Tornando-se insolvente ou incapaz o fiador, o credor pode exigir a sua substituição. Se esta substituição do fiador não ocorrer, haverá o vencimento antecipado da dívida. Lembre-se que o fiador não é devedor solidário e sim subsidiário, tendo benefício de ordem. Regulamentando o benefício de ordem, o art. 827 diz que o fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor. O fiador que alega o benefício de ordem deve indicar os bens do devedor principal que bastem para a satisfação da dívida. Porém, ele irá nomear bens livre e desembaraçados localizados no mesmo município em que haja a cobrança da dívida. Tartuce entende que essa redação literal do dispositivo deve sofrer ponderações. O art. 828 consagra hipóteses em que o fiador não pode alegar benefício de ordem: fiador renunciou expressamente ao benefício de ordem; fiador se obrigou como principal pagador ou como devedor solidário; devedor estiver insolvente ou devedor falido. A renúncia ao benefício de ordem será nula quando estiver inserida em contrato de adesão, conforme o Enunciado 364 do CJF. O art. 829 diz que a fiança conjuntamente prestada a um só débito por mais de uma pessoa importa em solidariedade entre os fiadores, se não reservarem o benefício da divisão. A exceção a esta regra consta do fato em que se houver no contrato de fiança uma distribuição de quanto cada um deles ficará responsável. O art. 834 diz que, quando o credor sem justa causa deixar de dar andamento à execução feita contra o devedor, o fiador poderá fazê-lo, pois caso não pague o devedor, o fiador deverá pagar. Tanto é que o art. 835 diz que o fiador poderá se exonerar da fiança que tenha celebrado sem limitação de tempo sempre que lhe convier. Este dispositivo está dizendo que o fiador, se foi prestada por prazo indeterminado, poderá se exonerar quando quiser. Neste caso, ficará o fiador obrigado a todos os efeitos da fiança 60 dias após a notificação do credor. Atente-se que o fiador ficará por 120 dias obrigado quando se tratar de locação urbana. No caso de contratos em geral, ficará o fiador obrigado por mais 60 dias a contar da comunicação. O art. 836 diz que a obrigação do fiador passa aos herdeiros, mas a responsabilidade da fiança será limitada ao tempo decorrido até a morte do fiador, e não pode ultrapassar as forças da herança. O contrato de fiança depende da confiança, sendo personalíssimo, de forma que a morte implica fim ao contrato de fiança. O art. 837 diz que o fiador pode opor ao credor as exceções e defesas pessoais do próprio fiador, que geram a extinção do contrato, mas também poderá alegar defesas extintivas da obrigação que competem ao devedor principal. Ex.: fiador não paga sob alegação da prescrição, pagamento direto ou indireto, etc. O fiador, mesmo que solidário, fica desobrigado se, sem o seu consentimento, o credor conceder moratória ao devedor. O STJ entende que moratória ou transação entre devedor e o credor exoneram o fiador, ainda que ele tivesse assumido a obrigação em caráter solidário, já que não participou dessa nova celebração. 218 Aurélio Bouret A fiança será extinta se, por fato do credor, for impossível a sub-rogação nos direitos e preferências do credor pelo fiador. Ex.: o credor é credor de garantia real (hipoteca) e garantia fidejussória (existe um fiador), mas o credor renuncia a sua preferência sobre a coisa, executando o fiador. Neste caso, a fiança estará extinta por fato atribuível ao credor, visto que estará o fiador impossibilitado de se sub-rogar aos direitos e preferências que ele tinha. Ademais, a fiança será extinta se o credor, em pagamento da dívida, aceitar amigavelmente do devedor, um conteúdo diverso da dívida obrigada. Isto é, a fiança está extinta se houver dação em pagamento, mesmo que depois o credor venha a perder esse bem em razão da evicção. O art. 839 diz que se for invocado o benefício de ordem e o devedor, retardando-se a execução, cair em insolvência, também ficará o fiador exonerado. Isso quer dizer que, quando for executar o fiador, e ele indicar vários bens do devedor, alegando benefício de ordem, mas o credor nada o fez. 15.3. CLASSIFICAÇÃO DA FIANÇA QUANTO A SUA EXTENSÃO Quanto à sua extensão da fiança, ela poderá ser classificada em: fiança ilimitada: quando a garantia concedida pelo fiador abrange a integralidade da obrigação, incluindo as parcelas acessórias da dívida principal. Ex.: multa contratual, juros de mora e atualização monetária; fiança limitada: quando o fiador manifesta, de forma expressa, que só está se responsabilizando por determinada parcela da obrigação. Na fiança limitada, o fiador poderá dizer que está se responsabilizando apenas pela obrigação principal e que não pagará despesas acessórias. Ex.: fiador se compromete a pagar apenas os aluguéis que o inquilino não quitar, mas não arcará com multa ou quaisquer outras verbas acessórias. Existe também a possibilidade de a fiança limitada abranger até mesmo apenas uma parte da obrigação principal. Ex.: fiador se comprometo a pagar até o máximo de 70% da dívida principal, caso o devedor não cumpra sua parte. A regra é que a fiança seja ilimitada (total, universal). Assim, se o fiador quiser se responsabilizar apenas por parte da obrigação, isso deverá ser expressamente consignado no contrato. Em caso de silêncio por parte do fiador (ou seja, se o contrato não falar nada), entende-se que a fiança foi concedida de forma ilimitada. Por essa razão, o art. 822 diz que, não sendo limitada, a fiança compreenderá todos os acessórios da dívida principal, inclusive as despesas judiciais, desde a citação do fiador. Já o art. 823 afirma que a fiança pode ser de valor inferior ao da obrigação principal e contraída em condições menos onerosas, e, quando exceder o valor da dívida, ou for mais onerosa que ela, não valerá senão até ao limite da obrigação afiançada. 16. TRANSAÇÃO E COMPROMISSO 16.1. TRANSAÇÃO Transação é uma espécie de concessão recíproca. Transação é um contrato por meio do qual as partes vão pactuar a extinção de uma obrigação por meio de concessões recíprocas. A transação pode ser preventiva, sendo antes de ser instaurado qualquer processo judicial. 219 Aurélio Bouret É um contrato bilateral, oneroso, consensual, comutativo, e deve ter como objeto direitos obrigacionais de cunho patrimonial e de caráter privado. Se não for dispositivo, não há como transacionar. O art. 842 diz que a transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz A transação é um contrato formal, mas não é solene, salvo quando o ato exigir escritura pública. Há pelo menos a exigência de forma escrita. 16.1.1. ESPÉCIES A transação poder ser: transação judicial (ou extintiva): ocorre quando a transação é feita perante o juiz. Essa transação deverá ser feita por escritura pública ou por termo nos autos, assinado pelas partes e homologado pelo juiz, fazendo coisa julgada material; transação extrajudicial (ou preventiva): é feita preventivamente, antes de ser instaurado o litígio judicial. Exige-se apenas a forma escrita. A transação deve ser interpretada de forma restritiva, já que há concessões mútuas. Diante de natureza contratual da transação, via de regra, produz efeitos inter partes (p. relatividade). No entanto, pode admitir algumas exceções, como o caso da transação entre o credor e o devedor, sem o conhecimento do fiador, implica desobrigação do fiador. Portanto, produziu efeitos perante um terceiro que nem participou da transação. A transação entre um credor solidário e um devedor vai extinguir a obrigação desse devedor em relação a todos os credores solidários que não participaram da transação. Se a transação for entre um dos devedores solidários e seu credor, vai se extinguir a dívida para todos os devedores solidários. Portanto, há uma exceção ao princípio da relatividade do contrato. Ocorrendo a evicção da coisa renunciada pelo outro transigente, ou seja, o transigente forneceu ao outro uma coisa a que depois gerou evicção. A consequência é o reavivamento da obrigação extinta pela transação? Não. Diferentemente da dação em pagamento, que é modo de pagamento indireto, aqui há um contrato. O fato de experimentar a evicção não implica o retorno do status a quo anterior à celebração da transação. O evicto terá direito a perdas e danos (art. 845). Em decorrência do princípio da indivisibilidade, que é adotado pelo art. 848 do CC, chegamos à conclusão de que é nula a transação quando é nula qualquer de suas cláusulas. Por isso o princípio da indivisibilidade. Nula a cláusula da transação, nula é a transação. Em se tratando da transação, haverá mitigação do princípio da preservação do contrato. Ressalte-se o parágrafo único do art. 848 que diz que, quando a transação versar sobre diversos direitos contestados, independentes entre si, o fato de não prevalecer em relação a um não prejudicará os demais, já que os demais são independentes. Isto é, se a transação estiver tratando de diferentes objetos e direitos, os quais são independentes entre si, o fato de ter sido maculado um direito não atinge os demais. 220 Aurélio Bouret O art. 850 diz que é nula a transação a respeito do litígio de uma sentença transitada em julgado, se dessa sentença não tinha conhecimento algum dos transatores. Ainda, é nula uma transação por título posteriormente descoberto se verificar que nenhum deles tinha direito sobre o objeto da transação. É nula a transação a non domino. 16.2. COMPROMISSO Compromisso é um acordo de vontades por meio do qual as partes decidem que não vão submeter o litígio a uma decisão judicial, conferindo a solução de uma desavença a um árbitro ou árbitros. Diante desse conflito de interesses de natureza disponível será feita por um árbitro. A arbitragem se restringe a direitos patrimoniais disponíveis, decidindo as próprias partes a tarefa de retirar do judiciário e submete a um árbitro a decisão do fato em apreço. O compromisso arbitral não se confunde com cláusula compromissória. A cláusula é prevista em contrato para que a arbitragem seja solucionada. No compromisso arbitral ocorre após o surgimento do conflito, situação em que as partes acordam em submeter o litígio ao árbitro. O compromisso é bilateral, oneroso, consensual e comutativo. 16.2.1. ESPÉCIES O art. 851 vai admitir duas formas de compromisso arbitral: compromisso arbitral judicial: é celebrado na pendência da lide (endoprocessual). É feito por termo nos autos; compromisso arbitral extrajudicial: ocorre antes do ajuizamento da ação. Portanto, pode ser celebrado por escritura pública ou particular. O art. 853 traz a cláusula compromissória, que é uma convenção, através da qual as partes comprometem-se a submeter à arbitragem litígios que possam vir a surgir, relativamente ao contrato. Recentemente, o STJ entendeu que o Poder Judiciário não pode decretar a nulidade de cláusula arbitral (compromissória) sem que essa questão tenha sido apreciada anteriormente pelo próprio árbitro. Isso porque, segundo o art. 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96), antes de judicializar a questão, a parte que deseja arguir a nulidade da cláusula arbitral deve formular esse pedido ao próprio árbitro (Info 591). Segundo a Ministra Nancy Andrighi, a kompetenz-kompetenz (competênciacompetência) é um dos princípios basilares da arbitragem, que confere ao árbitro o poder de decidir sobre a sua própria competência, sendo condenável qualquer tentativa, das partes ou do juiz estatal, no sentido de alterar essa realidade. Em outras palavras, no embate com as autoridades judiciais, deterá o árbitro preferência na análise da questão, sendo dele o benefício da dúvida Vale ressaltar que essa questão da nulidade poderá ser apreciada pelo Poder Judiciário em momento posterior. Isso porque, para fazer cumprir a sentença arbitral, o credor terá que ajuizar uma execução judicial. Nesse momento, o devedor poderá se defender por meio de embargos à execução alegando a nulidade da cláusula arbitral e, consequentemente, da sentença arbitral. Excepcionalmente, é possível que o Poder Judiciário, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral "patológico", isto é, claramente ilegal, declare a 221 Aurélio Bouret nulidade dessa cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral. Outro julgado importante do STJ foi o de que a franquia, ainda que não seja contrato de consumo, é um contrato de adesão. Segundo o art. 4º, § 2º da Lei nº 9.307/96, nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente: tomar a iniciativa de instituir a arbitragem; ou concordar, expressamente, com a sua instituição, por escrito, em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. Todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º da Lei nº 9.307/96. Assim, é possível a instituição de cláusula compromissória em contrato de franquia, desde que observados os requisitos do art. 4º, § 2º da Lei nº 9.307/96. QUESTÕES 1- (VUNESP – Juiz de Direito Substituto – RO/2019) Uma loja de eletrodomésticos assinou um contrato, mediante instrumento particular, com um posto de combustível para que este fornecesse, todo mês, por prazo indeterminado, uma quantidade mínima de 50 litros de combustível para abastecer os veículos de entrega de mercadorias. Em razão do aumento do preço dos combustíveis, a loja de eletrodomésticos contratou entregadores de bicicleta para as entregas de menor porte e começou a diminuir as compras de combustível do posto. Por mais de dois anos, o fornecimento de combustível se deu em quantidades menores que as mínimas estabelecidas no contrato, sem qualquer ressalva ou reclamação por parte do posto de combustível. Então, o representante da loja de eletrodomésticos procurou o representante do posto de combustível e eles, verbalmente, declararam que o contrato estaria desfeito. Entretanto, um ano após o distrato verbal, o posto de combustível ajuizou uma demanda contra a loja de eletrodomésticos, exigindo-lhe o ressarcimento dos valores proporcionais ao não cumprimento de metas mínimas de aquisição de combustível, bem como do período após o distrato verbal, sob o argumento de que o desfazimento do contrato somente poderia ser realizado por escrito. Acerca do caso hipotético, pode-se corretamente afirmar que a) como o contrato foi celebrado por escrito, somente poderia ser alterado ou desfeito pela mesma forma, razão pela qual seriam devidos todos os valores, tendo em vista o descumprimento do contrato por parte da loja de eletrodomésticos. b) somente são devidos os valores posteriores ao distrato verbal que não é válido por não atender à mesma forma do contrato; em relação ao período em que houve fornecimento de combustível abaixo do previsto no contrato, configurou-se o denominado tu quoque. c) não há que se falar na aplicação da supressio em razão da incidência do princípio do pacta sunt servanta. Entretanto, aplicável no caso a surrectio. d) somente são devidos os valores do período de aquisição abaixo dos mínimos previstos no contrato, mas não os posteriores ao distrato verbal. e) nenhum valor é devido, tendo em vista que incidiu a supressio em razão da concordância tácita do posto em fornecer combustível em valores abaixo dos contratualmente previstos, bem como ocorreu um distrato verbal válido. 222 Aurélio Bouret 2- (FCC – Juiz Substituto – AL/2019) Renato emprestou seu automóvel a Paulo. Quinze dias depois, ainda na posse do veículo, Paulo o comprou de Renato, que realizou a venda sem revelar que o automóvel possuía grave defeito mecânico, vício oculto que só foi constatado por Paulo na própria data da alienação. Nesse caso, de acordo com o Código Civil, Paulo tem direito de obter a redibição do contrato de compra e venda, que se sujeita a prazo a) prescricional, de trinta dias, contado da data em que recebeu o automóvel. b) prescricional, de quinze dias, contado da data da alienação. c) decadencial, de trinta dias, contado da data em que recebeu o automóvel. d) decadencial, de quinze dias, contado da data da alienação. e) decadencial, de noventa dias, contado da data em que recebeu o automóvel. 3- (FCC – Defensor Público – MA/2018) O vício redibitório e o erro substancial a) geram a nulidade do negócio jurídico e, consequentemente, impõem a declaração de nulidade e a indenização pelos danos causados. b) constituem espécies de vício da vontade, uma vez que o negócio não teria sido realizado se não se verificasse o vício ou erro. c) são distintos uma vez que no primeiro o vício oculto pertence ao objeto adquirido, ao passo que no segundo, o vício é da manifestação da vontade. d) dizem respeito somente ao âmbito da eficácia do negócio jurídico e apresentam como consequência o abatimento do valor pago. e) constituem vício do objeto do negócio jurídico contraído, pois o objeto adquirido possui algum vício que torna a coisa inútil para o fim a que se destina. 4- (VUNESP – Juiz Substituto – MT/2018) João e José são irmãos. José, em razão de um acidente, necessitou de cuidados e de acompanhamento constante. João deixa seu emprego, onde tinha uma remuneração de R$ 1.000,00 (mil reais) mensais, para se dedicar totalmente aos cuidados de seu irmão José. Após dois anos, José se recuperou e doou para João um apartamento de sua propriedade, avaliado em R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais), como forma de retribuir a dedicação do irmão. Constou expressamente da doação que ela se destinava a compensar João pelos serviços prestados, equivalentes aos valores salariais que deixou de receber, por ter abandonado o seu emprego para cuidar do doador. Após o recebimento da doação, João perdeu o apartamento em razão de uma ação reivindicatória ajuizada por terceiro. É correto afirmar que João a) tem direito a ser indenizado pela evicção até o limite do valor dos serviços prestados. b) não tem direito a ser indenizado pela evicção por ter recebido o bem por doação, tendo em vista a inexistência do direito à evicção em negócios jurídicos gratuitos. c) somente terá direito à indenização se provar que José sabia que iria perder a propriedade. d) poderá pleitear de José a indenização pela totalidade do valor do bem em até 180 dias. e) poderá pleitear de José a indenização pela totalidade do valor do bem em até um ano. 5- (CONSULPLAN – Juiz de Direito Substituto – MG/2018) Quanto aos contratos, segundo o Código Civil, analise as afirmativas a seguir. 223 Aurélio Bouret I. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. II. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar, exceto se o terceiro for o cônjuge do promitente, dependendo da sua anuência o ato a ser praticado, e desde que, pelo regime do casamento, a indenização, de algum modo, venha a recair sobre os seus bens. III. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante, independente do regime de bens, expressamente houverem consentido. IV. O vendedor pode executar a cláusula de reserva de domínio em razão do não pagamento integral do valor devido, independente de constituir o comprador em mora pelo protesto do título ou interpelação judicial. Estão corretas as afirmativas a) I, II, III e IV. b) I e II, apenas. c) III e IV, apenas. d) I, II e III, apenas. 6- (CESPE – Juiz Substituto – CE/2018) Contrato de prestações certas e determinadas no qual as partes possam antever as vantagens e os encargos, que geralmente se equivalem porque não envolvem maiores riscos aos pactuantes, é classificado como a) benéfico. b) aleatório. c) bilateral imperfeito. d) derivado. e) comutativo. 7- (VUNESP – Juiz de Direito Substituto – RS/2018) Sobre os vícios redibitórios, assinale a alternativa correta. a) O adquirente que já estava na posse do bem decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel. b) No caso de bens móveis, quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, se ele aparecer em até 180 dias, terá o comprador mais 30 dias para requerer a redibição ou abatimento no preço. c) Somente existe o direito de obter a redibição se a coisa foi adquirida em razão de contrato comutativo, não se aplicando aos casos em que a aquisição decorreu de doação, mesmo onerosa. d) O prazo para postular a redibição ou abatimento no preço, quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, somente começa a correr a partir do aparecimento do vício, o que pode ocorrer a qualquer tempo. e) No caso de bens imóveis, quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo é de um ano para que o vício apareça, tendo o comprador, a partir disso, mais 180 dias para postular a redibição ou abatimento no preço. 8- (VUNESP – Juiz de Direito Substituto – RS/2018) André devia a quantia de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) em dinheiro a Mateus. Maria era fiadora de André. Mateus aceitou receber em pagamento pela dívida um imóvel urbano de propriedade 224 Aurélio Bouret de André, avaliado em R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) com área de 200 m2 e deu regular quitação. Entretanto, o imóvel estava ocupado por Pedro, que o habitava há mais de cinco anos, nele estabelecendo sua moradia. Pedro ajuizou ação de usucapião para obter a declaração de propriedade do imóvel que foi julgada procedente. Na época em que se evenceu, o imóvel foi avaliado em R$ 65.000,00 (sessenta e cinco mil reais). A respeito dos efeitos da evicção sobre a obrigação originária, é possível afirmar que a obrigação originária a) foi extinta com a dação em pagamento. André será responsável perante Mateus pelo valor correspondente ao bem imóvel perdido, na época em que se evenceu. Maria está liberada da fiança anteriormente prestada. b) foi extinta com a dação em pagamento. André será responsável perante Mateus pelo valor correspondente ao bem imóvel perdido, na época em que houve a dação em pagamento. Maria está liberada da fiança anteriormente prestada. c) é restabelecida, mas não contará mais com a garantia pessoal prestada por Maria. Em razão da evicção, a obrigação repristinada terá por objeto o valor equivalente ao bem na época em que se evenceu. d) é restabelecida, pelo seu valor original, em razão da evicção da coisa dada em pagamento, mas sem a garantia pessoal prestada por Maria, tendo em vista que o credor aceitou receber objeto diverso do constante na obrigação originária. e) é restabelecida, em razão da evicção da coisa dada em pagamento, inclusive com a garantia pessoal prestada por Maria. Contudo, em razão da evicção, a obrigação repristinada terá por objeto o valor equivalente ao bem na época em que se evenceu. 9- (MPE-MS – Promotor de Justiça Substituto – MS/2018) Em relação aos contratos em geral, assinale a alternativa correta. a) Na revisão judicial de disposições contratuais de execução continuada, em razão de excessiva onerosidade da prestação, com extrema vantagem para a outra parte, em face de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato, retroagindo os efeitos da sentença à data da celebração do negócio jurídico. b) A aplicação dos institutos da supressio e da surrectio constituem figuras concomitantes, podendo ser comparadas como verso e reverso da mesma moeda. c) A doação pura feita ao nascituro e ao absolutamente incapaz valerá sendo aceita pelo seu representante legal, com presunção jure et jure. d) O direito de demandar pela evicção supõe, necessariamente, a perda da coisa adquirida em contrato oneroso, por força de decisão judicial. e) O Código Civil de 2002 adotou a teoria da base objetiva do negócio jurídico, inspirado na doutrina alemã desenvolvida por Karl Larenz. 10- (FCC – Defensor Público – AM/2018) No Código Civil, para que se dê a resolução contratual por onerosidade excessiva, será preciso o preenchimento dos requisitos seguintes: a) os contratos devem ser de parcelas sucessivas, ou diferidos no tempo, exigindo-se a onerosidade excessiva à parte prejudicada e vantagem extrema à outra, mas não a imprevisibilidade dos acontecimentos. 225 Aurélio Bouret b) a natureza dos contratos é irrelevante, bem como a vantagem a uma das partes, bastando a onerosidade excessiva à parte prejudicada e os acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. c) os contratos devem ser bilaterais e as prestações sucessivas, bastando a onerosidade excessiva a uma das partes, sem se cogitar de vantagem à outra parte mas exigindo-se a imprevisibilidade dos acontecimentos. d) na atual sistemática civil, basta a onerosidade excessiva, não se cogitando seja de vantagem à outra parte, seja da imprevisibilidade dos eventos. e) os contratos devem ser de execução continuada ou diferida; e à onerosidade excessiva a uma das partes deve corresponder a extrema vantagem à outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. 11- (CESPE – Defensor Público – AL/2017) Jonatas adquiriu de Carlos, mediante contrato de compra e venda, um veículo usado de alto valor, cujos acessórios eram de valor insignificante. Seis meses após a aquisição do bem, Jonatas perdeu a propriedade do veículo em virtude de sentença judicial transitada em julgado, em processo movido por José contra Carlos. No que se refere a essa situação hipotética, assinale a opção correta. a) A perda da propriedade somente dos acessórios do veículo abre a possibilidade de Jonatas optar pela rescisão do contrato entabulado com Carlos. b) Jonatas poderá demandar Carlos pela perda do veículo, requerer a restituição do valor pago pelo bem e dos honorários do seu advogado, ainda que fique comprovado que, desde a assinatura do contrato, ele sabia que o veículo era objeto de disputa judicial. c) Carlos deverá responder, em favor de Jonatas, pela perda da propriedade do veículo, já que essa responsabilidade somente não subsistiria se Jonatas tivesse adquirido o veículo em hasta pública. d) Jonatas, sem conhecer o risco da perda, terá o direito de receber o valor que pagou pelo veículo, ainda que haja cláusula expressa no contrato que exclua qualquer responsabilização pela perda. e) Caso um meliante desconhecido pratique furto das quatro rodas do veículo no dia anterior à entrega do carro a José, Jonatas não terá o direito de receber o valor integral que pagou pelo carro. 12- (CESPE – Defensor Público – AC/2017) Em uma relação de consumo, foi estabelecido que o pagamento deveria ser realizado de determinada maneira. No entanto, após certo tempo, o pagamento passou a ser feito, reiteradamente, de outro modo, sem que o credor se opusesse à mudança. Nessa situação, considerando-se a boa-fé objetiva, para o credor ocorreu o que se denomina a) venire contra factum proprium. b) tu quoque. c) surrectio. d) supressio. e) exceptio doli. 13- (CESPE – Defensor Público – AC/2017) Entre outros aspectos, é motivo capaz de ensejar revisão ou rescisão contratual, com base na teoria da imprevisão, a) o dolo do contratante que obtém vantagem excessivamente onerosa. 226 Aurélio Bouret b) a onerosidade do contrato de natureza continuada ou diferida. c) a dificuldade financeira do devedor, proveniente de desempregado involuntário. d) o fato de o contrato ser de execução instantânea. e) a previsibilidade de acontecimentos futuros. 14- (VUNESP – Juiz Substituto – SP/2017) No caso da celebração de um contrato de prestação de serviços vinculados à saúde, a obtenção do consentimento informado do paciente, destinatário final do atendimento, é a) subordinada às condições e cláusulas do contrato celebrado, a serem apreciadas em cada caso concreto. b) obrigatória, tratando-se de obrigação vinculada ao princípio da boa-fé. c) facultativa e sujeita à aferição de necessidade, a ser feita pelo profissional de saúde. d) obrigatória, tratando-se da obrigação principal do contrato celebrado. 15- (CESPE – Promotor de Justiça Substituto – RR/2017) Se, em cumprimento a cláusula de uma relação contratual, uma das partes adota determinado comportamento e, tempos depois, ainda sob a vigência da referida relação, passa a adotar comportamento contraditório relativamente àquele inicialmente adotado, tem-se, nesse caso, um exemplo do que a doutrina civilista denomina a) exceptio doli. b) supressio. c) surrectio. d) venire contra factum proprium. 16- (FCC – Defensor Público – BA/2016) A boa-fé, como cláusula geral contemplada pelo Código Civil de 2002, apresenta a) indeterminação em sua fattispecie a fim de permitir ao intérprete a incidência da hipótese normativa a diversos comportamentos do mundo do ser que não poderiam ser exauridos taxativamente no texto legal. b) como sua antítese a má-fé, sendo que esta tem a aptidão de macular o ato no plano de sua validade em razão da ilicitude de seu objeto. c) alto teor de densidade normativa, estreitando o campo hermenêutico de sua aplicação à hipótese de sua aplicação à hipótese expressamente contemplada pelo texto normativo, em consonância com as exigências de legalidade estrita. d) necessidade de aferição do elemento volitivo do agente, consistente na crença de agir em conformidade com o ordenamento jurídico. e) duas vertentes, isto é, a boa-fé subjetiva, que depende da análise da consciência subjetiva do agente, e a boa-fé objetiva, como standard de comportamento. 17- (VUNESP – Juiz de Direito Substituto – SP/2016) A empresa Alegria Ltda., visando parceria comercial com a empresa Felicidade Ltda. na comercialização de produtos para festas, iniciou tratativas pré-contratuais, exigindo da segunda que comprasse equipamento para a produção desses produtos. O negócio não foi concluído, razão pela qual a empresa Felicidade Ltda., entendendo ter sofrido prejuízo, ingressou com ação de reparação de danos morais, materiais e lucros cessantes, assim como na obrigação de contratar, ante a expectativa criada pela empresa Alegria Ltda. Diante deste caso hipotético, assinale a alternativa correta. 227 Aurélio Bouret a) Quem negocia com outrem para conclusão de um contrato deve proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder apenas pelos danos que dolosamente causar à outra parte. b) A boa-fé a ser observada na responsabilidade pré-contratual é a objetiva, haja vista que esta diz respeito ao dever de conduta que as partes possuem, podendo a empresa desistente arcar com a reparação dos danos, se comprovados, sem qualquer obrigação de contratar. c) É assegurado o direito à contratação, em razão da boa-fé objetiva, e deverá a empresa que pretendia desistir arcar com os danos comprovados, mas em razão da contratação, estes poderão ser mitigados, principalmente quanto aos lucros cessantes. d) Em razão de conveniência e oportunidade, podem as contratantes desistir do negócio, por qualquer razão, considerando o princípio da liberdade contratual, o qual assegura às partes a desistência, motivo pelo qual não há que se falar em indenização. e) Não existe no direito brasileiro uma cláusula geral que discipline a responsabilidade pré-contratual, de modo que não há que se falar em quebra de expectativa, vigorando o princípio da livre contratação. 18- (FAURGS – Juiz de Direito Substituto – RS/2016) Sobre os efeitos da boa-fé objetiva, é INCORRETO afirmar que a) servem de limite ao exercício de direitos subjetivos. b) resultam na proibição do comportamento contraditório. c) qualificam a posse, protegendo o possuidor em relação aos frutos já percebidos. d) servem como critério para interpretação dos negócios jurídicos. e) reforçam o dever de informar das partes na relação obrigacional. 19- (FAURGS – Juiz de Direito Substituto – RS/2016) Sobre a extinção do contrato, assinale a alternativa correta. a) Implica, necessariamente, o fim de todos os efeitos decorrentes da relação obrigacional. b) Será eficaz a partir da sentença que a declara, quando decorra do exercício do direito de resolução por onerosidade excessiva, por meio da ação respectiva. c) Pode ser impedida pela oposição de exceção de contrato não cumprido, que é meio de autodefesa do devedor. d) Será eficaz, em qualquer caso, a partir da notificação do outro contratante, quando decorrente de denúncia unilateral. e) Poderá decorrer do implemento de condição resolutiva, desde que esta não seja impossível, caso em que deverá ser reconhecida a invalidade do negócio jurídico. 20- (VUNESP – Juiz Substituto – RJ/2016) Assinale a alternativa correta sobre o direito contratual e os princípios que regem a matéria. a) Em contrato que versa sobre coisa futura, é nula a disposição contratual pela qual o alienante terá direito à integralidade do preço mesmo que o objeto da alienação venha a existir em quantidade inferior à esperada. b) É vedada na legislação brasileira a estipulação de cláusula limitativa do dever de indenizar, por violação ao princípio da reparação integral. 228 Aurélio Bouret c) A prolongada omissão de um dos contratantes em exigir da parte contrária o cumprimento de determinada cláusula contratual, que não vinha sendo cumprida ou respeitada, pode configurar motivo idôneo para tornar a cláusula juridicamente inexigível. d) Na relação cível empresarial, é vedado ao Estado intervir nos negócios jurídicos celebrados entre particulares, disciplinando e/ou limitando a liberdade contratual e as consequências de determinadas previsões contratuais. e) Em caso de revisão judicial de disposições contratuais, em razão de onerosidade excessiva decorrente de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, a eficácia da decisão será ex tunc, retroagindo à data da celebração do negócio jurídico. GABARITO 1. E 2. D 3. C 4. A 5. B 6. E 7. B 8. D 9. B 10. E 11. D 12. D 13. B 14. B 15. D 16. A 17. B 18. C 19. C 20. C 229 Aurélio Bouret 230 Paulo Batista CAPÍTULO 6 — DIREITO DAS COISAS 1. INTRODUÇÃO O Direito das Coisas, como já se pode antever, é o ramo do Direito Civil que regula as relações jurídicas estabelecidas entre pessoas e coisas, determinadas ou determináveis. Coisa é tudo aquilo que não é pessoa, física ou jurídica, nem entes despersonalizados (condomínio edilício, espólio, massa falida). Contudo, coisa precisa ser considerado um bem material. Toda coisa é bem, mas nem todo bem é coisa. Honra, liberdade, vida são bens, mas não são coisas. Assim, haverá uma relação material exercida pelo sujeito ativo em face da coisa. Esse sujeito ativo poderá ser pessoa física, jurídica ou mesmo entes despersonalizados, como massa falida e condomínio edilício. No direito das coisas, o sujeito passivo é indeterminado, podendo ser determinável, e sua eficácia se dá em face de toda a coletividade, podendo ser operada erga omnes, se atendidos os requisitos legais para cada categoria de direito. Contudo, Direito das Coisas não é sinônimo de Direitos Reais. O primeiro é mais abrangente. O Direito das Coisas é o Livro III do Código Civil, como dito, sendo mais abrangente, por envolver também a posse. Assim, posse não é Direito Real, tanto que, no CC, não está no mesmo Título dos Direitos Reais, no Livro III. A posse é uma relação fática de sujeição entre o possuidor e a coisa móvel ou imóvel. Sendo assim, posse não é propriamente um direito real, mas sim um fato que gera outros direitos. Em relação aos Direitos Reais, há duas teorias que justificam a sua natureza: teoria personalista: o Direito Real é uma relação jurídica estabelecida entre pessoas, mas intermediada por coisas, ainda que as pessoas sejam indeterminadas. Essa teoria nega a realidade metodológica dos direitos reais ou das coisas; teoria realista: é também conhecida como teoria clássica. Nela, os Direitos Reais constituem um poder imediato que a pessoa exerce sobre a coisa, e com eficácia erga omnes. Para esta teoria, o Direito Real é imediato da pessoa sobre a coisa. Esta é a teoria adotada pelo nosso CC. Quanto aos Direitos Reais, eles incidem sobre a própria coisa ou sobre coisa alheia (direito de gozo, de garantia, etc.). O mais amplo de todos os direitos reais é a propriedade, possibilitando o uso, o gozo (extrair benefícios), reivindicação e disposição (esse último, só a propriedade tem, pois possibilita alienar, gravar e alterar a substância).Decorrem dos Direitos Reais as ações reais, as quais, se disseram respeito a imóveis, também têm natureza real imobiliária. 1.1. DIREITOS REAIS X DIREITOS PESSOAIS (OBRIGACIONAIS) Os direitos reais têm oponibilidade erga omnes. No direito patrimonial, em regra, há efeitos apenas inter partes, sem vincular terceiros que não integrem a relação jurídica. Nos direitos reais há direito de sequela, ou seja, o direito de reivindicar o bem aonde quer que ele esteja. Tal direito segue a coisa, onde quer que ela esteja (móvel) ou na posse de quem estiver (imóvel). No direito obrigacional, há a responsabilidade patrimonial, convertida em perdas e danos. No direito real há direito de preferência, tendo caráter taxativo na lei (tipicidade). No caso de direitos pessoais de caráter patrimonial, há contratos 231 Paulo Batista típicos e atípicos, inominados, não sendo o havendo um rol exaustivo de todas as espécies de direitos reais. O rol dos direitos reais está no art. 1225 do CC. Segundo esse dispositivo, são direitos reais: a propriedade; a superfície; as servidões; o usufruto; o uso; a habitação; o direito do promitente comprador do imóvel; o penhor; a hipoteca; a anticrese; a concessão de uso especial para fins de moradia; a concessão de direito real de uso; a laje. Assim, os direitos reais estão descritos no art. 1.225 do Código Civil. Contudo, leis extravagantes podem criar novos direitos reais, como ocorreu na Lei nº 11.977/2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha Vida, criando a legitimação da posse como direito real (art. 59). Muito embora a doutrina majoritariamente lecione que os direitos reais precisam estar previstos em lei, o STJ já entendeu que a multipropriedade imobiliária (timesharing)possuía natureza jurídica de direito real,embora naquela época não houvesse previsão em lei. Contudo, posteriormente, a Lei nº 13.465/2017 introduziu esse instituto no Código Civil, a partir do art. 1.358-B. Para provas objetivas, deve ser adotada a concepção de taxatividade dos direitos reais, ou seja, eles só existem se houver lei os prevendo. 1.2. DEMAIS DIFERENÇAS ENTRE OS DIREITOS REAIS E OS DIREITOS PESSOAIS PATRIMONIAIS 1.2.1. DIREITOS REAIS Relação estabelecidas entre pessoas e coisas (relação imediata). Incidência forte do princípio da publicidade. Direito real tem eficácia erga omnes. O registro do direito, em regra, possui natureza constitutiva (mas a usucapião, por exemplo, é exceção, pois o registro é declaratório). O rol é taxativo, mas a lei pode criar novos direitos reais. O direito é permanente. Direitos reais podem ser objeto de usucapião. 1.2.2. DIREITOS PESSOAIS Relação jurídica entre pessoas (inter partes). O objeto imediato é uma prestação, que pode ser de dar, fazer ou não fazer. Característica mais relevante é a autonomia privada. O rol legal é exemplificativo. O direito tem caráter transitório, como regra. Não se adquirem por usucapião. 232 Paulo Batista Quanto à eficácia inter partes do direito obrigacional, vale dizer que isso tem sido relativizado,como a tutela externa do crédito, quando a eficácia do contrato e sua função social gera efeitos e devem ser respeitados por quem não participou da relação jurídica material, havendo uma mitigação da relatividade dos contratos. Ainda, não se deve confundir direitos reais com obrigações propter rem. Essas têm caráter pessoal, mas perseguem a coisa. Ex.: se não foi pago o rateio do condomínio edilício pelo locador, o locatário deverá pagá-lo. A taxa condominial, apesar de não ser um direito real, é uma obrigação que persegue a coisa. O abuso de direito no exercício da propriedade (ato emulativo) também é um conceito híbrido, pois, quando há abuso no seu exercício, há uma repercussão dos direitos pessoais de caráter patrimonial, gerando o dever de indenizar. 2. DA POSSE 2.1. NATUREZA JURÍDICA DA POSSE Não é um tema pacífico. São duas correntes, uma vendo a posse como fato, outra a vendo como direito. Como visto acima, definitivamente ela não é direito real, pois não está elencada no rol do art. 1.225 do CC. Para parte da doutrina, ela é direito real de natureza especial. Especial porque a posse é a exteriorização da propriedade, o domínio fático que a pessoa exerce sobre uma coisa. Se direito é fato, valor e norma, a posse é o componente jurídico do direito. A posse nasce de um fato que é valorado e encontra respaldo normativo. Por isso teria a natureza especial, por conta desse nascedouro fático. Atualmente a tendência maior é entender a posse como um fato jurídico, gerador de um estado de aparência, que repercute em diversas esferas de direitos e obrigações. Há, ainda, duas correntes que procuram justificar a posse como categoria jurídica. 1ª Teoria Subjetivista (Savigny): dá relevância ao aspecto subjetivo da posse. Aqui, a posse possui dois elementos: Corpus: é o elemento objetivo, material, que é a disponibilidade sobre a coisa. Animus: é o elemento subjetivo, que é a intenção de ter a coisa para si. Se adotada essa teoria, não seriam possuidores o locatário, comodatário, depositário, etc., pois não haveria animus. 2ª Teoria Objetiva (Ihering): para constituição da posse, basta que o sujeito disponha fisicamente da coisa. Na verdade, para o Ihering, o corpus é formado pela atitude externa do possuidor em relação à coisa. O possuidor passa a agir, em relação à coisa, com intuito de explorá-la, inclusive economicamente. Essa teoria foi a adotada no Código Civil (art.1.196), o qual diz que se considera possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Portanto, para o CC, posse é quem exerce sobre a coisa algum, ou alguns, dos poderes inerentes à propriedade. A posse pode ser desdobrada em direta e indireta. O locador é possuidor indireto, pois exerce um dos poderes inerentes à propriedade (colher frutos). O locatário usa a coisa (sem alterar sua substância), ou seja, exerce um dos atributos da propriedade, sendo possuidor direto. 2.2. DIFERENÇAS ENTRE POSSE E DETENÇÃO Posse: é exercida em nome próprio. Detenção (ou fâmulo da posse): é exercida em nome alheio. 233 Paulo Batista O art. 1.198 do CC diz que se considera detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome desta outra pessoa e em cumprimento de ordens ou instruções suas. O parágrafo único do mesmo artigo afirma que, aquele que começou a se comportar do modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário. Exemplo do fâmulo da posse é o caseiro. Outro exemplo é o manobrista, conservando a posse em nome de outra pessoa. Veja, o manobrista exerce detenção em relação à empresa; esta é que é a possuidora, em razão de um contrato de depósito do carro no momento da condução. Outro exemplo ainda é o caso da ocupação irregular de área pública. O STJ entende que a ocupação irregular de área pública não induz posse e sim mera detenção, quando houver litígio entre o particular e o Poder Público. Contudo, mesmo se tratando de terras públicas, o STJ tem entendido que é possível a discussão da posse,se isso ocorrer entre particulares. É possível a conversão da detenção em posse, quando há a quebra do vínculo de subordinação (Enunciado 301 do CJF). 2.3. PRINCIPAIS CLASSIFICAÇÕES DA POSSE 2.3.1. QUANTO AO DESDOBRAMENTO Quanto ao desdobramento, a posse se classifica em: Posse direta: exercida por quem tem o poder físico sobre a coisa (ex.: locatário). Posse indireta: exercido por meio de outra pessoa (ex.: locador). O Enunciado 76 do CJF diz que o possuidor direto tem direito de defender sua posse contra o possuidor indireto, e vice-versa. 2.3.2. QUANTO AOS VÍCIOS OBJETIVOS Quanto à presença de vícios objetivos: Posse justa: é a posse não violenta, não clandestina e não precária. Posse injusta: é a posse violenta, clandestina ou precária. A posse violenta é aquela obtida por meio de esbulho, violência física ou moral, como a ameaça. Contudo, a violência tem que ser exercida contra a pessoa, não contra coisas. A posse clandestina é aquela obtida às escuras, às escondidas, sem publicidade. A posse precária é aquela obtida com abuso de confiança ou abuso de direito. Ocorre quando, havendo obrigação de restituição, o possuidor não o faz, passando a sua posse a ser precária. Ex.: o locatária não paga o aluguel e não devolve o imóvel. Às vezes, a precariedade demanda notificação pessoal do possuidor, para que restitua. Outras vezes, o simples esgotamento do prazo sem a restituição já torna a posse precária. A posse, mesmo injusta, é posse. Isso significa que é possível defender essa posse injusta em face de terceiros, inclusive se valer de ações possessórias em caso de esbulho e turbação. Isso porque o vício da posse pode ser relativo, somente dizendo respeito a determinadas pessoas. O art. 1.208 do CC, segunda parte, dispõe que a posse injusta por meio de violência ou clandestinidade pode ser convalidada. No entanto, a posse precárias não pode ser convalidada. Segundo o dispositivo, não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância, assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade. Portanto, uma posse que nasce violenta ou clandestina poderá ser convalidada caso cesse a violência ou a clandestinidade. Este é o entendimento que prevalece na doutrina. 234 Paulo Batista Após 1 ano e 1 dia do ato de violência ou da clandestinidade, a posse é convalidada, deixando de ser injusta e passa a ser justa. A posse precária, no entanto, continuará sendo injusta. 2.3.3. QUANTO À BOA-FÉ Posse de boa-fé: é a posse que ignora a existência de um vício que impede a aquisição da coisa. Posse de má-fé: é a posse em que há conhecimento do vício que acomete a coisa. Por isso, ele é considerada subjetiva, ou seja, é de conhecimento inequívoco do possuidor. Questiona-se: é possível falar em posse de boa-fé injusta? SIM. Nada impede que alguém tenha uma posse injusta e de boa-fé. Basta pensar naquele que adquire a posse de outrem sem saber que aquela posse é injusta. Houve a violência, e na semana seguinte, houve a transferência da posse, pois não ultrapassado o ano e dia, a fim de se tornar justa. É possível haver posse justa e de má-fé? SIM. A posse pode não ser violenta, clandestina e precária, mas pode conter algum vício. Nesse caso, haverá uma posse justa e de má-fé. 2.3.4. QUANTO À PRESENÇA DE UM TÍTULO A posse poderá ser: Posse com título: há uma causa representativa da transmissão da posse.Há documento escrito. Posse sem título: não há essa causa representativa da posse, não há documento escrito. No caso do achado de tesouro, a doutrina fala em ato-fato jurídico, pois o indivíduo não teria a vontade juridicamente relevante para que o ato jurídico produza efeitos. concorda-se que há a posse daquela pessoa, mas uma posse sem título. Com base nessa ideia, surgem as expressões: Ius possidendi: é o direito à posse que decorre da propriedade. Há uma posse com título, pois decorre da propriedade, do direito explicitado. Ius possessionis: é o direito que decorre exclusivamente da posse. Há uma posse sem título, que decorre de um exercício fático. Alguns autores falam da posse natural, que é a posse sem título (ius possessionis), e posse civil ou jurídica, que é o ius possidendi (posse com título). Quando há justo título, presume-se a boa-fé. 2.3.5. QUANTO AO TEMPO A posse pode ser classificada em: Posse nova: a posse que conta com até 1 ano, ou seja, com menos de 1 ano e 1 dia. Posse velha: a posse que conta com mais de 1 ano e 1 dia. Tais prazos vão influenciar no cabimento de liminares em ações possessórias, como veremos mais adiante. 235 Paulo Batista 2.3.6. QUANTO AOS EFEITOS A posse se classifica em: Posse ad interdicta: a posse pode ser defendida por meio das ações possessórias diretas. Essa posse não conduz à usucapião. É a posse fundada em contrato de locação, comodato, depósito, etc. Posse adusucapio nem: há admissão da aquisição da propriedade por meio da usucapião. Deve ser mansa, pacífica, duradoura, ininterrupta e deve ter a intenção de ser dono. Perceba que, quando se fala em posse ad usucapio nem, adota-se a teoria de Savigny, levando em conta que a posse seria um exercício fático com animus domini. 2.4. EFEITOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA POSSE 2.4.1. EFEITOS QUANTO AOS FRUTOS O art. 1.214do CC diz que o possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela, aos frutos percebidos. O parágrafo único do mesmo artigo diz os frutos pendentes ao tempo em que cessar a boa-fé devem ser restituídos, mas apenas depois de serem deduzidas as despesas da produção e custeio daquele fruto. Devem ser também restituídos os frutos colhidos com antecipação, pois não deveriam ser percebidos. Os frutos naturais e industriais reputam-se colhidos e percebidos logo que são separados. No entanto, os frutos civis reputam-se percebidos dia por dia (juros). Lembre-se que os frutos não implicam a mudança de substância da coisa. Já o produto gera essa alteração. O art. 1.216 do CC trata do possuidor de má-fé, estabelecendo que ele responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem como pelos frutos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o momento em que se constituiu de má-fé. O possuidor de má-fé tem direito às despesas da produção e custeio. Já o possuidor de boa-fé só responde pelos frutos pendentes, pois aqueles já colhidos e já percebidos integraram seu patrimônio. Em relação ao produto, que implica diminuição da substância da coisa, há um dever de restituição, ainda que o possuidor seja de boa-fé. Isso porque, quando se retira um produto, a substância da coisa é modificada. 2.4.2. EFEITOS DA POSSE EM RELAÇÃO ÀS BENFEITORIAS O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis. Quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, terá ele o direito de levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa principal, e terá o possuidor de boa-fé o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis. Em relação à locação de imóvel urbano, há uma regulamentação específica a respeito do possuidor de boa-fé e de má-fé quanto às benfeitorias. A Lei nº 8.245/1991 diz que, salvo disposição contratual em sentido diverso, as benfeitorias necessárias, introduzidas pelo locatário, mesmo que não tenham sido autorizadas pelo locador, vão gerar direito de indenização ao locatário. As benfeitorias úteis, desde que autorizadas pelo locador, também deverão ser indenizadas. Nestes casos, a lei garante ao locatário o direito de retenção. Em relação às voluptuárias, elas poderão ser levantadas, desde que não gerem dano à coisa. 236 Paulo Batista Veja, as partes de um contrato paritário de locação poderão dispor de modo diferente, como é o caso em que não há qualquer direito de indenização por benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias. No caso de posse de má-fé, o art. 1.220 do CC dispõe que o possuidor será ressarcido somente das benfeitorias necessárias, não tendo o direito de retenção pela importância destas, nem o direito de levantar as voluptuárias. É uma das formas em que o Código Civil diferencia a posse de má-fé daquela de boafé. 2.5. POSSE E RESPONSABILIDADE O possuidor de boa-fé não responde pela perda ou deterioração da coisa, a que não der causa. Veja, trata-se de dispositivo prevendo que o possuidor de boa-fé tem responsabilidade subjetiva. Já o art. 1.218 do CC diz que o possuidor de má-fé responde pela perda, ou deterioração da coisa, ainda que acidentais, salvo se provar que de igual modo se teriam dado, estando ela na posse do reivindicante. Em outras palavras, a responsabilidade do possuidor de má-fé é objetiva. Ele só vai se eximir se comprovado que a deterioração da coisa ocorreria de qualquer modo. O art. 1.221 do CC prevê uma hipótese de compensação legal, ao dizer que as benfeitorias compensam-se com os danos, e só obrigam ao ressarcimento, se, ao tempo da evicção, ainda existirem. 2.6. POSSE E PROCESSO CIVIL Três são as situações que possibilitam o manejo de ações possessórias (não confundir com reivindicatórias, que discutem a propriedade): Ameaça à posse: promove-se ação de interdito proibitório. Turbação da posse: promove-se ação de manutenção de posse. Esbulho da posse: promove-se ação de reintegração de posse. Assim, segundo o art. 1.210 do CC, o possuidor tem direito a ser mantido na posse no caso de turbação, de ser restituído na posse no caso de esbulho e de ser segurado na posse no caso de uma violência iminente. O possuidor esbulhado ainda pode utilizar do desforço imediato (uso moderado da força). Há no art. 554 do NCPC a consagração total do princípio da fungibilidade das ações possessórias. Segundo este dispositivo, a propositura de uma ação possessória, no lugar de outra, não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela cujos pressupostos estejam provados. Se a ofensa à posse contar com menos de 1 ano e 1 dia, caberá uma ação de força nova, cabendo a medida liminar para tutela imediata da posse. Por outro lado, se houver uma ameaça, turbação ou esbulho com mais de 1 ano e 1 dia, haverá uma ação de força velha, observando-se o procedimento comum. Há precedente do STJ entendendo que particulares podem ajuizar ação possessória para resguardar o livre exercício do uso de via municipal (bem público de uso comum do povo). Ex: determinada empresa construiu uma indústria e invadiu a via de acesso (rua) que liga a avenida a uma comunidade de moradores locais. Os moradores têm legitimidade para ajuizar ação de reintegração de posse contra a empresa, alegando que a rua que está sendo invadida. Atente-se que o ordenamento jurídico não permite a proteção possessória em caso de particular que ocupe bens públicos dominicais, sendo esta situação caracterizada como mera detenção. No entanto, como dito acima, é possível que particulares exerçam proteção 237 Paulo Batista possessória para garantir seu direito de utilizar bens de uso comum do povo, como é o caso, por exemplo, da tutela possessória para assegurar o direito de uso de uma via pública. 2.6.1. PRINCIPAIS ASPECTOS PROCESSUAIS Deve ser examinado o art. 555 do NCPC. Segundo este dispositivo, é lícito ao autor cumular ao pedido possessório o de: condenação em perdas e danos; indenização dos frutos. Isso é possível sem que haja a desnaturação do rito possessório. O parágrafo único diz que pode o autor requerer, ainda, imposição de medida necessária e adequada para: evitar nova turbação ou esbulho; cumprir-se a tutela provisória ou final. O que este dispositivo autoriza é que, além de condenação em perdas e danos e indenização dos frutos, é possível fixar multa inibitória para que o réu não pratique nova ofensa à posse. Lembre-se que a ação possessória tem caráter dúplice, sendo possível que o réu, na contestação, alegue que ele é o ofendido, devendo ele ser indenizado pelo autor. Trata-se do pedido contraposto, espécie de pleito comum à ação dúplice (art. 556 do CPC). Assim, o réu não precisa apresentar reconvenção, salvo se se tratar de pedido totalmente distinto do caráter dúplice, o que será submetido ao crivo judicial. Já o art. 557 do CPC afirma que, na pendência de ação possessória,é vedado, tanto ao autor, quanto ao réu, propor ação de reconhecimento do domínio, exceto se a ação de reconhecimento de domínio for deduzida em face de terceira pessoa. O parágrafo único do mesmo artigo prevê que não obsta à manutenção ou à reintegração de posse a alegação de propriedade, ou de outro direito real sobre a coisa. Se o réu provar que o autor provisoriamente mantido ou reintegrado na posse carece de idoneidade financeira para, caso perca, responder por perdas e danos, o juiz fixará o prazo de 5 dias para que seja depositada caução, podendo ser real ou fidejussória. Essa caução pode ser dispensada quando se está lidando com partes economicamente hipossuficientes, havendo uma interpretação voltada para a função social e dignidade da pessoa humana. Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração da posse. Caso não esteja devidamente instruída, determinará que o autor justifique previamente o alegado, antes da expedição do mandado de manutenção ou reintegração da posse, citando-se o réu para comparecer à audiência que for designada. Contra pessoas jurídicas de direito público não será deferida a manutenção ou a reintegração liminar sem prévia audiência dos respectivos representantes judiciais. Há um regramento todo especial para litígios coletivos no novo CPC. Segundo o art. 565, no litígio coletivo pela posse de imóvel, quando o esbulho ou a turbação do imóvel tiver ocorrido há mais de 1 ano e 1 dia, o juiz, antes de apreciar o pedido de concessão da medida liminar, deverá designar audiência de mediação, a realizar-se em até 30 dias. Vale lembrar que, na mediação, o mediador não propõe a solução às partes, mas a fomenta para que as partes cheguem até ela. Passado 1 ano e 1 dia, em regra, a lei não permite a liminar, pois a ação voltaria para o procedimento comum. Todavia, o próprio NCPC traz uma exceção, por conta da necessidade de audiência de mediação no prazo de 30 dias. No caso de litígio coletivo pela posse de imóvel, caso tenha sido concedida a liminar, e se essa não for executada no prazo de 1 ano, a contar da data de distribuição, caberá ao juiz designar audiência de mediação. Por seu caráter coletivo, o Ministério Público será intimado 238 Paulo Batista para comparecer à audiência, assim como a Defensoria Pública, sempre que houver parte beneficiária de gratuidade da justiça. O juiz poderá comparecer à área objeto do litígio quando sua presença se fizer necessária à efetivação da tutela jurisdicional. Os órgãos responsáveis pela política agrária e pela política urbana da União, de Estado ou do Distrito Federal e de Município onde se situe a área objeto do litígio poderão ser intimados para a audiência, a fim de se manifestarem sobre seu interesse no processo e sobre a existência de possibilidade de solução para o conflito possessório. Aplica-se o disposto neste artigo ao litígio sobre propriedade de imóvel. Segundo o art. 1.211 do CC, quando mais de uma pessoa se disser possuidora, manterse-á provisoriamente aquele que estiver na posse da coisa, se não for manifesto o vício. Esse dispositivo trata do chamado possuidor aparente. É uma das várias aplicações de um princípio jurídico geral: o Princípio da Aparência. O possuidor pode intentar a ação de esbulho, ou a de indenização, contra o terceiro que recebeu a coisa esbulhada tendo ciência do vício que a contaminava, ou seja, o terceiro de má-fé. 2.7. A LEGÍTIMA DEFESA DA POSSE E O DESFORÇO IMEDIATO O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se da posse, por sua própria força, contanto que o faça logo. Portanto, os atos devem ser imediatos. E além disso, os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse. Como dito acima, o Código traz uma previsão de autotutela, sendo requisitos que: a defesa seja imediata; o possuidor tome o cuidado para que as medidas não possam ir além do indispensável para a recuperação da posse, sob pena de abuso do direito. A legítima defesa é antes do esbulho, ocorrendo na turbação da posse. O desforço imediato ocorre após o esbulho, pois já foi perdida a posse. 2.8. FORMA DE AQUISIÇÃO, TRANSMISSÃO E PERDA DA POSSE O art. 1.204 do CC afirma que a posse é adquirida desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade. Vêse que a posse direta deve ser exteriorizada, um poder fático sobre a coisa que possa ser constatado por terceiros (não pode ser clandestina). A posse se transmite aos herdeiros ou legatários com os mesmos caracteres. O sucessor universal continua de direito a posse do seu antecessor. Já ao sucessor singular é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos legais. Sucessor universal é o caso de herança legítima. Sucessor singular é o caso de legado. A posse do imóvel faz presumir, até prova contrária, a das coisas móveis que nele estiverem, de forma que, havendo a transmissão da posse do imóvel, haverá também transmissão da posse dos bens móveis que guarnecem o bem imóvel. Há aplicação do princípio da gravitação jurídica. Já a posse será perdida quando ela cessa, embora contra a vontade do possuidor. Será considerada cessada a posse quando o possuidor perder o poder fático sobre o bem. Só se considera perdida a posse para quem não presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, abstém-se de retornar a coisa, ou, tentando recuperá-la, é violentamente repelido. 239 Paulo Batista 2.9. COMPOSSE Composse é posse conjunta. Uma situação na qual duas ou mais pessoas exercerão poderes possessórios sobre a mesma coisa. Se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores. É possível ação possessória do compossuidor contra o outro compossuidor. A composse pode ser classificada em: Composse pro indiviso (indivisível): há compossuidores, com fração ideal das posses, mas não se consegue determinar, no plano fático, qual é a parte de cada um. Ex.: dois irmãos com a posse de uma fazenda, que plantam soja conjuntamente. Composse pro diviso (divisível): cada compossuidor sabe qual é a sua parte, pois é determinável no plano fático e real. Ex.: os dois irmãos têm um terreno, mas há uma cerca dividindo metade do local. 3. PROPRIEDADE 3.1. CONCEITO Propriedade é o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. É o domínio de um sujeito ativo sobre determinada coisa. Direito de propriedade é consagrado como direito fundamental (art. 5º, XXII, CF). A propriedade não é direito absoluto, motivo pelo qual deve haver o cumprimento sua da função social. A propriedade está relacionada a 4 atributos (art. 1.228 do CC): Faculdade de usar: corresponde à faculdade de se pôr o bem a serviço do proprietário. O Código Civil e várias leis extravagantes, como o Estatuto da Cidade, colocam limitação ao direito de usar a coisa. Faculdade de gozar(fruir):é a faculdade de retirar os frutos da coisa. Faculdade de dispor: poder de consumir o bem, de aliená-lo ou gravá-lo, ou de submetê-lo ao serviço de terceira pessoa, ou de desfrutá-lo. Pode se dar por ato inter vivos ou mortis causa (testamento). Faculdade de reivindicar (reaver): é exercido por meio de uma ação petitória, fundada no direito de propriedade. Isso se dá pela chamada ação reivindicatória. Havendo os quatro atributos de forma cumulativa, então haverá propriedade plena. Do contrário, a propriedade será limitada. Quando limitada ou restrita, a propriedade pode se dividir em: Nua propriedade: é a titularidade do domínio, sem os atributos de uso e fruição. A pessoa é o nu-proprietário, senhorio direto. Domínio útil: corresponde aos atributos de usar, gozar e fruir da coisa. É a utilização efetiva do bem. A depender dos seus atributos, o titular que detenha o direito de propriedade recebe uma denominação diferente, por exemplo, superficiário, usufrutuário, usuário, habitante, promitente comprador etc. 3.2. PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE PROPRIEDADE São características do direito de propriedade: 240 Paulo Batista Direito absoluto: tem caráter erga omnes, oponível contra todos. Entretanto, tendo em vista o aspecto constitucional do Direito Civil atual, há muitas limitações ao direito de propriedade. Direito exclusivo: via de regra, a coisa não pode pertencer a mais de uma pessoa. Uma exceção é o caso do condomínio. Direito perpétuo: o direito não se perde, como regra, pelo seu não exercício. Direito elástico: Orlando Gomes diz que a propriedade pode ser distendida ou contraída, de acordo com o seu exercício. 3.3. FUNÇÃO SOCIAL E SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE O §1º do art. 1.228 do CC afirma que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, além de aspectos urbanísticos. Esse dispositivo confere uma finalidade ao exercício do direito de propriedade. É necessário que a propriedade cumpra essa função. A função social e socioambiental da propriedade também está prevista no art. 225 da CF, dispositivo que protege o meio ambiente como um bem difuso e que visa à sadia qualidade de vida das pessoas e futuras gerações (assegura direitos intergeracionais). A função social da propriedade tem uma dupla intervenção: Faceta limitadora: veda a degradação do meio ambiente. Faceta impulsionadora: fomenta a exploração da propriedade. A CF traz vários preceitos que seguem a linha da faceta impulsionadora da função social da propriedade. O art. 186 da CF impõe que haverá função social da propriedade quando se der o seu aproveitamento racional e adequado. É preciso aproveitar a propriedade para que se exerça a função social. Tratando-se de imóvel urbano, as definições quanto à correta ocupação do solo competirá prioritariamente ao Município, conforme a CF, sem prejuízo de atuação de regras gerais dos estados e da União. O STJ tem decidido que o novo proprietário de um imóvel é obrigado a fazer a reparação ambiental, mesmo que não tenha sido ele o causador do dano. É imperioso anotar que o art. 2º, §2º do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) diz que as obrigações lá previstas têm natureza real e são transmitidas ao sucessor a qualquer título, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural. São proibidos os atos que não tragam ao proprietário qualquer comodidade ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. Na verdade, o que há aqui é a vedação do exercício abusivo do direito de propriedade. É outro exemplo de vedação ao ato emulativo. Faz-se, assim, a leitura sistemática do art. 1.228, §2º, e do art. 187, ambos do CC, que trata do abuso do direito. O Enunciado 49 do CJF diz que a regra do art. 1.228, §2º do CC deve ser interpretada restritivamente, prevalecendo o art. 187 da Lei Civil. Para efeitos de ato emulativo, é preciso lembrar que tal responsabilidade, como regra, tem caráter objetivo, e não subjetivo. Quanto às limitações à propriedade, ainda existe o §3º do art. 1.228 do CC, que trata da desapropriação por necessidade ou por utilidade pública, e da desapropriação por interesse social, além de tratar do ato de requisição em caso de perigo público iminente. Quanto à sua abrangência, a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário se opor a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las. Esse dispositivo trata da extensão vertical da propriedade. 241 Paulo Batista A propriedade do solo não abrange a das jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais. Isso se dá porque a Constituição estipula que tais bens pertencem à União. O que fica garantido ao concessionário é o produto da lavra. Contudo, o proprietário do solo tem o direito de explorar os recursos minerais de emprego imediato na construção civil, desde que eles não sejam submetidos a transformação industrial (como a areia, por exemplo). O art. 1.231 do CC diz que a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário. 3.4. DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL PRIVADA POR POSSE-TRABALHO Segundo o §4º do art. 1.228 do CC, o proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de 5 anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. Essa é a denominada desapropriação judicial privada por posse-trabalho. Assim, esse dispositivo diz que o proprietário poderá perder a área: se se tratar de uma área extensa; se várias pessoas estiverem morando lá; se essas pessoas estão de boa-fé e lá estão há mais de 5 anos ininterruptamente; se elas estão exercendo trabalho e moradia naquela área; se elas realizaram serviços e obras considerados relevantes pelo juiz, como de interesse social e econômico. Nesse caso, o juiz irá fixar uma justa indenização ao proprietário, pagando-se o preço a ele, situação na qual a sentença poderá ser registrada no Registro de Imóveis,em nome daqueles que se encontram na área. Atente-se que isto não se trata de usucapião, que é forma originária de aquisição da propriedade e sem pagamento de indenização. Neste caso da desapropriação judicial privada por posse-trabalho, há esse pagamento, sendo então uma forma de desapropriação. Há quatro diferenças básicas entre a desapropriação judicial privada por possetrabalho e a usucapião coletiva do Estatuto da Cidade: Na usucapião coletiva urbana, os ocupantes devem ser de baixa renda. Na desapropriação judicial privada por posse-trabalho não há essa exigência. Na usucapião coletiva urbana, a área deve ter no mínimo 250m², enquanto na desapropriação judicial privada por posse-trabalho se exige apenas uma extensa área. A usucapião coletiva só se aplica a imóveis urbanos, enquanto a desapropriação judicial privada por posse-trabalho pode ter por objeto imóveis urbanos ou rurais. Na usucapião coletiva urbana, não há indenização, enquanto na desapropriação judicial privada por posse-trabalho há justa indenização. Esse instituto representa a efetivação da função social da propriedade, pois a posse que está sendo exercida sobre a área, somada ao desempenho da atividade positiva sobre o imóvel, faz com que nasça o direito à propriedade, desde que paga uma justa indenização. A boa-fé em matéria de posse, como acima afirmado, é subjetiva, estando relacionada à conduta dos envolvidos. A desapropriação judicial privada por posse-trabalho pode ser alegada, inclusive, como matéria de defesa, bem como por ação autônoma. 242 Paulo Batista 3.5. DIFERENÇA ENTRE PROPRIEDADE RESOLÚVEL E PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA 3.5.1. PROPRIEDADE RESOLÚVEL A propriedade resolúvel é aquela que pode ser extinta pelo advento de uma condição ou de um termo, ou mesmo por uma causa superveniente, que venha a desconstituir a relação jurídica. Exemplo disso é a chamada compra e venda com cláusula de retrovenda, quando, durante o período de até 3 anos (prazo decadencial), a propriedade do comprador é resolúvel, podendo ser extinta se implementada uma condição ou termo. Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo (causa anterior), entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência (retornando ao status a quo), quando o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, poderá reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha. Contudo, se a propriedade se resolver por outra causa superveniente, o possuidor que a tiver adquirido por título anterior à sua resolução será considerado proprietário pleno, restando à pessoa, em cujo benefício houve a resolução,ação contra aquele cuja propriedade se resolveu, podendo reivindicar a própria coisa ou o seu valor. Exemplo de causa superveniente é a ingratidão do donatário, que pode gerar revogação da doação e resolução da propriedade. 3.5.2. PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA O CC trata do aspecto geral da propriedade fidúcia. Porém, há leis específicas regrando a alienação fiduciária em garantia para bens móveis e imóveis, como será visto mais à frente. O art. 1.361 do CC considera fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor tenha, com escopo de garantia, transferido ao credor. Basicamente, na propriedade fiduciária há este movimento: o devedor transfere a propriedade fiduciária ao credor, ficando o devedor com a posse direta do bem, podendo usálo. O credor figura como o proprietário da coisa, em condição resolutiva e com posse indireta. Quitada a dívida, a propriedade do credor se resolve e o devedor assume a propriedade plena. Sendo assim, a alienação fiduciária em garantia é sempre um contrato acessório a um contrato principal (em regra, mútuo), mas pode garantir qualquer tipo de obrigação. Isso será visto com mais detalhes nos próximos capítulos. 3.6. FORMAS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL O Brasil adotou o sistema de aquisição de direitos reais, como regra, com a sua inscrição junto à matrícula do imóvel no Cartório de Registro Imobiliário. Assim, o estudo dos direitos reais imobiliários precisa ser feito com o devido exame dos Registros Públicos, tendo em vista essa natureza constitutiva de direitos. São formas de aquisição: Aquisição originária: independe que qualquer relação antecedente entre alienante e adquirente, pois não existe propriamente uma transmissão de propriedade. Ocorre, por exemplo, na acessão, na usucapião e na desapropriação. Acessões são consideradas as ilhas, aluvião, avulsão, álveo abandonado, plantações, construções. Aquisição derivada: existe a transferência de propriedade, numa relação antecedente entre alienante e adquirente, como a compra e venda, doação, sucessão hereditária (saisine) etc. 243 Paulo Batista 3.6.1. FORMAS ORIGINÁRIAS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL O que há aqui é uma propriedade que inicia do zero, sem que haja transferência de direitos e obrigações, ou mesmo vícios anteriores, como regra geral. 3.6.1.1. ACESSÕES NATURAIS O art. 1.248 do CC diz que as acessões constituem um modo de aquisição originário da propriedade, através do qual passa a pertencer ao proprietário tudo aquilo que foi incorporado natural ou artificialmente na sua propriedade. São acessões naturais a formação de ilhas, aluvião, avulsão ou abandono de álveo. São acessões artificiais as plantações ou construções. Formação de ilhas A ilha é um acúmulo paulatino de areia, cascalho, materiais que vão sendo levados pela correnteza, até que ultrapasse o limite da água. Pode ser também rebaixamento da água, descobrindo uma parte de terra. O que interessa ao direito civil são as ilhas formadas em rios não navegáveis, ou seja, particulares, pois, do contrário, serão ilhas públicas. O código estipula que, no caso das ilhas particulares, elas irão pertencer aos proprietários ribeirinhos que fazem fronteiras ali (fronteiros). As regras são as seguintes: as ilhas que se formarem no meio do rio: consideram-se acréscimos sobrevindos aos terrenos ribeirinhos fronteiros de ambas as margens, na proporção de suas testadas, até a linha que dividir o álveo em duas partes iguais; as ilhas que se formarem entre a referida linha e uma das margens: consideramse acréscimos aos terrenos ribeirinhos fronteiros desse mesmo lado; as ilhas que se formarem pelo desdobramento de um novo braço do rio continuam a pertencer aos proprietários dos terrenos à custa dos quais se constituíram: se a ilha é produto de um braço do rio que se abriu sobre o terreno de alguém, a ilha será desse proprietário. Aluvião Aluvião é a forma de aquisição da propriedade imóvel em que os acréscimos formados, sucessiva e imperceptivelmente, por depósitos e aterros naturais ao longo das margens das correntes, ou pelo desvio das águas destas, pertencem aos donos dos terrenos marginais, sem indenização. É um processo lentoque se forma em frente de prédios de proprietários diferentes. Perceba-se que há dois tipos de aluvião: Aluvião própria: é o acréscimo natural que vai sendo levado pelas águas do rio, até que surja a terra. Aluvião imprópria: se dá quando as águas se afastam, formando um terreno descoberto e acréscimo de terra. Avulsão Segundo o art. 1.251 do CC, a avulsão se dá quando, por força natural violenta, uma porção de terra se destacar de um prédio e se juntar a outro. Assim, o dono deste adquirirá a propriedade do acréscimo, se indenizar o dono do primeiro ou, sem indenização, se, em 1 ano, ninguém houver reclamado (prazo decadencial). Recusando-se ao pagamento de indenização, o dono do prédio a que se juntou a porção de terra deverá aquiescer a que se remova a parte acrescida. Álveo abandonado Álveo é a superfície que as águas cobrem sem transbordar para o solo natural. Álveo abandonado é a parte que secou do rio. É o rio que seca, que desaparece. 244 Paulo Batista Conforme o art. 1.252 do CC, o álveo abandonado de corrente pertence aos proprietários ribeirinhos das duas margens, sem que tenham indenização os donos dos terrenos por onde as águas abrirem novo curso, entendendo-se que os prédios marginais se estendem até o meio do álveo. 3.6.1.2. ACESSÕES ARTIFICIAIS Toda construção ou plantação existente em um terreno se presume feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário. Existem seis regras específicas em relação ao tema (arts. 1.254 – 1.259 do CC): Quem semeia, planta ou edifica em terreno próprio com sementes, plantas ou materiais alheios, adquire a propriedade destes materiais, sementes ou plantas, porém fica obrigado a pagar o valor desses materiais, além de responder por perdas e danos, se agiu de má-fé. Quem semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções. Se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização. Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo (exceção ao princípio da gravitação jurídica), mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo. É o que a doutrina chama de acessão inversa ou invertida. Se de ambas as partes houve má-fé, o proprietário adquirirá as sementes, plantas e construções, devendo ressarcir o valor das acessões. Aqui, uma das partes tem ciência que está plantando em terreno que não é seu, e o proprietário sabe que alguém está plantando no seu terreno irregularmente. Em relação ao proprietário, presume-se a má-fé quando o trabalho de construção, ou lavoura, fez-se em sua presença e sem impugnação. Se a construção, feita parcialmente em solo próprio, invade solo alheio em proporção não superior à vigésima parte deste, o construtor adquire de boa-fé a propriedade da parte do solo invadido, se o valor da construção exceder o dessa parte invadida, e responde por indenização que cubra o valor da área perdida e a desvalorização da área remanescente. Essa indenização deve corresponder ao valor de 5% do terreno, mas também ao valor da desvalorização da área remanescente. Pagando em 10 vezes as perdas e danos, o construtor de má-fé adquire a propriedade da parte do solo que invadiu,se em proporção à vigésima parte deste e o valor da construção exceder consideravelmente o dessa parte e não se puder demolir a porção invasora sem grave prejuízo para a construção. Aqui é o invasor de má-fé. Isso se dá se não puder ser demolida a parte invasora sem grave prejuízo à construção como um todo. Se o construtor estiver de boa-fé, e a invasão do solo alheio for superior a 5% (vigésima parte) deste, adquire a propriedade da parte do solo invadido, e responde por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mais o da área perdida e o da desvalorização da área remanescente. Por outro lado, estando de má-fé, será obrigado a demolir o que nele construiu, pagando as perdas e danos apurados, que serão devidos em dobro. O STJ decidiu no sentido de que o construtor, dono dos materiais, poderá cobrar do proprietário do solo a indenização devida pela construção, quando não puder havê-la do contratante. Ex: a Empresa "A" contratou uma construtora (Empresa “C”) para fazer um centro comercial no terreno pertencente à empresa "B". A empresa "B", mesmo não tendo participado do contrato, poderá ser responsabilizada subsidiariamente, caso a construção seja 245 Paulo Batista realizada e a construtora (Empresa “C”) não seja paga. Aplica-se, ao caso, o parágrafo único do art. 1.257 do CC: "O proprietário das sementes, plantas ou materiais poderá cobrar do proprietário do solo a indenização devida, quando não puder havê-la do plantador ou construtor (Inf. 593 do STJ). 3.6.1.3. USUCAPIÃO DE BENS IMÓVEIS A usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade ou de outro direito real (como usufruto), através de uma posse prolongada e qualificada. Veja-se que se trata da posse mais nobre que possa existir, pois, além de longeva, precisa ser qualificada, ou seja, ad usucapionem. As principais características da posse ad usucapionem são: seja exercida com a intenção de dono (animus domini); seja mansa e pacífica; seja contínua e duradoura, com determinado lapso temporal a ser cumprida. A exceção é o art. 1.243 do CC, que admite a soma de posses sucessivas; seja justa, ou seja, não violenta, não clandestina e não precária; caso a posse seja de boa-fé e com justo título, haverá a usucapião ordinária. A usucapião extraordinária não depende de boa-fé e nem de justo título. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores, contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, com justo título e de boa-fé. Estende-se ao possuidor as causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião. Por isso, a usucapião é considerada uma prescrição aquisitiva. São hipóteses impeditivas ou suspensivas da prescrição: não corre a prescrição entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal; não corre a prescrição entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar; não corre a prescrição entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela; não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes(menores de 16 anos); não corre a prescrição contra os ausentes do país em serviço público; não corre a prescrição contra os que se acharem servindo nas forças armadas, em tempo de guerra; não corre a prescrição pendendo condição suspensiva; não corre a prescrição não estando vencido o prazo; não corre a prescrição pendendo ação de evicção; não corre a prescrição antes da respectiva sentença definitiva, quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal. O art. 201 do CC diz que, suspensa a prescrição em favor de um dos credores solidários, esta suspensão só aproveita aos demais se ela for indivisível. A interrupção da prescrição somente ocorrerá uma única vez, sendo as hipóteses: interrompe a prescrição o despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual; interrompe a prescrição o protesto judicial ou o protesto cambial; interrompe a prescrição a apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores; interrompe a prescrição qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor; interrompe a prescrição qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor. 246 Paulo Batista A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper. São modalidades de usucapião de bens imóveis: usucapião ordinária; usucapião extraordinária; usucapião constitucional (especial rural); usucapião constitucional (especial urbana); usucapião especial urbana por abandono do lar; usucapião especial urbana coletiva; usucapião especial indígena. Usucapião ordinária (art. 1.242 do CC) Adquire a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por 10 anos. Portanto, são requisitos: posse contínua e duradoura, mansa e pacífica; justo título e boa-fé; lapso temporal de 10 anos. O parágrafo único reduz esse prazo para de5 anos, se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.Essa é a chamada usucapião tabular. Usucapião extraordinária (art. 1.238) Segundo o art. 1.238, aquele que, por 15 anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boafé, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Esse registro não é constitutivo, pois a usucapião é forma originária de propriedade, como dito. Trata-se de registro declaratório para que haja eficácia erga omnes. O prazo será reduzido para 10 anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Usucapião constitucional ou usucapião especial rural (art. 191 da CF) É uma usucapião pro labore, gerada pelo trabalho. Segundo o art. 191 da CF, aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por 5 anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a 50 hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. Tal dispositivo foi reproduzido pelo art. 1.239 do CC. Não há exigência de justo título e boa-fé. O Enunciado 594 do CJF diz que é possível adquirir uma propriedade de menor extensão do que ao do módulo rural estabelecida para a região, por meio da usucapião especial rural. Usucapião constitucional ou usucapião especial urbana ou usucapião pro misero (art. 183 da CF) O art. 183 da CF dispõe que o possuidor com área urbana de até 250m²,por 5 anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirirlhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. O direito à usucapião especial urbana não é reconhecido ao mesmo possuidor por mais de uma vez. Essa vedação não se vislumbra da usucapião especial rural. Destaque-se que o herdeiro legítimo continua de pleno direito à posse de seu sucessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão. 247 Paulo Batista A usucapião especial urbana não exige justo título ou boa-fé. Usucapião especial urbana por abandono do lar (art. 183 da CF) A Lei nº 12.424/2011 incluiu a usucapião especial urbana por abandono do lar. Segundo essa forma, aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m²cuja propriedade dividia com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. O direito da usucapião especial urbana por abandono do lar não é conhecida por mais de uma vez. Ressalta-se o entendimento no Enunciado 595 do CJF, estabelecendo que o requisito do abandono do lar deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como um abandono voluntário da posse do imóvel, somada à ausência da tutela da família. Não importa a culpa do fim do casamento ou da união estável. O imóvel tem que estar em condomínio comum (civil) com o cônjuge ou companheiro, mas não precisa ser na fração de 50% para cada um. O cônjuge abandonado vai requerer a usucapião da fração ideal daquele que abandou o bem. Usucapião especial urbana coletiva O art. 10 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2007) diz que as áreas urbanas com mais de 250m², ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por 5 anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. A usucapião especial coletiva de imóvel urbano é declarada por sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis, com natureza, como dito, declaratória. Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas. A usucapião especial urbana coletiva estabelece um condomínio especial entre os usucapientes, o qual será indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, 2/3 dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio. As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes. Usucapião especial indígena Está prevista no Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973). Segundo o art. 33 do Estatuto, o índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por 10 anos consecutivos, trecho de terra inferior a 50 hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena. Esse artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal. Observações: Usucapião administrativa Além das modalidades judiciais, a Lei Minha Casa Minha Vida (Lei 11.977/2009) instituiu a modalidade de usucapião administrativa, efetivada pelo Cartório de Registro de 248 Paulo Batista Imóveis, a fim de que o poder público legitime a posse, sejam eles públicos ou particulares, a qual será concedida aos moradores cadastrados pelo poder público, desde que esses não sejam concessionários, foreiros ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural, e desde que não sejam beneficiários de uma legitimação de posse concedida anteriormente. O detentor do título de legitimação de posse, depois de 5 anos, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis que seja convertida a legitimação de posse em registro de propriedade., desde que se trate de imóvel particular, pois bem público não estará submetido a esta conversão. Usucapião extrajudicial O novo CPC incluiu a modalidade de usucapião extrajudicial na Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73, em seu art. 216-A), em que se permite o reconhecimento da usucapião na esfera extrajudicial, que correrá integralmente fora do Poder Judiciário, começando no Tabelião de Notas (com a confecção da ata notarial) e depois no Registro de Imóveis. Somente em eventuais impugnações, o processo será remetido ao juiz corregedor do cartório. Trata-se de procedimento facultativo, pois o interessado terá sempre a liberdade de optar pela via judicial. 3.6.1.4. USUCAPIÃO IMOBILIÁRIA E A QUESTÃO INTERTEMPORAL O art. 2.029 do CC diz que, até dois 2 após a entrada em vigor do Novo Código Civil, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242, que tratam da usucapião ordinária e extraordinária, serão acrescidos de 2 anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do antigo CC de 1916. É uma regra de transição, apenas para as mencionadas espécies de usucapião. Para os demais casos, valerá a regra do art. 2.028, o qual estabelece que serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada. 3.6.2. FORMAS DE AQUISIÇÃO DERIVADA DA PROPRIEDADE 3.6.2.1. REGISTRO PÚBLICO O registro do título aquisitivo é a principal maneira derivada de aquisição da propriedade imóvel. É o registro que implica transferência da propriedade, possuindo, portanto, natureza constitutiva de direitos. Por isso é muito importante o estudo de Registros Públicos, em especial a Lei nº 6.015/73, além de vários diplomas normativos que regulam aspectos extrajudiciais. O art. 108 diz que os contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis devem ser feitos por escritura pública, se o valor do imóvel for superior a 30 salários mínimos. Do contrário, basta que seja um contrato particular. Ou seja, quando a lei fala “instrumento público” está se referindo a escritura pública, lavrada perante um Tabelião de Notas. A escritura pública, por si só, não transfere a propriedade. Ela é o instrumento do contrato celebrado (doação, permuta, compra e venda etc.). Para que o contrato produza efeitos, é preciso que haja o registro imobiliário dessa escritura. É o registro no cartório de registro de imóveis que levará à transferência do domínio. O art. 1.245 do CC afirma que a propriedade se transfere entre vivos através do registro. Ou seja, é forma derivada de aquisição. Segundo o art. 1.246, o registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenota no protocolo. A partir desse momento, o registro 249 Paulo Batista é eficaz, ou seja, consagra-se o princípio da prioridade, tendo ela quem primeiro protocolou o título junto ao registrador. Se o teor do registro for falso, o interessado poderá requerer que ele seja retificado ou anulado (art. 1.247). Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente. 3.6.2.2. SUCESSÃO HEREDITÁRIA DE BENS IMÓVEIS Na sucessão hereditária de bens imóveis, a propriedade se transfere no momento exato do óbito. É uma forma de aquisição derivada da propriedade. Segundo o art. 1.784, aberta a sucessão, a herança se transmite, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. Esse é o princípio da saisine. Contudo, feita a partilha, o seu formal precisa ser levado a registro para que haja eficácia contra todos e continuidade no registro público. 3.7. FORMAS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE MÓVEL A forma mais comum de transferência da propriedade móvel é a tradição, conforme veremos mais abaixo. Antes, vamos analisar outras espécies de aquisição 3.7.1. OCUPAÇÃO E ACHADO DO TESOURO E ESTUDO DA DESCOBERTA 3.7.1.1. OCUPAÇÃO O art. 1.263 diz que aquele que se assenhorear de coisa sem dono desde logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei. A ocupação é uma forma de aquisição originária da propriedade (res nullius – coisa de ninguém). Pode ser objeto de ocupação inclusive a coisa abandonada por outrem (res derelicta). 3.7.1.2. ACHADO DO TESOURO O art. 1.264, em sua primeira parte, conceitua o tesouro como sendo o depósito antigo de coisas preciosas, oculto e de cujo dono não haja memória. Três são as regras que merecem destaque: o tesouro será dividido por igual entre o proprietário do prédio e o que achar o tesouro casualmente, desde que tenha agido de boa-fé; o tesouro pertencerá por inteiro ao proprietário do prédio, se for achado por ele, ou em pesquisa que o proprietário ordenou, ou se quem encontrou o tesouro foi terceiro não autorizado (agiu de má-fé); sendo o tesouro encontrado em terreno aforado, o tesouro será dividido por igual entre o descobridor e o enfiteuta, ou será deste por inteiro quando ele mesmo seja o descobridor. 3.7.1.3. DESCOBERTA Quem quer que ache coisa alheia perdida deve restituí-la ao dono ou legítimo possuidor. Assim, a coisa perdida não é coisa sem dono. Se o descobridor da coisa não conhecer o dono, deverá tomar todas as medidas necessárias para encontrá-lo. Caso não o encontre, deverá entregar à autoridade competente. 250 Paulo Batista A autoridade competente dará conhecimento da descoberta através da imprensa e outros meios de informação, somente expedindo editais se o seu valor os comportar. Após 60 dias da divulgação, caso o dono não se apresente, a coisa será vendida em hasta pública, deduzidas as despesas, a recompensa do descobridor (que não pode ser inferior a 5%) e o restante pertencerá ao município. Se o valor da coisa for diminuto, o município poderá abandonar em favor de quem a achou. A recompensa é denominada achádego. O art. 1.235 diz que o descobridor responde pelos prejuízos causados ao proprietário ou possuidor legítimo, quando tiver procedido com dolo. Não responderá por prejuízos que tenha causado com culpa. 3.7.2. USUCAPIÃO DE BENS MÓVEIS É forma originária de aquisição da propriedade. Há aqui duas formas: usucapião ordinária; usucapião extraordinária. 3.7.2.1. USUCAPIÃO ORDINÁRIA Quem possui a coisa móvel como sua, de forma contínua e pacífica, durante 3 anos, desde que tenha justo título e boa-fé, vai adquirir a propriedade. 3.7.2.2. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA Neste caso, se a posse da coisa se prolongar por 5 anos, haverá usucapião, sendo dispensável a boa-fé e o justo título. 3.7.3. ESPECIFICAÇÃO A especificação é uma forma derivada de aquisição da propriedade móvel. Especificar consiste na transformação de uma coisa numa nova espécie, através do trabalho de alguém (especificador). São regras da especificação: A espécie nova (escultura) será de propriedade do especificador, se não for possível o retorno ao status anterior. Por exemplo, se o dono de uma pedra era terceiro, deverá o especificador indenizar o dono da coisa anterior. No entanto, o produto da especificação passa a ser do especificador. Se toda a matéria for alheia, e não se puder retornar à forma anterior, e o especificador tiver agido de boa-fé, a espécie nova será dele. Se for possível a redução ao estado anterior, ou quando for impraticável, mas a espécie nova foi obtida de má-fé, ela pertencerá ao dono da matéria-prima. O art. 1.271 do CC diz que o especificador de má-fé não tem direito sequer a indenização pelo trabalho. Em qualquer caso, inclusive o da pintura em relação à tela, da escultura, escritura e outro qualquer trabalho gráfico em relação à matéria-prima, a espécie nova será do especificador, se o seu valor exceder consideravelmente o da matéria-prima. A regra é a de que a coisa especificada pertença ao especificador. Excepciona-se o caso de má-fé, em que a coisa retornará ao dono da matéria-prima, sem direito à indenização ao especificador. Ainda que o especificador tenha agido de má-fé, se a coisa especificada tiver valor consideravelmente superior ao valor da matéria-prima, continuará a coisa como sendo dele. 251 Paulo Batista 3.7.4. CONFUSÃO, COMISTÃO E ADJUNÇÃO Essas três categorias são formas derivadas de aquisição da propriedade móvel. Ocorre quando coisas pertencentes a diversas pessoas diferentes se misturam, de forma que é impossível o retorno ao status anterior, ou seja, é impossível separá-las. Confusão há mistura de coisas líquidas ou mesmo entre gases. Ex.: mistura de álcool com vinho; álcool com gasolina. Comistão é a mistura de coisas sólidas e secas, não sendo mais possível separar. Ex.: mistura de areia com cimento. Adjunção é a justaposição, ou seja, é a sobreposição de uma coisa sobre a outra coisa, não havendo mais como separá-las. Ex.: tinta na parede não dá mais para separar. São regras fundamentais: Se a coisa pertencer a diversos donos, e sendo elas confundidas, misturadas ou adjuntadas sem o consentimento deles, continuam pertencendo a esses donos diversos, desde que seja possível separá-las sem deterioração. Não sendo possível a separação das coisas, ou exigindo dispêndio excessivo, fica mantido indivisível o todo, cabendo a cada um dos donos quinhão proporcional ao valor da coisa com que entrou para a mistura ou agregado. Se uma das coisas puder considerar-se principal, será o dono do principal o dono do todo, indenizando os demais. Se a confusão, comistão ou adjunção se operou de má-fé, à outra parte caberá escolher entre adquirir a propriedade do todo, pagando o que não for seu, abatida a indenização que lhe for devida, ou renunciar ao que lhe pertencer, caso em que será indenizado. Essa decisão entre comprar o que falta ou vender o que tem será tomada pelo condômino de boa-fé, e o de má-fé fica sujeita à decisão do condômino de boa-fé. Se da união de matérias de natureza diversa se formar espécie nova, à confusão, comissão ou adjunção aplicam-se as normas da especificação. O Código fala em comissão, mas a doutrina aponta que o correto seria comistão. 3.7.5. TRADIÇÃO A tradição é a forma mais comum de transmissão de propriedade de coisas móveis. Traduz a entrega da coisa móvel ao adquirente, com a intenção de transmissão de propriedade. A intenção das partes é sempre imprescindível para caracterizar o negócio jurídico, pois, a simples entrega de uma caneta a alguém pode significar uma compra e venda, uma doação ou um comodato, por exemplo. O art. 1.267 do CC diz que a propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição. Portanto, para transferir a propriedade, é necessário haver a tradição do bem móvel. A tradição pode ser real, simbólica ou ficta. Tradição real: é a efetiva entrega da coisa a quem adquiriu a coisa. Tradição ficta: o parágrafo único afirma que há tradição quando o transmitente continua a possuir a coisa, utilizando-se do instituto do constituto possessório. Ex.: A era o dono, mas vendeu a coisa para B, e, em seguida, celebra contrato de aluguel, para que ele permanecesse na posse da coisa pediu para que a coisa fosse alugada para ele. João aceitou alugar a coisa a Samer, continuando com a coisa consigo, sendo possuidor. Não houve a entrega efetiva, mas houve uma tradição ficta, pelo constituto possessório. Também haverá tradição ficta quando o 252 Paulo Batista adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico, passando a ser o dono da coisa. A isso se dá o nome de traditio brevi manu. Tradição simbólica: por outro lado, quando o adquirente cede o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiro, há uma tradição simbólica, sendo denominada de traditio longa manus. O art. 1.268 do CC trata da alienação a non domino, ou seja, alienação por quem não era o dono. Nessas situações, a tradição não implicará transferência da propriedade, exceto se a coisa oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, poderia crer que o alienante se afiguraria dono da coisa. Mais uma vez, a aplicação do Princípio da Aparência. Se o adquirente estiver de boa-fé, e o alienante adquirir posteriormente a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição. O §2º do mesmo artigo diz que não transfere a propriedade a tradição quando houver por título um negócio jurídico nulo. 3.7.6. SUCESSÃO HEREDITÁRIA DE BENS MÓVEIS É a aplicação do princípio da saisine, que se dá com a abertura da sucessão. Contudo, vale lembrar que a sucessão hereditária, até a partilha, tem natureza real imobiliária, ainda que formada apenas por bens móveis. É uma ficção jurídica, que considera a sucessão hereditária indivisível e com natureza imobiliária, até que ocorrida a partilha. 3.7.7. PERDA DA PROPRIEDADE IMÓVEL E MÓVEL O art. 1.275 do CC elenca outras hipóteses de perda da propriedade: perda da propriedade por alienação; perda da propriedade pela renúncia; perda da propriedade por abandono; perda da propriedade por perecimento da coisa; perda da propriedade por desapropriação. O imóvel urbano abandonado pelo proprietário, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outra pessoa, poderá ser arrecadado, como bem vago. Passados 3 anos, será incorporado à propriedade do respectivo Município ou do Distrito Federal. O imóvel rural que tenha sido abandonado, todavia, poderá ser arrecadado como bem vago, também em 3 anos, à propriedade da União, onde quer que ele se localize. O §2º do art. 1.275 do CC cria uma presunção, muito criticada pela doutrina, afirmando que se presume de modo absoluto a intenção, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais. A jurisprudência também tempera e modera este dispositivo. 4. DIREITO DE VIZINHANÇA 4.1. CONCEITO O direito de vizinhança são limitações impostas aos titulares de direitos reais, para que exista uma boa convivência social. É um conjunto de normas de convivência entre titulares de direitos ou possuidores que estejam fisicamente próximos uns aos outros. 253 Paulo Batista As normas relativas aos direitos de vizinhança são claras limitações ao exercício da propriedade, existindo pelo simples fato de uma propriedade ser vizinha de outra. Essas obrigações estão vinculadas à coisa, perseguindo-a, ou seja, são obrigações propter rem (ambulatoriais). 4.2. USO ANORMAL DA PROPRIEDADE O problema da vizinhança ocorre quando há um uso anormal da propriedade. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam o prédio, provocadas pela utilização de propriedade vizinha. Existe para cessar interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde, evitando-se o abuso do direito. O parágrafo único do art. 1.277 do CC diz que são proibidas as interferências externas, considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio. Além disso, é necessário que sejam atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança. Para verificar se há abuso ao direito de propriedade, é preciso verificar os limites ordinários comuns de tolerância dos moradores de vizinhança. O direito de alegar o uso anormal da propriedade não prevalece quando as interferências forem justificadas por interesse público. Nesse caso, o proprietário ou o possuidor vizinho, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal. Atente-se que não haverá ilicitude, e sim o uso normal da propriedade. Pode ainda o vizinho exigir a sua redução, ou eliminação, quando esta redução ou eliminação se tornarem possíveis. O proprietário ou o possuidor tem direito a exigir do dono do prédio vizinho a demolição, ou a reparação do prédio, quando ele estiver ameaçado de ruína, bem como poderá exigir que seja prestada caução pelo perigo de dano iminente. O proprietário ou o possuidor de um prédio em que alguém tenha direito de fazer obras pode, no caso de dano iminente, exigir do autor as necessárias garantias contra o prejuízo eventual. São possíveis várias demandas judiciais fundadas no exercício anormal da propriedade, como ação de obrigação de fazer, de não fazer, ação de reparar o dano, ação demolitória, ação de nunciação de obra nova, visando embargar a obra (todas de procedimento comum) bem como dano infecto, exigindo do vizinho que preste uma caução, havendo risco iminente dano. 4.3. ÁRVORES LIMÍTROFES A árvore limítrofe é aquela cujo tronco esteja na linha divisória, caso em que será presumida, de forma relativa,que ela pertence em comum aos donos dos prédios confinantes. Há uma presunção de condomínio. As raízes e os ramos de árvore que ultrapassarem a estrema do prédio poderão ser cortados (raiz ou galhos), até o plano vertical divisório, pelo proprietário do terreno invadido (Art. 1.283 do CC). O direito de fazer a poda não pode comprometer a vida da árvore, já que a propriedade também deve observar a sua função socioambiental. Os frutos caídos da árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular. 254 Paulo Batista 4.4. PASSAGEM FORÇADA E DA PASSAGEM DE CABOS E TUBULAÇÕES 4.4.1. PASSAGEM FORÇADA O dono do prédio que não tiver acesso à via pública, nascente ou a porte, poderá, mediante pagamento de indenização, constranger o vizinho para que ele dê acesso à passagem. Tal acesso à via pública pelo imóvel encravado, mediante passagem forçada, se for feito amigavelmente, será judicialmente fixado. O imóvel que não tem acesso é o imóvel encravado. Será constrangido o vizinho que tenha o imóvel que mais natural e facilmente se preste a esta passagem, conforme o §1º do art. 1.285 do CC. Se ocorrer a alienação parcial do imóvel serviente, ou seja, uma delas também perde acesso à via pública e à nascente, o proprietário da outra parte também deverá tolerar essa passagem. O acesso à via é a única forma de o imóvel efetivamente cumprir sua função social. Não se deve confundir passagem forçada com servidão, em especial com a chamada servidão de passagem. Passagem forçada: é um instituto de direito de vizinhança, sendo obrigatória. Aqui há o pagamento de uma indenização, já que se está constrangendo o imóvel vizinho. Servidão de passagem: é um direito real de gozo, de fruição, não sendo, em regra, obrigatória, ressalvadas algumas exceções, como as servidões administrativas. 4.4.2. CABOS E TUBULAÇÕES Além da imposição da passagem forçada, o Código trata de forma semelhante a passagem de cabos e tubulações. Mediante recebimento de indenização que atenda, também, à desvalorização da área remanescente, o proprietário é obrigado a tolerar a passagem através de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade pública, em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa. Aqui é a ideia de função social da propriedade somado ao interesse público indireto. O proprietário prejudicado pode exigir que a instalação seja feita de modo menos gravoso ao prédio onerado, bem como, depois, seja removida, à sua custa, para outro local do imóvel. Se as instalações oferecerem grave risco, será facultado ao proprietário do prédio onerado exigir a realização de obras de segurança. 4.5. ÁGUAS O dono ou possuidor do prédio inferior é obrigado a receber as águas que corram naturalmente do superior, não podendo realizar obras que embaracem o seu fluxo. A condição natural e anterior do prédio inferior não pode ser agravada por obras feitas pelo dono ou possuidor do prédio superior. Até porque a passagem do prédio superior ao inferior deve se dar da forma menos gravosa possível. Em relação aos escoamentos artificiais da água, de um prédio superior ao inferior, poderá o proprietário do prédio inferior reclamar que se desvie ou que seja indenizado pelos prejuízos que experimentar. Dessa indenização será deduzido o benefício que recebeu. O proprietário de nascente, ou do solo onde caem águas pluviais, satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode impedir, e nem desviar o curso natural das águas remanescentes pelos prédios inferiores. 255 Paulo Batista O possuidor do imóvel superior não poderá poluir as águas indispensáveis às primeiras necessidades da vida dos possuidores dos imóveis inferiores. As demais, que não se mostrem indispensáveis, se as poluir, deverá recuperá-las, ressarcindo os danos que estes sofrerem, se não for possível a recuperação ou o desvio do curso artificial das águas. O proprietário tem direito de construir barragens, açudes, ou outras obras para represamento de água em seu prédio. Se as águas represadas invadirem prédio alheio, será o seu proprietário indenizado pelo dano sofrido, deduzido o valor do benefício obtido (art. 1.292 do CC). O art. 1.293 do CC prevê algumas regras importantes: É permitido a quem quer que seja, mediante prévia indenização aos proprietários prejudicados, construir canais, através de prédios alheios, para receber as águas a que tenha direito, indispensáveis às primeiras necessidades da vida, e, desde que não cause prejuízo considerável à agricultura e à indústria, bem como para o escoamento de águas supérfluas ou acumuladas, ou a drenagem de terrenos. Ao proprietário prejudicado nesse caso, também assiste direito a ressarcimento pelos danos que experimentou ou de que, no futuro, venha a experimentar, em decorrência da infiltração ou irrupção das águas. Ao proprietário prejudicado terá direito à indenização por conta da deterioração das obras destinadas a canalizar essas águas. O proprietário prejudicado poderá exigir que seja subterrânea essa canalização que atravessa áreas edificadas, pátios, hortas, jardins ou quintais. O aqueduto será construído de maneira que cause o menor prejuízo aos proprietários dos imóveis vizinhos, e a expensas do seu dono, a quem incumbem também as despesas de conservação. Com relação ao aqueduto, não haverá o impedimento de que os proprietários cerquem os imóveis e construam sobre ele, sem prejuízo para a sua segurança e conservação.Além disso, os proprietários dos imóveis poderão usar das águas do aqueduto para as primeiras necessidades da vida. Havendo no aqueduto águas supérfluas, outros poderão canalizá-las, mediante pagamento de indenização aos proprietários prejudicados e ao dono do aqueduto, de importância equivalente às despesas que então seriam necessárias para a condução das águas até o ponto de derivação. Têm preferência os proprietários dos imóveis atravessados pelo aqueduto. Nesse sentido, o STJ decidiu que o proprietário de imóvel tem direito de construir aqueduto no terreno do seu vizinho, independentemente do consentimento deste, para receber águas provenientes de outro imóvel, desde que não existam outros meios de passagem de águas para a sua propriedade e haja o pagamento de prévia indenização ao vizinho prejudicado. 4.6. DIREITO DE TAPAGEM E LIMITES ENTRE PRÉDIOS É o direito que o proprietário tem de cercar, murar, valar ou tapar, de qualquer modo,o seu prédio urbano ou rural. A norma consagra o direito de constranger o confinante a proceder com ele a demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as despesas para essa tapagem. Cria-se, assim, um condomínio necessário, entre os proprietários confinantes, relativamente ao muro que deverão construir. Ou seja, os intervalos, muros, cercas e os tapumes divisórios, tais como sebes vivas, cercas de arame ou de madeira, valas ou banquetas, presumem-se, até prova em contrário, pertencer a ambos os proprietários confinantes, 256 Paulo Batista sendo estes obrigados, de conformidade com os costumes da localidade, a concorrer, em partes iguais, para as despesas de sua construção e conservação. Atente-se que as sebes vivas, as árvores, ou plantas quaisquer, que servem de marco divisório, só podem ser cortadas, ou arrancadas, de comum acordo entre proprietários. É possível a construção de tapumes especiais para impedir a passagem de animais de pequeno porte, ou para outro fim. Nesse caso, a construção pode ser exigida de quem provocou a necessidade, pelo proprietário, que não está obrigado a concorrer para as despesas. Por fim, sendo confusos os limites entre as propriedades, se não houver outro meio, serão determinadas conforme a posse justa. Não se achando posse justa provada, o terreno contestado dividir-se-á por partes iguais, ou, não sendo possível a divisão cômoda, adjudicarse-á a um deles, mediante indenização ao outro. 4.7. DIREITO DE CONSTRUIR O art. 1.299 do CC diz que o proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos. São várias as limitações que podem incidir sobre imóveis, muitas delas previstas em leis municipais, como planos diretores, e outras no próprio registro de loteamentos e condomínios edilícios. O proprietário construirá de forma a não permitir que o prédio despeje águas, diretamente, sobre o prédio vizinho, pois, do contrário, haveria o uso abusivo da propriedade. O que ganha relevância é o direito de privacidade entre os vizinhos. Por isso, é proibido abrir janelas, fazer eirado, terraço ou varanda, a menos de 1.5 m do terreno vizinho.Na zona rural, não será permitido levantar edificações a menos de 3 metros do terreno vizinho. Desrespeitando essas regras, o proprietário prejudicado poderá propor ação demolitória, sem prejuízo de reparação civil. Em relação aos imóveis urbanos, as janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como as perpendiculares, não poderão ser abertas a menos de 0.75 centímetros. Existe uma distinção quanto às aberturas de luz ou aberturas de ventilação. As vedações de construção de 1.5 m, 3 m ou 0.75 cm não se aplicam quando as aberturas não sejam maiores do que 0.10 cm de largura, 0.20 cm de cumprimento e estejam construídas a mais de 2 metros de altura de cada piso. Nas cidades, vilas e povoados cuja edificação estiver adstrita a alinhamento, o dono de um terreno pode nele edificar, madeirando na parede divisória do prédio contíguo, se ela suportar a nova construção.Nesse caso, o proprietário terá de embolsar ao vizinho metade do valor da parede e do chão correspondentes explorados. Há o direto de travejamento ou direito de madeiramento, que é o direito de colocar uma madeira ou viga no prédio vizinho para utilizar da melhor forma possível o prédio. O direito de travejamento ou madeiramento está previsto também no art. 1.305 do CC, que estabelece que o confinante que primeiro construir o muro pode assentar a parede divisória, até meia espessura no terreno contíguo, sem perder por isso o direito a haver meio valor dela se o vizinho a travejar, caso em que o primeiro fixará a largura e a profundidade do alicerce. Se a parede divisória pertencer a um dos vizinhos, e não houver capacidade para ser travejada pelo outro, não poderá o outro fazer um alicerce ao pé dessa parede sem prestar caução, pelo risco a que expõe a construção anterior. O condômino da parede-meia pode utilizá-la até ao meio da espessura, desde que não ponha em risco a segurança ou a separação dos dois prédios, e avisando previamente o outro condômino das obras que ali tenciona fazer. 257 Paulo Batista O art. 1.307 do CC introduz o direito de alteamento, que serve para deixar o muro mais alto, tendo o direito de aumentá-lo. Neste caso, o código estabelece que qualquer dos confinantes pode altear a parede divisória, se necessário reconstruindo-a, para suportar o alteamento, caso em que o dono da obra arcará com todas as despesas, inclusive de conservação, ou com metade, se o vizinho adquirir meação também na parte aumentada. Não é lícito encostar à parede divisória chaminés, fogões, fornos ou quaisquer aparelhos ou depósitos suscetíveis de produzir infiltrações ou interferências prejudiciais ao vizinho. Não é permitido fazer escavações ou quaisquer obras que tirem ao poço ou à nascente de outrem a água indispensável às suas necessidades normais. O CC veda a realização de obras ou de serviços que sejam suscetíveis de provocar desmoronamento ou deslocamento de terra, ou que comprometa a segurança do prédio vizinho. Só poderá ser realizada esse tipo de obra após forem efetivadas obras acautelatórias (art. 1.311 do CC). O proprietário do prédio vizinho tem direito a ressarcimento pelos prejuízos que sofrer, ainda que tenham sido realizadas as obras acautelatórias. O art. 1.313 do CC reconhece que o proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, em algumas hipóteses, tais como: Quando dele temporariamente usar, quando for indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório; Quando for necessário se apoderar de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente. Estas regras se aplicam aos casos de limpeza ou reparação de esgotos, goteiras, aparelhos higiênicos, poços e nascentes e ao aparo de cerca viva. Na hipótese de o vizinho se apoderar de coisas suas, uma vez entregues, poderá ser impedida a entrada do vizinho no imóvel. 5. DO CONDOMÍNIO 5.1. CONCEITO Condomínio ocorre quando a propriedade é exercida por mais de uma pessoa. O condomínio pode ser classificado de algumas formas: Quanto à origem, o condomínio é classificado como: Condomínio voluntário ou convencional: aqui, um acordo de vontades criou o condomínio. Condomínio incidente ou eventual: motivos estranhos à vontade dos condôminos criaram o condomínio. Condomínio necessário ou legal: é o condomínio imposto pela lei (ex.: muro que divide duas propriedades). Quanto ao objeto do condomínio, poderá ser: Condomínio universal: compreenderá a totalidade dos bens. É a regra. Condomínio particular: compreenderá determinadas coisas ou determinados efeitos. Isso será possível quando estiver previsto no ato de instituição do condomínio. Quanto à forma do condomínio: Condomínio pro diviso: determina no plano fático, concreto e corpóreo, quanto é o direito de propriedade de cada condômino. Condomínio pro indiviso: não é possível determinar de modo corpóreo qual é o direito que cada um dos condôminos têm. 258 Paulo Batista 5.2. CONDOMÍNIO VOLUNTÁRIO OU CONVENCIONAL O tratamento do código civil a respeito do condomínio voluntário exclui o condomínio em edificações (condomínio edilício), o qual terá o tratamento separado. O art. 1.314 do CC diz que, cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, e pode exercer sobre essa coisa todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la. O que não se pode é impedir que o outro condômino também se valha ou se utilize da coisa, ressalvadas hipóteses legais. Nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem poderá dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros. O condômino é obrigado, na proporção de sua parte, a concorrer para as despesas de conservação ou divisão da coisa, e a suportar os ônus a que estiver sujeita. A CC presume como sendo iguais as partes ideais dos condôminos. Pode o condômino se eximir do pagamento das despesas e dívidas, desde que renuncie à sua parte ideal (art. 1.316 do CC).Se os demais condôminos assumirem as despesas e as dívidas, a renúncia lhes aproveita, adquirindo a parte ideal de quem renunciou, na proporção dos pagamentos que fizerem. Todavia, se não há condômino que faça os pagamentos, a coisa comum será dividida. Quando a dívida houver sido contraída por todos os condôminos, sem se discriminar a parte de cada um na obrigação, nem se estipular solidariedade, entende-se que cada qual se obrigou proporcionalmente ao seu quinhão na coisa comum(Art. 1.317 do CC). As dívidas contraídas por um dos condôminos em proveito da comunhão, e durante ela, obrigam o contratante; mas terá este ação regressiva contra os demais. Cada condômino responde aos outros pelos frutos que percebeu da coisa e pelo dano que a causou, sempre descontada a sua fração. A todo tempo será lícito ao condômino exigir a divisão da coisa comum, respondendo o quinhão de cada um pela sua parte nas despesas da divisão. Veja-se que o CC estimula a divisão do condomínio civil (não do edilício!), por já ser comum a tradição de que tal instituto é a causa de inúmeras disputas entre os coproprietários. Se essa divisão não for amigável, deverá ser proposta ação de divisão Sendo o bem indiviso, caberá a alienação judicial da coisa, dividindo-se o valor correspondente na proporção de cada quinhão. Os condôminos podem acordar que fique indivisa a coisa comum por prazo não maior de 5 anos, suscetível de prorrogação. Atente-se que não poderá exceder de 5 anos a indivisão estabelecida pelo doador ou pelo testador. Ou seja, não se permite a prorrogação. Se houver o requerimento de qualquer interessado e se graves razões o aconselharem, pode o juiz determinar a divisão da coisa comum antes do prazo de indivisão. Se a coisa for indivisível, e os condôminos não quiserem adjudicá-la a um só dos condôminos, esta coisa deverá ser vendida. Uma vez vendida, será repartido o apurado, preferindo-se, na venda, em condições iguais de oferta, o condômino ao estranho, e entre os condôminos, aquele que tiver na coisa benfeitorias mais valiosas, e, se não houver tais benfeitorias (mais valiosas), o condômino que tiver o quinhão maior. Se nenhum dos condôminos tiver benfeitorias na coisa comum e participam todos do condomínio em partes iguais, realizar-se-á licitação especial. Antes de adjudicada a coisa àquele que ofereceu maior lanço, a licitação será procedida entre os condôminos, a fim de que a coisa seja adjudicada a quem afinal oferecer melhor lanço, preferindo, em condições iguais, o condômino ao estranho. 259 Paulo Batista 5.2.1. ADMINISTRAÇÃO DO CONDOMÍNIO O art. 1.323 do CC dispõe sobre a administração da coisa comum, de forma que o administrador possa ser um condômino, ou ainda um estranho ao condomínio. Em relação à administração e às decisões do condomínio, será calculado a maioria com base nos quinhões de cada condômino, as quais têm força vinculativa e são tomadas por maioria absoluta. Não sendo possível alcançar maioria absoluta, decidirá o juiz, a requerimento de qualquer condômino, ouvidos os outros. Deliberando a maioria sobre a administração da coisa comum, escolherá o administrador, que poderá ser estranho ao condomínio; resolvendo alugá-la, preferir-se-á, em condições iguais, o condômino ao que não o é. Os frutos da coisa comum, não havendo em contrário estipulação ou disposição de última vontade, serão partilhados na proporção dos quinhões. 5.3. CONDOMÍNIO NECESSÁRIO As situações típicas de condomínio necessário são as de direito de vizinhança. O proprietário tem direito de estremar o imóvel com parede, muro, cerca ou vala, tendo o mesmo direito de adquirir a meação da parede, muro, cerca ou vala que o vizinho já fez, embolsando metade do que atualmente valer a obra e o terreno por ela ocupado. 5.4. CONDOMÍNIO EDILÍCIO O condomínio edilício possui extrema relevância no ramo do direito de propriedade, do direito obrigacional, ambiental e urbanístico, e precisa ser estudado com atenção, face à complexidade do instituto. Aqui também haverá uma forte atuação do Direito Registral, uma vez que a instituição do condomínio ocorre com o seu registro no Cartório de Registro de Imóveis. Se houver oferta de unidades autônomas à venda durante das obras (chamados de “venda de imóveis na planta”), não haverá ainda condomínio edilício, mas sim a chamada incorporação imobiliária (Lei nº 4.591/1964). Com o fim das obras, concedido o habite-se, o condomínio pode ser registrado, passando a existir juridicamente. Em resumo, enquanto houver obras, temos a incorporação imobiliária; após as obras, institui-se o condomínio edilício. Ambos os procedimentos tramitam no Cartório de Registro de Imóveis, que fará exame minucioso quanto à saúde financeira do incorporador e o atendimento de todas as regras legais e administrativas destes institutos. Segundo o art. 1.331 do CC, no condomínio edilício haverá duas modalidades de áreas: Áreas privativas: são unidades autônomas, como apartamentos, salas comerciais, lotes no condomínio de lotes, etc. Essas partes podem ser alienadas, gravadas livremente pelo seu proprietário, não havendo direito de preferência dessas áreas exclusivas dentro do condomínio edilício. Áreas comuns: são as partes de propriedade comuns dos condôminos, como vigas, estrutura do prédio, telhado, rede de distribuição de água, esgoto, quadras de esportes, áreas de lazer, acesso até a rua, etc. Essas partes não podem ser objeto de usucapião, ressalvadas, em algumas hipóteses, as vagas de garagem. A jurisprudência é pacífica no sentido de que não há relação jurídica consumerista entre condômino e condomínio. Para a estruturação do condomínio edilício, são essenciais dois atos: instituição do condomínio edilício; constituição do condomínio edilício. 260 Paulo Batista O art. 1.332 do CC diz que a instituição do condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis. Da instituição de condomínio devem constar: discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns; determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; finalidade para que as unidades se destinam. Em relação à convenção de condomínio, que constitui o estatuto coletivo que regula os interesses dos condôminos, ela deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, 2/3 das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção. Para ela ser obrigatória perante terceiros (erga omnes) deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis. A convenção é regida pela força obrigatória da convenção (pacta sunt servanda), mas esta convenção encontra limitações em preceitos sociais e normas de ordem pública. A convenção de condomínio deve determinar basicamente o que está previsto no art. 1.334 do CC: determinará a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio; determinará sua forma de administração; determinará a competência das assembleias, forma de sua convocação e quórum exigido para as deliberações; determinará as sanções a que estão sujeitos os condôminos, ou possuidores; determinará o regimento interno. A convenção poderá ser feita por escritura pública ou por instrumento particular. O condomínio edilício é ente despersonalizado, apesar de algumas divergências na doutrina, possuindo apenas a personalidade judiciária, podendo ser parte em processo. O STJ recentemente decidiu que condomínio não pode sofrer dano moral. 5.4.1. DIREITOS E DEVERES DOS CONDÔMINOS Segundo o art. 1.335 do CC, são direitos do condômino: usar, fruir e livremente dispor das suas unidades; usar das partes comuns, conforme a sua destinação, desde que não exclua a utilização dos demais coproprietários; votar nas deliberações da assembleia e delas participar, desde que esteja quite com as obrigações do condomínio. Caso não esteja com pagamentos em dia, poderá presenciar a assembleia, mas sem direito a voto. O art. 1.336 do CC diz que são deveres do condômino: contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção; não realizar obras que comprometam a segurança da edificação; não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas; dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes. 261 Paulo Batista 5.4.2. PENALIDADES A QUE ESTÁ SUJEITO O CONDÔMINO O §1º do art. 1.336 do CC diz que o condômino que não pagar o seu rateio ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de1% ao mês e multa de até 2% sobre o débito. Essa norma é de ordem pública. O §2odiz que 2/3 dos condôminos podem deliberar pela imposição de uma multa, no montante de até 5 vezes o valor do rateio condominial, para o condômino que tenha realizado obra que comprometeu a segurança da edificação, que tenha alterado a forma ou a cor da fachada, tenha dado uma destinação diferente à sua fração ideal, ou, ainda, que tenha utilizado a sua parte de forma indevida. Se o condômino não observar os seus deveres, 2/3 dos condôminos poderão impor multa cujo valor pode chegar a até 5 vezes o valor da cota condominial, além das perdas e danos que se apurarem. O condômino, ou possuidor, que não cumprir reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de 3/4 dos condôminos restantes, ser constrangido a pagar multa de até ao 5 vezes do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, independentemente das perdas e danos que se apurem. Ainda, o condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento antissocial, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao10 vezes do condomínio, até ulterior deliberação da assembleia. A jurisprudência diverge, mas há entendimento no sentido de que, a depender da incompatibilidade, poderia a assembleia deliberar pela expulsão do indivíduo, o que não é pacífico na doutrina. Sem embargo, toda e qualquer infração, assim como a sua respectiva punição, devem constar previamente da convenção do condomínio e ser precedida de ampla defesa e contraditório. Segundo o STJ, o condômino não pode, sem a anuência de todos os condôminos, alterar a cor das esquadrias externas de seu apartamento para padrão distinto do empregado no restante da fachada do edifício, ainda que a modificação esteja posicionada em recuo, não acarrete prejuízo direto ao valor dos demais imóveis e não possa ser vista do térreo, mas apenas de andares correspondentes de prédios vizinhos. O STJ também já entendeu que, ainda que tenha sido estipulado na convenção original de condomínio ser irrevogável e irretratável cláusula que prevê a divisão das despesas do condomínio em partes iguais, admite-se ulterior alteração da forma de rateio, mediante aprovação de 2/3 dos votos dos condôminos, para que as expensas sejam suportadas na proporção das frações ideais. Também decidiu que, em assembleia condominial, o condômino proprietário de diversas unidades autônomas, ainda que inadimplente em relação a uma ou algumas destas, terá direito de participação e de voto relativamente às suas unidades que estejam em dia com as taxas do condomínio. O condômino que tenha sido demandado pelo condomínio em ação de cobrança deve participar do rateio das despesas do litígio contra si proposto. Por fim, o condomínio, em regra, só responde por atos ilícitos praticados por terceiros em seu interior (furtos, danos, roubos) se houver previsão expressa na convenção autorizando essa responsabilização. 262 Paulo Batista 5.4.3. DIREITO DE PREFERÊNCIA. ALIENAÇÃO DE PARTES ACESSÓRIAS E COMUNS O art. 1.338 do CC estabelece que, resolvendo o condômino alugar área no abrigo para veículos, haverá preferência, em condições iguais, de qualquer dos condôminos a estranhos, e entre todos os possuidores. O que há aqui é a garantia do direito de preferência entre os condôminos. É preciso que haja na convenção do condomínio autorização expressa para que a vaga de garagem possa ser alegada para um terceiro, nos termos do art. 1.331 do CC. Para alienação da vaga de garagem para um terceiro, é preciso autorização da convenção e inexistência de contrariedade pela assembleia-geral. 5.4.4. DESPESAS CONDOMINIAIS As despesas (rateio) condominiais são obrigações propter rem. Isso quer dizer que o adquirente responderá pelos débitos de quem alienou a unidade, inclusive com multas e com juros, conforme o art. 1.345 do CC. É obrigatório o seguro de toda a edificação contra o risco de incêndio ou destruição, total ou parcial. Trata-se de uma norma de ordem pública. 5.4.5. ADMINISTRAÇÃO DO CONDOMÍNIO EDILÍCIO A administração do condomínio é feita por pessoas e órgão relacionados ao condomínio: síndico; assembleia; conselho fiscal. O conselho fiscal é facultativo. 5.4.5.1. SÍNDICO O síndico é o administrador geral do condomínio, podendo ou não ser um condômino. O prazo de sua gestão não poderá ser superior a 2 anos. Segundo o art. 1.348 do CC, compete ao síndico: convocar a assembleia dos condôminos; representar, ativa e passivamente, o condomínio, praticando, em juízo ou fora dele, os atos necessários à defesa dos interesses comuns; dar imediato conhecimento à assembleia da existência de procedimento judicial ou administrativo, de interesse do condomínio; cumprir e fazer cumprir a convenção, o regimento interno e as determinações da assembleia; diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns e zelar pela prestação dos serviços que interessem aos possuidores; elaborar o orçamento da receita e da despesa relativa a cada ano; cobrar dos condôminos as suas contribuições, bem como impor e cobrar as multas devidas; prestar contas à assembleia, anualmente e quando exigidas; realizar o seguro da edificação. O síndico pode transferir a outrem, total ou parcialmente, os poderes de representação ou as funções administrativas, mediante aprovação da assembleia, salvo disposição em contrário da convenção. 263 Paulo Batista Em casos excepcionais, o síndico poderá ser destituído pela assembleia, com voto da maioria absoluta, desde que tenha praticado irregularidades, não prestado contas, ou não administrado convenientemente o condomínio, garantido o contraditório e ampla defesa. 5.4.5.2. ASSEMBLEIA No condomínio edilício há assembleia geral ordinária e extraordinária. assembleia-geral ordinária: é convocada pelo síndico anualmente, a qual irá aprovar o orçamento, a prestação de contas e eleger outro síndico ou alteração do regimento interno.Se o síndico não convocar a referida assembleia, 1/4 dos condôminos poderá fazer essa convocação. Se a assembleia não se reunir, haverá decisão judicial, por iniciativa de qualquer condômino. assembleia-geral extraordinária: pode ser convocada para tratar de temas relevantes ou de temas urgentes, podendo ser convocada pelo síndico ou por 1/4 dos condôminos. Segundo o STJ, a alteração de regimento interno de condomínio edilício depende de votação com observância do quórum estipulado na convenção condominial. Com a Lei nº 10.931/2004, foi ampliada a autonomia privada dos condôminos, os quais passaram a ter maior liberdade para definir o número mínimo de votos necessários para a alteração do regimento interno. Em relação ao quórum das votações, são regras: alteração da convenção: depende da aprovação de 2/3 dos votos dos condôminos a alteração da convenção; mudança da destinação do edifício ou da unidade imobiliária (deixar de ser residencial para ser comercial): depende da aprovação pela unanimidade dos condôminos; realização de obras no condomínio: obras voluptuárias: depende de aprovação de 2/3 dos condôminos; obras úteis: voto da maioria dos condôminos; obras necessárias: não precisão de autorização, pois servem para manter o funcionamento e as condições do condomínio; construção de outro pavimento ou outro edifício com novas unidades: dependerá da aprovação da unanimidade dos condôminos. Salvo quando houver quórum especial, as deliberações serão tomadas, em 1ª convocação, por maioria de votos dos condôminos presentes,que representem pelo menos metade das frações ideais.Em 2ª convocação, a assembleia poderá deliberar por maioria dos presentes, salvo quando exigido quórum especial. 5.4.5.3. CONSELHO FISCAL O conselho fiscal pode ser criado ou não. É um órgão consultivo financeiro, composto por 3 membros, dando parecer às contas do síndico. Os membros serão eleitos pelo prazo não superior a dois anos. 5.4.6. EXTINÇÃO DO CONDOMÍNIO EDILÍCIO A extinção do condomínio pode se dar quando: edificação for total ou consideravelmente destruída; edificação ameaçar ruína, e os condôminos deliberarem pela demolição; desapropriação do imóvel, passando a pertencer ao poder público. 264 Paulo Batista Se for deliberada a reconstrução, poderá o condômino eximir-se do pagamento das despesas respectivas, alienando os seus direitos a outros condôminos, mediante avaliação judicial. Se for realizada a venda, em que se preferirá, em condições iguais de oferta, o condômino ao estranho, será repartido o apurado entre os condôminos, proporcionalmente ao valor das suas unidades imobiliárias. Havendo desapropriação, a indenização será repartida na proporção das unidades imobiliárias. 5.4.7. CONDOMÍNIO EM MULTIPROPRIEDADE Tal modalidade de condomínio foi criada pela Lei nº 13.777/2018 e está prevista a partir do art. 1.358-B do Código Civil. Voltemos a lembrar que a lei pode criar novos direitos reais, como ocorreu nesse caso. A multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada. Veja-se, assim, que há um condomínio civil (frações ideias da área) e uma divisão também de tempo (frações de tempo). É muito comum aos contratos de temporada. Essas disposições vão regular as relações jurídicas entre os condôminos. Constitui-se a multipropriedade por ato entre vivos ou testamento, registrado no competente cartório de registro de imóveis, devendo constar daquele ato a duração dos períodos correspondentes a cada fração de tempo. Sendo assim, para a criação ou alienação da multipropriedade, valem as regras gerais quanto ao instrumento, que precisará ser público, salvo as exceções legais. Cada fração de tempo é considerada indivisível e o período correspondente a cada fração de tempo será de, no mínimo, 7 (sete) dias, seguidos ou intercalados. Já a transferência do direito de multipropriedade e a sua produção de efeitos perante terceiros dar-se-ão na forma da lei civil e não dependerão da anuência ou cientificação dos demais multiproprietários. Nem sempre haverá direito de preferência na alienação de fração de tempo, salvo se estabelecido no instrumento de instituição ou na convenção do condomínio em multipropriedade em favor dos demais multiproprietários ou do instituidor do condomínio em multipropriedade. A administração do imóvel e de suas instalações, equipamentos e mobiliário será de responsabilidade da pessoa indicada no instrumento de instituição ou na convenção de condomínio em multipropriedade, ou, na falta de indicação, de pessoa escolhida em assembleia geral dos condôminos. A extinção da multipropriedade ocorrerá nas mesmas situações em que extinto o condomínio. 5.4.8. CONDOMÍNIO DE LOTES Modalidade criada pela Lei nº 13.465/2017. Sempre houve muita divergência sobre a possibilidade de os municípios e do DF regulamentarem os condomínios de lotes não edificados. Contudo, com o advento da lei, essa discussão está superada. Consiste em haver, em terrenos, partes designadas de lotes (unidades autônomas), que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos. Funcionam como se fossem condomínios edilícios, mas sem construção das áreas exclusivas, apenas das partes comuns. Não se deve confundir condomínio de lotes com loteamento urbano. 265 Paulo Batista Basicamente, os loteamentos urbanos são regidos pela Lei nº 6.766/1979 e se dividem em áreas públicas (ruas, equipamentos, áreas verdes, áreas institucionais) e lotes (unidades imobiliárias). Já no condomínio de lotes, toda a área é privada, dividida em áreas privativas e comuns. São institutos juridicamente distintos em absoluto, mas tal distinção somente é constatada ao examinar os atos de sua criação no Cartório de Registro de Imóveis. Olhando ambos apenas pelo seu aspecto físico, não será possível saber se se trata de loteamento ou de condomínio de lotes. 6. DIREITO REAL DE AQUISIÇÃO DO PROMITENTE COMPRADOR O compromisso de compra e venda é uma espécie de contrato preliminar. Pode ser utilizado para a futura compra de lotes (em loteamentos urbanos), futura compra de unidades autônomas de condomínio edilício (em incorporações imobiliárias) ou para outros futuros negócios de natureza estritamente civil (uma futura compra e venda comum). A razão do grande sucesso do compromisso de compra e venda se dá pelo fato de ele ser menos oneroso, pois não se exige o pagamento de instrumento público. Para que haja a instituição do direito real de aquisição do promitente comprador, é preciso que o compromisso de compra e venda do imóvel esteja registrado na sua matrícula, com cláusula de irretratabilidade, pois senão só haverá efeitos inter partes. Uma vez registrado, o imóvel deverá ser transmitida pelo promitente comprador, uma vez quitado o preço. Caso não transmitido, caberá ação de adjudicação compulsória seja em face do promitente vendedor ou de terceiros. Segundo o STJ, o promitente comprador, amparado em compromisso de compra e venda de imóvel cujo preço já tenha sido integralmente pago, tem o direito de requerer judicialmente, a qualquer tempo, a adjudicação compulsória do imóvel. Segundo a súmula 239 daquela Corte, a adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso, mas esse registro ainda é preciso para que haja efeito erga omnes. Essa é a redação do art. 1.417 do CC, dizendo que, mediante promessa de compra e venda, em que não se pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no cartório de registro de imóveis, o promitente comprador adquire direito real à aquisição do imóvel. Se houver inadimplemento do compromissário comprador, o promitente vendedor poderá pleitear ação de rescisão contratual cumulada com reintegração de posse, exigindo-se que o devedor seja notificado, a fim de constituí-lo em mora absoluta (que é esgotamento da oportunidade de pagar o valor devido e purgar a mora), ainda que haja cláusula resolutiva expressa. Assim, vencida e não paga a prestação, o contrato será considerado rescindido se, 30 dias após ser constituído em mora o devedor, ele não purgar a mora. A Súmula 543 do STJ, estabelecendo que, na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deverá ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador– integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento. O STJ entende que é nula cláusula contratual que preveja a perda de todas as parcelas pagas pelo compromissário comprador. Merece atenção também a súmula 308 do STJ, a qual diz que, no caso de construção/incorporação, a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, seja anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes dos imóveis. 266 Paulo Batista Como decorrência da súmula, a jurisprudência do STJ admite que a ação proposta pelo compromissário comprador seja em face do agente financeiro e do promitente vendedor, em litisconsórcio passivo necessário, para a outorga da inscrição definitiva e liberação da hipoteca. 7. DIREITOS REAIS DE GOZO OU FRUIÇÃO 7.1. INTRODUÇÃO Os direitos reais de gozo ou fruição são aqueles em que há uma divisão dos atributos da propriedade, quando haverá uma transmissão a uma outra pessoa do direito de usar, gozar ou fruir da coisa. Assim, são direitos reais de gozo ou fruição: superfície; servidão; usufruto; uso; habitação; concessão de direito real de uso; concessão de uso especial para fins de moradia. 7.2. SUPERFÍCIE A superfície é um direito real autônomo, podendo ser gratuito ou oneroso, temporário ou vitalício. Nele, o proprietário concede a uma outra pessoa o direito de construir ou de plantar em seu terreno. Esse direito recai sempre sobre bens imóveis, através de instrumento público, devidamente registrado. Na superfície há, de um lado, o proprietário (fundieiro), e do outro há o superficiário, que é quem recebe o imóvel. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão, mas as partes podem pactuar de forma distinta. A propriedade superficiária pode ser autonomamente objeto de direitos reais, seja de gozo ou de garantia (hipoteca). No caso da garantia, não se pode exceder a duração da concessão da superfície. É possível adquirir por usucapião o direito de superfície, apesar de extremamente raro. Admite-se a constituição do direito de superfície por cisão. Se a superfície for concedida onerosamente, essa remuneração, que pode ser parcelada ou de uma só vez, é chamada de solarium ou cânon superficiário. O superficiário deve responder pelos encargos e tributos que incidem sobre o bem, conforme art. 1.371 do CC. Pode haver ainda a transferência da superfície para terceiros, inclusive para os herdeiros, caso o superficiário venha a morrer. Não poderá ser estipulado pelo concedente, a nenhum título, qualquer pagamento pela transferência. Se ocorrer a alienação do imóvel ou do direito de superfície, o superficiário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de condições. O Enunciado 510 do CJF diz que, ao superficiário que não tenha sido previamente notificado pelo proprietário para exercer o seu direito de preferência, é assegurado, no prazo de 6 meses (decadencial), contados do registro da alienação, adjudicar para si o bem, mediante o depósito do preço. Essa mesma ideia vale para o fundieiro, se for vendido o direito de superfície, tendo o prazo de 6 meses para adjudicar a coisa para si, em igualdade de condições. Existem correntes em sentido diverso, que discordem desse enunciado. 267 Paulo Batista A superfície poderá se extinguir antes do termo final previsto no contrato. Isso ocorrerá se o superficiário der ao terreno uma destinação diversa da pactuada, daquela que motivou a concessão do direito de superfície (art. 1.374 do CC). Com a extinção da superfície, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário. Atente-se à diferença entre a superfície do Código Civil e a superfície do Estatuto da Cidade. Superfície do Código Civil: poderá recair sobre imóvel urbano ou rural. Além disso, poderá ter exploração para construções ou plantações. Em regra, não existe autorização para utilização do subsolo ou do espaço aéreo. Aqui, há uma cessão que se dá por prazo determinado, como regra. Superfície prevista no Estatuto da Cidade: poderá recair sobre imóvel urbano. Não traz restrição sobre exploração para construções ou plantações, podendo ser qualquer utilização compatível com a política urbana. Não proíbe a utilização para o subsolo ou espaço aéreo. Aqui, a cessão poderá ser por prazo determinado ou indeterminado, a depender do contrato. No caso de extinção do direito de superfície em consequência de desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um. 7.3. SERVIDÕES Por meio da servidão, um prédio proporciona a utilidade para outro prédio, sendo este último gravado. Trata-se de um prédio (serviente) servindo a outro prédio (dominante). Segundo o art. 1.378, a servidão proporciona utilidade para o prédio dominante, e grava o prédio serviente, que pertence a dono diverso, e constitui-se mediante declaração expressa dos proprietários, ou por testamento, e subsequente registro no Cartório de Registro de Imóveis. A servidão não se presume, tendo uma origem clara, sendo este um negócio jurídico inter vivos (contrato) ou negócio mortis causa (testamento), ou ainda usucapião. Isso porque é possível a usucapião de servidão aparente, que, segundo o CC, ainda pode durar 20 anos (extraordinária). Há uma crítica da doutrina quanto a isso, pois, se em 15 anos o sujeito já adquire a propriedade por meio da usucapião extraordinária não faria sentido adquirir a servidão em 20 anos. Porém, é isso que diz a lei. Além disso, servidão poderá ser instituída por meio de sentença judicial, no caso de reconhecimento de servidão que está sendo discutido. Em síntese, são formas de constituição da servidão: declaração expressa do proprietário; testamento; destinação do proprietário; sentença judicial. Não se pode esquecer que a servidão não se confunde com passagem forçada, como dito acima. 7.3.1. CLASSIFICAÇÃO DAS SERVIDÕES Quanto à natureza dos prédios envolvidos: servidão rústica: quando os prédios estão em zona rural; servidão urbana: quando os prédios estão em área urbana. 268 Paulo Batista Em relação à conduta das partes: servidão positiva: exercida por meio de um ato positivo, comissivo. Ex.: servidão de passagem é um fazer; servidão negativa: exercida por meio de um ato negativo, omissivo. Ex.: servidão de não construir. Quanto ao modo de exercício: servidão contínua: a servidão que independe do ato humano. Ex.: servidão de passagem de água; servidão descontínua: precisa de uma atuação humana, como é a servidão de passagem de pessoas. Quanto à forma de exteriorização: servidão aparente: evidenciada no plano concreto e fático. Ex.: na servidão de passagem, é possível ver pessoas caminhando; servidão não aparente: não é revelada no plano exterior, fático ou concreto. Ex.: servidão de não construir. 7.3.2. OBRAS NA SERVIDÃO O art. 1.380 do CC diz que o dono de uma servidão pode fazer todas as obras necessárias à sua conservação e ao seu uso, e, se a servidão pertencer a mais de um prédio, serão as despesas rateadas entre os respectivos donos. Essas obras devem ser feitas pelo dono do prédio dominante, se o contrário não dispuser expressamente o título. A servidão pode ser removida, de um local para outro, podendo ser feita: pelo dono do prédio serviente à sua custa, desde que não diminua as vantagens do prédio dominante; pelo dono do prédio dominante à sua custa, se houver considerável incremento para sua utilidade e não prejudicar o prédio serviente. 7.3.3. FINALIDADE DA SERVIDÃO A servidão é regida pelo princípio da menor onerosidade ao imóvel serviente e se restringe às necessidades do prédio dominante, evitando-se agravar o encargo ao prédio serviente. Por isso, constituída para um certo fim a servidão, não poderá ela se ampliar para outro fim. Ex.: servidão para passagem de gado não poderá ser ampliada para cultura agrícola. Nas servidões de trânsito, a servidão maior inclui a servidão de menor ônus, e a servidão menor exclui a servidão mais onerosa. Ex.: Se a servidão é de passagem de carro, inclui a passagem de pessoas, pois esta é menos onerosa do que aquela. Porém, se a servidão é para passagem de pessoas, não incluirá a passagem de carro, que é mais onerosa. Se as necessidades da cultura, ou da indústria, do prédio dominante impuserem àquela servidão uma maior largueza, ou seja, se mostrando necessárias, o dono do serviente é obrigado a se submeter, mas deverá ser indenizado pelo excesso. 7.3.4. INDIVISIBILIDADE DA SERVIDÃO O exercício da servidão é regido pelo princípio da indivisibilidade. Conforme o art. 1.386 do CC, as servidões prediais são indivisíveis, e subsistem, no caso de divisão dos imóveis, em benefício de cada uma das porções do prédio dominante, continuando a gravar cada uma das do prédio serviente, salvo se, por natureza, ou destino, só se aplicarem a certa parte de um ou de outro. 269 Paulo Batista 7.3.5. EXTINÇÃO DAS SERVIDÕES O dono do prédio serviente tem direito ao cancelamento da servidão quando: houver renúncia do seu titular; tiver cessado a utilidade ou a comodidade da servidão para o prédio dominante; dono do prédio serviente resgatar a servidão. Resgate da servidão é feito por escritura pública, escrita tanto pelo proprietário do prédio dominante quanto pelo proprietário do prédio serviente, em que se declara a sua quitação e que há a previsão de autorização para que se proceda ao cancelamento do assento da servidão. A servidão também se extingue pela desapropriação. O art. 1.389 do CC ainda diz que também se extingue a servidão, ficando ao dono do prédio serviente a faculdade de fazê-la cancelar, mediante a prova: da reunião dos dois prédios no domínio da mesma pessoa (confusão real); da supressão das respectivas obras por efeito de contrato, ou de outro título expresso; do não uso durante 10 anos contínuos. 7.4. USUFRUTO O usufruto é o direito real de gozo ou fruição por excelência. De um lado, há o usufrutuário, que tem o direito de usar e fruir a coisa, tendo o seu domínio útil. Do outro lado, há o nu-proprietário, que tem o direito de reaver e dispor da coisa. O usufruto pode recair sobre um ou mais bens, móveis ou imóveis, ou sobre um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades. O usufruto de bens imóveis vai ser constituído através de registro no Cartório de Registro de Imóveis, quando não resultar de usucapião. Veja, é possível a usucapião de usufruto, apesar de raro. 7.4.1. CLASSIFICAÇÃO DO USUFRUTO Usufruto legal: quando decorre da lei. Não precisa ser registrado nesse caso. Ex.: usufruto do pai em relação ao bem do filho menor. Usufruto voluntário: é feito pela convenção das partes. Pode ter origem em testamento ou em contrato. Ex.: doação de um bem pelo pai ao filho, mas reserva o usufruto para si. Usufruto misto: é o que decorre da usucapião, pois há o efeito da lei e o efeito da vontade do usucapiente. Havendo justo título e boa-fé, o prazo para a usucapião de usufruto é de 10 anos. Se não houver, o prazo é de 15 anos. Quanto ao seu objeto, o usufruto poderá ser: Usufruto próprio: recai sobre bens infungíveis e inconsumíveis. Ao final do usufruto, o usufrutuário vai restituir o bem ao nu-proprietário. Usufruto impróprio: recai sobre bens fungíveis ou consumíveis. O usufrutuário se torna proprietário da coisa. Ao final do usufruto, irá restituir o equivalente, já que a coisa era consumível. Se o equivalente não existir, será restituído em dinheiro. Em relação à duração: 270 Paulo Batista Usufruto temporário: há um certo prazo de duração estabelecido. Sendo pessoa jurídica, o prazo máximo do usufruto é de 30 anos. Usufruto vitalício: há usufruto enquanto o usufrutuário viver. Caso seja para uma pessoa natural, e não existindo prazo para o término, o usufruto é vitalício. A morte do nu-proprietário não é causa de extinção do usufruto, e sim a morte do usufrutuário. Os herdeiros do nu-proprietário continuarão com a propriedade limitada (direito de reaver e de dispor), mas o usufruto continuará com o usufrutuário. O art. 1.393 do CC diz que não se pode transferir o usufruto por alienação. O que pode fazer é ceder o seu exercício, seja a título gratuito ou oneroso. Assim, o usufruto em si é inalienável. Sendo inalienável o direito real de usufruto, há que se considerar que o usufruto também é impenhorável, mas não se confundirá a impossibilidade de se penhorar o usufruto, com a possibilidade de se penhorar os frutos que decorrem o usufruto. Veja, não pode penhorar o direito de usufruir, mas o produto desse seu direito pode ser penhorado. 7.4.2. DIREITOS DO USUFRUTUÁRIO O usufrutuário tem direito de posse, uso, administração e percepção dos frutos. Ainda, o usufrutuário tem direito aos frutos naturais pendentes ao iniciar o usufruto, sem encargo de pagar as despesas de produção. Todavia, ao tempo que se cessar o usufruto, os frutos que estiverem pendentes também pertencerão ao nu-proprietário, sem compensação das despesas. O usufrutuário poderá usufruir do prédio, mas não poderá mudar a sua destinação econômica, sem que o nu-proprietário expressamente o autorize. Quando o usufruto recair sobre títulos de crédito, o usufrutuário tem direito a perceber os frutos e a cobrar as respectivas dívidas. Cobradas as dívidas, o usufrutuário aplicará, de imediato, a importância em títulos da mesma natureza, ou em títulos da dívida pública federal, com cláusula de atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos. Segundo o art. 1.397 do CC, as crias dos animais pertencem ao usufrutuário, deduzidas quantas bastem para inteirar as cabeças de gado existentes ao começar o usufruto. Os frutos civis, vencidos na data inicial do usufruto, pertencem ao proprietário, e ao usufrutuário os vencidos na data em que cessa o usufruto. 7.4.3. DEVERES DO USUFRUTUÁRIO Antes de receber o usufruto, o usufrutuário deverá inventariar os bens que está recebendo, dizendo seu estado e prestando caução, real ou fidejussória, caso ela seja exigida pelo dono da coisa. Não será obrigado à caução o doador que se reservar o usufruto da coisa doada. O usufrutuário que não quiser ou não puder prestar a caução, perderá o direito de administrar o objeto do usufruto, caso em que a administração ficará a cargo do proprietário, que está obrigado a entregar ao usufrutuário o rendimento do bem, deduzidas as despesas da administração e a sua remuneração na condição de administrador. O usufrutuário não é obrigado a pagar pelas deteriorações do uso regular do usufruto. Contudo, terá que indenizar, caso haja culpa de sua parte, havendo responsabilidade subjetiva do usufrutuário. Incumbe ao usufrutuário as despesas ordinárias para conservação do bem. 271 Paulo Batista Ao nu-proprietário, incumbe a reparação extraordinária da coisa. Além disso, as partes deverão assumir as reparações ordinárias não módicas, ou seja, quando a despesa for superior a 2/3 do rendimento líquido daquele ano. Se a coisa, objeto de usufruto for desapropriada, a indenização ficará sub-rogada no ônus do usufruto, no lugar do prédio. 7.4.4. EXTINÇÃO DO USUFRUTO O Imóveis: usufruto se extingue com o cancelamento do registro no Cartório de Registro de pela renúncia; pela morte do usufrutuário; pelo termo de sua duração; pela extinção da pessoa jurídica em favor de quem o usufruto foi constituído, ou pelo decurso de 30 anos da data em que se começou a exercer; pela cessação do motivo de que se origina (ex.: filho virou maior de idade, cessando para o pai); pela destruição da coisa; pela consolidação (usufrutuário passa a ser o proprietário da coisa); por culpa do usufrutuário, quando aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens, não lhes acudindo com os reparos de conservação, ou quando, no usufruto de títulos de crédito, não dá às importâncias recebidas a aplicação prevista no parágrafo único do art. 1.395 do CC; pelo não uso, ou não fruição, da coisa em que o usufruto recai (arts. 1.390 e 1.399 do CC). Constituído o usufruto em favor de duas ou mais pessoas (usufruto simultâneo ou em conjunto), será extinta a parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se houver uma estipulação expressa sobre o direito de acrescer, estabelecendo que o quinhão desses couber ao sobrevivente. Em regra, a morte do usufrutuário implica fim de 50% do usufruto. É necessária disposição expressa do direito de acrescer. 7.5. USO É direito personalíssimo de uso do bem, não sendo possível a sua fruição. O art. 1.412 do CC diz que o usuário apenas usará a coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família. Serão avaliadas as necessidades pessoais do usuário conforme a sua condição social e o lugar onde viver. Atente-se que as necessidades da família do usuário compreendem as de seu cônjuge, dos filhos solteiros e das pessoas de seu serviço doméstico. O art. 1.413 do CC estabelece que são aplicáveis ao uso, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto. 7.6. HABITAÇÃO Aqui o titular do direito só poderá habitar o bem. Trata-se do mais restrito dos direitos reais sobre coisas alheias. De um lado, há o proprietário, do outro, o habitante. Esse direito real pode ser legal ou convencional. O caráter gratuito da habitação é claro, conforme o art. 1.414 do CC, que estabelece que, quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente coisa alheia, o titular deste direito não poderá alugá-la, nem emprestá-la, mas simplesmente ocupá-la com sua família. 272 Paulo Batista Há um caráter personalíssimo ao direito real de habitação, não sendo viável que o habitante institua um benefício semelhante em favor de terceiro. É proibido o direito real de habitação de 2º grau, tendo em vista seu caráter personalíssimo. Se houver um direito real de habitação simultâneo, qualquer uma das partes pode habitar, podendo haver uma convivência compulsória. São aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto. 7.7. CONCESSÕES ESPECIAIS PARA USO E MORADIA Esses direitos reais se referem a áreas públicas, normalmente invadidas e tomadas por favelas, a fim de regularizar juridicamente essa situação. Estão previstos nos arts. 7º e 8º do DL 271/67, atualizado pela Lei nº 11.481/07. Segundo o art. 7o, é instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas. A concessão do direito de uso para fins de moradia consta da MP 2.220/01, que continua em vigor. O seu art. 1º afirma que, aquele que ocupou como seu, por 5 anos ininterruptamente, e sem oposição, imóvel urbano de até 250m², utilizando-o como moradia, terá direito à concessão de uso especial para fins de moradia, desde que não seja proprietário ou concessionário, seja urbano ou rural. 8. DIREITOS REAIS DE GARANTIA 8.1. INTRODUÇÃO Existem direitos reais de garantia sobre coisa própria e sobre coisa alheia. As características básicas dos direitos reais de garantia são: Preferência: o credor hipotecário e o pignoratício têm preferência no pagamento em relação aos outros credores, em razão da coisa reservada como garantia. Contudo, a lei cria outras categorias de credores preferenciais. Indivisibilidade: o pagamento de uma prestação não importa exoneração parcial da garantia, ainda que se compreendam vários bens. Via de regra, a garantia é indivisível. Sequela: se um bem é garantido, mesmo na alienação, o direito real permanece, acompanhando-o, esteja ele sob a titularidade de qualquer terceiro. Excussão: o credor, hipotecário ou pignoratício, tem direito de excutir a coisa hipotecada ou empenhada. Isso quer dizer que o credor pode promover a sua execução e alienação forçada. Atente-se que é nula cláusula que autoriza o credor hipotecário, pignoratício e anticrético a ficar com o bem objeto da garantia. É a nulidade do pacto comissório real. Somente aquele que pode alienar o bem é que pode dar o bem em garantia Da mesma forma, somente os bens que possam ser alienados é que podem ser dados em garantia. Assim, são requisitos para que seja dado um bem em garantia real: Requisito subjetivo: o requisito subjetivo é que o sujeito seja proprietário e, sendo casado, é necessária a outorga conjugal. 273 Paulo Batista O §1º do art. 1.420 do CC diz que a propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono. Ou seja, o requisito subjetivo é o fato de ser dono. Se ainda não era dono, mas se tornou de forma superveniente, a garantia se convalesce. A coisa comum não pode ser dada em garantia real em sua totalidade sem o consentimento de todos os condôminos. Todavia, o coproprietário poderá dar individualmente em garantia real a parte que tiver. Requisito objetivo: o bem deve ser alienável, pois, do contrário, não poderá ser dado em penhor, hipoteca ou anticrese. São requisitos do contrato que constitui o penhor, anticrese ou hipoteca, sob pena de não terem eficácia: estar previsto o valor do crédito, sua estimação, ou valor máximo; estar previsto o prazo fixado para pagamento; estar prevista a taxa dos juros, se houver; estar previsto o bem dado em garantia com as suas especificações. A dívida será considerada vencida quando: o bem dado em garantia se deteriorar ou se depreciar, e o devedor, intimado, não a reforçar ou substituir; quando o devedor cair em insolvência ou falir; quando não forem pagas pontualmente as prestações, toda vez que deste modo se achar estipulado o pagamento. neste caso, o recebimento posterior da prestação atrasada importa renúncia do credor ao seu direito de execução imediata; quando houver o perecimento do bem dado em garantia, e não for substituído; quando for desapropriado o bem dado em garantia, situação em que será depositado o preço que for necessária para o pagamento integral do credor. Nos casos de perecimento do bem dado em garantia, haverá sub-rogação na indenização do seguro, ou no ressarcimento do dano, em benefício do credor, a quem assistirá sobre ela preferência até sua completa satisfação. É possível que terceiro preste garantia real por dívida alheia, mas não ficará obrigado a substituí-la, ou reforçá-la, quando, sem culpa sua, perca-se, deteriore-se, ou se desvalorize (art. 1.427 do CC). Quando, excutido o penhor, ou executada a hipoteca, o produto não bastar para pagamento da dívida e despesas judiciais, continuará o devedor obrigado pessoalmente pelo restante. 8.2. PENHOR O penhor é um direito real de garantia, em regra, sobre coisa alheia móvel (mas há exceções para imóveis, como será visto) ou sobre direitos. Nunca se deve confundir “penhorar” com “empenhar”. Penhorar é um termo processual, em execução ou cumprimento de sentença, quando um bem do devedor, móvel ou imóvel, sofre uma constrição judicial para garantir o pagamento. Já empenhar, isso sim, é dar a coisa em garantia de alguma obrigação, nada tendo a ver com a existência de uma ação judicial. 8.2.1. CONSTITUIÇÃO DO PENHOR O penhora é constituído, em regra, sobre bens móveis, podendo ser constituído sob bens de acessão intelectual. Ocorre também, em regra, a transferência da posse de bem. A 274 Paulo Batista exceção está no penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, quando a coisa empenhada continua na posse do devedor. As partes do penhor são: Credor pignoratício: pode ser o credor da obrigação ou o terceiro. Devedor pignoratício: é o devedor da obrigação. A instituição do penhor pode se dar por instrumento público ou particular, a ser levado a registro no Cartório de Registro de Títulos e Documentos. O registro é elemento essencial para que o penhor tenha eficácia real e erga omnes. Se não for levado a registro, o negócio tomará uma feição contratual, gerando apenas efeito inter partes. 8.2.2. DIREITOS DO CREDOR PIGNORATÍCIO O credor pignoratício terá, via de regra: direito à posse da coisa empenhada; direito à retenção da coisa, até que o indenizem das despesas devidamente justificadas que tiver feito, não sendo ocasionadas por culpa sua; direito ao ressarcimento do prejuízo que houver sofrido por vício da coisa empenhada; direito a promover a execução judicial, ou a venda amigável, se lhe permitir expressamente o contrato, ou lhe autorizar o devedor mediante procuração; direito a apropriar-se dos frutos da coisa empenhada que se encontrar em seu poder; direito a promover a venda antecipada, mediante prévia autorização judicial, sempre que haja receio fundado de que a coisa empenhada se perca ou deteriore, devendo o preço ser depositado. O dono da coisa empenhada pode impedir a venda antecipada, substituindo-a, ou oferecendo outra garantia real idônea. O credor não pode ser constrangido a devolver a coisa empenhada, ou uma parte dela, antes de ser integralmente pago o valor garantido, podendo o juiz, a requerimento do proprietário, determinar que seja vendida apenas uma das coisas, ou parte da coisa empenhada, suficiente para o pagamento do credor. 8.2.3. DEVERES DO CREDOR PIGNORATÍCIO Segundo o art. 1.435 do CC, o credor pignoratício: tem o dever de custodiar a coisa, como depositário, e a ressarcir ao dono a perda ou deterioração de que for culpado, podendo ser compensada na dívida, até a concorrente quantia, a importância da responsabilidade; tem o dever de defender a posse da coisa empenhada e a dar ciência, ao dono dela, das circunstâncias que tornarem necessário o exercício de ação possessória; tem o dever de imputar o valor dos frutos de que se apropriar (art. 1.433, inciso V, do CC) nas despesas de guarda e conservação, nos juros e no capital da obrigação garantida, sucessivamente; tem o dever de restituir o bem empenhado,com os respectivos frutos e acessões, uma vez paga a dívida; tem o dever de entregar o que sobeje do preço, quando a dívida for paga. 8.2.4. MODALIDADES DE PENHOR São as modalidades de penhor: 275 Paulo Batista penhor legal; penhor convencional; 8.2.4.1. PENHOR LEGAL Penhor legal é o penhor que decorre da lei, sendo os credores pignoratícios: hospedeiros e fornecedores de alimentos sobre as bagagens, móveis, joias, dinheiro de seus fregueses que tiveram consigo, pelas despesas que tiverem ocasionado no hotel ou no restaurante; dono do prédio locado (locador) é credor pignoratício sobre os bens móveis que o inquilino tiver guarnecendo no local, pelo valor dos aluguéis, condomínio, etc.; artista e do técnico de espetáculo: o art. 31 da Lei nº 6.533/1978 consagra o penhor legal em favor do artista e do técnico de espetáculo, sobre o equipamento e todo o material de propriedade do empregador, utilizado na realização de programa, espetáculo ou produção, pelo valor das obrigações não cumpridas pelo empregador. 8.2.4.2. PENHOR CONVENCIONAL O penhor convencional decorre da vontade das partes. O penhor convencional comum é uma forma ordinária de penhor, cujo objeto é um bem móvel com a transmissão da posse ao credor. Ex.: joia na Caixa Econômica Federal. Por outro lado, o penhor convencional pode assumir um caráter especial. Portanto, há penhor convencional especial: penhor rural (agrícola e pecuário); penhor industrial e mercantil; penhor de títulos de crédito. Penhor rural O penhor rural é especial, pois se constitui sobre imóveis. Há o registro do penhor no Cartório de Registro de Imóveis da CIRCUNSCRIÇÃO em que estiverem situadas as coisas empenhadas, realizado por meio de instrumento público ou particular. O devedor emite, em favor do credor, cédula rural pignoratícia. A cédula, portanto, é o instrumento da garantia. Nesta modalidade não há entrega do bem ao credor. O bem continua na posse direta do devedor. Existem duas modalidades de penhor rural: penhor agrícola; penhor pecuário. O penhor agrícola e o penhor pecuário não podem ser convencionados por prazos superiores aos das obrigações garantidas. Embora vencidos os prazos, permanece a garantia, enquanto subsistirem os bens que a constituem. A prorrogação do penhor deve ser averbada à margem do registro respectivo, mediante requerimento do credor e do devedor. Se o prédio estiver hipotecado, o penhor rural poderá constituir-se independentemente da anuência do credor hipotecário, mas não lhe prejudica o direito de preferência, nem restringe a extensão da hipoteca, ao ser executada. O art. 1.441 do CC diz que tem o credor direito a verificar o estado das coisas empenhadas, inspecionando-as onde se acharem. Penhor agrícola O penhor agrícola poderá ter como objeto: máquinas e instrumentos de agricultura; 276 Paulo Batista colheitas pendentes, ou em via de formação; frutos acondicionados ou armazenados; lenha cortada e carvão vegetal; animais do serviço ordinário de estabelecimento agrícola. Esses bens são considerados imóveis por acessão física industrial ou por acessão física intelectual. Consoante o art. 1.443 do CC, o penhor agrícola que recai sobre colheita pendente, ou em via de formação, abrange a imediatamente seguinte, no caso de frustrar-se ou ser insuficiente a que se deu em garantia. Se o credor não financiar a nova safra, o devedor poderá constituir com outrem um novo penhor, em quantia máxima equivalente à do primeiro. O segundo penhor terá preferência sobre o primeiro, abrangendo este apenas o excesso apurado na colheita seguinte. Penhor pecuário Segundo o art. 1.444do CC, podem ser objeto de penhor animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios. Esses animais serão considerados imóveis por acessão intelectual. O devedor pignoratício não poderá alienar os animais empenhados sem prévio consentimento, por escrito, do credor. Quando o devedor pretender alienar o gado empenhado ou, por negligência, ameace prejudicar o credor, este poderá requerer que se depositem os animais sob a guarda de terceiro, ou exigir o pagamento imediato da dívida. Os animais da mesma espécie, comprados para substituir os mortos, ficam subrogados no penhor. Presume-se a substituição, mas não terá eficácia contra terceiros, se não constar de menção adicional ao respectivo contrato, a qual deverá ser averbada. Penhor industrial e mercantil Esse penhor terá por objeto: máquinas, aparelhos, materiais, instrumentos instalados e em funcionamento, com os acessórios ou sem eles; animais utilizados na indústria; sal e bens destinados à exploração das salinas; produtos de suinocultura, animais destinados à industrialização de carnes e derivados; matérias-primas e produtos industrializados. Os bens aqui serão considerados imóveis por acessão intelectual e permanecerão na posse do devedor. O penhor industrial e mercantil é constituído mediante instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição onde estiverem situadas as coisas empenhadas. O devedor poderá emitir em favor do credor um instrumento representativo do respectivo crédito, sendo denominada de cédula de crédito industrial ou cédula de crédito mercantil. O devedor não pode, sem o consentimento por escrito do credor, alterar as coisas empenhadas ou mudar-lhes a situação, nem delas dispor. O devedor que, anuindo o credor, alienar as coisas empenhadas, deverá repor outros bens da mesma natureza, que ficarão subrogados no penhor. Tem o credor direito a verificar o estado das coisas empenhadas, inspecionando-as onde se acharem, por si ou por pessoa que credenciar. Penhor de títulos de crédito (ou penhor de direito) O penhor de direito é constituído através de instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Registro de Títulos e Documentos. 277 Paulo Batista Podem ser objeto de penhor direitos, suscetíveis de cessão, sobre coisas móveis. O titular de direito empenhado deverá entregar ao credor pignoratício os documentos comprobatórios desse direito, salvo se tiver interesse legítimo em conservá-los. O penhor de crédito só tem eficácia quando notificado o devedor do crédito. Por notificado, tem-se o devedor que, em instrumento público ou particular, declarar-se ciente da existência do penhor. Veja-se, portanto, que essa notificação não se trata de requisito de validade, mas de eficácia em relação ao devedor. Se a garantia recair sobre valor pecuniário, a importância recebida será depositada, de acordo com o devedor pignoratício, ou onde o juiz assim determinar. Se consistir na entrega da coisa, nesta sub-rogar-se-á o penhor. Estando vencido o crédito pignoratício, o credor tem direito a reter da quantia recebida o que lhe é devido, restituindo o restante ao devedor; ou a excutir a coisa a ele entregue O credor pignoratício deve praticar os atos necessários à conservação e defesa do direito empenhado e cobrar os juros e mais prestações acessórias compreendidos na garantia. O titular do crédito empenhado só pode receber o pagamento com a anuência, por escrito, do credor pignoratício, caso em que o penhor será extinto. Segundo o art. 1.458 do CC, o penhor que recai sobre título de crédito constitui-se mediante instrumento público ou particular ou endosso pignoratício, com a tradição do título ao credor. Ao credor, em penhor de título de crédito, compete o direito de: conservar a posse do título e recuperá-la de quem quer que a detenha; usar dos meios judiciais convenientes para assegurar os seus direitos, e os do credor do título empenhado; notificar o devedor, para que não pague ao seu credor, enquanto durar o penhor; receber a importância consubstanciada no título e os respectivos juros, se exigíveis, restituindo-o ao devedor, quando este solver a obrigação. O devedor do título empenhado que receber a intimação, ou se der por ciente do penhor, não poderá pagar ao seu credor. Se o fizer, responderá solidariamente com este, por perdas e danos, perante o credor pignoratício. Se o credor der quitação ao devedor do título empenhado, deverá saldar imediatamente a dívida, em cuja garantia se constituiu o penhor. Penhor de veículos É também constituído por instrumento, público ou particular, registrado no Cartório de Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor e anotado no certificado de propriedade. O devedor pignoratício não entrega o veículo ao credor, mantendo a sua posse. O penhor de veículos não é efetivado sem que eles sejam previamente segurados contra furtos, avarias, perecimentos, ou danos causados por terceiros. Se houver a alienação ou a mudança de titularidade do veículo, sem prévia comunicação ao credor pignoratício, haverá o vencimento antecipado da dívida. O prazo máximo do penhor de veículos é de 2 anos, prorrogável por igual tempo. 8.2.5. EXTINÇÃO DO PENHOR Extingue-se o penhor: pela extinção da obrigação; pelo perecimento da coisa; pela renúncia do credor; pela confusão da mesma pessoa como credor e dono da coisa; 278 Paulo Batista pela a adjudicação judicial, a remissão ou a venda da coisa empenhada, feita pelo credor ou por ele autorizada. Há uma presunção de renúncia do credor quando: consentir na venda particular do penhor sem reserva de preço; restituir a sua posse ao devedor; ou anuir à sua substituição por outra garantia. Exemplo de confusão é o caso em que alguém recebe o bem empenhado como herança. Nesse caso, o devedor pignoratício é herdeiro do credor pignoratício, havendo confusão. 8.3. HIPOTECA A hipoteca também é direito real de garantia sobre coisa alheia, caso em que, via de regra, vai recair sobre bens imóveis. Não há a transferência da posse da coisa imóvel entre as partes. A coisa imóvel continua na posse do devedor. A hipoteca se constitui pelo seu registro na matrícula do imóvel no cartório de registro de imóveis. Os registros e as averbações seguirão a ordem em que forem requeridas, conforme o princípio da anterioridade registral ou da prioridade. Assim, o título que for protocolado primeiro no registro de imóveis terá preferência sobre todos os demais títulos contraditórios. O registro terá validade e eficácia enquanto a obrigação principal perdurar. Após isso, não haverá falar mais em hipoteca. A especialização da hipoteca deve ser renovada a cada 20 anos. A hipoteca legal não terá prazo máximo, perdurando enquanto vigorar a situação descrita na lei. Por outro lado, a hipoteca convencional terá o prazo máximo de 30 anos. O art. 1.473 do CC diz o que pode ser objeto do direito real de garantia hipotecária: os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles; o domínio direto; o domínio útil (direito do usufrutuário); as estradas de ferro; os recursos naturais a que se refere o art. 1.230 do CC, independentemente do solo onde se acham; os navios; as aeronaves. o direito de uso especial para fins de moradia; o direito real de uso; a propriedade superficiária; propriedade fiduciária; direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando esta é concedida ao poder público. A hipoteca abrange todas as acessões, melhoramentos ou construções do imóvel. Subsistem os ônus reais constituídos e registrados, anteriormente à hipoteca, sobre o mesmo imóvel. O art. 1.475 do CC diz que é nula a cláusula que proíbe ao proprietário alienar imóvel hipotecado. Portanto, o imóvel hipotecado não se torna bem fora do comércio e pode ser vendido ou doado, mas a hipoteca irá acompanhá-lo, sendo um direito de sequela. É possível que as partes convencionem que, sendo alienado o bem, haverá o vencimento antecipado do crédito hipotecário. Assim, embora seja proibido vedar a alienação, é possível constar que, se ela ocorrer, haverá o vencimento antecipado da dívida. 279 Paulo Batista O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor. Ou seja, é possível a chamada hipoteca de segundo grau (art. 1.476 do CC). Assim, é possível mais de uma hipoteca sobre o mesmo imóvel, mas a primeira terá preferência. O titular da segunda hipoteca, quando vencida a sua dívida, não poderá executar o imóvel antes de vencida a dívida da primeira hipoteca. 8.3.1. REMIÇÃO OU RESGATE DA HIPOTECA São duas as hipóteses especiais de remição ou resgate da hipoteca merecem destaque: Remição da hipoteca pelo adquirente de imóvel: o sujeito adquire o imóvel hipotecado, decidindo realizar a remição da hipoteca. Segundo o art. 1.481 do CC, dentro do prazo decadencial de 30 dias, contados do registro do título aquisitivo, o adquirente do imóvel hipotecado tem o direito de remi-lo, citando os credores hipotecários e propondo importância não inferior ao preço por que o adquiriu o imóvel. Se o adquirente deixar de remir o imóvel, ficará sujeito à execução da hipoteca, ficando também obrigado a ressarcir os credores hipotecários por uma desvalorização que tenha permitido que o imóvel sofresse em razão de sua culpa. Se o credor hipotecário impugnar o preço da aquisição ou a importância oferecida, realizar-se-á licitação, efetuando-se a venda judicial a quem oferecer maior preço, assegurada preferência ao adquirente do imóvel. Não impugnado pelo credor, o preço da aquisição ou o preço proposto pelo adquirente, haver-se-á por definitivamente fixado para a remissão do imóvel, que ficará livre de hipoteca, uma vez pago ou depositado o preço. Remição da hipoteca no caso de falência ou insolvência do devedor hipotecário: Foi tratada pelo NCPC no seu art. 877, segundo o qual, transcorrido o prazo de 5 (cinco) dias, contado da última intimação, e decididas eventuais questões, o juiz ordenará a lavratura do auto de adjudicação do bem penhorado (lembre-se que “penhorado” não é o mesmo que “empenhado”). Considera-se perfeita e acabada a adjudicação com a lavratura e a assinatura do auto pelo juiz, pelo adjudicatário, pelo escrivão ou chefe de secretaria, e, se estiver presente, pelo executado, expedindo-se a carta de adjudicação e o mandado de imissão na posse, quando se tratar de bem imóvel. Sendo bem móvel, haverá apenas a ordem de entrega ao adjudicatário. No caso de penhora de bem hipotecado, o executado poderá remir o bem até a assinatura do auto de adjudicação, oferecendo preço igual ao da avaliação, se não tiver havido licitantes, ou ao do maior lance oferecido, se houve licitantes. Na hipótese de falência ou de insolvência do devedor hipotecário, o direito de remição será deferido à massa ou aos credores em concurso, não podendo o exequente recusar o preço da avaliação do imóvel. 8.3.2. PEREMPÇÃO DA HIPOTECA CONVENCIONAL O art. 1.485 do CC diz que há a extinção da hipoteca pelo decurso do prazo máximo de 30 anos, a contar da constituição do negócio. Hipoteca legal não tem prazo máximo, apenas a hipoteca convencional. Admite-se a instituição convencional da hipoteca para dívida futura ou dívida condicional, que dependa de evento futuro e incerto. No entanto, isso só será possível se for determinado o valor máximo do crédito no ato de instituição. 280 Paulo Batista A execução da hipoteca, neste caso, vai depender de uma prévia concordância do devedor quanto à verificação da condição do evento futuro e incerto, ou ainda haver uma prévia concordância do dever quanto ao montante da dívida. Havendo divergência entre o credor e o devedor quanto à ocorrência do fato ou do montante da dívida, o credor deverá provar o seu crédito, o qual, provando, terá a garantia do bem. O art. 1.488 do CC inovou por meio da possibilidade de fracionamento da hipoteca, o que é uma exceção à regra da indivisibilidade do direito real de garantia. O fracionamento da hipoteca será possível se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, quando poderá ser dividido o ônus, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o credor, o devedor ou os interessados assim requererem ao juiz o credor, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito. O credor só poderá ser contrário ao pedido de desmembramento do ônus se provar que isso ocasionará diminuição de sua garantia. 8.3.3. CLASSIFICAÇÃO DA HIPOTECA 8.3.3.1. QUANTO À SUA ORIGEM Hipoteca convencional: decorre da vontade das partes. Hipoteca legal: decorre da lei, sendo aquela previstas no art. 1.489 do CC, além de eventuais outras hipóteses legais: hipoteca legal conferida às pessoas de direito público interno sobre os imóveis pertencentes aos encarregados da cobrança, guarda ou administração dos respectivos fundos e rendas; hipoteca legal conferida aos filhos, sobre os imóveis do pai ou da mãe que passar a outras núpcias, antes de fazer o inventário do casal anterior; hipoteca legal conferida ao ofendido, ou aos seus herdeiros, sobre os imóveis do delinquente, para satisfação do dano causado pelo delito e pagamento das despesas judiciais; hipoteca legal conferida ao co-herdeiro, para garantia do seu quinhão ou torna da partilha, sobre o imóvel adjudicado ao herdeiro reponente (obrigado a repor ao monte o que recebeu em excesso à parte disponível do doador ou testado); hipoteca legal conferida ao credor sobre o imóvel arrematado, para garantia do pagamento do restante do preço da arrematação. A hipoteca legal pode ser substituída por caução de títulos da dívida pública federal ou estadual, recebidos pelo valor de sua cotação mínima no ano corrente, ou ainda por outra garantia, a critério do juiz, a requerimento do devedor. A hipoteca legal, de qualquer natureza deverá ser registrada e especializada, a fim de que os terceiros tomem conhecimento (art. 1.497 do CC). O registro e a especialização incumbem a quem está obrigado a prestar essa garantia. Não existe prazo máximo para a hipoteca legal, mas exige-se que a especialização da hipoteca seja renovada a cada 20 anos. Hipoteca cedular (art. 1.486 do CC): segundo este dispositivo, o credor e o devedor podem, no ato constitutivo da hipoteca, autorizar a emissão de uma cédula hipotecária, especializando-se os bens dados em garantia, com o registro da cédula no cartório de registro imobiliário. Então, o registro é constitutivo da garantia. 281 Paulo Batista Hipoteca judicial: está regulamentada do NCPC, conforme seu art. 495, segundo o qual a decisão que condenar o réu ao pagamento de prestação consistente em dinheiro, e a que determinar a conversão de prestação de fazer, de não fazer ou de dar coisa em prestação pecuniária valerão como título constitutivo de hipoteca judiciária. A decisão vai produzir a hipoteca judiciária: ainda que a condenação seja genérica; ou ainda que o credor possa promover o cumprimento provisório da sentença ou esteja pendente arresto sobre bem do devedor; mesmo que impugnada por recurso dotado de efeito suspensivo. A hipoteca judiciária poderá ser realizada mediante apresentação de cópia da sentença perante o cartório de registro imobiliário, independentemente de ordem judicial, de declaração expressa do juiz ou de demonstração de urgência. 8.3.4. EXTINÇÃO DA HIPOTECA Segundo o art. 1.499, a hipoteca se extingue: pela extinção da obrigação principal; pelo perecimento da coisa; pela resolução da propriedade; pela renúncia do credor; pela remição; pela arrematação ou adjudicação. Extingue-se ainda a hipoteca com a averbação do cancelamento do registro no Registro de Imóveis, à vista da respectiva prova. Não extinguirá a hipoteca, devidamente registrada, a arrematação ou adjudicação, sem que tenham sido notificados judicialmente os respectivos credores hipotecários, que não forem de qualquer modo partes na execução. 8.4. ANTICRESE A anticrese é muito pouco utilizada no Brasil. Na anticrese há um direito real de garantia, em que a posse do imóvel é transmitida ao credor, para retirada de frutos para pagamento da dívida. O imóvel continua a ser do devedor, mas o credor passa a receber, por exemplo, os aluguéis a ele relativos. O imóvel dado em anticrese pode ser hipotecado, assim como o hipotecado pode ser dado em anticrese. É possível ainda a remição ou resgate da anticrese pelo adquirente do imóvel dado em garantia (imóvel anticrético). 8.5. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA A alienação fiduciária é um direito real de garantia, mas sobre coisa própria. Possui regulamentação: no Código Civil (art. 1361 e seg.), que dispõe sobre a propriedade fiduciária de bens móveis infungíveis; no DL 911/1969, que trata dos bens móveis, dados em alienação fiduciária; na Lei nº 9.514/1997, que trata da alienação fiduciária em garantia sobre bens imóveis. 282 Paulo Batista 8.5.1. CONCEITO A alienação fiduciária é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa. A garantia, então, transfere ao credor o domínio, mas este é resolúvel. O alienante passa a ser o depositário do bem. Assim, na alienação fiduciária, é imprescindível que a posse direta do bem, móvel ou imóvel, continue com o devedor fiduciante. O proprietário, ou seja, o credor fiduciário terá a sua posse indireta. Com o pagamento de todos os valores devidos pelo devedor fiduciante, a propriedade do credor se resolve e o então devedor passa a ter o domínio pleno. Por outro lado, caso o devedor não pague a dívida, será o credor que passará a ter a consolidação da propriedade plena, podendo reivindicar o bem que estiver na posse do devedor. Assim, uma das grandes vantagens da alienação fiduciária é que o credor não vai precisar disputar a garantia com qualquer outro crédito (trabalhista, hipotecário etc.) porque o bem, na verdade, é de sua propriedade. Basta reivindicá-lo. Ele apenas perderia a propriedade se houvesse a implementação da condição resolutiva, qual seja, a quitação da dívida. 8.5.2. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE BENS MÓVEIS Está regulamentada no Código Civil e no DL 911/1969. O §1º do art. 1.361 do CC diz que a propriedade fiduciária se constitui com o registro do contrato, motivo pelo qual haverá um direito real de garantia, desde que seja celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor. Em se tratando de veículos, o registro deverá ser feito na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro. Assim, não é requisito de validade ou existência da alienação fiduciária de veículos o seu registro em cartório. O art. 1.362 do CC diz que o contrato, que serve de título à propriedade fiduciária, deverá observar alguns requisitos, tais como: Previsão do valor total da dívida, ou sua estimativa; Previsão do prazo, ou a época do pagamento; Previsão da taxa de juros, se houver; Previsão da descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação. Antes de vencida a dívida, o devedor fiduciante vai usar e gozar da coisa, ficando em sua posse, pois será o seu depositário. O devedor fiduciante é obrigado a manter a diligência e cuidado compatíveis com a natureza da coisa, além de ser obrigado a entregá-la ao credor se a dívida não for paga no seu vencimento. Portanto, havendo inadimplemento por parte do devedor, o credor poderá reaver a coisa, tendo a obrigação de vendê-la, seja em leilão judicial ou extrajudicial. Feita a venda, o preço será aplicado no pagamento do crédito, e se houver saldo, este será entregue ao devedor, havendo a quitação. Considera-se existente a mora do devedor fiduciante quando houver o simples vencimento do prazo, sendo uma mora ex re. Contudo, a mora precisa ser considerada consolidada (consolidação da mora) com a devida notificação ao devedor, seja por carta registrada com aviso de recebimento, seja por notificação extrajudicial no Cartório de Títulos e Documentos. A mora e o inadimplemento das obrigações contratuais garantidas por alienação fiduciária tornem, desde aquele momento, vencidas todas as obrigações contratuais. 283 Paulo Batista Segundo a jurisprudência pátria, o inadimplemento absoluto será provado com a notificação e o decurso do prazo para a quitação da dívida. Nessa situação, é possível a busca e apreensão liminar do bem. A ação de busca e apreensão na alienação fiduciária em garantia de bens móveis, encontra regulamentação no art. 3º do DL 911/69. Este dispositivo estabelece que o proprietário fiduciário ou credor pode, desde que comprovada a mora, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário. Após 5 dias a execução da liminar, consolidam-se a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária. No prazo 5 dias, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus. O devedor fiduciante apresentará resposta no prazo de 15 dias da execução da liminar. Essa resposta pode ser apresentada mesmo que o devedor tenha se utilizado da faculdade de pagar a dívida para ter o bem em sua propriedade, eis que poderá considerar que o pagamento foi feito a maior, desejando agora a restituição que entende cabível. Da sentença cabe apelação apenas no efeito devolutivo. Na sentença que decretar a improcedência da ação de busca e apreensão, o juiz condenará o credor fiduciário ao pagamento de multa,em favor do devedor fiduciante, a qual será equivalente a 50% do valor originalmente financiado atualizado,se o bem tiver sido alienado. Essa multa não exclui responsabilidade do credor fiduciário por perdas e danos. A parte interessada poderá requerer diretamente ao juízo da comarca onde foi localizado o veículo com vistas à sua apreensão, sempre que o bem estiver em comarca distinta daquela da tramitação da ação, bastando que em tal requerimento conste a cópia da petição inicial da ação e, quando for o caso, a cópia do despacho que concedeu a busca e apreensão do veículo. A apreensão do veículo será imediatamente comunicada ao juízo, que intimará o credor para a sua retirada do local depositado no prazo máximo de48 (quarenta e oito) horas. Veja-se que, caso o devedor queira permanecer com o bem, terá que pagar a integralidade da dívida pendente, e não apenas as parcelas em atraso. Ainda, o STJ tem aplicado à alienação fiduciária a teoria do adimplemento substancial, casos em que será afastada a busca e apreensão, no caso de a mora ser insignificante. O credor poderá cobrar o remanescente de outra forma, mas diversa da busca e apreensão. O art. 1.365 do CC diz que é nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Ou seja, é vedado o pacto comissório real. Todavia, pode o devedor, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta. Ou seja, vencida a dívida, poderá dar o bem em dação em pagamento. A Lei nº 13.043/14 incluiu o art. 1.368-B no Código Civil. Este dispositivo diz que a alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário do fiduciante ou sucessor do fiduciante. Isso fez com que a alienação fiduciária se tornasse de natureza mista, sendo direito real de garantia sobre coisa própria, mas também é direito real de aquisição. O credor fiduciário que se tornar proprietário pleno do bem, por efeito de realização da garantia, mediante consolidação da propriedade, adjudicação, dação ou outra forma pela 284 Paulo Batista qual lhe tenha sido transmitida a propriedade plena, passa a responder pelo pagamento dos tributos sobre a propriedade e a posse, taxas, despesas condominiais e quaisquer outros encargos, tributários ou não, incidentes sobre o bem objeto da garantia, a partir da data em que vier a ser imitido na posse direta do bem. 8.5.3. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE BENS IMÓVEIS Está prevista na Lei nº 9.514/1997 e atualmente a execução da garantia pode ser feita integralmente no Cartório de Registro de Imóveis. Ela pode ser contratada por uma pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no sistema financeiro imobiliário. É um contrato de garantia que sempre será vinculado a um contrato principal. Não há contrato de alienação fiduciária sem que haja algum outro contrato principal. Não é obrigatório que o contrato principal seja de mútuo. Ela pode garantir qualquer obrigação principal. Assim, poderá ser objeto de alienação fiduciária em garantia: bens enfitêuticos, hipótese em que será exigível o pagamento do laudêmio, se houver a consolidação do domínio útil no fiduciário; direito de uso especial para fins de moradia; direito real de uso, desde que suscetível de alienação; propriedade superficiária. Esses bens podem ser alienados fiduciariamente em garantia de bem imóvel. A propriedade fiduciária de coisa imóvel se constitui mediante registro no competente Registro de Imóveis do contrato que lhe serve de título. Com a constituição da propriedade fiduciária dar-se-á o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel. São requisitos do instrumento (que nada mais é que o contrato) a ser registrado: constar o valor do principal da dívida; constar o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário; constar a taxa de juros e os encargos incidentes; constar a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição; constar a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária; constar a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; constar a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27 da referida lei (execução extrajudicial da dívida). Ocorrendo o pagamento, no prazo de 30 dias, a contar da data de liquidação da dívida, o fiduciário fornecerá o respectivo termo de quitação ao fiduciante, sob pena de multa em favor deste, equivalente a meio por cento ao mês, ou fração, sobre o valor do contrato. À vista do termo de quitação, o oficial do competente Registro de Imóveis efetuará o cancelamento do registro da propriedade fiduciária, por ato de averbação. O art. 26 da lei diz que,vencida e não paga, no todo ou em parte a dívida, e constituído em mora o fiduciante, a propriedade vai se consolidar em nome do credor fiduciário. O devedor fiduciante, ou seu representante legal, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo de 15 dias, a prestação vencida. 285 Paulo Batista Segundo o STJ, é nula a intimação do devedor para oportunizar a purgação de mora realizada por meio de carta com aviso de recebimento quando esta for recebida por pessoa desconhecida e alheia à relação jurídica (Inf. 580). Portanto, no caso de bens imóveis, a purgação da mora é feita no Registro de Imóveis. O oficial, nos 3 dias seguintes à purgação da mora, entregará ao fiduciário as importâncias recebidas, deduzidas as despesas de cobrança e de intimação. Se passados os 15 dias, e o devedor não fez a purgação da mora, então o oficial de registro de imóveis irá promover a averbação na matrícula do imóvel da consolidação da propriedade plena em nome do credor fiduciário. Consolidada a propriedade em nome do fiduciário, no prazo de 30 dias, contados da data da averbação, ele promoverá público leilão para a alienação do imóvel, já que é vedado o pacto comissório real, não sendo permitido ao credor fiduciário ficar com a propriedade do imóvel. No primeiro público leilão, o maior lance oferecido deve ser pelo menos superior ao valor contratual do bem. Todavia, sendo inferior ao valor do imóvel, será realizado o segundo leilão, nos 15 dias seguintes. No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais. Nos 5 dias seguintes à venda do imóvel, o credor fiduciário vai entregar ao devedor fiduciante aquilo que sobrar. Esse fato vai importar em recíproca quitação. Se no segundo leilão não for igual ou superior ao valor da dívida e dos encargos, será considerada a dívida extinta. Ou seja, frustrados os dois leilões, o devedor estará exonerado da dívida. 9. DA LAJE A laje é direito real criado pela Lei nº 13.465/2017, que a incluiu no CC. Ela é uma unidade imobiliária autônoma, com registro e matrícula própria no Cartório de Imóveis, mas vinculada ao terreno onde se localiza a construção-base. Ela será sobreposta ou subterrânea a esta construção-base. Assim, embora vinculadas, a laje e o terreno são imóveis juridicamente diversos. O proprietário da laje terá direito real autônomo ao proprietário do terreno (e da construção-base). O proprietário do terreno e da construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. Tal direito foi criado para regularizar situações urbanas, dando autonomia urbanística e econômica às lajes já consolidadas e a serem construídas, mas também pode ser usada como soluções para incorporações em áreas antes impossibilitadas de aproveitamento econômico. A laje não se confunde com condomínio edilício, pois não consiste em áreas comuns e áreas privativas, possuindo natureza jurídica distinta. Os titulares da laje, unidade imobiliária autônoma, poderão dela usar, gozar e dispor, mas deverá haver regras de convivência, direitos e obrigações entre o dono do terreno e o da laje. QUESTÕES 1 – Quanto às características dos Direitos Reais, assinale a alternativa INCORRETA a) Direitos Reais têm oponibilidade erga omnes, o que significa que, em regra, não haverá efeitos apenas entre as partes da relação jurídica material. b) Como regra geral, todos os Direitos Reais, para que tenham eficácia erga omnes, precisam estar inscritos no serviço extrajudicial de registro de imóveis. 286 Paulo Batista c) Nos direitos reais há direito de sequela, ou seja, o direito de reivindicar o bem aonde quer que ele esteja. Tal direito segue a coisa, onde quer que ela esteja (móvel) ou na posse de quem estiver (imóvel). d) No direito real há direito de preferência, tendo caráter taxativo na lei (tipicidade). 2 – Quanto aos Direitos Reais previsto no art. 1225 do CC, assinale aquele que NÃO se enquadra no rol do referido artigo: a) os direitos propter rem. b) o penhor. c) a propriedade. d) a concessão de uso especial para fins de moradia. 3 – Quanto à teoria da Posse, podemos dizer: a) a Teoria Subjetivista foi defendida por Ihering, dando relevância ao aspecto subjetivo da posse. Aqui a posse possui dois elementos: (i) o corpus: é o elemento objetivo, material, que é a disponibilidade sobre a coisa; (ii) o animus: é o elemento subjetivo, que é a intenção de ter a coisa para si. b) A Teoria Objetiva foi defendida por Savigny, segundo a qual, para constituição da posse, basta que o sujeito disponha fisicamente da coisa. Na verdade, para o Savigny, o corpus é formado pela atitude externa do possuidor em relação à coisa. O possuidor passa a agir, em relação à coisa, com intuito de explorá-la, inclusive economicamente. c) A Teoria Objetiva foi defendida por Ihering, segundo a qual, para constituição da posse, basta que o sujeito disponha fisicamente da coisa. Na verdade, para o Ihering, o corpus é formado pela atitude externa do possuidor em relação à coisa. O possuidor passa a agir, em relação à coisa, com intuito de explorá-la, inclusive economicamente. d) O Código Civil Brasileiro adotou a Teoria Subjetivista. 4 – Assinale a alternativa INCORRETA: a) Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome desta outra pessoa e em cumprimento de ordens ou instruções suas. b) O detentor é também chamado de fâmulo da posse. c) É possível a conversão da detenção em posse, quando há a quebra do vínculo de subordinação. d) Aquele que se comporta em relação de dependência para com outro, conservando a posse em nome desta outra pessoa e em cumprimento de ordens ou instruções suas, presume-se possuidor, até que prove o contrário. 5- Assinale a alternativa CORRETA: 287 Paulo Batista a) Tanto na posse de boa-fé como na posse de má-fé, o possuidor ignora a existência de um vício que impede a aquisição da coisa, o que as difere é apenas os efeitos disso em relação a terceiros. b) Não é possível falar em posse de boa-fé injusta. c) É possível haver posse justa e de má-fé. d) Quando há justo título, presume-se a posse de boa-fé apenas se tal documento estiver registrado em Cartório de Registro de Títulos e Documentos. 6- Quanto ao Direito de Propriedade, assinale a alternativa CORRETA: a) A propriedade está relacionada a atributos de usar, corresponde à faculdade de se pôr o bem a serviço do proprietário, de gozar (fruir), que é a faculdade de retirar os frutos da coisa, de dispor, que significa poder de consumir o bem, de aliená-lo ou gravá-lo, ou de submetê-lo ao serviço de terceira pessoa, ou de desfrutá-lo, e de reivindicar (reaver), por meio de uma ação petitória, fundada no direito de propriedade. Isso se dá pela chamada ação reivindicatória. b) Havendo os quatro atributos de forma cumulativa, conforme a assertiva anterior, então haverá a chamada propriedade resolúvel, que está amplamente assegurada, salvo se ocorrer fato relevante superveniente. c) O Direito de Propriedade, dentro do possível, deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, além de aspectos urbanísticos. Contudo, por se tratar de Cláusula Pétrea, o Direito de Propriedade só pode ser limitado nos casos expressamente previstos na Constituição Federal, nunca por leis ordinárias. d) A propriedade do solo abrange consequentemente a das jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais, de modo que estes bens pertencem ao proprietário da área onde localizados os recursos minerais. 7- A usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade ou de outro direito real, através de uma posse prolongada e qualificada. Quanto a esta forma de aquisição de propriedade, é INCORRETO dizer que: a) A posse para fins de usucapião, além de longeva, precisa ser qualificada, ou seja, ad usucapionem, o que significa dizer ser exercida com a intenção de dono (animus domini), de forma mansa, pacífica e justa, ou seja, não violenta, não clandestina e não precária. b) Estende-se ao possuidor as causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião. Por isso, a usucapião é considerada uma prescrição aquisitiva. c) Na usucapião ordinária, mesmo que o imóvel tenha sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, 288 Paulo Batista ainda que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico, o prazo geral é mantido, ou seja, de 10 anos. d) A usucapião constitucional ou especial rural será adquirida por aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por 5 anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a 50 hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia. Neste caso, não há exigência de justo título e boa-fé. 8- Os Direitos Reais imobiliários, como regra geral, são constituídos pelo seu ingresso no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição na qual o bem está territorialmente localizado. Sobre o registro de imóveis, é INCORRETO afirmar: a) O registro do título aquisitivo é a principal maneira derivada e originária de aquisição da propriedade imóvel. É o registro que implica transferência da propriedade, possuindo, portanto, natureza constitutiva de direitos. Por isso é muito importante o estudo de Registros Públicos, em especial a Lei 6.015/73, além de vários diplomas normativos que regulam aspectos extrajudiciais. b) Os contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis devem ser feitos por escritura pública, se o valor do imóvel for superior a 30 salários mínimos. Do contrário, basta que seja um contrato particular. Ou seja, quando a lei fala “instrumento público” está se referindo a escritura pública, lavrada perante um Tabelião de Notas. c) Pelo sistema adotado no Brasil, a escritura pública, por si só, não transfere a propriedade. Ela é o instrumento do contrato celebrado. d) O Código Civil afirma que o registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo. A partir desse momento, o registro é eficaz, ou seja, consagra-se o princípio da prioridade, tendo ela quem primeiro protocolou o título junto ao registrador. 9- Sobre o achado de tesouro, e nos termos do Código Civil, é CORRETO afirmar: a) O tesouro é depósito antigo de coisas preciosas, oculto e de cujo dono não haja memória. b) O tesouro será dividido entre o proprietário do prédio e o que achar o tesouro casualmente, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente, desde que este tenha agido de boa-fé. c) O tesouro pertencerá por inteiro ao proprietário do prédio, se for achado por ele, ou em pesquisa que o proprietário ordenou, ou se quem encontrou o tesouro foi terceiro, independentemente de boa-fé. d) Sendo o tesouro encontrado em terreno aforado, o tesouro será dividido entre o descobridor e o enfiteuta na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente, ou será deste por inteiro quando ele mesmo seja o descobridor. 289 Paulo Batista 10- O direito de vizinhança são limitações impostas aos titulares de direitos reais, para que exista uma boa convivência social. É um conjunto de normas de convivência entre titulares de direitos ou possuidores que estejam fisicamente próximos uns aos outros. A seu respeito, é INCORRETO afirmar que: a) As normas relativas aos direitos de vizinhança são claras limitações ao exercício da propriedade, existindo pelo simples fato de uma propriedade ser vizinha de outra. Essas obrigações estão vinculadas à coisa, perseguindo-a, ou seja, são obrigações propter rem (ambulatoriais). b) O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam o prédio, provocadas pela utilização de propriedade vizinha. Existe para cessar interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde, evitando-se o abuso do direito. c) São proibidas as interferências externas, considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio. Além disso, é necessário que sejam atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança. d) O proprietário tem direito a exigir do dono do prédio vizinho a demolição, ou a reparação do prédio, quando ele estiver ameaçado de ruína, bem como poderá exigir que seja prestada caução pelo perigo de dano iminente. Contudo, tal direito não se estende aquele que seja apenas o possuidor sob ameaça de ruína do prédio vizinho. 11- O condomínio edilício possui extrema relevância no ramo do direito de propriedade, do direito obrigacional, ambiental e urbanístico, e precisa ser estudado com atenção, face à complexidade do instituto. Há uma forte atuação do Direito Registral, uma vez que a instituição do condomínio ocorre com o seu registro no Cartório de Registro de Imóveis. Sobre o condomínio edilício é CORRETO afirmar que: a) Se houver oferta de unidades autônomas à venda durante das obras (chamada de “venda de imóveis na planta”), o condomínio edilício surgirá desde este primeiro momento. Com o fim das obras, concedido o habite-se, o registro do condomínio será realizado apenas para fins tributários junto ao Poder Executivo local, com a possibilidade de cobrança do IPTU e das respectivas taxas. Já incorporação imobiliária (Lei 4.591/1964) somente ocorrerá quando não houver oferta pública de futuras unidades autônomas. b) Resolvendo o condômino alugar área no abrigo para veículos, haverá preferência, em condições iguais, de qualquer dos condôminos a estranhos, e entre todos os possuidores. c) A jurisprudência é pacífica no sentido de que há relação jurídica consumerista entre condômino e condomínio. d) A administração do condomínio é feita por pessoas e órgão relacionadas ao condomínio e será exercida pelo síndico, pela assembleia e pelo conselho fiscal, todos eles obrigatórios em qualquer condomínio. 290 Paulo Batista 12- A respeito das novas figuras de Direitos Reais introduzidas por leis extravagantes nos últimos anos, é INCORRETO afirmar que: a) O Condomínio em multipropriedade foi criado pela Lei 13.777/2018, sendo regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada. Veja-se, assim, que há um condomínio civil (frações ideias da área) e uma divisão também de tempo (frações de tempo). b) O condomínio de lotes, modalidade criada pela Lei 13.465/2017, consiste em haver, em terrenos, partes designadas de lotes (unidades autônomas), que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos. Funcionam como se fossem condomínios edilícios, mas sem a obrigatoriedade de construção das áreas exclusivas, apenas das partes comuns. c) Constitui-se a multipropriedade imobiliária por ato entre vivos ou testamento, registrado no competente cartório de registro de imóveis, devendo constar daquele ato a duração dos períodos correspondentes a cada fração de tempo. Já a transferência deste direito e a sua produção de efeitos perante terceiros dar-se-ão na forma da lei civil e não dependerão da anuência ou cientificação dos demais multiproprietários. Nem sempre haverá direito de preferência na alienação de fração de tempo, salvo se estabelecido no instrumento de instituição ou na convenção do condomínio em multipropriedade em favor dos demais multiproprietários ou do instituidor do condomínio em multipropriedade. d) O condomínio de lotes assemelha-se aos loteamentos urbanos, regidos pela Lei 6.766/1979, em apenas alguns pontos, dentre eles, o fato de que ambos se dividem em áreas públicas (ruas, equipamentos, áreas verdes, áreas institucionais) e lotes (unidades imobiliárias). 13. A respeito das servidões e do usufruto, é CORRETO afirmar: a) A servidão é presumida, de acordo com usos e costumes do local onde instituído o negócio jurídico, seja inter vivos (contrato) ou negócio mortis causa (testamento). b) São formas de constituição da servidão: (i) declaração expressa do proprietário; (ii) testamento; (iii) sentença judicial; (iv) pelo direito de vizinhança. c) A servidão é regida pelo princípio da menor onerosidade ao imóvel serviente e se restringe às necessidades do prédio dominante, evitando-se agravar o encargo ao prédio serviente. d) O usufruto de bens imóveis vai ser constituído através de registro no Cartório de Registro de Imóveis, quando não resultar de usucapião, não sendo possível transferir o usufruto por alienação. O que pode fazer é ceder o seu exercício, seja a título gratuito ou oneroso. Assim, o usufruto em si é inalienável. 14- A respeito da hipoteca, é INCORRETO afirmar que: 291 Paulo Batista a) A hipoteca se constitui pelo seu registro na matrícula do imóvel no cartório de registro de imóveis, de modo que os registros e as averbações seguirão a ordem em que forem requeridas, conforme o princípio da anterioridade registral ou da prioridade. Assim, o título que for protocolado primeiro no registro de imóveis terá preferência sobre todos os demais títulos contraditórios. b) A especialização da hipoteca deve ser renovada a cada 20 anos, muito embora a hipoteca legal não tenha prazo máximo, perdurando enquanto vigorar a situação descrita na lei. Por outro lado, a hipoteca convencional terá o prazo máximo de 30 anos. c) A hipoteca abrange todas as acessões, melhoramentos ou construções do imóvel. Subsistem os ônus reais constituídos e registrados, anteriormente à hipoteca, sobre o mesmo imóvel. d) É válida a cláusula que proíbe ao proprietário alienar imóvel hipotecado, de modo a tornar o bem hipotecado como fora do comércio. 15- A alienação fiduciária de bens imóveis é atualmente um instrumento imprescindível para a economia brasileira, por todas as vantagens existentes em relação à já em desuso hipoteca. A respeito da alienação fiduciária de bens imóveis, é INCORRETO afirmar: a) A alienação fiduciária imobiliária é um contrato de garantia que sempre será vinculado a um contrato principal, inexistindo contrato de alienação fiduciária sem que haja algum outro contrato principal. Ela pode ser contratada por uma pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no sistema financeiro imobiliário. Atualmente a execução da garantia pode ser feita parcialmente no Cartório de Registro de Imóveis, mas o título executivo precisa ser homologado judicialmente. b) Ela pode garantir qualquer obrigação principal, não apenas contratos de mútuo. c) São requisitos do instrumento de alienação fiduciária em garantia a ser registrado: (i) constar o valor do principal da dívida; (ii) o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário; (iii) a taxa de juros e os encargos incidentes; (iv) cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição; (v) cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária; (vi) a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; (vii) cláusula dispondo sobre os procedimentos de execução extrajudicial da dívida). d) Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida, e constituído em mora o fiduciante, o devedor fiduciante, ou seu representante legal, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo de 15 dias, a prestação vencida. Se passado o referido prazo, e o devedor não realizar a purgação da mora, então o oficial de registro de imóveis irá promover a averbação na matrícula do imóvel da consolidação da propriedade plena em nome do credor fiduciário. Consolidada a propriedade em nome do fiduciário, no prazo de 30 dias, contados da data da averbação, ele promoverá público leilão para a 292 Paulo Batista alienação do imóvel, já que é vedado o pacto comissório real, não sendo permitido ao credor fiduciário ficar com a propriedade do imóvel. COMENTÁRIOS 1 - Gabarito: B É preciso lembrar que, ao tratar de Direitos Reais, podemos estar falando sobre coisas móveis e imóveis. Existe uma tendência a se imaginar que apenas imóveis são objeto de Direitos Reais. Assim, a alternativa está errada porque a regra de necessidade de registro na serventia imobiliária se aplica a imóveis, mas direitos reais sobre coisas móveis não se sujeitam a esta regra. 2 - Gabarito: A Os direitos decorrentes de obrigações propter rem possuem natureza obrigacional, pessoal. Assim, muito embora estejam vinculados a uma coisa, eles não possuem natureza real. 3 - Gabarito: C A Teoria Objetiva foi defendida por Ihering, não por Savigny, e foi ela a adotada pelo CC, no seu art. 1.196. 4- Gabarito: D Aquele que se comporta em relação de dependência para com outro, conservando a posse em nome desta outra pessoa e em cumprimento de ordens ou instruções suas, presume-se detentor, até que prove o contrário, na forma do parágrafo único do art. 1.198 do CC. 5- Gabarito: C É possível haver posse justa e de má-fé. A posse pode não ser violenta, clandestina e precária, mas pode conter algum vício. Nesse caso, haverá uma posse justa e de má-fé. 6- Gabarito: A A propriedade está relacionada a atributos de usar, corresponde à faculdade de se pôr o bem a serviço do proprietário, de gozar (fruir), que é a faculdade de retirar os frutos da coisa, de dispor, que significa poder de consumir o bem, de aliená-lo ou gravá-lo, ou 293 Paulo Batista de submetê-lo ao serviço de terceira pessoa, ou de desfrutá-lo, e de reivindicar (reaver), por meio de uma ação petitória, fundada no direito de propriedade. Isso se dá pela chamada ação reivindicatória, na forma do art. 1.228 do CC. 7- Gabarito: C Na forma do parágrafo único do art. 1.242 do CC, na usucapião ordinária, o prazo é reduzido para de 5 anos, se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Essa é a chamada usucapião tabular. 8-Gabarito: A O registro do título aquisitivo é a principal maneira apenas derivada de aquisição da propriedade imóvel. Quanto à aquisição originária, como a usucapião, ela dá-se de pleno direito, com o simples implemento de seus requisitos. Neste caso, o registro imobiliário é condição apenas de eficácia erga omnes e de disponibilidade do bem, mas não é forma de sua aquisição. 9- Gabarito: A O item está expressamente previsto no art. 1.264 do CC. 10- Gabarito: D Tanto o proprietário, como também o possuidor, podem exigir do dono do prédio vizinho a demolição, ou a reparação do prédio, quando ele estiver ameaçado de ruína, bem como poderá exigir que seja prestada caução pelo perigo de dano iminente. 11- Gabarito: B Resolvendo o condômino alugar área no abrigo para veículos, haverá preferência, em condições iguais, de qualquer dos condôminos a estranhos, e entre todos os possuidores. Esta é a exata redação do art. 1.338 do CC. 12 - Gabarito: D Não se deve confundir condomínio de lotes com loteamento urbano. 294 Paulo Batista Basicamente, os loteamentos urbanos são regidos pela Lei 6.766/1979 e se dividem em áreas públicas (ruas, equipamentos, áreas verdes, áreas institucionais) e lotes (unidades imobiliárias). Já no condomínio de lotes, toda a área é privada, dividida em áreas privativas e comuns. São institutos juridicamente distintos em absoluto, mas tal distinção somente é constatada ao examinar os atos de sua criação no Cartório de Registro de Imóveis. Olhando ambos apenas pelo seu aspecto físico, não será possível saber se se trata de loteamento ou de condomínio de lotes. 13- Gabarito: C. De fato, vale quanto à servidão o princípio da menor onerosidade ao imóvel serviente e se restringe às necessidades do prédio dominante, evitando-se agravar o encargo ao prédio serviente. Assim, presume-se sempre menos onerosa a servidão, interpretandose restritivamente os seus limites. 14- Gabarito: D O art. 1.475 do CC é expresso ao dizer que é nula a cláusula que proíbe ao proprietário alienar imóvel hipotecado. Portanto, o imóvel hipotecado não se torna bem fora do comércio e pode ser vendido ou doado, mas a hipoteca irá acompanha-lo, sendo um direito de sequela. 15- Gabarito: A Está prevista na Lei 9.514/1997 e atualmente a execução da garantia pode ser feita integralmente no Cartório de Registro de Imóveis. 295 Matheus Zuliani CAPÍTULO 7 — RESPONSABILIDADE CIVIL 1. DISPOSIÇÕES GERAIS E CLASSIFICAÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL A palavra responsabilidade advém da expressão latina spondeo, em que se criava um elo entre o devedor e os contratos verbais do direito romano. Há diversas acepções da palavra responsabilidade. Para o direito civil, a responsabilidade é consequência do descumprimento de um dever, seja ele contratual ou de não lesar outrem (extracontratual). Ao lado da responsabilidade existe o dever de indenizar. Eles vão estar juntos, sendo muitas vezes utilizados como sinônimos. Isso porque ao se afirmar a responsabilidade civil da pessoa, inerente a ela será o dever de indenizar. A indenização é a consequência do reconhecimento da responsabilidade civil. Se não há responsabilidade não há indenização. Ênio Santarelli Zuliani, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tece considerações sobre a tutela indenizatória48: Não custa enfatizar que o modo de se obter justiça foi aperfeiçoado, para melhor, com as novas técnicas processuais, graças aos tipos de tutelas que são possíveis de serem emitidas para garantir o resultado prático protegido pelo direito. Todavia, e quando, apesar de tudo, o dano se evidencia com a sua força perturbadora, remanesce ao lesado a oportunidade de alcançar a indenização que reconstrua o patrimônio deficitário ou que compense a dor moral em caso de ofensa a direitos da personalidade. A tutela indenizatória é instituída pela sentença condenatória, o que anima escrever ser fruto de uma reprovação da conduta. O juiz condena porque reconhece como devida a obrigação de ressarcimento, e isso, invariavelmente, decorre de valoração da antijuridicidade, quer no aspecto subjetivo (culpa) ou objetivo (fato e serviços que pressupõem responsabilidade). A regra, na responsabilidade civil, é a de que o causador do dano responde pelo ilícito praticado com seu patrimônio. A responsabilidade civil é patrimonial. Não há prisão civil por dívida, salvo dívidas de alimentos (art. 5º, LXVII, Constituição Federal). O STF declarou (RE 349.703 e 466.343) a ilegalidade da prisão do depositário pela infidelidade do depósito e preserva esse entendimento (HC 92.817-RS), o que conduziu o STJ a estender a ilegalidade da prisão em caso de depositário infiel em depósito judicial (HC 138457 SP, DJ de 27.10.2009 e HC 123281 SP). Só que essa regra evoluiu e muito até chegar aos dias contemporâneos. No direito romano, o devedor respondia pelo próprio corpo pela dívida contraída e não paga (legis actio per manus injectione) - “visto não me haveres pago a dívida eu lanço a mão sobre ti”. (Lei das XII Tábuas). A execução sobre a pessoa do devedor foi abolida a partir da Lex Poetelia Papiria, ano 428 de Roma ou 326 antes de Cristo49. Com isso, verifica-se que a responsabilidade pode ser contratual ou extracontratual. A responsabilidade civil contratual é aquela que surge em razão do inadimplemento de uma obrigação contratual. O ilícito extracontratual, também conhecido como responsabilidade 48 ZULIANI, Ênio Santarelli – Tutelas e prescrição in Responsabilidade Civil na Área da Saúde – Série GV law Editora Sairava. 49 A lex Poetelia Papiria foi consequência de uma revolta da plebe, uma insurreição contra os maus-tratos infligidos a um jovem, Lúcio Paírio, que estava em estado de nexus (quase escravidão], devido a um empréstimo que seu pai contraíra e não pagara, porque este, no exercício da pátria potestas, o entregara ao credor” Obrigações no direito romano. Texto de ALFREDO BUZAID (do concurso de credores no processo de execução, Saraiva, 1952, p. 43] 296 Matheus Zuliani aquiliana50, é a ofensa a um dever jurídico de não lesar outrem (princípio alterum non laedere ou neminem laedere). Encontra previsão no art. 186 do Código Civil que diz: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Essa classificação retrata o modelo dual ou binário, e sua tendência é não mais existir, passando a unificação, uma vez que princípios e regramentos básicos são os mesmos, a exemplo do que já faz o Código de Defesa do Consumidor. Além da responsabilidade contratual e extracontratual, existe também a responsabilidade subjetiva e a responsabilidade civil objetiva. A responsabilidade civil subjetiva é a regra do nosso ordenamento jurídico, enquanto a responsabilidade civil objetiva é a exceção. Veremos, mais adiante, os pressupostos da responsabilidade civil. Em resumo, são quatro: a ação ou omissão, dolosa ou culposa, o nexo de causalidade e o dano. Na responsabilidade civil subjetiva é preciso que esses quatro elementos estejam presentes. No que tange a responsabilidade civil objetiva, o Código Civil, no art. 927, parágrafo único, dispõe que ela terá vez quando a lei dispuser, ou então, quando envolver atividade de risco. Para que haja a responsabilidade objetiva se faz necessário apenas três dos pressupostos da responsabilidade civil, dispensando-se a comprovação da culpa, uma vez que, nessa modalidade, ela é presumida. No que tange a responsabilidade civil objetiva, é preciso que se façam algumas observações. O parágrafo único do art. 927 do Código Civil diz que haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Perceba aqui que a responsabilidade poderá independer de culpa, e ser objetiva, quando a lei disser que ela é objetiva, ou então, quando a atividade for de risco. O que é uma atividade perigosa? Trata-se de uma cláusula geral, em que o seu conceito será preenchido pelo juiz diante do conceito social da época em que ocorrer o fato. Trata-se da aplicação da teoria das janelas abertas ou das cláusulas abertas. Risco é uma iminência de dano ou de prejuízo. Trata-se de uma situação acima da normalidade. O risco está acima de uma situação de normalidade, mas está abaixo de uma situação de perigo. Veja que a lei não exige o perigo, mas tão somente o risco. Se houver perigo, certamente há risco. Sobre a teoria do risco, é possível se falar em risco administrativo, risco criado, risco do proveito, risco integral. 2. DOS ELEMENTOS OU PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL Embora pareça não existir unanimidade na doutrina no que tange aos elementos que estruturam a responsabilidade civil, o que prevalece é que são eles a ação ou omissão, a culpa ou dolo do agente (culpa em sentido amplo), o nexo de causalidade e o dano ou prejuízo. 50 “Por volta do final do século III a.C., um Tribuno da Plebe de nome Aquilius, dirigiu uma proposta de lei aos Conselhos da Plebe, com vistas a regulamentar a responsabilidade por atos intrinsecamente ilícitos. Foi votada a proposta e aprovada, tornando-se conhecida pelo nome de Lex Aquilia. A Lex Aquilia era na verdade plebiscito, por ter origem nos Conselhos da Plebe. É lei de circunstância, provocada pelos plebeus que, desse modo, se protegiam contra os prejuízos que lhes causavam os patrícios, nos limites de suas terras. Antes da Lei Aquília imperava o regime da Lei das XII Tábuas (450 a.C.), que continha regras isoladas” (César Fiuza in Por uma nova teoria do ilícito civil]. 297 Matheus Zuliani 3. DA CONDUTA HUMANA Para que se possa falar em responsabilização, mesmo que na esfera civil, é preciso que haja uma conduta humana voluntária, comissiva ou omissiva. Dessa afirmação se extrai que não se admite a responsabilização civil por conduta de animais. Esse comportamento humano precisa ter uma carga de consciência. Sem que a pessoa esteja consciente, não há como existir o dever de indenizar. Nesse sentido, o ato praticado pelo sonâmbulo é desprovido de consciência, e, por isso, não gera o dever de indenizar. Da mesma forma, além da consciência, é preciso que haja voluntariedade. Muitos doutrinadores citam o exemplo do doutrinador Italiano Giuseppe Bettiol, que escreveu sobre o direito penal: Pessoa está no museu apreciando uma obra de arte. Naquele momento um vaso em seu nariz se rompe e essa pessoa, instintivamente, espirra no quadro o sangue, causando dano. Isso não é uma conduta humana. Não há voluntariedade na resposta que o organismo deu ao nariz do agente. Nesse ponto é importante mencionar que o elemento da responsabilidade civil é a conduta humana. Não se fala em conduta ilícita, nesse primeiro momento. A razão é porque a ilicitude é vista no enfoque geral, e não apenas na conduta. Outro ponto é que, excepcionalmente, é possível que uma conduta lícita gere o dever de indenizar, como o estado de necessidade agressivo (CC, art. 188, II). 4. DA CULPA EM SENTIDO AMPLO A culpa lato sensu, também conhecida como culpa em sentido amplo ou genérica, engloba tanto dolo quanto a culpa em sentido estrito. Dolo é a violação intencional, ou seja, é a vontade e consciência de praticar uma conduta. No direito civil, o dolo tem o mesmo tratamento da culpa grave, respondendo o indivíduo pelos danos que causou em sua totalidade. A culpa em sentido estrito, apesar de existir o desrespeito a uma norma, não há a violação intencional desse dever. Portanto, na culpa há uma conduta voluntária, mas se chega a um resultado involuntário. Todavia, o resultado era previsível, razão pela qual houve uma violação aos deveres objetivos de cuidado. A doutrina fala em graus de culpa, divisão essa que nasceu diante da redação do art. 944 do Código Civil, permitindo-se, diante da gravidade, a redução equitativa da indenização. Tradicionalmente, divide-se a culpa, quanto à sua intensidade ou gravidade, em três graus: grave, leve e levíssima. Na culpa grave, afirma-se, o autor, embora não tenha agido com a intenção de causar o dano, comportou-se como se o tivesse querido, daí equiparar-se ao dolo. A culpa leve, por sua vez, corresponderia à falta de diligência média, que um homem normal empregaria em sua conduta. E a culpa levíssima, por fim, diria com a conduta que escaparia ao padrão médio, mas que 51 um diligentíssimo pater familias, especialmente cuidadoso, observaria . Também existe a divisão em modalidades de culpa. Desta feita, podemos dizer que a culpa em sentido estrito se traduz nos conceitos de negligência, imprudência e imperícia. 51 BANDEIRA, Paula Greco in A evolução do Conceito de Culpa e o artigo 944 do Código Civil - Revista da EMERJ, v. 11, nº 42, 2008. 298 Matheus Zuliani A negligência é a falta de cuidado pela omissão. É o sujeito que causa dano, porque o carro derrapa na pista, batendo no carro estacionado, eis que os pneus estavam carecas, ainda que estivesse em baixa velocidade. A imprudência é falta de cuidado somado a uma ação. É o agir sem tomar as cautelas necessárias. É o sujeito que emprega velocidade acima do permitido. Por fim, a imperícia é falta de habilidade, própria dos profissionais liberais. Ex.: médico que faz cirurgia sem ter habilitação para fazer cirurgia. A presença de uma dessas modalidades não exclui a outra. É possível que haja na mesma situação negligência e imprudência, como é o caso em que o sujeito corre a 200 km/h na avenida, chovendo e com pneus carecas. Pergunta-se: porque o art. 186 do Código Civil não fala explicitamente sobre a imperícia? A imperícia é a imprudência técnica, diante disso, o fato de o artigo não a ter mencionado não faz falta para fins de responsabilização. O Código Civil de 2002 aboliu a característica subjetivista que tinha o Código de Beviláqua. É claro que a responsabilidade baseada na culpa ainda existe, sendo ela a regra, inclusive. No entanto, a objetividade ganhou espaço. O Código Civil trouxe a responsabilidade por atos de terceiros, que será estudada em tópico próprio. No Código Civil de 1916, esse tipo de responsabilidade era baseada na culpa in eligendo, in vigilando e in custodiano. A culpa in eligendo era a culpa ao eleger, ou seja, a culpa do empregador em relação à conduta do empregado. A culpa in vigilando era a culpa daquele que tinha o dever de vigiar, como a conduta dos pais em relação aos filhos, do tutor e curador em relação aos pupilos e curatelados. Por fim, a culpa in custodiano se caracterizava pela ausência de atenção e cuidado em relação a coisa ou animal que se encontrasse sob a guarda do agente. Por último, ainda tratando do tema da culpa, existe a questão da compensação de culpa. Essa compensação de culpas é avaliada na fixação da indenização. O art. 945 do Código Civil dispõe que “se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”. O juiz aplica muito a compensação de culpa em casos de acidente de trânsito, onde há culpa de ambos os condutores. 5. DO NEXO DE CAUSALIDADE O nexo de causalidade é um elemento imaterial da responsabilidade civil (Aguiar Dias). É a relação de causa e efeito, entre a conduta culposa e o dano suportado. A professora Giselda Hironaka diz que o nexo de causalidade é como um fio com duas tomadas, uma em cada ponta. Uma liga à conduta e outra ao dano. A responsabilidade civil, ainda que objetiva, não existe se não houver relação de causalidade entre a conduta do agente e o dano experimentado pela vítima. Acerca do nexo de causalidade existem várias teorias para defini-lo. Dentre elas, as mais relevantes para o direito civil são a teoria das equivalências das condições, a teoria da causalidade adequada, e por fim, a teoria do dano direito e imediato. Pela teoria das equivalências das condições todos os fatos diretos ou indiretos geram a responsabilidade civil. É a teoria sine qua non. Assim, o fabricante da arma responde pelo homicídio que foi praticada com ela, e assim, por diante, até ao infinito. Essa teoria não foi adotada pelo sistema civil, pois amplia muito o nexo de causalidade. 299 Matheus Zuliani Pela teoria da causalidade adequada o fato relevante ao evento é o que gera a responsabilidade civil. Isto é, existe nexo de causalidade quando há fato relevante para causação do dano. Estaria prevista nos arts. 944 e 945 do Código Civil. Somente o fato relevante para o evento danoso gera a responsabilidade civil, devendo a indenização ser fixada de acordo com a contribuição causal. Essa teoria foi desenvolvida por um jurista alemão chamado Von Kries. Existe um enunciado da Jornada de Direito Civil que não exclui a aplicação de tal 52 teoria . No que tange a teoria do dano direito e imediato, somente devem ser reparados os danos que decorrem dos efeitos necessários da conduta do agente. Os efeitos necessários decorrentes daquela conduta são os que podem ser imputados àquele sujeito. É a ideia do art. 403 do Código Civil. Alguns doutrinadores entendem que é essa a teoria que se aplica. Agostinho Alvim, jurista responsável pelo livro do direito das obrigações, explica sobre a teoria: Dessa forma, para Agostinho Alvim, mesmo que remota, indireta ou mediata, uma condição é considerada causa necessária se o dano “a ela se filia necessariamente”, ou seja, se a condição for “causa única” do dano, se “opera(r) por si, dispensadas outras causas”. Em outras palavras, causa necessária é a que explica o dano: “Assim, é indenizável todo o dano que se filia a uma causa, ainda que remota, desde que ela lhe seja causa necessária, por não existir outra que explique o mesmo dano” (ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências, 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 372). 6. DAS EXCLUDENTES DO NEXO DE CAUSALIDADE As excludentes do nexo de causalidade são fatores que ceifam a ocorrência do nexo de causalidade, não deixando o elo entre a conduta culposa (em sentido amplo) e o dano se materializar. São eles a culpa exclusiva da vítima. A culpa exclusiva de terceiro e o caso fortuito e a força maior. Nos casos de culpa exclusiva da vítima ou culpa exclusiva de terceiro, responsabilidade subjetiva recai inteiramente sobre a vítima ou sobre o terceiro, de forma que causou o dano não será responsabilizado. Nessa senda, a vítima é a única e exclusivamente responsável pela ocorrência do dano. O mesmo raciocínio se aplica ao terceiro. Sobre a culpa de terceiro, mister se faz ressaltar um caso específico em que essa excludente não tem incidência. Trata-se do contrato de transporte de pessoas. O art. 735 do Código Civil diz que “a responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”. A respeito do caso fortuito ou da força maior, não há unanimidade sobre o conceito de caso fortuito ou força maior. Flávio Tartuce diferencia, estabelecendo que caso fortuito é um evento totalmente imprevisível, decorrente de ato humano ou evento natural, enquanto a força maior é um evento previsível, mas inevitável. Ex.: furacão. Sabe-se que virá, mas é inevitável. Pontes de Miranda entendia que os conceitos são sinônimos e querem dizer um evento não previsto pelas partes. Dispõe o art. 393 do Código Civil que: 52 Enunciado 47 da I Jornada de Direito Civil: “O art. 945 do novo Código Civil, que não encontra correspondente no Código Civil de 1916, não exclui a aplicação da teoria da causalidade adequada”. 300 Matheus Zuliani Art. 393: O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. Essas excludentes do nexo de causalidade devem ser analisadas caso a caso. É preciso verificar se naquele evento se está diante de um caso fortuito ou força maior, ou se decorre do risco do empreendimento, o chamado risco proveito, ou seja, se não há relação com a atividade do suposto causador do dano. Nessa hipótese não há exclusão do nexo de causalidade. Também são denominados de eventos internos (fortuito interno). Nesse sentido, o STJ editou a Súmula 479, que dispõe: “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”. Já o fortuito externo é aquele que não tem qualquer relação com a atividade desenvolvida ou risco do empreendimento. Dessa forma, podem ser consideradas com excludentes da responsabilidade (do nexo de causalidade). Esse tema de fortuito interno e fortuito externo gera muita polemica na jurisprudência. Nesse sentido, é importante acompanhar o que o STJ tem entendido a respeito do rompimento do nexo de causalidade, e por consequência, a quebra do dever de indenizar. Roubo a ônibus: havia divergência entre a 3ª e a 4ª turmas do STJ. Alguns diziam que a empresa podia evitar. Porém, como a empresa poderia fazê-lo? Colocando detector de metais? O STJ passou a entender, e consolidou o entendimento, de que o assalto a ônibus é um evento externo e se enquadra nos casos de caso fortuito e força maior, caso em que a empresa não responde (STJ - REsp 783.743/RJ). Roubo a banco: o Roubo no interior da instituição financeira se encaixa no risco do empreendimento. O banco tem um ambiente de risco, assim é seu dever oferecer segurança aos consumidores. Assalto a banco é evento interno, entra no risco do empreendimento, portanto, o banco tem responsabilidade STJ - REsp. 694.153/PE). Roubo em Shopping: o roubo dentro de shopping center é um caso bem divergente na jurisprudência. O cidadão que é vítima de roubo dentro do shopping deve ser indenizado, uma vez que a empresa deve providenciar segurança aos clientes, afinal, é esse o diferencial que eles vendem no cotejo com o comércio aberto. Segundo jurisprudência do STJ, o assalto a shopping é evento interno, portanto, a empresa responde (STJ - REsp. 582.047/RS). Ainda dentro do tema, existem questões que atenuam o nexo de causalidade, sem, contudo, excluí-lo. Nesse caso, há responsabilidade civil, contudo, com redução do quantum indenizatório. O principal fator atenuante é a culpa ou fato concorrente da vítima. Dispõe o art. 944 do Código Civil que “a indenização mede-se pela extensão do dano”. O parágrafo único complementa dizendo que “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”. Por fim, o art. 945 do Código Civil explica que “se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”. 301 Matheus Zuliani 7. DO DANO OU PREJUÍZO O dano ou prejuízo é a lesão causada ao patrimônio da pessoa. A lesão que mencionamos pode ser uma lesão material ou imaterial. O dano assume um papel fundamental em matéria de responsabilidade civil. O dano indenizável precisa ser certo, não podendo ser abstrato ou simplesmente hipotético. O “aborrecimento” não se indeniza. Isso porque ele caracterizaria um dano hipotético. A fronteira entre o aborrecimento e o dano é tênue, mas o aborrecimento não se indeniza. Antigamente somente se cogitava em danos materiais e danos morais. Com o passar do tempo e a evolução da sociedade, exigindo que o direito a acompanhe, foram surgindo outras modalidades de dano. 8. DO DANO MATERIAL O dano material é a lesão ao patrimônio material da vítima. Não somente, lesão ao bem corpóreo que ele possui. Nessa modalidade de dano, a regra é a necessidade de comprovação do dano, não se admitindo que o dano material seja presumido. Excepcionalmente, a jurisprudência tem permitido a presunção de dano material nos casos de compromisso de compra e venda de bem imóvel em construção. Quando o construtor atrasa a entrega das chaves para além do prazo de prorrogação de 180 dias, nasce para o promitente comprador, o direito de ser indenizado pelo dano material experimentado. Geralmente esse dano material é a compensação pelo fato de que a pessoa poderia ter alugado ou deixado o aluguel. Nesse caso, a jurisprudência entende que o dano material é presumido, ou seja, não precisa o promitente comprador demonstrar que tinha proposta de alugar o bem, ou então, que pagava aluguel durante a construção. O dano patrimonial pode ser classificado em danos emergentes (danos positivos) e lucros cessantes. O primeiro é o que efetivamente se perdeu com o dano. Ex.: houve um homicídio, situação na qual a família gastou com hospital, funeral, etc. A família tem o direito de ser reembolsado por estas despesas. Lucros cessantes (danos negativos), por sua vez, é aquilo que efetivamente se deixou de ganhar. Ex.: no caso do homicídio, é a prestação de alimentos indenizatórios, ou seja, é o valor que o sujeito estaria contribuindo para a sua família, mas que agora não pode mais. Existem lucros e rendas cessantes. O taxista, quando fica na oficina por conta de um dano experimentado, ficará sem trabalhar. Se o valor da reparação do carro foi 3 mil reais, isto será dano emergente. Todavia, durante o período que o sujeito ficou sem trabalhar ele não ganhou, devendo receber os danos negativos, ou seja, os lucros cessantes por aquilo que não recebeu durante o período. O pensionamento, nome que recebe a indenização de dano material que sofre a família ou a própria vítima, em razão da perda do trabalho, também se indeniza. Para se chegar ao valor da indenização, primeiro se chega à expectativa de vida da vítima. Para se chegar a esse dado, utiliza-se a informação do IBGE. Após isso, o STJ entende que a indenização deve levar em conta somente a fração de 2/3 do salário da vítima. Isso porque se presume que 1/3 ela gasta com ela mesma. Portanto, 2/3 irão para os dependentes da vítima, mais FGTS, décimo terceiro, férias, horas extras eventuais, até o limite da idade de expectativa de vida provável da vítima. Supondo que o acidente tenha atingido uma vítima que já tinha ultrapassado este limite de idade de vida provável, trazido pelo IBGE. Ex.: atropelaram o senhor de 80 anos na 302 Matheus Zuliani faixa de pedestre. Nesse caso, faz-se um cálculo de sobrevida, de acordo com as condições gerais daquele sujeito. Não somente, esse cálculo poderá variar de 2 a 5 anos, ou até maior. Questiona-se: e se a vítima era autônomo e não tinha meios de comprovar os ganhos? Nesse caso o STJ entende que deve ser presumido o ganho de um salário mínimo vigente. Em alguns casos, o STJ tem quebrado esta regra de que a indenização deverá ser fixada com base na vida provável da vítima falecida. Exemplo disso ocorre nos casos em que a vítima é o filho da família. Ex.: filho teria 17 anos quando faleceu. Nesse caso, ele contribuiria para família até certa idade. Nos casos em que falece o pai da família, o qual tinha 54 anos e o filho tinha 17 anos. Nesse caso, o filho não vai ficar recebendo do pai até o fim da vida provável, mas apenas até os 24 ou 25 anos, que é o limite da relação de dependência. Existe, ainda, a hipótese em que o falecimento é de filho menor impúbere. Neste caso, a Súmula 491 do STF estabelece que é indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado53. O cálculo dessa indenização é feito com base num salário mínimo, contabilizando 2/3 no período em que o menor teria entre 14 a 24 anos, supondo que ajudaria a família. No entanto, existem julgados que defendem alimentos indenizatórios aos pais, inclusive após este período. Nessa situação, em que o indivíduo atinge 24 ou 25 anos, presume-se que ele teria casado, hipótese que passará a contribuir com 1/3 de seus rendimentos. Flávio Tartuce critica essa visão do STJ, alertando que isto não é a realidade brasileira. Para ele, a pessoa com 25 anos, como regra geral, não contribui com mais nada para sua família. Segundo o STJ, na responsabilidade civil extracontratual, se houver a fixação de pensionamento mensal, os juros moratórios deverão ser contabilizados a partir do vencimento de cada prestação, e não da data do evento danoso ou da citação. Não se aplica ao caso a Súmula 54 do STJ, que somente tem incidência para condenações que são fixadas em uma única parcela. Se a condenação for por responsabilidade extracontratual, mas o juiz fixar pensão mensal, neste caso, sobre as parcelas já vencidas incidirão juros de mora a contar da data em que venceu cada prestação. Sobre as parcelas vincendas, em princípio não haverá juros de mora, a não ser que o devedor atrase o pagamento, situação na qual os juros irão incidir sobre a data do respectivo vencimento. Esse tema foi objeto do informativo 580 do STJ. O dano moral é a lesão ao direito de personalidade da pessoa. A angústia, o sofrimento ou a dor são efeitos do dano moral. Esses eram os requisitos imprescindíveis para a existência do dano moral. No entanto, a jurisprudência foi banalizando o dano moral, permitindo-se que situações em que não houve angustia, sofrimento ou dor gerassem indenização. Isso porque o dano moral é configurado a lesão de direitos da personalidade. Tanto é que a indenização por danos morais, quando começou a ser aplicada no Brasil, tinha a finalidade de amenizar a dor sofrida com a pecúnia recebida, sabendo que o dinheiro nunca iria fazer a dor passar, mas sim, ajudar a esquecê-la, proporcionando momentos de prazer. Se estiver presente o sentimento negativo, poderá ou não gerar dano moral. 53 Súmula 491 do STF: “É indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado”. 303 Matheus Zuliani Demonstrada a ocorrência da ofensa, não é preciso comprovar que essa ofensa gerou dor, angústia ou sofrimento para configuração do dano moral. Diante disso, em algumas situações entende-se que o dano moral é presumido. Esse dano moral presumido recebe o nome de dano moral in re ipsa. No dano moral não existe uma finalidade de acréscimo patrimonial, tanto é que não incide imposto de renda sobre esta indenização. Esse entendimento, inclusive, é sumulado pelo STJ.54 Alguns doutrinadores defendem o dano moral e dano moral direto e indireto. No dano moral direto a lesão atinge a própria pessoal, diretamente. O sujeito inscreveu o nome do lesado nos cadastros de inadimplentes. Noutro giro, no dano moral indireto há um dano em ricochete, atingindo, também, uma terceira pessoa. Isto é, o dano moral que atinge a pessoa de forma reflexa. Por exemplo, por conta da atitude imprudente alguém é morto. Há um dano moral à família do lesado. Veja, um terceiro experimentou o dano moral por um fato ocasionado a outra pessoa. Ex.: uso indevido da imagem do morto ou lesão à honra do morto. É preciso tecer comentários acerca do arbitramento do dano moral. Nota-se que não há, no nosso ordenamento jurídico, o tabelamento do dano moral. Se a indenização por dano moral fosse tabelada isso facilitaria o ofensor a prever a sua conduta e colocar na balança os pós e os contras da prática de um ilícito. Nesse contexto, ficou a cargo do Magistrado arbitrar a indenização quando ocorrer ofensa ao direito de personalidade. Acerca da fixação da indenização o Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Ênio Santarelli Zuliani, pai do autor que vos escreve, ensina: O arbitramento é um ato de consciência jurídica e o juiz deve mentalizar, em primeiro lugar, a situação da vítima (a extensão do dano e sua repercussão na esfera íntima do indivíduo e no aspecto social). Esse é um exercício que se cumpre examinando as condições pessoais do lesado, sua capacidade de autodeterminação diante da gravidade do fato e do trauma que um ser humano dotado de personalidade mediana (entre o fraco e o forte) suporta, bem como a perspectiva de superação com o poder do dinheiro a ser pago (ZULIANI, Ênio Santarelli in Direitos in Particularidades do Arbitramento do Dano Moral Na Responsabilidade Civil do Estado – Responsabilidade Civil do Estado, Desafios Contemporâneos – Editora QuartierLatin). O STJ55 também adotou um critério bifásico de arbitramento do dano moral. Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em grupo de precedentes jurisprudenciais que apreciaram casos semelhantes. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias do caso, para fixação definitiva do valor da indenização, atendendo à determinação legal de arbitramento equitativo pelo juiz. Sobre a natureza jurídica da indenização por danos morais, existem três correntes que tentam defini-la. A primeira corrente entende que a indenização de danos morais tem a natureza meramente reparatória. Está superada. A segunda, por sua vez, defende que a indenização por danos morais tem caráter punitivo ou disciplinador (punitive damages). A ideia é punir alguém pelo fato de ter violado um direito da personalidade. Essa teoria não foi adotada, embora existam alguns julgados que a mencionem. Veja, os EUA adotam essa teoria. Em um caso de 1990 (BMW vs Gore) a BMW foi condenada, em última instância, ao pagamento de uma 54 55 Súmula 498 do STJ: “Não incide imposto de renda sobre a indenização por danos morais”. STJ - REsp nº 1152541 / RS e REsp nº 710879 / MG. 304 Matheus Zuliani indenização por 2 milhões de Dólares pelo fato de vender veículos zero quilômetros com uma repintagem parcial56. No Brasil, o TJSP reduziu a indenização por danos morais e materiais contra a BMW pela morte do Cantor João Paulo (aquele que fazia dupla com Daniel), para R$ 300 mil reais, por um suposto defeito na roda. O STJ ainda não analisou o caso, embora o TJSP tenha reconhecido uma culpa parcial do cantor na condução do veículo. Veja a gravidade dos fatos e o valor da indenização. Conclui-se que o Brasil não adota essa teoria. Por fim, a terceira defende que a indenização por danos morais tem caráter compensatório, caráter reparatório, mas também tem um caráter pedagógico, disciplinador, visando coibir novas condutas. Não pode ser ínfima a indenização a fim de fomentar a prática ilícita pelo ofensor. Esta é a corrente que prevalece. Por fim, para concluir a indenização por danos morais, segue alguns casos que o STJ tem enfrentado. A presença de corpo estranho dentro de embalagens gera o dever de indenizar? A presença de corpos estranhos encontrados dentro das embalagens de alimentos gera ao consumidor o direito à indenização. A concessão de danos materiais é pacífica na doutrina e na jurisprudência, tendo o consumidor o direito de ser reparado pelo valor pago no produto viciado. A questão ganha certa controvérsia no que concerne à concessão de danos morais. A jurisprudência majoritária tem concedido indenização por danos morais quando o consumidor se depara com corpos totalmente estranhos ao alimento que ali deveria constar. O Colendo Superior Tribunal de Justiça concedeu indenização por danos morais à consumidora que encontrou um preservativo masculino dento do frasco de molho de tomate57. Em outro caso a mesma corte superior concedeu indenização ao consumidor que se deparou com uma barata dentro da lata de leite condensado58. O STJ tinha posição de que a indenização por danos morais apenas tinha sentido se o alimento era ingerido pelo consumidor. Agora, o STJ fez a revisão de sua posição, adotando a posição que já era firmada pela Ministra Nancy Andrighi, ou seja, de que a compra de produto alimentício que contenha corpo estranho no interior na embalagem, ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo, expõe a saúde do consumidor a risco e, como consequência, dá direito à compensação por dano moral, em 56 “Em 1.990, Gore comprou um automóvel novo numa Concessionária BMW, na cidade de Montgomery, Alabama. Nove meses após a compra, detectou que o veículo passara por uma repintagem parcial antes de ser vendido como novo. Revoltado com a descoberta Gore demandou judicialmente contra a BMW, alegando falha no dever de informação. A montadora BMW admitiu tal prática em 1.000 (um mil) veículos para revenda nas concessionárias da marca sem informações aos distribuidores. Na sua demanda, Gore conseguiu provar uma desvalorização inicial do veículo em US$ 4.000 dólares com a repintura e foi recompensado nesse montante pela não informação da BMW. E, a montadora alegou o dano presumido que fora causado por chuva ácida durante o transporte do veículo da Alemanha para os Estados Unidos. Mas, a demanda de Gore incluía um pedido de indenização punitiva de US$ 4 milhões de dólares (valor da desvalorização unitária multiplicado pelo número de veículos repintados), que foi acolhido pelo júri do Tribunal de Birmingham, restando na condenação da BMW nesse valor, a título de punitive damages pela política de não informação e omissão fraudulenta. Inconformada, a BMW apelou perante a Suprema Corte do Estado do Alabama, pleiteando a modificação da decisão quanto à imposição da indenização punitiva. Esta corte reduziu a condenação para US$ 2 milhões, por entender que caberia deliberar somente pelos veículos vendidos no Estado de Alabama. Novo recurso interposto na Suprema Corte dos Estados Unidos, que para resolver a questão e ratificar entendimento a ser aplicado a futuros casos de punitive damages estabeleceu três parâmetros gerais (incorporados na Due Process Clause of the Fourteenth Amendment to the United States Consitutition) para aferição do quantum indenizatório: o grau de repreensão da conduta, a relação entre os danos compensatórios e os punitivos e, por fim, a magnitude de sanções civis e criminais por condutas similares (que na época eram de US$ 2 mil dólares). Ao final, a condenação reformada ficou em US$ 50 mil dólares, correspondente ao valor de um novo veículo. Tal decisão confirmou um “enorme exagero” (gross excessiveness) na condenação e pacificou entendimento sobre a matéria, constituindo um relevante precedente judicial, ao admitir a limitação do valor das punitive damages a bases constitucionais. (Moraes, op. Cit., p. 240-245)”. SAMPAIO, Carla A. B. Aplicação da Teoria dos Punitive Damages às Relações Trabalhistas. Monografia de Graduação em Direito. Faculdade Baiana de Direito, Salvador/BA, 2016. 57 STJ - REsp 1.317.611/RS – Relatora. Ministra. Nancy Andrighi – julgado em 12/6/2012 – informativo n. 499. 58 STJ – REsp 1.239.060/MG – Relatora Ministra - Nancy Andrighi - publicado no DJe de 10/5/2011. 305 Matheus Zuliani virtude da ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, resultante do princípio da dignidade da pessoa humana59. Questiona-se: a espera na fila do banco gera indenização por dano moral? O ordenamento jurídico vigente autoriza que se legisle acerca do tempo máximo permitido ao consumidor para aguardar em fila de atendimento de instituição financeira, sob pena de ultrapassado esse tempo o banco indenizar o consumidor lesado. Entretanto, a jurisprudência, de forma acertada, concluiu que não basta apenas ultrapassar o tempo máximo de limite imposto pela legislação. Deve-se, todavia, existir algum fato atrelado à demora no atendimento que possa causar ao consumidor lesão ao seu direito de personalidade, como colocar em risco à saúde do consumidor. Apenas a espera por atendimento bancário, por tempo superior ao previsto na legislação municipal ou estadual, não gera indenização por dano moral, figurando, apenas, um desconforto60. No entendimento do STJ, a longa espera em fila de banco é irregularidade administrativa. 8.1 TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR A doutrina, há alguns anos, vem defendendo a possibilidade de responsabilidade civil pela perda injusta e intolerável do tempo útil. A decisão na Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, que se evidencia quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar as suas competências – de uma atividade necessária ou por ele preferida – para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade indesejado, de natureza 61 irrecuperável . A pessoa jurídica sofre dano moral? O tema está pacificado na jurisprudência e no código civil caminha neste sentido ao estipular, no art. 52, que se aplica à pessoa jurídica, no que couber, os direitos da personalidade. Portanto, o Código Civil vai reconhecer a existência de direitos da personalidade em favor da pessoa jurídica. Se ela tem direitos da personalidade, e se o dano moral é violação aos direitos da personalidade, quer dizer que, se a pessoa jurídica sofrer violação em um de seus direitos da personalidade, haverá sofrido dano moral, cabível indenização neste sentido. Normalmente atinge a honra objetiva da pessoa jurídica. Ex.: inscrição indevida em cadastro de inadimplentes da pessoa jurídica. São alguns direitos da personalidade da pessoa jurídica: direito ao nome, direito à honra objetiva, direito à imagem, etc. Inclusive, o STJ editou a súmula 227 que diz “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. O STJ também decidiu a respeito do cabimento ou não de indenização por danos morais em benefício de pessoa jurídica de direito público. Ocorre que o STJ entendeu que não são cabíveis. O fundamento é a origem do instituto do cabimento da indenização por danos morais. Como se sabe, o dano moral busca proteger os direitos fundamentais. E a origem dos 59 STJ – REsp 1768009 – julgado em maio de 2019 – Ministra Nancy Andrghi. STJ - REsp 1.647.452. 61 STJ REsp 1737412/SE - Min. Nancy Andrighi. 60 306 Matheus Zuliani danos fundamentais está ligada à necessidade de se proteger o cidadão do Estado. Por isso, tanto a doutrina como a jurisprudência somente irão reconhecer às pessoas jurídicas de direito público direitos fundamentais de caráter processual ou que assegurem a ela a sua autonomia. Veja, são direitos fundamentais que asseguram proteção ao Estado contra o próprio Estado. Para o STJ, não cabe ao Estado alegar que um indivíduo violou direito da personalidade do Estado e, portanto, deve indenizá-lo moralmente, pela violação da imagem. 9. DANO ESTÉTICO O dano estético não é o mesmo que dano moral. Hoje, doutrina e jurisprudência separam dano estético de dano moral, mas ambos são danos de caráter extrapatrimonial. O C. Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 387, admitindo a cumulação dos pedidos de indenização por danos morais e por danos estéticos, in verbis: “É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral”. O dano estético consiste na lesão direcionada a parte física do corpo humano, transformando a parte bela em algo repugnante, repulsivo. Para Teresa Ancona Lopes, professora da USP, quando se fala em dano estético “estamos querendo significar a lesão à beleza física, ou seja, á harmonia das formas externas de alguém”. (LOPEZ, Teresa Ancona. O Dano Estético – São Paulo: RT, 1980). Estes danos estão presentes quando a pessoa tem uma ferida, uma cicatriz, um corte na pele, quando sofre uma lesão ou a perda de um órgão, podendo ser inclusive interno, desde que seja visível. A imputação também pode ser dano estético. O dano estético é presumido, pois está exteriorizada a lesão (in re ipsa). Portanto, cabe ao Magistrado analisar a lesão. Uma vez constatada o dano moral é presumido. 10. DANO MORAL COLETIVO Dano moral coletivo é o dano que atinge ao mesmo tempo vários direitos da personalidade de pessoas uma determinada categoria jurídica. Os danos morais coletivos não têm caráter difuso. O dano moral coletivo tem previsão no Art. 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor e art. 1º, IV, Lei nº 7.347/85, in verbis: Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos; Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (...) IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. Há uma diferença entre interesse difuso e coletivo. Difuso é o que é de todos e não é de ninguém, ou seja, que pertence a coletividade. Coletivo, por sua vez, é aquilo que pertence a uma determinada categoria jurídica. 307 Matheus Zuliani O dano moral é in rei psa, ou seja, presumido. No entanto, assim atestou o STJ: O dano moral coletivo se dá in rei psa, contudo, sua configuração somente ocorrerá quando a conduta antijurídica afetar, intoleravelmente, os valores e interesses coletivos fundamentais, mediante conduta maculada de grave lesão, para que o instituto não seja tratado de forma trivial, notadamente em decorrência da sua 62 repercussão social . Nesse mesmo julgado acima, o STJ reconheceu o dano moral coletivo por abuso do direito em razão de ter a emissora de televisão exibido filme fora do horário recomendado pelo órgão competente, já que verificada a conduta que afronte gravemente os valores e interesses coletivos fundamentais (Informativo de jurisprudência n. 663 de fevereiro de 2020). O dano moral difuso ou coletivo só pode ser pleiteado por meio de ação civil pública. Esse é o mecanismo para pleitear dano moral difuso e coletivo. Por fim, o valor da condenação a título de dano moral coletivo vai para um Fundo previsto no art. 13 da LACP. É um fundo para recompor o bem jurídico lesado. 11. DANOS SOCIAIS Antônio Junqueira, professor da USP, propõe uma nova modalidade de dano, denominado dano social. Danos sociais são lesões à sociedade, que atingem à qualidade de vida da sociedade, tanto por conta do seu rebaixamento patrimônio moral, principalmente no tocante à segurança, quanto por diminuição da qualidade de vida. Esse rebaixamento pode ter repercussão material e também repercussão moral. O dano social decorre de uma conduta socialmente reprovável. São danos difusos, envolvendo direitos difusos, sendo as vítimas indeterminadas e indetermináveis. Por conta disso, a indenização por danos sociais também está prevista no art. 6º, VI do Código de Defesa do Consumidor. 12. DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE A teoria da perda de uma chance ocorre quando a pessoa vê frustrada uma expectativa que ela tinha e que, dentro da lógica do razoável, ela teria, caso as coisas tivessem seguido o seu curso normal. É a perda da chance séria e real que justifica a indenização. Essa chance de vitória deve ser séria e real. Essa teoria foi importada da França (perte d’une chance). O caso mais emblemático de aplicação a teoria da perda de uma chance foi no julgamento de um caso envolvendo o programa famoso de uma emissora de televisão denominado de “Show do Milhão” (REsp. 788.459, BA). Não obstante esse caso, essa mesma teoria tem muita incidência em casos de responsabilidade civil por erro médico e do advogado. Nesse tema de responsabilidade civil do advogado escreveu o Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Ênio Santarelli Zuliani: Perda de uma chance é uma expressão feliz que simboliza o critério de liquidação do dano provocado pela conduta culposa do advogado. Quando o advogado perde prazo, não promove a ação, celebra acordos pífios, o cliente, na verdade, perdeu a 62 STJ - REsp 1840463 / SP – julgado em 19/11/2019. 308 Matheus Zuliani oportunidade de obter, no Judiciário, o reconhecimento e a satisfação integral ou completa de seus direitos (art. 5º, XXXV, da CF). Não perdeu uma causa certa; perdeu um jogo sem que lhe permitisse disputá-lo, e essa incerteza cria um fato danoso. Portanto, na ação de responsabilidade ajuizada por esse prejuízo provocado pelo profissional do direito, o juiz deverá, em caso de reconhecer que realmente ocorreu a perda dessa chance, criar um segundo raciocínio dentro da sentença condenatória, ou seja, auscultar a probabilidade ou o grau de perspectiva favorável dessa chance. Resulta que, em se confirmando que a ação não examinada (por erro do advogado) era fadada ao insucesso, se fosse conhecida e julgada, o advogado, mesmo errando no antecedente, não responde pela consequência. Isso porque equivale a afirmar que a obrigação, mesmo mal desempenhada, terminou produzindo, por vias oblíquas, o único resultado que dela se esperava, ou seja, absolutamente nada. No entanto, concorrendo um mínimo de probabilidade de êxito (jurisprudência favorável ao direito do cliente, embora não uniformizada), o juiz deverá considerar essa possibilidade, dentro de critério jurídico razoável, e, 63 com isso, fixar o quantum (art. 944, do CC) . Sobre a teoria da perda de uma chance, nos termos da doutrina mais conceituada, sua natureza é de direito material especial, estando entre o dano emergente e o lucro cessante. Nesse sentido é a posição do STJ quando do julgamento do REsp Nº 1.757.936 – SP, que acolheu o pedido de indenização pela perda de uma chance de um participante do programa Amazônia – reality show, exibido pela TV Record em 2012. Não existe critério determinado na lei para o arbitramento dessa indenização. No entanto, sabe-se que o valor da indenização será sempre inferior ao da vantagem perdida, pois caso fosse, estar-se-ia indenizando o próprio dano, que não é o propósito da indenização. 13. DANO BUMERANGUE Consiste no dano bumerangue aquele causado pela própria vítima em resposta à ofensa que sofreu. Alguém ofende a minha honra e, em troca, eu também ofendo a dela. Nesse caso, pode haver compensação de culpas e pode o juiz determinar que ninguém irá indenizar ninguém (CC, art. 945). 14. DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO DE TERCEIRO A responsabilidade civil por ato de terceiro está prevista nos artigos 932 e 933, ambos do Código Civil. É importante mencionar que as pessoas que são responsáveis respondem objetivamente, desde que comprovada a culpa das pessoas por quem eles respondem (CC, art. 933). Por isso que Álvaro Villaça de Azevedo fala em responsabilidade objetiva impura. No inciso I do art. 932 temos a responsabilidade civil dos os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia. Verifica-se pela redação do Código Civil que o filho menor deve estar sob a autoridade de um dos pais e em sua companhia. Os pais têm responsabilidade objetiva pelo ato culposo do filho. Assim, não precisa provar a culpa dos primeiros, mas precisa demonstrar a dos segundos. 63 ZULIANI, Ênio Santarelli in Responsabilidade Civil do Advogado apud James Eduardo de Oliveira – Código Civil Comentado e Anotado – Doutrina e Jurisprudência – 2ª Edição – Editora Forense 309 Matheus Zuliani No inciso II art. 932 há a responsabilidade do tutor e do curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições. Quando diz “nas mesmas condições”, refere-se ao “sob sua autoridade e em sua companhia” do inciso antecedente. Nesse caso também há responsabilidade objetiva impura, ou seja, comprovada a culpa do tutelado ou do curatelado, tem a responsabilidade objetiva do tutor e do curador. O inciso III, por sua vez, elenca a responsabilidade do empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele. Sobre essa responsabilidade, entende-se que não há necessidade de relação de emprego, bastando a relação de pressuposição, baseada na confiança. Desta forma, a jurisprudência tem dado uma interpretação ampliativa a essa relação de confiança. Pense na hipótese do sujeito que empresta seu carro a outrem. Nota-se que essa conduta configura um contrato de comodato. Se o comodatário atropelar alguém de forma culposa, o comodante será responsabilizado com fundamento nesse inciso do art. 932 do Código Civil. Outro caso é o da responsabilidade objetiva do hospital pelo ato culposo praticado pelo médico integrante do seu corpo clínico. Comprovada a culpa do médico, o hospital responde. Existe, inclusive, um enunciado da Jornada de Direito Civil nesse sentido64. A uma jurisprudência do STJ que entende que no caso de erro médico, para se apurar a responsabilidade do hospital, sempre haverá a necessidade de discutir culpa, sob pena de transferir uma indevida responsabilidade objetiva para a hipótese de erro médico, o que não se admite. O inciso IV diz que responde os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos. São os donos de hotéis e afins, bem como estabelecimentos de ensino. Desta forma, se o filho menor não estiver na companhia dos pais, mas sob os cuidados da escola, tendo ocorrido a culpa do menor em um evento que gere a responsabilidade civil, não serão os pais que responderão, mas sim, a escola, com fundamento nesse inciso. A responsabilidade por bullying tem previsão nesse inciso. O bullying é o ato de valentia praticado em ambiente escolar para causar situação vexatória em outro aluno. Se o bullying for praticado na escola, aplica-se o art. 932, IV, Código Civil, respondendo o estabelecimento de ensino, se for privado, com a necessidade de prova da culpa do aluno bolinador. Também é possível a incidência do Código de Defesa do Consumidor em evidente diálogo das fontes. Se for escola pública responde o Estado com base no art. 37, § 6º, Constituição Federal. Porém, se o bullying for praticado fora da escola (no caminho, por exemplo), quem responde são os pais, pelo art. 932, I, Código Civil. Nesse sentido é a jurisprudência desse e. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Confira: A omissão de estabelecimento de ensino em adotar medidas cabíveis para fiscalizar, apurar e coibir conduta reiterada de ofensas e agressões a aluno caracteriza falha na prestação do serviço e enseja dano moral indenizável em razão dos consequentes transtornos físicos e psíquicos ocasionados à vítima (TJDFT Acórdão n. 946381, Relatora Designada Desª. FÁTIMA RAFAEL, 3ª Turma Cível, Data de Julgamento: 1º/6/2016, Publicado no DJe: 10/6/2016). 64 Enunciado 191 da III Jornada de Direito Civil: “A instituição hospitalar privada responde, na forma do art. 932, III, do Código Civil, pelos atos culposos praticados por médicos integrantes de seu corpo clínico”. 310 Matheus Zuliani Por fim, o inciso V diz que são responsáveis os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia. O dispositivo diz uma regra clara, se houve proveito do crime, certamente haverá a responsabilização até a quantia recebida. Conjugado com o tema da responsabilidade civil por ato de terceiro, existe a questão do direito de regresso. Nesse sentido, dispõe o art. 934 do Código Civil que diz: “Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz”. A exceção é a ausência do regresso do ascendente contra o descendente incapaz. Todavia, poderá providenciar o que se chama de adiantamento de legítima, como se nota do art. 2.010 do Código Civil. O adiantamento da legítima é a possibilidade de ser descontado na herança um gasto extraordinário que o pai teve com o filho, por meio da colação. Por fim, o Código Civil trata da responsabilidade solidária dos causadores do dano na hipótese geral e também na hipótese da responsabilidade por ato de terceiro. Dispõe o 942 que “os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação”. Complementa o parágrafo único que são solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas designadas no art. 932 do Código Civil. 15. DA RESPONSABILIDADE DO INCAPAZ O Código Civil, no art. 928, trata da responsabilidade civil do incapaz. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. A indenização, nesse caso, deverá ser equitativa e não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem. Assim, a doutrina diz que a responsabilidade do menor é subsidiária e mitigada. Subsidiária porque ele só vai responder seu os pais não puderem responder. E mitigada por que será fixada de forma equitativa, não respondendo ao princípio da reparação integral do dano. Isso porque deverá respeitar, com isso, a tutela do patrimônio mínimo do incapaz. 16. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO DONO OU DETENTOR DE ANIMAIS Dispõe o art. 936 do Código Civil que o dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior. Não havendo culpa exclusiva da vítima ou força maior, haverá uma causa excludente do nexo de causalidade. Na verdade, a responsabilidade civil do dono ou detentor do animal é objetiva. Não se fala mais em culpa in custodiendo. A lei não prevê mais a excludente do “máximo cuidado na guarda”, que trazia a ideia de culpa presumida (Sérgio Cavalhieri Filho). Pelo CC/16, se o dono do animal provasse que tivesse tomado o máximo cuidado na guarda, ele não respondia. Se provar hoje que teve esse máximo cuidado na guarda, ele responde. Hoje, para não responder, deve-se provar culpa exclusiva da vítima ou força maior. A jurisprudência tem aplicado esse dispositivo ao lado do Código de Defesa do Consumidor, em diálogo das fontes. O STJ, no caso do menor que foi morto por leões durante 311 Matheus Zuliani espetáculo de circo instalado na área contígua a shopping center, decidiu aplicar tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor65. É possível reconhecer culpa concorrente da vítima para atenuar a responsabilidade do dono ou detentor do animal. Isso seria uma calibração do nexo de causalidade. 17. RESPONSABILIDADE CIVIL DO DONO DO PRÉDIO OU CONSTRUÇÃO POR SUA RUÍNA O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta. É o que dispõe o art. 937 do Código Civil. Essa é uma primeira hipótese de responsabilidade civil pelo fato da coisa. Neste caso, o dono da construção responde objetivamente por dois motivos. O primeiro é pelo risco criado ou pelo risco proveito. A segunda é pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor, quando for o caso. Essas situações, na imensa maioria dos casos, estarão inseridas dentro da responsabilidade objetiva do Código de Defesa do Consumidor. Isso porque o morador do prédio será considerado como consumidor direto (quem comprou o apartamento) e a vítima do evento serão consideradas consumidores por equiparação (bystander). Perceba que não é defenestração, ou seja, não se trata de coisas jogadas da janela. Aqui é o prédio em ruínas. O Código exige que essa necessidade de reparos seja manifesta. Por falar em objetos que caem da janela, dispõe o art. 938 que “aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido”. Fenestra é janela. Defenestrar é jogar pela janela. Trata-se de mais um caso de responsabilidade civil objetiva em razão da coisa. Fala-se também em responsabilidade civil por effusis et dejectis (effusis é líquido e dejectis é sólido). O responsável pela conduta é aquele que habitar o prédio. Nesse sentido, ainda que o imóvel esteja alugado, a responsabilidade é do locatário. A responsabilidade é objetiva diante de um risco criado. E se a coisa for lançada de um condomínio edilício, quem responde caso não se consiga identificar o responsável? O entendimento majoritário é no sentido de que responderá todo o condomínio, assegurado o direito de regresso contra o culpado. Nesse sentido, REsp. 64682/RJ. Venosa chama isso de “pulverização de responsabilidade” (responde todo o condomínio). 18. DA CLÁUSULA DE NÃO DE INDENIZAR A cláusula de não indenizar é uma prática muito comum aposta em contratos de adesão, ou então, fixadas em locais de prestação de serviços no qual o contrato é verbal (placa dentro do estacionamento que diz que não se responsabiliza por objetos deixados dentro do veículo). 65 REsp 1.100.571-PE, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 7/4/2011 - Informativo de jurisprudência n. 468 312 Matheus Zuliani A cláusula de não indenizar é uma previsão que exclui totalmente a responsabilidade da parte. Essa cláusula é conhecida como cláusula de irresponsabilidade. A aplicação dessa cláusula de não indenizar é uma aplicação muito comedida e restrita. A cláusula de não indenizar só vale para os casos de responsabilidade contratual, não havendo falar em casos de responsabilidade extracontratual. A cláusula de não indenizar não incide nos casos em que houver conduta dolosa, ou criminosa, da parte. Ex.: diante de um contrato que tem cláusula de não indenizar e a outra parte atua dolosa, ou criminosamente, para causar o dano. Neste caso, a cláusula de não indenizar não será válida. É nula a cláusula de não indenizar quando inserida em contrato de consumo. É nula a cláusula de não indenizar nos contratos de adesão. É nula a cláusula de não indenizar nos contratos de transporte. Também não tem validade e nem eficácia a cláusula de não indenizar nos contratos de guarda. Ex.: contratos de estacionamento. É possível que haja causa excludente do nexo de causalidade nos casos de contrato de guarda. Ex.: roubo dentro do estacionamento. Nesse caso, a empresa de estacionamento não responde por assalto a mão armada ocorrida dentro do estacionamento. 313 CAPÍTULO 8 – DIREITO DAS FAMÍLIAS 1. DIREITO DE FAMÍLIA 1.1. INTRODUÇÃO AO DIREITO DE FAMÍLIA A família, ao longo da história, teve diferentes formatos e interpretações. É um instituto em constante evolução e isso decorre da própria evolução da sociedade. Compreender a família impõe compreender o próprio contexto histórico em que inserida. Assim é que o estudo do Direito de Família exige atualidade. Esse estudo abrange conteúdos como: casamento, união estável, relações de parentesco, filiação, alimentos, bens de família, tutela, curatela e guarda. É um ramo do Direito Civil que está em constante evolução e isso ocorre em razão das rápidas mudanças sociais, relacionadas ao modo de agir e de pensar das pessoas, que muito interferem particularmente nesse campo do direito, de modo que, não raras vezes, a legislação não consegue acompanhá-las, tornando necessária a solução dos casos concretos a partir da aplicação de princípios e de outras formas de interpretação e integração do ordenamento jurídico. Daí o necessário estudo, não só da legislação pertinente, como também da jurisprudência atualizada e dos princípios pertinentes, que devem ser previamente compreendidos para o aprofundamento do Direito de Família. 1.2. PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA Para quem atua da área de Direito de Família, ou mesmo para preparação para concursos públicos, a exata compreensão dos princípios que a seguir serão expostos ajudará na solução de questões para as quais, numa análise inicial, parece não haver regra aplicável. Conhecê-los e, sobretudo, compreendê-los fará a diferença na hora da prova e na prática jurídica, para solução de casos concretos. É importante, então, traçar as diferenças entre princípios e regras, o que, ao final, evidenciará a importância dos princípios até para correta compreensão e aplicação da regra. Sobre o tema, Maria Berenice Dias explica que o ordenamento jurídico positivo compõe-se de princípios e regras cuja diferença não é apenas de grau de importância. Acima das regras legais, existem princípios que incorporam as exigências de justiça e de valores éticos que constituem o suporte axiológico, conferindo coerência interna e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. A autora continua, acrescentando que os princípios são normas jurídicas que se distinguem das regras, não só porque têm alto grau de generalidade, mas também por serem mandatos de otimização. Possuem um colorido axiológico mais acentuado do que as regras, desvelando mais nitidamente os valores jurídicos e políticos que condensam. Devem ter conteúdo de validade universal. Consagram valores generalizantes e servem para balizar todas as regras, as quais não podem afrontar as diretrizes contidas nos princípios (DIAS, 2020, p. 58). 314 Como se extrai das palavras de Maria Berenice, os princípios têm esse grau generalizante, de modo que sua violação é mais ampla e, por conseguinte, mais grave que a violação de uma regra. As regras, por sua vez, e como também ensina Maria Berenice, são normas que incidem sob a forma “tudo ou nada”, o que não sucede com os princípios. Quando, aparentemente, duas regras incidem sobre o mesmo fato, é aplicada uma ou outra, segundo critérios hierárquico, cronológico ou de especialidade. Aplica-se uma regra e considera-se a outra inválida. As regras podem ser cumpridas ou não, contêm determinações de âmbito fático e jurídico com baixa densidade de generalização. Quando são admitidas exceções, não se está frente a um princípio, mas de uma regra concorrente ou subordinada à outra que lhe é incompatível ou contrária (DIAS, 2020, p. 59). Vê-se, a partir desses ensinamentos, o caráter conformador dos princípios e a sua evidente importância na exata compreensão e aplicação, em especial, do Direito de Família. Destaque-se, preliminarmente, que o estudo dos princípios que a seguir serão expostos deve sempre se guiar pela consideração do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado como fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III, da CF), que, assim, fundamenta todas as relações entre pessoas, em especial daquelas que integram uma entidade familiar. a) Princípio da solidariedade familiar: no âmbito do direito de família, a solidariedade é compreendida com a ideia de que todos os membros de uma entidade familiar e cada um deles, considerados individualmente, respondem por todos os demais e por cada um, de forma recíproca. Esse princípio não se limita ao aspecto material, devendo ser concebido num sentido amplo, tendo um caráter afetivo, social, moral, patrimonial e espiritual. É um princípio de grande relevância, porquanto aplicável para diferentes questões relacionadas ao direito de família, a saber: na responsabilidade civil dos pais em relação aos filhos (arts. 932, I e 933); na comunhão de vida instituída pela família, com a cooperação entre seus membros (art.1.513); na mútua assistência moral e material entre os cônjuges (art. 1.566) e entre companheiros (art. 1.724); na colaboração dos cônjuges na direção da família (art. 1.567); na obrigação dos cônjuges a concorrerem, na proporção de seus bens e dos rendimentos para o sustento da família (art. 1.568); na adoção (art. 1.618); no poder familiar (art. 1.630); no regime matrimonial de bens legal e o regime legal de bens da união estável é o da comunhão dos adquiridos após o início da união (comunhão parcial), sem necessidade de se provar a participação do outro cônjuge ou companheiro na aquisição (arts. 1.640 e 1.725); no dever de prestar alimentos, devido aos parentes, aos cônjuges ou companheiros que poderão pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação (art. 1.694); no direito real de habitação, presente no art. 1.831, da lei civil, que tem como essência a proteção do direito de moradia do cônjuge supérstite. Em decorrência da aplicação desse princípio, é interessante lembrar que, quando do rompimento do vínculo matrimonial ou da união estável, mesmo se reconhecida a culpa de um dos cônjuges/companheiro pela separação, ele ainda assim poderá fazer jus aos alimentos, que, como se verá oportunamente, serão só aqueles imprescindíveis à sobrevivência e desde que não haja outros obrigados ao pagamento. Esses alimentos devidos pelo cônjuge/companheiro inocente ao culpado decorrem do princípio da solidariedade, que prevalece mesmo diante da ocorrência da culpa. b) Princípio da igualdade entre filhos: está insculpido no art. 227, §6º da CF, que estabelece que os filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, tem os mesmos 315 direitos e qualificações, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias, relativas à filiação. Em razão desse princípio, não pode haver qualquer diferenciação no tratamento dos filhos em razão da origem da concepção ou mesmo por outras causas. Entretanto, a igualdade dos filhos, protegida pela Constituição, não impede que haja, por exemplo, diferenciação de valores na fixação dos alimentos. É que a igualdade deve ser compreendida a partir da consideração das eventuais desigualdades existentes, sob pena de amparar tratamentos desiguais. Este foi, inclusive, o entendimento do STJ, no voto conduzido pela Ministra Nancy Andrighi (Recurso Especial nº 1.624.050/MG, 18/06/2018), que muito bem ponderou que o princípio da igualdade não tem natureza inflexível e que, a depender do caso concreto, a fixação do mesmo valor a proles distintas, sem uma análise criteriosa, acabaria, em essência, por dar tratamento desigual. c) Princípio da igualdade entre cônjuges e companheiros: o artigo 226, § 5º, da Constituição Federal, ao demonstrar a preocupação quanto à igualdade entre os cônjuges e companheiros de uma entidade familiar, estabelece a isonomia substancial entre eles, de modo que, por exemplo, havendo divergência na condução da família, nenhuma das vontades prevalecerá sobre a outra, devendo a questão ser, então, resolvida pelo poder judiciário. Isso porque, diferentemente do que ocorria na legislação de 1916, atualmente a condução do lar é exercida de forma igualitária. Em decorrência dessa igualdade, a escolha do domicílio compete a ambos os cônjuges/companheiros; um cônjuge pode adotar o sobrenome do outro; há reciprocidade do direito aos alimentos entre os cônjuges e companheiros e ambos os genitores exercem de forma igualitária o poder familiar. d) Princípio da não intervenção na família: também conhecido como princípio da liberdade, encontra fundamento no artigo 226, caput, CF, que estabelece que a família é a base da sociedade, tendo especial proteção do Estado e nela não podendo haver intervenção. Na mesma linha, o art. 1.513 do CC diz que é proibido a qualquer pessoa de direito público ou privado interferir na comunhão de vida instituída pela família. Ainda relacionado ao princípio da não intervenção, temos que o § 7º da CF, seguido do art. 1.565, §2º, estabelecem que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, sendo vedada qualquer tipo de coerção. Essa vedação, entretanto, não impede que o Estado incentive o controle de natalidade, planejamento familiar ou eduque as famílias por meio de políticas públicas. Porém, a decisão final deve ser sempre do casal. O dispositivo constitucional que trata do planejamento familiar foi regulamentado pela Lei nº 9.623/1996. e) Princípio do maior interesse da criança e do adolescente: é clara a opção constitucional pela garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes em todos os níveis de convivência; ou seja, tanto no espaço familiar como no meio social, de forma a garantir que se buscará sempre aplicar o que for melhor para a criança e para o adolescente. Assim é que a ideia do princípio do maior interesse da criança e do adolescente vem consagrada no art. 227, caput da CF. A Constituição diz que é dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem (entre 15 e 29 anos), com absoluta prioridade, o direito à vida, saúde, alimentos, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, direito ao respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária, além de colocálos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Veja que a proteção é conferida não só à criança e ao adolescente, como também ao jovem em geral, sendo de se destacar que é possível ser adolescente e jovem ao mesmo tempo. Dos 12 aos 16, o enquadramento é como adolescente e, de 15 a 29 anos, o indivíduo é 316 tido como jovem. Em sendo assim, um menor com, por exemplo, 15 anos, é considerado adolescente e jovem. A extensão, ao jovem, da proteção conferida à criança e ao adolescente é claramente exposta no caput do artigo 227 da CF, que diz: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Relativamente à criança e ao adolescente, esse é um princípio de ampla aplicação no que diz respeito ao estabelecimento da guarda. No que se refere, por exemplo, à guarda compartilhada, a leitura dos dispositivos legais, que serão mais bem analisados quando do estudo dessa matéria, revelam que a guarda compartilhada tem prioridade em detrimento da unilateral e isso ocorre porque aquela se revela, em termos gerais, mais benéfica à criança ou ao adolescente. e) Princípio da afetividade: pode-se dizer que a afetividade é um desdobramento da própria dignidade da pessoa humana, na medida em que ganha destaque como forma de promoção da dignidade de cada um dos integrantes da entidade familiar. Isto porque a afetividade é importante para que cada um dos membros da família sinta-se encorajados no desenvolvimento e concretização de suas próprias personalidades. Assim é que o afeto, na atualidade, pode ser apontado como principal fundamento das relações familiares. Se não há afeto, não há família. Nesse particular, Daniel Carnacchioni esclarece que “não basta o afeto para a consolidação de uma família, mas sem afeto ela inexiste. O afeto é elemento fundamental de qualquer núcleo familiar, associado à dignidade da pessoa humana.” (CARNACCHIONI, 2018, p. 1460). Sobre o princípio da afetividade, importa considerá-lo particularmente sob o aspecto da possibilidade ou não de imposição desse sentimento pelo Estado. Em outras palavras, importa perquirir se o Estado pode ou não impor aos indivíduos a afetividade nas relações familiares. Nesse particular, Carnacchioni deixa claro que essa exigência importaria violação da liberdade do ser humano, que pode ou não amar, ter afeto ou não ter afeto. Logo, para o autor, não há como o sentimento ser imposto (CARNACCHIONI, 2018, p. 1460). Essa consideração é importante para análise das consequências do afeto (ou da sua falta). É que, a se concluir que o afeto não pode ser imposto pelo Estado, temos como consequência que: “caracterizado o afeto, dele é possível extrair consequências jurídicas, mas não se pode exigir que um pai tenha afeto por um filho apenas porque há entre eles vínculo biológico” (CARNACCHIONI, 2018, p. 1460). Essa matéria está diretamente relacionada à questão do denominado “abandono afetivo”. Para os que sustentam que o afeto não pode ser imposto, seria equivocado o estabelecimento de consequências pelo que se chama abandono afetivo. Essa linha de pensamento parte da ideia de que somente se podem extrair consequências jurídicas do afeto quando ele efetivamente existe. Em outras palavras, o afeto faz surgir relações (por exemplo, a paternidade socioafetiva) e quando isso ocorre, devem ser tuteladas pelo Estado. Todavia, não havendo afeto, não poderia o Estado impô-lo, sob pena de violação a direitos fundamentais como o da liberdade e da dignidade da pessoa humana (CARNACCHIONI, 2018). Podemos estabelecer algumas consequências do princípio da afetividade. Assim é que se pode dizer que decorrem do princípio da afetividade, dentre outros: 317 a) a igualdade entre todos os filhos, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º, CF); b) a adoção, como escolha afetiva, com plena igualdade de direitos em termos de filiação (art. 227, §§ 5º e 6º, CF); c) reconhecimento dos mais variados tipos de família, inclusive as famílias homoafetivas, eudemonistas (cujo conceito será melhor trabalhado oportunamente) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, dentre outras, consideradas todas no amplo conceito de família constitucionalmente protegida (art. 226,CF); d) o direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227, CF). f) Princípio da função social da família: é extraído do art. 226 da CF, que estabelece que a família é a base da sociedade, recebendo uma especial proteção do Estado. Em assim sendo, as relações familiares serão analisadas dentro do contexto social, dentro daquilo que a sociedade hoje apresenta ao Estado. Se a sociedade muda, é preciso que a concepção de família também seja alterada, para, assim, atender ao ideal de realização de todos os integrantes da entidade familiar. Em assim fazendo, estará atendendo a essa função social da família. O princípio da função social da família é, por assim dizer, um reflexo do movimento de mudança do paradigma liberal-individualista, apoiado fortemente na teoria positivista, para o paradigma social-personalista, representado por teorias pós-positivistas que colocam a pessoa humana no centro das atenções. A pessoa passa a ocupar o lugar que outrora foi destacado ao patrimônio, de forma que são incorporados valores éticos e sociais para a interpretação e aplicação do Direito. Temos, então, que a família é a base da sociedade e que, além disso, tem uma função social que deve ser considerada nas mais diversas interpretações que se façam sobre esse instituto. g) Princípio da paternidade responsável: impõe a observância quanto à obrigação dos pais de respeitarem, educarem, criarem e auxiliarem material e imaterialmente os filhos, podendo decorrer, da sua ausência, responsabilização cível e criminal. Como reforço a esse princípio, o Estado, embora não possa impor o planejamento familiar, confere instrumentos de educação e preparação para esse planejamento, a fim de que pais e mães tenham consciência de que o exercício da maternidade e da paternidade deve ocorrer de forma responsável, com vistas ao respeito à dignidade da pessoa do(a) filho(a). 1.3. CONCEPÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAMÍLIA E OS TIPOS DE FAMÍLIAS A Constituição Federal de 1988 trouxe profundas alterações na forma de conceber e interpretar o direito de família, de modo que, a partir da nova carta constitucional, a legislação então vigente (Código Civil de 1916) sofreu grandes alterações em termos de intepretação. É possível dizer que, mesmo o Código de 2002, já entrou em vigor ultrapassado, na medida em que alguns de seus dispositivos, na forma com que literalmente interpretados, já não se adequavam à sociedade em constante evolução no modo de agir e pensar, reforçando a ideia de sua necessária adequação a partir de uma leitura conforme a Constituição de 88. Com a Constituição de 1988, houve o que a doutrina chamou de “constitucionalização do direito civil”, exigindo-se uma nova forma de interpretação para todos os institutos de direito civil, em conformidade com o novo texto constitucional, sobrepondo-se princípios 318 como o da dignidade da pessoa humana, função social da família e outros, em detrimento dos interesses particulares, que tão claramente se destacavam na legislação de 1916. Particularmente em relação ao Direito de Família, essa constitucionalização ocorrida a partir de 1988 trouxe importantes consequências, reforçadas com a legislação de 2002, porquanto deixou claro que toda interpretação dos institutos deve pautar-se nos princípios maiores da Constituição Federal. Nesse sentido, Lôbo assevera que significa dizer que suas normas (do Código Civil) hão de ser interpretadas em conformidade com os princípios e regras que a Constituição estabeleceu para a família no ordenamento jurídico nacional, animados de valores inteiramente diferentes dos que predominavam na sociedade brasileira, na época em que se deu a redação do capítulo relativo ao pátrio poder do Código de 1916, que, em grande medida, manteve-se no capítulo destinado ao poder familiar para a família do século XXI. As palavras utilizadas pelo legislador de 1916, reaproveitadas pelo legislador do novo Código, são 70 apenas signos, cujos conteúdos deverão ser hauridos dos princípios e regras estabelecidos pela Constituição (LÔBO, 2004, p. 182). A constitucionalização do Direito de Família importou num alargamento do próprio conceito de família, considerando aspectos como a afetividade, não tratada na legislação anterior. Assim é que, a partir dessa leitura constitucional, reconhece-se uma pluralidade de famílias, que não mais se constituem apenas pelo matrimônio. Interpretando-se o art. 226 da CF, pode-se dizer que a família decorre de alguns institutos, tais como: casamento civil, união estável, que pode ser formada entre pessoas de mesmo sexo e/ou de sexos distintos e a chamada família monoparental (um dos pais e os filhos). Esse rol constitucional é um rol exemplificativo, passando admitir outras manifestações familiares, como, por exemplo, a família anaparental, ou seja, que é aquela formada sem a figura do pai e da mãe. Irmãs ou irmãos que vivam juntos, sem a figura dos pais, constituem uma família anaparental. Quanto às famílias decorrentes de uniões e casamentos homoafetivos, temos que os importantes julgados ADI 4.277 e ADPF 132, do STF, deram nova interpretação, conforme a CF, ao disposto no artigo 226 da CF, para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do CC que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pela resolução n. 175, o CNJ estabeleceu as orientações gerais para a celebração dos casamentos de pessoas do mesmo sexo. Perceba-se que não houve alteração da legislação infraconstitucional, mas tão somente determinação quanto à forma de interpretação que deve se realizar conforme a Constituição. Na classificação, para fins didáticos, fala-se, também, em famílias mosaico, que seriam aquelas famílias reconstituídas. Como exemplo, pode-se citar a hipótese em que uma pessoa, casada e com dois filhos, divorcie-se e depois se case novamente com outra pessoa que também é divorciada e tem outros três filhos. Na hipótese, a nova família constituída, com membros de origens diversas, é classificada como família mosaico ou família reconstituída. Uma nova classificação, decorrente das alterações sociais, é a que considera a família para fins únicos de geração e criação de filhos. Com efeito, a família por design seria, então, aquela em que as pessoas se unem no intuito único de ter uma relação que gere filhos, seja de forma natural ou reprodução assistida e, posteriormente criarão a prole comum, em conjunto, mas sem formarem um casal afetivo. Com base nesse novo olhar sobre a família, que agora é interpretada em termos amplos e conforme a Constituição, podemos elencar, para fins didáticos, alguns tipos tratados 319 pela doutrina e jurisprudência, lembrando-se que se trata de rol meramente exemplificativo, já que, conforme visto, as constantes mudanças sociais exigem um olhar cuidadoso sobre essa entidade que tem uma função na sociedade. Nesse particular, vale a advertência de Maria Berenice, para quem se faz necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independente de sua conformação (DIAS, 2015, p.41). Vejamos, então, os tipos de famílias: a) Família matrimonial: é aquela oriunda do casamento. O casamento, conforme estudaremos mais a frente, pode ser classificado em avuncular, nuncupativo, por procuração, consular, civil e religioso com efeitos civis. Qualquer que seja a forma adotada, o casamento dá origem à denominada família matrimonial. b) Família convivencial ou informal/união estável: é aquela decorrente da união de pessoas com objetivo de constituição de família. Como visto, a partir dos importantes julgados ADI 4.277 e ADPF 132, do STF, se caracterizam pela união pública e notória entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diversos, com o objetivo de constituírem família. A união estável, no tópico próprio, será objeto de estudo mais aprofundado, tendo em vista a sua complexidade e o número considerável de questões dos últimos certames que abordam essa temática. c) Família homoafetiva (ADPF n° 132/RJ, ADI n° 4.277/DF e REsp. 1183378/RS): essa conceituação se aplica tanto à união estável quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. A partir da leitura conforme a Constituição Federal dos dispositivos que versam sobre esses institutos, houve um alargamento do conceito de família, para atender ao princípio da dignidade da pessoa humana. Conforme será mais bem analisado em tópico próprio, as uniões de pessoas do mesmo sexo eram tratadas como sociedades de fato e analisadas pelo Estado, quando promovidas ações judiciais para tanto, apenas no aspecto material, desconsiderando-se todo o afeto existente a sua própria função social. Os julgados mencionados constituem, assim, um marco na evolução do conceito de família e a realização do princípio da dignidade da pessoa humana. d) Família monoparental: é a entidade familiar constituída por qualquer um dos genitores com sua respectiva prole. A Constituição Federal, de forma expressa, em seu artigo 226, § 4º, faz referência a esse tipo de família para fins de proteção do Estado. e) Família anaparental: é a família caracterizada pela ausência dos genitores. Um exemplo que pode ser citado é a entidade familiar constituída dos netos e avós, sem a presença dos pais. Ainda podemos citar irmãs ou irmãos que vivam juntos sem os pais, dentre outros. f) Família mosaico ou reconstituída: é uma conceituação que decorre da constatação da existência de famílias que são reconstituídas, sendo formadas a partir de entes oriundos de outras famílias que foram desfeitas pelos mais variados motivos. Pode-se, aqui, usar a expressão que diz: “os meus, os seus e os nossos”, indicando que essas famílias formamse, portanto, quando pais ou mães solteiros/viúvos contraem novas relações, levando seus respectivos filhos para a nova entidade familiar. Tem-se uma “mistura” de vínculos e relações anteriores. Venosa trata dessa modalidade de família, esclarecendo que “a proteção do Estado deve ser dirigida às famílias reconstituídas, que com frequência abrangem filhos de duas estirpes, padrastos e madrastas, depois de uma nova união dos cônjuges. O Código Civil não traçou um desenho claro dessas famílias, cujas questões ficam a cargo dos tribunais que sempre devem ter em mira a afetividade e a dignidade da pessoa humana” (VENOSA, 2016, p. 24). 320 g) Família unipessoal, solitária, single ou celibatária: essa é uma classificação nem sempre aceita, na medida em que para grande parte da doutrina, a família envolve pelo menos duas pessoas. O professor Conrado Paulino, em sua obra “Direito de Família Contemporâneo”, assevera que apesar de não haver uma uniformidade na jurisprudência quanto ao tema, não podemos esquecer o papel da família unipessoal. O jurista cita, como exemplo, o entendimento sumular do STJ que estabelece proteção para o bem de família da pessoa solteira, viúva e divorciada (Súmula 364/STJ: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.”) Para alguns autores, a exemplo de Paulo Lôbo (LÔBO, 2018, p. 1), a inclusão da pessoa sozinha no conceito de entidade familiar é relativa, ou seja, apenas para fins de impenhorabilidade do bem de família. Isso porque essa entidade sofre algumas críticas, dentre elas o fato de que, por ser uma só pessoa, não estaria preenchido o requisito da afetividade para caracterização como entidade familiar não expressa na Constituição, pois a afetividade somente pode ser concebida em relação ao outro. h) Família solidária – irmandade: é uma classificação que se funda na ideia de afetividade e solidariedade. Tratam-se daquelas situações em que pessoas idosas ou jovens se juntam com outras pessoas para morarem em determinado local, com objetivo de solidariedade recíproca. Há, portanto, uma estrutura familiar, apesar de não haver certos efeitos como a partilha e alimentos. i) Família laboral: é a família que se forma no ambiente de trabalho. j) Família paralela ou simultânea: essa classificação precisa ser analisada com cautela, na medida em que, pela análise do entendimento jurisprudencial majoritário (STJ e STF), há uma resistência muito grande a respeito do reconhecimento do que se denomina família paralela, ou seja, formada paralelamente a uma outra família reconhecida. Iremos analisar com mais profundidade essa temática, mas aqui importa colocar que a família simultânea seria aquela que, por exemplo, se constituiria paralelamente a um casamento ou a uma outra união estável. Exemplificando, uma pessoa casada e que mantenha a família matrimonial passa a se relacionar de forma contínua, pública e notória com outra pessoa, com o objetivo também de constituir família. A pergunta que se faz é se, nesse caso, essa família paralela poderia ser reconhecida. Como veremos, em regra, não há possibilidade de reconhecimento desse tipo de união. No entanto, situações especiais recebem tratamento diferenciado, como no caso da união estável putativa, que será mais bem explanada no tópico próprio. k) Família poliafetiva ou poliamor: é a família com multiplicidade de membros, fundada no que se denomina “não monogamia responsável”, que permite, a partir do exercício da autonomia privada, a manutenção de relações plurais. No ano de 2012, começaram a surgir escrituras públicas de união estável poliafetiva. Em razão dessas escrituras, ampliou-se o debate sobre a proteção, pelo ordenamento jurídico pátrio, desse tipo de entidade familiar. A questão foi levada ao Conselho Nacional de Justiça - CNJ, por meio de um pedido de providências, que objetivava proibir os cartórios de lavrarem essas escrituras públicas, ante a ausência de amparo normativo. Essa controvérsia foi solucionada no ano de 2018, quando o CNJ, no julgamento do pedido de providências n. 1459-08.2016.2.00.0000 concluiu pela proibição da lavratura dessas escrituras. l) Família multiespécie: é aquela constituída pelos seres humanos e seus animais de estimação. É outra modalidade de família, cuja constituição e reconhecimento ainda sofrem divergência. O indicativo de seu reconhecimento pelos tribunais pátrios começou a ser delineado a partir de julgados que estabelecem o direito de visita dos animais, tratando-os não mais apenas sob o ponto de vista material. Nesse sentido, é importante lembrar o julgado do STJ, de 2018, que decidiu sobre o direito de visita e custódia física dos animais de estimação de 321 um casal em processo de dissolução da união estável (REsp 1713167/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 19/06/2018, DJe 09/10/2018). m) Família eudemonista: o termo família eudemonista refere-se à primazia do afeto na realidade das novas configurações das entidades familiares constituídas. A família eudemonista é caracterizada por uma função específica, qual seja, a concretização da dignidade de seus integrantes, a serem tutelados e protegidos para que possam vivenciar a realização pessoal e existencial, e sentir, ao menos utopicamente, que o núcleo familiar retrata e permite o alcance da felicidade plena (CARNACCIONI, 2018, p. 1459). É um conceito que se refere, assim, ao deslocamento da proteção jurídica da instituição para o sujeito. A partir dessa conceituação eudemonista de família, a análise da entidade familiar é feita a partir de modelos que permitam a realização individual de seus membros, não estando, por conseguinte, presa a tipos previamente estabelecidos. Tratando do tema, Maria Berenice diz que “surgiu um novo nome para essa nova tendência de identificar a família pelo seu envolvimento afetivo: família eudemonista, que busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros” (DIAS, 2015, p. 52). 1.4. INFORMATIVOS DE JURISPRUDÊNCIA 1.4.1. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. Relação homoafetiva e entidade familiar – 1: A norma constante do art. 1.723 do Código Civil — CC (“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”) não obsta que a união de pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer proteção estatal. Essa a conclusão do Plenário ao julgar procedente pedido formulado em duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas, respectivamente, pelo Procurador-Geral da República e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro. Preliminarmente, conheceu-se de arguição de preceito fundamental — ADPF, proposta pelo segundo requerente, como ação direta, tendo em vista a convergência de objetos entre ambas as ações, de forma que as postulações deduzidas naquela estariam inseridas nesta, a qual possui regime jurídico mais amplo. Ademais, na ADPF existiria pleito subsidiário nesse sentido. Em seguida, declarou-se o prejuízo de pretensão originariamente formulada na ADPF consistente no uso da técnica da interpretação conforme a Constituição relativamente aos artigos 19, II e V, e 33 do Estatuto dos Servidores Públicos Civis da aludida unidade federativa (Decreto-lei 220/75). Consignou-se que, desde 2007, a legislação fluminense (Lei nº 5.034/2007, art. 1º) conferira aos companheiros homoafetivos o reconhecimento jurídico de sua união. Rejeitaram-se, ainda, as preliminares suscitadas. ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277) (INF. 625/2011). Relação homoafetiva e entidade familiar – 2: No mérito, prevaleceu o voto proferido pelo Min. Ayres Britto, relator, que dava interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do CC para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Asseverou que esse reconhecimento deveria ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas consequências da união estável heteroafetiva. De início, enfatizou que a Constituição proibiria, de modo expresso, o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher e o homem. Além disso, apontou que fatores acidentais ou fortuitos, a exemplo da origem social, idade, cor da pele e outros, não se caracterizariam como causas de merecimento ou de desmerecimento intrínseco de quem quer que fosse. Assim, observou que isso também ocorreria quanto à 322 possibilidade da concreta utilização da sexualidade. Afirmou, nessa perspectiva, haver um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre homem e mulher: a) de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomo-fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; e c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não. ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132) (INF. 625/2011). Relação homoafetiva e entidade familiar – 3: Em passo seguinte, assinalou que, no tocante ao tema do emprego da sexualidade humana, haveria liberdade do mais largo espectro ante silêncio intencional da Constituição. Apontou que essa total ausência de previsão normativo-constitucional referente à fruição da preferência sexual, em primeiro lugar, possibilitaria a incidência da regra de que “tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Em segundo lugar, o emprego da sexualidade humana diria respeito à intimidade e à vida privada, as quais seriam direito da personalidade e, por último, dever-se-ia considerar a âncora normativa do § 1º do art. 5º da CF. Destacou, outrossim, que essa liberdade para dispor da própria sexualidade inserir-se-ia no rol dos direitos fundamentais do indivíduo, sendo direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana e até mesmo cláusula pétrea. Frisou que esse direito de exploração dos potenciais da própria sexualidade seria exercitável tanto no plano da intimidade (absenteísmo sexual e onanismo) quanto da privacidade (intercurso sexual). Asseverou, de outro lado, que o século XXI já se marcaria pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade. Ao levar em conta todos esses aspectos, indagou se a Constituição sonegaria aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união — realidade há muito constatada empiricamente no plano dos fatos —, o mesmo regime jurídico protetivo conferido aos casais heteroafetivos em idêntica situação. ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132) (INF. 625/2011). Relação homoafetiva e entidade familiar – 4: Após mencionar que a família deveria servir de norte interpretativo para as figuras jurídicas do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar e da adoção, o relator registrou que a diretriz da formação dessa instituição seria o não-atrelamento a casais heteroafetivos ou a qualquer formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Realçou que família seria, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada, o que a credenciaria como base da sociedade (CF, art. 226, caput). Desse modo, anotou que se deveria extrair do sistema a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganharia plenitude de sentido se desembocasse no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família, constituída, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade (CF, art. 226, § 3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”). Mencionou, ainda, as espécies de família constitucionalmente previstas (art. 226, §§ 1º a 4º), a saber, a constituída pelo casamento e pela união estável, bem como a monoparental. Arrematou que a solução apresentada daria concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da proteção das minorias, da não-discriminação e outros. O Min. Celso de Mello destacou que a consequência mais expressiva deste julgamento seria a atribuição de efeito vinculante à obrigatoriedade de reconhecimento como entidade familiar da união entre pessoas do mesmo sexo. ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. 323 (ADI-4277) ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132) (INF. 625/2011). Relação homoafetiva e entidade familiar – 5: Por sua vez, os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso, Presidente, embora reputando as pretensões procedentes, assentavam a existência de lacuna normativa sobre a questão. O primeiro enfatizou que a relação homoafetiva não configuraria união estável — que impõe gêneros diferentes —, mas forma distinta de entidade familiar, não prevista no rol exemplificativo do art. 226 da CF. Assim, considerou cabível o mecanismo da integração analógica para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas as prescrições legais relativas às uniões estáveis heterossexuais, excluídas aquelas que exijam a diversidade de sexo para o seu exercício, até que o Congresso Nacional lhe dê tratamento legislativo. O segundo se limitou a reconhecer a existência dessa união por aplicação analógica ou, na falta de outra possibilidade, por interpretação extensiva da cláusula constante do texto constitucional (CF, art. 226, § 3º), sem se pronunciar sobre outros desdobramentos. Ao salientar que a ideia de opção sexual estaria contemplada no exercício do direito de liberdade (autodesenvolvimento da personalidade), acenou que a ausência de modelo institucional que permitisse a proteção dos direitos fundamentais em apreço contribuiria para a discriminação. No ponto, ressaltou que a omissão da Corte poderia representar agravamento no quadro de desproteção das minorias, as quais estariam tendo seus direitos lesionados. O Presidente aludiu que a aplicação da analogia decorreria da similitude factual entre a união estável e a homoafetiva, contudo, não incidiriam todas as normas concernentes àquela entidade, porque não se trataria de equiparação. Evidenciou, ainda, que a presente decisão concitaria a manifestação do Poder Legislativo. Por fim, o Plenário autorizou que os Ministros decidam monocraticamente os casos idênticos ADI 4277/DF, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADI-4277)ADPF 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 4 e 5.5.2011. (ADPF-132) (INF. 625/2011). 1.4.2. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. ADOÇÃO PÓSTUMA. FAMÍLIA ANAPARENTAL.Para as adoções post mortem, vigem, como comprovação da inequívoca vontade do de cujus em adotar, as mesmas regras que comprovam a filiação socioafetiva, quais sejam, o tratamento do menor como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição. Ademais, o § 6º do art. 42 do ECA (incluído pela Lei n. 12.010/2009) abriga a possibilidade de adoção póstuma na hipótese de óbito do adotante no curso do respectivo procedimento, com a constatação de que ele manifestou, em vida, de forma inequívoca, seu desejo de adotar. In casu, segundo as instâncias ordinárias, verificou-se a ocorrência de inequívoca manifestação de vontade de adotar, por força de laço socioafetivo preexistente entre adotante e adotando, construído desde quando o infante (portador de necessidade especial) tinha quatro anos de idade. Consignou-se, ademais, que, na chamada família anaparental - sem a presença de um ascendente -, quando constatados os vínculos subjetivos que remetem à família, merece o reconhecimento e igual status daqueles grupos familiares descritos no art. 42, § 2º, do ECA. Esses elementos subjetivos são extraídos da existência de laços afetivos - de quaisquer gêneros -, da congruência de interesses, do compartilhamento de ideias e ideais, da solidariedade psicológica, social e financeira e de outros fatores que, somados, demonstram o animus de viver como família e dão condições para se associar ao grupo assim construído a estabilidade reclamada pelo texto da lei. Dessa forma, os fins colimados pela norma são a existência de núcleo familiar estável e a consequente rede de proteção social que pode gerar para o adotando. Nesse tocante, o que informa e define um núcleo familiar estável são os elementos subjetivos, que podem ou não existir, independentemente do estado civil das partes. Sob esse prisma, ressaltouse que o conceito de núcleo familiar estável não pode ficar restrito às fórmulas 324 clássicas de família, mas pode, e deve, ser ampliado para abarcar a noção plena apreendida nas suas bases sociológicas. Na espécie, embora os adotantes fossem dois irmãos de sexos opostos, o fim expressamente assentado pelo texto legal colocação do adotando em família estável - foi plenamente cumprido, pois os irmãos, que viveram sob o mesmo teto até o óbito de um deles, agiam como família que eram, tanto entre si como para o infante, e naquele grupo familiar o adotando se deparou com relações de afeto, construiu - nos limites de suas possibilidades - seus valores sociais, teve amparo nas horas de necessidade físicas e emocionais, encontrando naqueles que o adotaram a referência necessária para crescer, desenvolver-se e inserir-se no grupo social de que hoje faz parte. Dessarte, enfatizou-se que, se a lei tem como linha motivadora o princípio do melhor interesse do adotando, nada mais justo que a sua interpretação também se revista desse viés. (REsp 1.217.415-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 19/6/2012). (INF. 500) 2. CASAMENTO 2.1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA O casamento pode ser conceituado pela união de duas pessoas, de forma reconhecida e regulamentada pelo Estado, em que se objetiva estabelecer uma família, baseada no vínculo de afeto, estabelecendo comunhão plena de vida entre os cônjuges. Para estabelecimento da família, por meio do casamento, há certa formalidade em obediência às disposições legais, que se enquadram como normas de ordem pública. Como dito anteriormente, o direito de família é um ramo com marcante evolução de interpretação em razão da própria evolução da sociedade. Quando analisamos o conceito de casamento, percebemos bem essa evolução na interpretação, já que, ao se analisar os manuais de Direito Civil mais antigos, constataremos que a conceituação passa pelo reconhecimento da união entre um homem e uma mulher. Esse era, inclusive, um dos requisitos de existência do casamento, ou seja, a diversidade de sexos. Com as já mencionadas decisões do STF, que deram nova interpretação ao conceito de união estável, houve ampla discussão acerca da ampliação, nos mesmos termos, da interpretação do conceito de família matrimonial. Assim é que o STJ, enfrentando a matéria, decidiu que o requisito da diversidade de sexos deveria ser afastado, para se reconhecer a possibilidade de casamento homoafetivo. No referido julgado, entendeu-se que (...) as famílias formadas por pessoas homoafetivas não são menos dignas de proteção do Estado se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos (...) o mesmo raciocínio utilizado tanto pelo STJ quanto pelo STF para conceder aos pares homoafetivos os direitos decorrentes da união estável deve ser utilizado para lhes proporcionar a via do casamento civil, ademais porque a CF determina a facilitação da conversão da união estável em casamento (art. 226, § 3º) (STJ, REsp 1.183.378-RS, 4ª T., rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25-102011). Assim, na conceituação do casamento, é preciso sempre ter em consideração o contexto histórico e a função social que este exerce. Nesse sentido é que, com a aplicação da interpretação conforme a Constituição, temos que o conceito de casamento, na atualidade, passa pela consideração de uniões formais que criam a família matrimonial e que se constituem por pessoas com igualdade ou não de sexos. Quanto à sua natureza jurídica, não já unanimidade entre os doutrinadores, podendose elencar os seguintes posicionamentos: 325 a) Concepção clássica ou teoria contratualista: os adeptos desta concepção entendem que o casamento é um acordo de vontades e, por isso, deve ser classificado como um contrato. Explicando a origem dessa classificação, o desembargador Carlos Alberto Gonçalves explica que a concepção clássica, também chamada individualista ou contratualista, acolhida pelo Código de Napoleão e que floresceu no século XIX, considerava o casamento civil, indiscutivelmente, um contrato, cuja validade e eficácia decorreriam exclusivamente da vontade das partes. Tal concepção representava uma reação à ideia de caráter religioso que vislumbrava no casamento um sacramento. Segundo os seus adeptos, aplicavam-se aos casamentos as regras comuns a todos os contratos (GONÇALVES, 2017, p. 46). b) Concepção institucionalista ou teoria da instituição: como o próprio nome diz, para os adeptos dessa teoria, o casamento seria uma instituição, já que, não obstante a manifestação inicial de vontade, todos os seus efeitos decorrem da lei e não propriamente da vontade dos nubentes. Como bem explica Carlos Alberto Gonçalves, “para essa corrente o casamento é uma ‘instituição social’, no sentido de que reflete uma situação jurídica cujos parâmetros se acham preestabelecidos pelo legislador” (GONÇAVES, 2017, p. 46). c) Concepção mista ou eclética ou teoria mista: nascida da divergência das teorias anteriores, essa corrente mescla o entendimento das teorias contratualista e institucionalista, entendendo, então, que o casamento é um contrato quando analisado na sua formação (acordo de vontade) e uma instituição quanto à análise de seus efeitos, já que decorrentes da lei e não da vontade dos contraentes. Sobre essa natureza mista, Caio Mário esclarece que “considerado como ato gerador de uma situação jurídica (casamento-fonte), é inegável a sua natureza contratual; mas, como complexo de normas que governam os cônjuges durante a união conjugal (casamentoestado), predomina o caráter institucional” (PEREIRA, 2018, p. 59). 2.2. PRINCÍPIOS ESPECÍFICOS APLICÁVEIS AO CASAMENTO O casamento, independentemente da natureza jurídica que se adote para sua conceituação, tem regras próprias de constituição, além de princípios específicos. Assim é que se faz importante entender quais os princípios aplicáveis a esse instituto e que muito auxiliam na interpretação da legislação pertinente. São eles: a) b) c) Princípio da monogamia: Segundo o princípio da monogamia, só é possível se casar com uma única pessoa. Por esse princípio, afasta-se, então, a possibilidade do poliamor para a celebração de casamento de mais de duas pessoas. Esse princípio é extraído do art. 1.521, que estabelece que as pessoas já casadas não podem casar enquanto mantiverem essa condição de casadas. Princípio da liberdade de escolha: Segundo este princípio, é possível casar com quem quiser, desde que essa pessoa também queira e desde que não haja impedimento, previamente estabelecido em lei, conforme veremos em tópico próprio. Como exercício da autonomia privada, prevalece, então e de forma geral, o princípio da liberdade de escolha. Princípio da comunhão plena de vida: O casamento estabelece comunhão plena de vida entre os cônjuges. É o que estatui de forma expressa o artigo 1511 do Código Civil. 326 2.3. CAPACIDADE PARA O CASAMENTO Preliminarmente, é importante diferenciar a incapacidade para o casamento dos impedimentos para o casamento. A incapacidade para o casamento é geral, impedindo qualquer pessoa de se casar com qualquer outra pessoa. Já o impedimento para o casamento refere-se a determinadas pessoas em situações específicas, conforme estudaremos no próximo tópico. Relevante, ainda, considerar que não há exata coincidência entre a capacidade para o casamento e a capacidade para os atos da vida civil, em geral. Como bem explica Caio Mário, a aptidão específica para o casamento se vincula à dupla ordem de ideias: de um lado, a consideração de que as regras aplicáveis ao Direito de Família, e em especial em matéria de casamento, não são as mesmas que regem a prática dos demais atos; de outro lado, argui-se o leitmotiv da verificação das condições matrimoniais (PEREIRA, 2018, p. 96). Quando nos referimos à capacidade para o casamento, tratamos de averiguar se o pretenso nubente encontra-se em idade núbil, que, conforme artigo 1.517, do Código Civil, é, na atualidade, 16 anos. É importante destacar, nesse particular, a alteração legislativa referente ao artigo 1.520/CC. A previsão deste artigo era de que, excepcionalmente, poderia ser autorizado o casamento de pessoa menor de 16 anos para impedir a imposição ou cumprimento de uma pena criminal ou quando fosse o caso de gravidez. A primeira parte desse artigo já havia perdido força em razão da alteração no Código Penal que excluiu a hipótese de extinção da punibilidade. Agora, nova alteração legislativa, desta feita no próprio artigo 1.520 do Código Civil, afasta qualquer possibilidade de casamento de menores de 16 anos. A nova redação do artigo mencionado estabelece, então, que não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil (alteração decorrente da Lei nº 13.811, de 2019). Assim, são incapazes para o casamento os menores de 16 anos. Essa incapacidade, como se viu, é geral e decorre da lei. É importante destacar que muito embora o menor com 16 anos completos já tenha capacidade para o casamento, certo é que, em se tratando de pessoa relativamente capaz, ele necessitará do consentimento dos genitores (artigo 1.517/CC, parte final). Caso os genitores, sem justo motivo, não autorizem o casamento, poderá o interessado buscar o suprimento judicial de autorização, previsto no artigo 1.519/CC. Ao mencionar a necessidade de autorização dos genitores ou responsáveis para o casamento do menor de 18 anos, o art. 1.517/CC não abarca a hipótese dos emancipados, pois estes já possuem plena capacidade e, por conseguinte, não necessitam de qualquer autorização para fins de casamento. O art. 1.518/CC estabelece que até o momento da celebração do casamento, os pais ou tutores podem revogar a autorização dada, mas, com a efetiva celebração, não há mais que se falar em revogação. Para concluir o estudo da capacidade para o casamento, é importante esclarecer que, com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015), houve importante modificação quanto a esta capacidade neste tópico estudada, pois o art. 6º daquele diploma legal estabeleceu que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da 327 pessoa, inclusive para casar-se e para constituir união estável. Assim, a pessoa com deficiência tem capacidade para o casamento. 2.4. IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS E CAUSAS SUSPENSIVAS O Código Civil de 2002, ao tratar dos impedimentos para o casamento, estabelece regramento diferente da legislação anterior (CC/1916), tornando mais fácil a compreensão da temática. Agora, o Código prevê os “impedimentos propriamente ditos” (art. 1.521), antigos “impedimentos dirimentes públicos” (art. 183, I a VIII) e as “causas suspensivas” (art. 1.523), as quais, no Código de 1916, eram conhecidas como “impedimentos impedientes” (art. 183, XIII a XVI). Os “impedimentos dirimentes privados”, assim denominados pela legislação de 1916, foram incluídos entre as “causas da anulação do casamento” previstas no art. 1.550 do Código Civil de 2002. Dessa forma, temos na legislação atual: impedimentos, causas suspensivas e causas de anulação do casamento. A menção à classificação da legislação revogada é feita aqui em razão de alguns concursos ainda usarem essa nomenclatura antiga quando da cobrança dessa temática. Então, deve ficar claro que na legislação de 1916, tínhamos a seguinte previsão: impedimentos dirimentes públicos; os impedimentos dirimentes privados e os impedimentos impedientes. Na legislação vigente, os impedimentos dirimentes públicos correspondem aos impedimentos, previstos no artigo 1.521 do CC; os impedimentos dirimentes privados foram incluídos entre as causas de anulação do casamento, previstas no artigo 1.550, CC, e os impedimentos impedientes correspondem às causas suspensivas, previstas no artigo 1.523 do CC. Como dito, os impedimentos referem-se a situações específicas dos nubentes, de forma que uma pessoa pode ter capacidade para o casamento, por já ter alcançado a idade núbil, mas estar impedido para o casamento com determinado pretendente (por exemplo, não pode se casar com o padrasto). Passemos, então, ao estudo da teoria dos impedimentos matrimoniais, considerando a legislação vigente. O Código Civil traz a seguinte classificação: a) Impedimentos matrimoniais: previstos no artigo 1.521 do CC. O rol das pessoas que não podem casar é taxativo, tratando-se de matéria de ordem pública. Caio Mário esclarece a razão de ser desses impedimentos, ensinando que na primeira ordem dos impedimentos vêm aqueles que, por motivos de moralidade social, a ordem jurídica inscreve como portadores de maior gravidade, envolvem causas que condizem com a instituição da família e a estabilidade social. Por isto mesmo, pode sua existência ser acusada por qualquer pessoa e pelo órgão do Ministério Público na sua qualidade de representante da sociedade. É nulo o matrimônio celebrado com a sua infração (PEREIRA, 2018, p. 105). Assim, o artigo 1.521 do CC traz um rol taxativo dos que não podem se casar, considerando, para tanto: impedimentos resultantes do parentesco (nos incisos I a V); impedimento resultante de casamento anterior ( inciso VI); impedimento decorrente de crime (inciso VII). Nos termos da letra literal da lei (artigo 1.521, CC), não poderão casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; 328 III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. Relativamente ao impedimento previsto no inciso IV, que diz respeito à impossibilidade de realização do casamento entre tio(a) com sobrinho(a), Caio Mario lembra que no Brasil, esse impedimento tem sofrido variações: no direito pré-codificado compreendia apenas o segundo grau, sendo frequentes as uniões conjugais entre tio e sobrinha; o Código Civil de 1916 levou-o ao terceiro, com aplausos da doutrina, mas o Decreto-Lei nº 3.200, de 19 de abril de 1941, admitiu possa levantá-lo o juiz e autorizar o casamento, à vista de laudo proferido por dois médicos por ele designados, que examinem os nubentes e atestem a inexistência de motivos que o desaconselhem (PEREIRA, 2018, p. 107). Assim, o Decreto-Lei 3.200 autorizou o casamento entre tios e sobrinhos, desde que houvesse o laudo atestando a inexistência de motivos que desaconselhassem o enlace. O mencionado Decreto-Lei é anterior a 2002 e sua redação não foi reproduzida no vigente Código Civil, de modo que houve discussão sobre a permanência de sua aplicação com a entrada em vigor do novo Código Civil. Com efeito, a discussão passava pela consideração de que se o legislador do Código de 2002 quisesse autorizar o casamento dessas pessoas, teria feito a ressalva expressa, o que não ocorreu, de modo que, para alguns juristas, não teria ocorrido a recepção do Decreto-Lei 3.200. Sobre esse tema, na obra de Caio Mário, verificamos a seleção de posicionamentos de diferentes juristas. Para tanto, há citação de juristas: “Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzik esclarecem: “não altera, portanto, o novo Código Civil o regime de casamento entre tios e sobrinhos; haverá vedação legal, somente, se comprovada a inconveniência das núpcias no que tange à saúde da prole” (PEREIRA, 2018, p.107). Assim, esse tem sido um entendimento adotado, no sentido de que o atual Código Civil Brasileiro não revogou o Decreto-Lei de 1941, ou seja, o Decreto de 1941 ainda está em vigor. Ainda sobre esse tema, o enunciado aprovado pelo Conselho da Justiça Federal diz que o inciso IV do art. 1.521 do novo Código Civil deve ser interpretado à luz do Decreto-Lei n. 3.200/41 no que se refere à possibilidade de casamento entre colaterais de 3º grau (En. 98, I Jornada de Direito Civil). Permite-se, então, o denominado casamento avuncular, desde que observado o disposto no Decreto-Lei 3.200/41. De forma geral, em relação aos efeitos, a existência de impedimentos matrimoniais impossibilita que o casamento seja celebrado. A oposição dos impedimentos pode ocorrer até o momento da celebração e por qualquer pessoa capaz (art. 1.522/CC). 329 Caso o oficial do registro tenha conhecimento da existência de algum impedimento, deve reconhecê-lo de ofício. A consequência do casamento eventualmente realizado com algum impedimento é a nulidade absoluta. b) Causas suspensivas do casamento: em algumas situações específicas, previstas no artigo 1.523, do CC, o legislador não proíbe o casamento das pessoas ali elencadas, de modo que, se realizado o matrimônio, não estará sujeito à nulidade absoluta e nem relativa. Entretanto, em decorrência das situações excepcionais ali previstas, o casamento estará sujeito à consequência específica, diretamente relacionada ao regime de bens. Estabelece o artigo 1.641, I, CC, que passa a ser obrigatório o regime da separação de bens para o casamento celebrado com inobservância das causas suspensivas. As causas suspensivas são, assim, previstas no artigo 1.523/CC, que estabelece que não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. A leitura das causas suspensivas, previstas no artigo 1.523/CC, bem demonstra que o que se objetiva é evitar a confusão patrimonial dos(as) viúvos(as) que ainda não fizeram o inventário dos bens do casal, bem como dos divorciados(as) que ainda não resolveram a partilha do casamento anterior, e, ainda, evitar a confusão de sangue na hipótese de viuvez ou desfazimento anterior da sociedade conjugal. Busca, ainda, evitar que o(a) tutor(a) se case com a(o) tutelado(a) e adote um regime de bens que possa comprometer as contas relativas ao período de tutela. Em todas essas hipóteses mencionadas, o parágrafo único do artigo 1.523/CC prevê que a causa suspensiva desaparece se for provada a ausência de prejuízo aos envolvidos. É importante ressalvar que há limitação das pessoas que podem arguir a presença de uma causa suspensiva. Somente poderá ser feita essa arguição até o momento da celebração do casamento por parentes em linha reta de um dos cônjuges e pelos colaterais até o 2º grau (irmão ou ascendente – pais, avós, sogros, irmãos e cunhados) (art. 1.525, CC). Ademais, as causas suspensivas não podem ser conhecidas de ofício pelo juiz ou oficial do registro civil, pois têm natureza privada. Ainda no que tange à oportunidade da oposição, deve ser feita no processo de habilitação: anunciadas as núpcias pela publicação dos proclamas, abre-se o prazo de 15 dias, dentro do qual os interessados podem objetar contra o casamento. Decorrido in albis o lapso, e passada a certidão de habilitação, é ainda lícita a apresentação da causa suspensiva, até o momento da cerimônia. Com uma diferença, todavia: enquanto não certificada a habilitação, o interessado dirige-se ao escrivão; depois dela, ao juiz. Formulada a oposição, suspende-se a cerimônia (PEREIRA, 2018, p. 113). 330 O casamento celebrado com causa suspensiva, como se viu, tem, por imposição, o regime da separação obrigatória de bens. Todavia, uma vez cessada a causa suspensiva, os cônjuges poderão requerer a mudança de regime, cujo pedido será processado na forma do artigo 1.639, § 2º do Código Civil. 2.5. PROCESSO DE HABILITAÇÃO E CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO O casamento é ato solene com marcante presença do Estado na regulação de sua formação. Os requisitos de ordem pública são, assim, acompanhados durante uma fase prévia, em que terceiros têm oportunidade de indicar os eventuais impedimentos para a celebração. Assim é que, antes do casamento, há uma fase denominada processo de habilitação, pela qual os nubentes têm condição de evidenciar que estão aptos ao casamento, não havendo qualquer impedimento para tanto. Caio Mário, a esse respeito, explica que “o processo de habilitação tem por finalidade proporcionar aos nubentes evidenciar a sua aptidão para o casamento” (PEREIRA, 2018, p. 19). Assim, quando os nubentes pretendem se casar devem, então, iniciar esse processo de habilitação perante o Oficial do Registro Civil, assinando, conjuntamente, o requerimento, de forma pessoal ou por meio de procurador. O requerimento deverá estar instruído com os documentos arrolados na lei. O processo de habilitação para o casamento desenvolve-se em quatro fases: documentação, proclamas, certidão e registro. a) Fase de documentação: estabelece o artigo 1.525/CC que o requerimento de habilitação do casamento é firmado por ambos os cônjuges de próprio punho ou por procurador e deve ser instruído com: certidão de nascimento ou documento equivalente de ambos os pretensos cônjuges; autorização por escrito, se for o caso em cuja dependência legal estiverem ou ato judicial que supra essa autorização; declaração de duas testemunhas que atestem e conhecem os pretensos cônjuges, e que não existam impedimentos entre eles; declaração de estado civil; declaração de domicílio; declaração de residência atual dos pais dos contraentes; declaração de residência atual dos próprios contraentes; se for o caso, juntar certidão de óbito do cônjuge falecido ou da sentença que declarou a nulidade ou a anulação do casamento anterior, transitada em julgado ou do registro da sentença de divórcio. O art. 1.526/CC estabelece que essa habilitação será feita perante o Oficial de registro civil, com audiência do MP. Já o parágrafo único do mesmo artigo, diz que se houver impugnação do oficial ou do MP, ou de uma terceira pessoa, essa habilitação será submetida ao juiz. Ou seja, se não houver a oposição ou essa impugnação, não será necessária a submissão do processo de habilitação ao juiz, prevalecendo, aqui, a ideia de desjudicialização da habilitação. b) Fase de proclamas: conforme estabelece o artigo 1.527/CC, estando em ordem a documentação, o oficial extrairá o edital, que se afixará durante 15 (quinze) dias nas circunscrições do Registro Civil de ambos os nubentes e publicará na imprensa local se houver. São os denominados proclamas do casamento. Esse edital deverá conter um resumo do intento matrimonial dos nubentes, com seus nomes e dados, e convocará terceiros a apontarem eventual impedimento de que tiverem conhecimento. Para a confecção desse edital, o Oficial do Registro irá analisar apenas a regularidade da documentação apresentada. Como se verá, existem situações específicas em que a lei dispensa os proclamas, como, por exemplo, ocorre no denominado casamento nuncupativo. Nessa fase dos proclamas, o artigo 1.528 estabelece que é dever do oficial do registro “esclarecer os nubentes a respeito dos fatos que podem ocasionar a invalidade do casamento, bem como 331 sobre os diversos regimes de bens”. Nessa fase, poderão ser opostos os impedimentos e causas suspensivas, que, conforme artigo 1.529/CC, deverão ser apresentados em declaração escrita e assinada, instruída com as provas do fato alegado ou com a indicação do lugar onde possam ser obtidas. Se houver oposição de impedimentos, cumpre ao Oficial do Registro dar aos nubentes ou seus representantes nota da oposição, indicando os fundamentos, as provas e o nome de quem a ofereceu (art. 1.530/CC). Com isso, cumprirá aos nubentes fazer prova contrária à arguição. Será ouvido o Ministério Público e, ao final, a decisão caberá ao juiz. c) Fase de certidão: findo o prazo dos proclamas, inexistindo oposição, ou sendo ela julgada improcedente, e cumpridas as demais formalidades presentes em lei, será extraída a certidão de habilitação, que é um certificado que habilita os nubentes ao casamento, com prazo de 90 (noventa) dias. Nesse prazo, o casamento deverá ser celebrado. O art. 1.532/CC indica que a certidão de habilitação tem validade por noventa dias a contar o prazo da data em que foi extraído o certificado. Neste período de tempo, os nubentes podem casar-se sem renovação do processo. Escoado que seja, a sua revalidação depende de novo requerimento, podendo-se, contudo, aproveitar a mesma prova apresentada no anterior (PEREIRA, 2018, p. 125). Se a habilitação for indeferida, por qualquer motivo, caberá aos interessados recorrer à via judicial, observando a Lei de Organização Judiciária local. d) Fase de registro: com a celebração do casamento, que observará as disposições previstas no artigo 1.533 e seguintes do CC, lavrar-se-á o assento no livro de registro. Diz o artigo 1.536/CC que o assento será assinado pelo presidente do ato, pelos cônjuges, as testemunhas e o oficial do registro. Esse assento destina-se a dar publicidade ao casamento e servir de prova de sua realização e do regime de bens. A celebração do casamento segue o regramento previsto no artigo 1.533 e seguintes do Código Civil. Conforme previsão legislativa, o casamento ocorrerá no dia e lugar previamente designados pela autoridade que presidirá o ato. O art. 98, II, da CF diz que a União, Estados, DF e territórios vão criar a Justiça de Paz, a qual é remunerada, composta por cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, que terão mandato de 4 anos, tendo competência para, dentre outras, celebrar casamentos. A Lei de Organização Judiciária de cada Estado é que designa a referida autoridade. Em alguns Estados, chama-se juiz de paz; em outros, o próprio juiz de direito é incumbido desse mister. O ato solene do casamento será, em regra, realizado na sede do cartório com as portas abertas, presentes pelo menos 2 testemunhas (art. 1.534, CC). O casamento poderá, entretanto, ser realizado fora do cartório, com a concordância da autoridade, hipótese em que o edifício escolhido para a celebração deverá permanecer com as portas abertas durante o ato. Neste caso, sendo celebrado fora do cartório, o número de testemunhas que deverão estar presentes será de no mínimo 4 testemunhas (art. 1.534, §2º, CC). Também serão necessárias 4 testemunhas se algum dos contraentes for analfabeto, não souber ou não puder escrever (art. 1.534, §2º, parte final). As testemunhas, em qualquer dos casos, não são meramente instrumentárias, mas participam do ato como representantes da sociedade, sem qualquer suspeição pelo fato de serem parentes dos nubentes, uma vez que têm interesse, mais até que qualquer outra pessoa, em que o enlace matrimonial se realize validamente (GONÇALVES, 2017, pg. 124). Os nubentes deverão manifestar, de forma inequívoca, a vontade de se casarem, sendo que, ocorrendo uma das hipóteses previstas no artigo 1.538/CC, a cerimônia será 332 suspensa, não sendo admitida retratação no mesmo dia. Assim é que se, brincando, um dos nubentes disser que não quer se casar, não poderá se retratar no mesmo dia e a cerimônia será suspensa, só podendo ser realizada em outra data. É o que estabelece o parágrafo único do artigo 1.538/CC. Se esse não for o caso, o Oficial do Registro, após ouvir dos nubentes sobre a pretensão do casamento por livre e espontânea vontade, vai declará-los casados, nos seguintes termos: “De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados” (arts. 1.514 e 1.535 do CC). A discussão que se trava em relação a essa declaração do Oficial de Registro diz respeito à sua natureza, ou seja, se seria declaratória ou constitutiva. Em outras palavras, a discussão gira em torno de se saber qual o momento em que se considera aperfeiçoado o casamento: no momento da manifestação de vontade dos nubentes (hipótese em que a declaração do Oficial deve ser considerada apenas declaratória da vontade dos nubentes) ou somente após a manifestação do Oficial de Registro (caso em que essa declaração seria constitutiva do casamento). A importância da discussão se refere à situação, por exemplo, de os nubentes manifestarem inequivocamente a vontade de se casarem e um deles morrer antes da declaração do Oficial do Registro. Pergunta-se, nessa hipótese, se pode-se considerar celebrado ou não o casamento? Sobre o tema, Caio Mário explica que já o Romano dizia que nuptias consensus facit: o que faz o matrimônio é o consenso. O celebrante ouve a manifestação dos contraentes, e os declara casados. Como representante do Estado, pronuncia a declaração de estarem unidos em matrimônio aqueles que emitiram a manifestação de suas vontades neste sentido. A presença do juiz é fundamental, mas sua declaração, sem embargo de boas opiniões em contrário não é indispensável à validade do casamento (PEREIRA, 2018, pag. 130). Em posição divergente, Carlos Roberto Gonçalves sustenta que na verdade, a declaração do celebrante é essencial, como expressão do interesse do Estado na constituição da família, bem como do ponto de vista formal, destinada a assegurar a legitimidade da formação do vínculo matrimonial e conferir-lhe certeza. Sem ela, o casamento perante o nosso direito é inexistente. Pode-se afirmar, pois, que o ato só se tem por concluído com a solene declaração do celebrante. Basta lembrar que a retratação superveniente de um dos nubentes, quando “manifestar-se arrependido” (CC, art. 1.538, III) após o consentimento e antes da referida declaração, acarreta a suspensão da solenidade. Tal fato demonstra que o casamento ainda não estava aperfeiçoado e que a manifestação de vontade dos nubentes só seria irretratável a partir da declaração do celebrante (GONÇALVES, 2017, pg. 128). Em nossa opinião, a leitura dos artigos 1.514 e 1.535 do CC indica que o nosso Código Civil considerou que é a vontade dos nubentes que determina o momento do casamento, sendo que a manifestação do celebrante se revela como meramente declaratória. 333 2.6. ESPÉCIES DE CASAMENTOS A presente classificação é adotada para fins didáticos, com o objetivo de chamar a atenção para certas peculiaridades na forma de celebração de determinados casamentos ou em razão da situação particular dos nubentes. a) Casamento putativo (art. 1.561/CC): ocorre quando presente uma causa de invalidação (nulidade ou anulabilidade) que não era conhecida dos nubentes quando da celebração. Assim, se os nubentes encontravam-se, por exemplo, impedidos para o casamento, mas desconheciam essa situação e a celebração efetivamente ocorre, o casamento, não obstante nulo, será considerado putativo e produzirá efeitos para aqueles que estavam de boa-fé quando da celebração. Exemplificando, se duas pessoas, desconhecendo a condição de irmãos (suponhamos que um deles não tinha a declaração do nome do pai em sua certidão de nascimento), se casam, esse casamento é nulo, posto que o artigo 1.521/CC prevê esse impedimento. Assim, se após a celebração, descobrem a condição de irmãos, o casamento será declarado nulo, mas haverá produção de efeitos, em especial quanto ao regime de bens. Porém, essa produção de efeitos só favorecerá o cônjuge que estava de boafé no momento da celebração. Essa observação tem importância porque se um dos cônjuges conhecia o impedimento e, ainda assim, contraiu o casamento, a ele não valerá a regra da putatividade, não podendo se beneficiar do regime de bens. Nesse caso, imaginemos que o casamento tenha sido celebrado com o regime de comunhão parcial de bens e o casal tenha adquirido um imóvel que se encontra registrado apenas no nome de um deles. Na hipótese, para que o cônjuge de má-fé tenha direito a alguma parcela desse bem, deverá mostrar sua participação na aquisição, porquanto, repita-se, não se beneficia do regime patrimonial de bens. Diferente seria a mesma situação se estivesse de boa-fé, pois ainda que o imóvel estivesse no nome do outro cônjuge, a putatividade implicaria na prevalência do regime de bens e, consequentemente, haveria a partilha do imóvel, na proporção de 50% para cada (comunhão parcial de bens). O casamento putativo configura, assim, uma exceção à teoria das nulidades, conferindo produção de efeitos mesmo na hipótese de nulidade. Configura uma indulgência com o cônjuge de boa-fé, permitindo, mesmo com a declaração de invalidade, a produção de efeitos, até a sentença, para o cônjuge de boa-fé, lembrando que, para a prole, o casamento mesmo invalidado, sempre produzirá efeitos. A apuração da boa-fé, como foi visto, ocorre no momento da celebração do casamento. A boa-fé conceitual do matrimônio putativo é a ignorância da causa de sua nulidade, não se exigindo a análise sobre a escusabilidade ou não do erro. b) Casamento em caso de moléstia grave (art. 1.539/CC): estabelece a legislação que, se um dos nubentes estiver acometido por uma moléstia grave, o presidente do ato, oficial de registro, vai celebrar o casamento onde estiver a pessoa, podendo, inclusive, ser celebrado à noite, se houver urgência. O casamento é celebrado perante 2 testemunhas, e a urgência pode dispensar o processo prévio de habilitação. Prevê, ainda, a legislação que na falta ou impedimento da autoridade competente do local, essa falta ou impedimento será suprida por qualquer dos substitutos legais do juiz de paz. Se a falta for do oficial de registro, ela será suprida por um oficial ad hoc, nomeado pelo juiz de paz para aquele ato. 334 c) Casamento nuncupativo ou extremis vitae momentis ou in articulo mortis (art. 1.540/CC): seria o casamento realizado na situação extrema, ou, como popularmente se diz, “à beira da morte”. O art. 1.540/CC diz que quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida, não obtendo a presença da autoridade, a qual incumbiria presidir o ato, este casamento poderá ser celebrado na presença de 6 testemunhas, que não tenham parentesco em linha reta ou colateral com os nubentes. Realizado o casamento nessa situação, as 6 testemunhas deverão comparecer perante a autoridade judicial no prazo de 10 dias, pedindo que essa autoridade judicial tome por termo suas declarações. Elas irão dizer, então, que foram convocadas por parte do enfermo. E que o enfermo estava realmente em perigo de vida, mas estava em seu juízo, sabendo o que estava fazendo, além de que, em sua presença, declararam os contraentes, livre e espontaneamente receber-se por marido e mulher. O pedido será autuado e, após a tomada das declarações das testemunhas, o juiz procederá às diligências necessárias para verificar se os contraentes podiam ter-se habilitado. Verificada a idoneidade dos cônjuges para o casamento, ele será tido como válido. Essas formalidades todas serão dispensadas se o enfermo convalescer e puder ratificar o casamento na presença do juiz e da autoridade competente (juiz de paz eventualmente, e o oficial de registro). d) Casamento por procuração (art. 1.542/CC): o casamento pode ser celebrado por procuração, sendo esta por instrumento público, com poderes especiais. A eficácia desse mandato não pode ultrapassar 90 dias. Inclusive, os dois nubentes podem se fazer representar por procuradores na cerimônia de casamento. A pergunta que se coloca é: podem os dois nubentes ter o mesmo procurador? Sobre o tema, Carlos Roberto Gonçalves explica que “Se ambos não puderem comparecer, deverão nomear procuradores diversos. Como a procuração é outorgada para o mandatário receber, em nome do outorgante, o outro contraente, deduz-se que ambos não podem nomear o mesmo procurador, até porque há a obrigação legal de cada procurador atuar em prol dos interesses de seu constituinte, e pode surgir algum conflito de interesses” (GONÇALVES, 2017, p. 133). Outorgada procuração para o casamento, posterior revogação do mandato deve ser por instrumento público. No caso de se realizar a cerimônia, sem a ciência do mandatário e do outro contraente acerca da revogação feita, o Código considera o casamento anulável (art. 1.550, V). Neste caso, responde o mandante por perdas e danos. e) Casamento avuncular: como já esclarecido em tópico próprio, o casamento de tio(a) com sobrinho(a) é permitido desde que haja atendimento ao disposto no Decreto-Lei 3.200/41. O casamento entre esses colaterais de terceiro grau é denominado avuncular. f) Casamento religioso com efeitos civis: o art. 226, §2º da CF, diz que o casamento religioso tem efeitos civis nos termos da lei. Essa matéria é regulamentada pelo art. 1.515/CC, que estabelece que o casamento religioso, que atender às exigências da lei para validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data da sua celebração. Portanto, esse registro terá efeitos retroativos à data da celebração do casamento religioso. Duas são as situações possíveis do casamento religioso com efeitos civis: 335 - 1ª situação: o casamento religioso foi precedido de habilitação, hipótese em que deverá ser registrado no prazo decadencial de 90 dias, sob pena de nova habili