Identidade linguística, identidade cultural: uma relação paradoxal Patrick Charaudeau Trad. Clebson Luiz de Brito e Wander Emediato de Souza É importante refletir sobre as questões de identidade social e cultural, sobretudo porque nossas sociedades, ditas modernas, passam por crises: crise identitária, crise cultural, crise de gerações, crise no ensino, crise de cidadania, crise comunitária etc. Pelo menos, é isso que está nas mídias, nas obras de sucesso, nas conversas entre amigos e, pode-se dizer, até mesmo nas experiências de vida de cada um de nós. É necessário, portanto, dedicar a essa questão uma reflexão mais profunda a partir dos mecanismos de análise que nos são fornecidos pelas ciências humanas e sociais. Evidentemente, existem diversas abordagens da questão identitária: sociológica, antropológica, psicológica, histórica etc. Cada uma delas merece uma investigação, mediante a construção de um objeto de estudo que lhe é próprio, isto é, em conformidade com seus pressupostos teóricos e sua metodologia. Nesse “concerto” das ciências humanas, as ciências da linguagem – e, mais particularmente, a análise do discurso – ocupam um lugar importante, pois a linguagem está no cerne da construção, tanto individual quanto coletiva, do sujeito, o que ocorre em três domínios de atividade humana: • o domínio da socialização dos indivíduos, na medida em que é através da linguagem que se instaura a relação de si com o outro e que se cria o elo social; • o domínio do pensamento, na medida em que é pela/através da linguagem que conceituamos, isto é, que extraímos o mundo de sua realidade empírica para fazê-lo significar; • o domínio dos valores, na medida em que estes precisam ser ditos para existir; é dessa forma que os atos de linguagem que os veiculam dão sentido à nossa ação. 14 Discurso e (des)igualdade social A atividade de linguagem constitui uma espécie de garantia de liberdade do indivíduo como possibilidade de interrogação e análise sobre o outro e sobre si mesmo, e como possibilidade de controle de nossos afetos. Nada mais complexo, portanto, do que a identidade, que resulta de um cruzamento de vários fatores, sem contar a dificuldade de abordá-la, tendo em vista seu impacto social e político: será que é possível falar de identidade sem ser tachado de comunitarista ou de anticomunitarista? Eis o desafio que se me apresenta neste texto, e que tentarei resolver sem tomar partido ou fazer concessões, tendo consciência de que essa é uma questão, ao mesmo tempo, complexa (mais do que nunca), delicada (do ponto de vista político) e, por vezes, enganosa (no plano social). Alguns problemas preliminares à questão identitária Um certo número de problemas aparece quando se pretende abordar a questão da identidade: quem a julga? Ela é individual ou coletiva? Qual é sua origem? Ela resulta da natureza ou da cultura? Quem julga a identidade de alguém? É o olhar do outro sobre si mesmo, do outro que me julga desta ou daquela maneira? É o olhar de si sobre si mesmo, como quando eu me avalio diante do espelho ou quando, às vezes, revelo aquilo que acredito ser? É o meu olhar sobre o outro, quando me ponho a julgá-lo? Em todo caso, o problema da identidade começa quando alguém fala de mim, o que me obriga a interrogar-me sobre “quem sou eu?”: aquele que acredito ser, ou aquele que o outro diz que eu sou? Eu, que me olho, ou eu mesmo através do olhar do outro? Mas, quando eu me olho, consigo me ver sem um olhar exterior que se interpõe entre mim e mim mesmo? Não é sempre o outro que me remete a mim mesmo? A identidade é individual ou coletiva? Questão difícil de resolver, pois todo indivíduo é um ser social pelo fato de viver em sociedade. Mas esse indivíduo pertence a que grupo? A um grupo de referência ideal, imaginado, ao qual ele acredita (deseja) pertencer, ou a seu grupo de pertencimento real? Pertencemos a apenas um grupo ou possuiríamos um “multipertencimento” em função de nossa idade, nosso sexo, nossa profissão, nossa classe social etc.? É verdade que temos dificuldade em pensar em nós mesmos como pertencendo a uma coletividade. Gostaríamos de acreditar, sempre, que “eu sou eu, você é você e ele é ele”; vemo-nos sempre como um ser singular, diferente dos outros, que se recusa a confundir-se com o grupo, a pensar como os outros membros do grupo, a desaparecer na massa de Identidade linguística, identidade cultural 15 um pensamento coletivo. Talvez, aliás, porque não estejamos convencidos dessa singularidade absoluta que reivindicamos, às vezes, no grito: “quanto a mim, eu não sou como os outros”. Uma espécie de reivindicação do “direito a ser eu mesmo”. Porém, não há ato que realizemos, nem pensamento que exprimamos que não contenha o traço de nosso pertencimento à coletividade. Vivemos em grupo, a começar pela família, reunindo-nos com os amigos, estabelecendo relações de dependência no ambiente de trabalho ou agindo como cidadãos (pelo voto ou pela ação militante). Pois, para viver bem em sociedade, o indivíduo é levado a elaborar com outros membros do grupo normas de comportamento social e a respeitar tais normas, sem as quais não haveria senão anarquia incontrolável. Por mais selvagem que sejamos, vivemos em sociedade, isto é, em relação com os outros. Então, surge novamente a questão: quem sou eu no grupo ou, mais exatamente, passando-se da condição de sujeito à de objeto: o que sou eu no grupo? Se sou, em parte, o que é o grupo, qual é ele? Ele se define nele mesmo pelo que lhe é imposto, ou por oposição a outros grupos? Por exemplo, na minha condição de francês, sou cartesiano, gaulês, arrogante, tal como isso me é, geralmente, atribuído pelos outros, ou devo jogar fora os estereótipos? E, no entanto, mesmo que não queiramos nos ver como indivíduos dependentes do grupo, é pelo olhar dos outros que somos marcados, etiquetados, categorizados: nossas vestimentas, nossa maquiagem, nosso penteado, nossa linguagem, nosso andar, e mesmo o que nos é mais inerente, como o sexo e a idade, tudo isso atesta nosso pertencimento a uma categoria de indivíduos, o que permite aos outros classificar-nos nesta ou naquela categoria. Soma-se a isso uma outra característica igualmente difícil de aceitar: a identidade de um grupo não é a soma das identidades individuais, e a opinião de um grupo não é o resultado da adição das opiniões individuais. Os julgamentos que fazemos sobre o mundo e as opiniões que acreditamos ser individuais se mesclam às do grupo, tornando-se mais globais. E, quanto mais expressivo é o grupo em número de indivíduos, mais gerais e abstratas são essas representações: a opinião de um grupo é o menor denominador comum das opiniões de cada um, o que oculta as particularidades individuais. Na identidade coletiva, um mais um não são dois, mas um novo um que engloba ambos. Eis porque geralmente temos dificuldade de nos reconhecermos no julgamento dos outros. Não sabemos exatamente qual é a parte de nossa singularidade, de nosso pertencimento ao grupo e do efeito do olhar dos outros sobre nós. Fazemos parte de uma mise en scène social no interior da qual agimos e pensamos, interrogando-nos constantemente: “quem somos nós?” ou “o que somos nós?”. A identidade é, assim, 16 Discurso e (des)igualdade social um problema complexo, pois ela não é apenas um problema do indivíduo, mas também dos outros ou, mais exatamente, o problema de si através do olhar dos outros. De onde vem a identidade cultural? Ela é herdada? Imposta? Ela tem uma origem? Circula, a esse respeito, a ideia de que a identidade cultural viria dos primórdios e que seria preciso reencontrá-la: seria um “paraíso perdido” a reconquistar. Essa ideia é particularmente dominante em nossa época, e talvez seja uma marca de nossa modernidade. Foi necessário para isso que as guerras se afastassem em horizontes de tempo e espaço longínquos, que as grandes causas de lutas sociais entrassem em colapso e que, desaparecendo as referências tradicionais, os elos sociais, inevitavelmente, se afrouxassem. A identidade do grupo, não podendo mais se construir na ação, nem na perspectiva de um “ser conjunto” contra um “outro-inimigo”, traz à memória um passado, uma origem para a qual nos voltamos com nostalgia e que desejamos resgatar. A partir de então, opera-se um movimento de retorno em direção a essas origens tanto por parte dos indivíduos, como por parte dos grupos sociais, com uma vontade mais ou menos evidente (mais ou menos combativa) de reaver esse paraíso perdido. Essa origem se concretiza, aqui, como um território (a Córsega); ali, como uma língua (o catalão, o basco); aqui, no ressurgimento de costumes antigos (o tribalismo na África ou na Índia); ali, como uma etnia que tinha se misturado e que é preciso purificar (na Sérvia, no País Basco); ou ainda como releitura dos valores religiosos (os integrismos). É uma espécie de busca de si mesmo, em nome de uma busca da autenticidade: alcançar sua identidade seria alcançar a autenticidade do seu ser. Movimento de retrocesso ou de purificação? A identidade resulta da natureza ou da cultura? É no século XVIII que nasce essa ideia de que a cultura é como uma “essência” que se fixa nos povos, uma essência que é expressa pelas obras de arte; daí que cada povo se caracterizaria por seu gênio. Este seria mais racional na França (é o Século das Luzes e o triunfo da razão sobre a barbárie), mais irracional na Alemanha (é o século de uma filosofia anticientífica e o triunfo do romantismo). No século XIX, essa ideia é reativada, ocorrendo um deslocamento do conceito de cultura do lugar do conhecimento e da inspiração que produzem as grandes obras para o do lugar do comportamento dos homens que vivem em sociedade: “O conjunto dos hábitos adquiridos pelo homem em sociedade”, diz Tylor, em 1871. Ora, se aceitamos prontamente que há várias sociedades e, portanto, várias culturas, cada grupo social é sua própria cultura, da qual ele é herdeiro, contra a qual ele nada pode fazer (fatalidade), que o sobredetermina e à qual ele adere de modo substancial. É a época da delimitação dos territórios, da homogeneização das comunidades no interior desses Identidade linguística, identidade cultural 17 territórios; em suma, da constituição dos Estados-Nação. É em nome dessa concepção de identidade como essência nacional que se farão as guerras do século seguinte. Porém, é curioso verificar que é nessa mesma época que se reconhece que essa identidade pode perder sua pureza original. Isso ocorre porque, diante dos grandes movimentos migratórios que levaram a deslocamentos e misturas de populações, é forçoso constatar que algumas delas perderam sua cultura de origem e se apropriaram em parte de uma nova cultura. Consequentemente, os processos de aculturação justificam, ao mesmo tempo e por reação, que o ser humano vá em busca de sua cultura original. É com base nessa última constatação que o século XX chegará a declarar, como explicam E. Durkheim e M. Mauss, que a cultura não preexiste aos indivíduos, que são eles que, vivendo em grupos, criam um “enraizamento social”. Em razão das inúmeras trocas, e na busca por regular as relações de força que se instauram no grupo,1 os indivíduos se dotam de traços que os caracterizam de modo particular, mas, ao mesmo tempo, criam múltiplos subgrupos no interior de um grupo, fenômeno que corresponde ao que C. Lévy-Strauss chama de “as variantes culturais”. Disso resulta a ideia de que a identidade cultural é, ao mesmo tempo, estável e movediça. Ela pode até evoluir no tempo, mas ela também se reconhece nas grandes áreas civilizacionais, históricas: é o que os antropólogos chamam de hipótese do “continuísmo”. Não se diz que o século XVI foi ítalo-ibérico; o XVII e o XVIII, franceses; o XIX, anglo-germânico, assim como o XX seria americano? Mas o que isso quer dizer? Trata-se ainda de uma essência? O “essencialismo” e “a busca da origem” que acabamos de considerar são duas ideias falsas. A ideia, segundo a qual o indivíduo ou um grupo humano funda(m) sua existência sobre uma perenidade, sobre um substrato cultural estável, que seria o mesmo desde a origem dos tempos, sobre uma “essência”, não se sustenta. Se, no entanto, existe uma identidade coletiva, esta só pode ser a que está relacionada àquilo que é partilhado, logo, à produção de um sentido coletivo. Trata-se, porém, de uma partilha instável, cujas fronteiras são imprecisas e na qual intervêm influências múltiplas. É uma ilusão crer que nossa identidade repousa sobre uma entidade única, homogênea, uma essência que constituiria nosso substrato do ser: “Não existe identidade ‘natural’ que nos seria imposta pela força das coisas. Não há senão estratégias identitárias, racionalmente conduzidas por atores identificáveis. Nós não estamos condenados a permanecer reféns desses sortilégios” (Bayard, 1996). Infelizmente, essa ilusão – esse sortilégio – é o que impede que se atinja a identidade plural dos seres e das comunidades e, infelizmente, é uma ilusão em nome da qual muitos abusos são cometidos. 18 Discurso e (des)igualdade social Quanto à “busca de si”, eis outra falsa ideia igualmente perigosa. O que é a autenticidade de um indivíduo ou de um grupo? O retorno à condição de feto para o indivíduo, à origem da espécie para o grupo? A busca pela origem não é sempre uma fantasia? Vamos nos desvencilhar dessas duas noções e estabelecer que “ser eu mesmo” é, primeiramente, me ver diferente do outro; que, se há uma busca do sujeito, isso é, antes de mais nada, a busca de não ser o outro. De forma similar, o pertencimento a um grupo é, em primeiro lugar, o não pertencimento a um outro grupo, e a busca do grupo, enquanto entidade coletiva, é igualmente a busca do “não outro”. A identidade é uma questão de construção permanente sobre uma base de história. O mecanismo de construção identitária Convém, então, examinar o mecanismo psicológico e social que preside a construção da identidade. Para tanto, fundamentamo-nos na reflexão elaborada pela filosofia contemporânea (particularmente a fenomenologia) acerca da noção de “sujeito” e na abordagem da psicologia social: para que haja tomada de consciência identitária, é necessário que se perceba uma diferença e que se estabeleça uma certa relação face ao outro. Percepção de uma diferença Não há tomada de consciência da própria existência sem percepção da existência de um outro que seja diferente. A percepção da diferença do outro constitui, antes de mais nada, a prova da própria identidade. É o princípio da alteridade. É essa diferença do outro que faz com que eu olhe para mim mesmo, comparando-me a ele, procurando detectar os pontos de semelhança e de diferença; do contrário, como perceber os traços que me seriam próprios? “Ele é diferente de mim, logo eu sou diferente dele, logo eu existo”. Seria necessário corrigir ligeiramente Descartes e fazê-lo dizer: “Penso diferentemente, logo existo”. É somente percebendo o outro como diferente que pode nascer a consciência identitária. Sendo percebida a diferença, desencadeia-se, então, no sujeito um duplo movimento: de atração e de rejeição em relação ao outro. Movimento de “atração” Esse movimento se explica porque há um enigma a ser resolvido. Poderíamos chamá-lo de “enigma do persa”, pensando em Montesquieu: “como alguém Identidade linguística, identidade cultural 19 pode ser diferente de mim?”. Descobrir que existe o diferente de si é descobrirse incompleto, imperfeito, inacabado. E quem pode suportar impassível essa incompletude, essa imperfeição, esse inacabamento? É o que explica essa força subterrânea que nos move para a compreensão do outro; não no sentido moral, de aceitação do outro, mas no sentido etimológico de apreensão do outro, de seu controle, que pode chegar a sua absorção, sua “predação”, como se diz em etologia. Não podemos escapar a essa fascinação do outro, a esse desejo de “um outro de si mesmo”. Trata-se de um movimento de apreensão do outro para, em última instância, estabelecer uma partilha, chegar a dividir algo comum, a fim de resolver esse problema da diferença. Movimento de“ rejeição” Tal movimento se dá porque essa diferença representa uma ameaça para o sujeito. Essa diferença faria com que o outro fosse superior a mim? Que fosse mais perfeito? Que tivesse mais razão de ser do que eu mesmo? É por isso que a percepção da diferença é acompanhada, geralmente, de um julgamento negativo. Trata-se da sobrevivência do sujeito. É como se não fosse suportável aceitar que outros valores, outras normas, outros hábitos – senão os próprios – fossem melhores ou que simplesmente existissem. Quando esse julgamento se consolida e se generaliza, ele se torna o que chamamos tradicionalmente de estereótipo, clichê, preconceito. Convém não desprezar os esterótipos; eles são uma necessidade. Eles constituem, em primeiro lugar, uma proteção, uma arma de defesa contra a ameaça representada pelo outro na sua diferença e, além disso, eles nos são úteis para estudar os imaginários dos grupos sociais. Evidentemente, esses julgamentos negativos apresentam um inconveniente: ao julgar o outro negativamente, protegemos nossa identidade, mas também caricaturamos a do outro e, por conseguinte, a nossa própria, persuadindonos de que temos razão face ao outro. Nesse sentido, o julgamento estereotipado é como o fenômeno da refração/reflexão de um raio luminoso sobre uma superfície líquida: o julgamento que eu faço do outro diz algo sobre o outro, deformando-o (refração); reciprocamente, esse julgamento diz algo sobre mim mesmo (reflexão). É assim que, no contato com o estrangeiro, o julgaremos demasiadamente racional, frio ou agressivo, persuadidos de que somos, nós mesmos, sensíveis, afetuosos, acolhedores e respeitosos para com o outro. Ou então, ao contrário, julgaremos o outro como anarquista, extrovertido, pouco confiável, persuadidos de que somos, nós mesmos, racionais, controlados, diretos, francos e confiáveis. Assim, somos 20 Discurso e (des)igualdade social levados a julgar o outro negativamente, sobretudo porque estamos convencidos de que nossas normas de comportamento e nossos valores são os únicos possíveis. Vê-se o paradoxo sobre o qual se constrói nossa identidade. Precisamos do outro, do outro na sua diferença, para tomar consciência de nossa existência, mas, ao mesmo tempo, desconfiamos dele, sentimos a necessidade seja de rejeitá-lo, seja de torná-lo semelhante a nós para eliminar essa diferença: se o rejeitamos, maior é a possibilidade de nos vermos diferentes; se o tornamos semelhante, nossas particularidades desaparecem. Não é, portanto, simples sermos nós mesmos, visto que isso implica a existência e a conquista do outro. “Eu é um outro”, dizia Rimbaud. Caberia especificar: “eu é um outro eu-mesmo semelhante e diferente”. A identidade se constrói, como foi dito, segundo um princípio de alteridade, que põe em relação, em jogos sutis de atração e rejeição, o mesmo e o outro, os quais se autoidentificam de maneira dialética. Os efeitos sobre a construção identitária do grupo Para os grupos, os efeitos desse duplo movimento são de quatro ordens: 1.A inclinação do grupo para si mesmo. O grupo que se sente ameaçado na sua identidade pela presença de um outro grupo que tende a dominá-lo poderá reagir reivindicando valores que lhe são próprios e voltando-se para si mesmo. Assim se constroem os regionalismos, os comunitarismos, os partidos e outros agrupamentos comunitários. Esse movimento corresponde ao que os dialetólogos chamam de “força local”, quando se trata de explicar o fenômeno da constituição das línguas. 2.A abertura do grupo para os outros. O grupo se abre às influências exteriores, vai em direção aos outros ou os deixa vir até si, assimila-os ou se deixa penetrar por eles. Esse movimento corresponde ao que os dialetólogos denominam “força de intercurso” para explicar o fenômeno da contaminação das línguas. 3.A dominação de um grupo pelo outro. O grupo que se sente superior tentará ou integrar o outro grupo, fazê-lo fundir-se consigo, digeri-lo – é o que se produz por ocasião da colonização e de movimentos de imigração vistos do lado do país de entrada, o que, às vezes, vem acompanhado da imposição de uma língua –; ou eliminar o outro grupo, de forma mais ou menos radical, sobretudo se este já se encontra no território do grupo dominante; é assim que se produzem os massacres e outros genocídios. Identidade linguística, identidade cultural 21 4.A mescla do grupo. O contato entre dois grupos, o estreitamento de suas relações e de sua coexistência, acaba por produzir uma mistura das características de cada um deles, por meio de múltiplos cruzamentos (casamentos, associações, terceira geração de migrantes). Mas, para que o grupo não se desagregue, é necessário que, para além dessa hibridização, o grupo possa se referir a um valor comum que lhe sirva de elo identitário. Esse é o caso do “sucesso social” no melting-pot americano, da “República” para os imigrantes na França, da “crença religiosa” para a diáspora judaica. Assim se diferenciam as culturas ocidentais segundo elas correspondam a um ou outro desses modelos, como se vê ao longo da história e ainda hoje em diferentes partes do mundo. Uma vez mais, constata-se que a construção identitária do sujeito se faz numa contradição entre o desejo de ser singular, único, específico, e o desejo de pertencimento coletivo. Afinal, como se sentir existindo a não ser referindo-se a um absoluto único, e, ao mesmo tempo, como se sentir existindo quando se está sozinho, sem pertencimento a um grupo? Reside aí a contradição que nunca se resolverá. Os imaginários socioculturais Esse encontro de si com o outro se realiza não apenas por meio de ações que os indivíduos praticam na vida em sociedade, mas também por meio de seus julgamentos sobre a legitimidade dessas ações, de si e dos outros, isto é, por meio de suas representações. Essas representações evidenciam imaginários coletivos que são produzidos pelos indivíduos que vivem em sociedade, imaginários esses que manifestam, por sua vez, valores por eles compartilhados, nos quais eles se reconhecem e que constituem sua memória identitária. Convém, então, estudar esses imaginários para se ter a dimensão das identidades coletivas, pois eles representam aquilo “em nome do que” tais identidades se constroem. São inúmeros os imaginários coletivos, e seu estudo é um vasto domínio que deveria ocupar o centro das ciências humanas e sociais, nas próximas décadas. Faremos referência a apenas alguns deles, sem essencializá-los, identificando o que chamaremos de “traços identitários”. Distinguiremos três tipos de imaginários: 1) os imaginários antropológicos; 2) os imaginários de crença; 3) os imaginários socioinstitucionais. Vamos a eles: 22 Discurso e (des)igualdade social 1.Os imaginários antropológicos resultam do comportamento dos indivíduos que vivem em grupo e cujos motivos são, em grande medida, inconscientes, mas cujos discursos de justificação erigem-se em norma social absoluta. A seguir, evocaremos alguns deles: • Os imaginários relacionados ao espaço atestam a maneira como os indivíduos de um grupo social representam para si mesmos o seu território, como aí se movimentam, como o estruturam, determinando nele pontos de referência, e como aí se orientam. Nesse sentido, perguntamo-nos em que medida as dimensões do território, seu relevo, seu clima influenciam os comportamentos e as representações dos indivíduos que nele vivem. Por exemplo, observa-se que a relação cidade/campo não é a mesma no continente europeu e no continente americano. Isso tem incidência sobre a maneira como os indivíduos que vivem em cada um desses continentes concebem a cidade (lugar de recolhimento) e o campo (lugar de abertura). • Os imaginários relacionados ao tempo evidenciam a maneira como os indivíduos representam para si mesmos as relações entre o passado, o presente e o futuro, bem como a extensão de cada um desses momentos. Há povos para os quais o tempo é racionalizado de tal maneira que este é demarcado em função de atividades bem determinadas. Há outros que o racionalizam diferentemente, ou dizem que não o racionalizam. Há alguns que “recortam” o tempo e outros que o atravessam. Além disso, o imaginário do tempo também incide sobre o lugar simbólico que ocupam, numa sociedade, as idades e as gerações, o passado e o futuro. • Os imaginários relacionados ao corpo mostram a maneira como os indivíduos representam para si próprios o lugar que o corpo ocupa no espaço social. Como os corpos se movem? Eles podem estar em contato fora de uma situação de intimidade, como em certas sociedades (Brasil), ou eles se mantêm à distância (Estados Unidos)? O corpo pode ser exposto na sua nudez? E quais partes podem ser mostradas? Ele é alvo de cuidados, de manutenção; mas, afinal, quem faz com que ele seja julgado “limpo” ou “sujo”, em relação às aparências (acessórios, vestimentas) e aos odores? Quais são os tabus (gestuais) que a ele se ligam? • Os imaginários ligados às relações sociais, que evidenciam a maneira pela qual os indivíduos representam para si mesmos como devem ser seus comportamentos em sociedade e que engendram os chamados “rituais sociais”: rituais de cumprimentos, de desculpas e de polidez; rituais de injúrias e insultos. Observando-se a maneira como os indivíduos de um Identidade linguística, identidade cultural 23 grupo gerem o humor, pode-se constatar que determinado povo é mais propenso a praticar a derrisão; outro, a ironia; e ainda outro, o absurdo. Mas pode-se observar também o modo como os indivíduos costumam discutir – até mesmo criar polêmicas –, e será possível notar que alguns o fazem de maneira direta, contradizendo explicitamente o outro; outros, de modo indireto, por meio de subentendidos, evitando magoar o outro. Por exemplo, sabe-se que a sociedade francesa tem um gosto notável pelo debate polêmico (político, cultural), enquanto as sociedades latinoamericanas, por receio de ofender o outro, jamais criticam abertamente. Poderíamos ainda buscar traços em outros domínios, como os imaginários relativos ao sexo, à idade, aos sentimentos (como se dá a linguagem amorosa; que tipo de linguagem – e, portanto, de autoridade – se dá entre pais e filhos; linguagem entre amigos, sejam eles homens ou mulheres etc.), mas a lista seria longa demais. Nesse sentido, procuramos apenas dar alguns exemplos. 2.Os imaginários de crença (embora todos os imaginários sejam de crença) são elaborados por discursos de representação e transmitidos em lugares de inculcação, tais como as instituições (a escola, a família etc), os locais de trabalho, os escritos, as mídias. Seguem também aqui alguns casos: • Os imaginários relacionados à história e à linhagem. O peso da história não significa o retorno ao passado, mas o processo pelo qual um povo, à força de ações e palavras, constitui para si um modo de pensamento, uma moral veiculada por sistemas de valores, uma sensibilidade por meio dos modos de vida que elabora. Esses imaginários dizem muito sobre a maneira como os indivíduos representam para si próprios suas heranças históricas que dão mostra do valor simbólico atribuído a suas filiações: em relação a que herança nos sentimos responsáveis? Que sistemas de valores cremos que devemos transmitir? Assim, vemos certos países se inscreverem numa filiação de “direito de sangue”, que instaura sociedades fundadas na “segregação”, concebida como uma coexistência de diferenças, em que o outro é aceito com seu pertencimento identitário, desde que tal pertencimento não exceda o grupo no interior do qual ele se origina. Disso resulta uma organização social em grupos, clubes ou mesmo guetos e em cotas de representação social (idade, sexo, etnia etc.). Outras sociedades se inscrevem numa filiação de “direito de solo”, fundada na integração, que implica que o outro seja “re-identificado” segundo os valores da cidade (República) ou do solo (Nação). Daí uma 24 Discurso e (des)igualdade social organização social centralizada em torno de “máquinas integrativas”, como o sistema educativo, as forças armadas, as atividades de lazer etc (Todd, 1994). Outras se inscrevem numa filiação ainda mais complexa: é o caso de sociedades que se constituíram por “ondas” de imigração e nas quais aos dois imaginários anteriores se sobrepõe o imaginário do “direito ao/pelo sucesso”, como na América do Norte. Isso permite pensar que a visão sobre o estrangeiro não é a mesma, segundo se tenha sido educado neste ou naquele tipo de sociedade. • Os imaginários relacionados às crenças religiosas fazem parte desses imaginários de crença. Não haveria espaço suficiente para descrevê-los em detalhes. Sabe-se, no entanto, que, segundo se supõe ao catolicismo, ao protestantismo, ao judaísmo ou ao islamismo, as visões acerca da vida em sociedade, os valores (em relação ao dinheiro, ao sexo, à linguagem) e os comportamentos não são os mesmos. Esta é provavelmente uma das razões do efeito polêmico produzido no caso das caricaturas de Maomé.* 3.Os imaginários socioinstitucionais. Trata-se dos imaginários que resultam de uma certa mistura das práticas e das representações sociais mantidas pelas formas de organização da vida em sociedade. Isso porque a identidade coletiva e o sentimento identitário que a acompanha precisam ser mantidos por uma organização político-administrativa sólida, que desempenha o papel de espelho, cujas leis e regras de funcionamento constituem as referências às quais o indivíduo tem necessidade de se vincular para fortalecer as representações coletivas e constituir, assim, um escudo contra uma diluição do sentimento identitário. Desse modo, uma organização socioeconômica sólida (que implica ter trabalho e um poder aquisitivo para manter a casa) favorece a integração e o sentimento de pertencimento. A escola desempenha aqui um papel essencial, pois, como lugar de inculcação do saber e dos valores, constitui um fator de integração. É por um entrecruzamento desses diversos imaginários que se constrói a identidade coletiva, na proporção do tamanho do grupo e do que ele representa, e, particularmente, as identidades nacional, regional, comunitária ou supranacional. É à luz desses entrecruzamentos que podemos interrogar-nos se existe uma identidade europeia. * N.T. O autor se refere à publicação, pela revista francesa Charlie Hebdo, de uma caricatura de Maomé na capa do número de 19/09/2012, época de clima tenso no mundo árabe por causa de um filme anti-Islã produzido nos Estados Unidos. Sete anos antes, um jornal dinamarquês já havia publicado caricaturas do profeta, gerando revolta e protestos entre os muçulmanos. Identidade linguística, identidade cultural 25 A identidade europeia em questão Como acabamos de ver, a identidade nacional não é algo simples de se determinar, já que ela depende de múltiplos fatores. Do ponto de vista cultural, na França, na Itália, na Espanha, na Alemanha, na Inglaterra, não se têm os mesmos hábitos comportamentais (a maneira de comer, de se movimentar no espaço, de entender o tempo); as mesmas sensibilidades (as mesmas papilas gustativas, o mesmo olhar estético); os mesmo modos de raciocínio (mais pragmático aqui, mais retórico lá; mais sóbrio aqui, mais prolixo lá; mais abstrato e teórico aqui, mais concreto e aplicado lá); os mesmos sistemas de valores: as mesmas maneiras de viver as crenças religiosas e pagãs, as mesmas concepções e práticas jurídicas, políticas, econômicas, culturais e educativas; os mesmos rituais, que evidenciam a forma como cada povo concebe suas relações com o outro (maneira de abordá-lo, de submetê-lo, de ajudá-lo), suas relações com as instituições (respeito ou desprezo a priori), com a vida cotidiana (horários, passatempos). Enfim, é preciso acrescentar, não se tem a mesma língua, marca de uma forma de pensamento, de uma visão particular do mundo, de valores próprios e de especificidades culturais, como se verá mais à frente. A identidade nacional não se decreta. Ela se constrói através da história e, para os povos europeus, isso se fez de forma árdua, cruelmente, com lágrimas e sangue. Alguns desejariam abolir as fronteiras nacionais, mas o que há de comum entre um alemão, um inglês, um espanhol, um italiano, um português, um grego e um francês? Uma vez mais, uma entidade supranacional não é a soma das entidades nacionais. Será preciso tempo para constituir uma unidade europeia. Mas uma nova questão surge: como construir uma identidade europeia consensual e sem inimigos? Isso não quer dizer que esses povos não devam trabalhar para estabelecer trocas e para tentar se entender, mas é preciso não confundir vontade e estratégia política para fins de pacificação com comunidade cultural homogênea. Imaginários sobre a língua É preciso dar especial destaque aos imaginários sobre a língua, pois eles denotam a maneira como os indivíduos se veem enquanto pertencentes a uma mesma comunidade linguística. Aqui dois pontos de vista se confrontam. Existe uma representação unitária da língua, amplamente compartilhada em diferentes culturas, que afirma que os indivíduos se identificam com uma coletividade única, graças ao espelho de uma língua comum que cada um estenderia ao outro e na qual todos se reconheceriam. Essa 26 Discurso e (des)igualdade social é uma ideia que remonta aos tempos em que as línguas começam a ser codificadas sob a forma de dicionários e, sobretudo, de gramáticas. Na Europa, na Idade Média, começam a florescer gramáticas2 como uma tentativa de unificar povos cujos componentes regionais e feudais guerreavam entre si. Já no século XIX, sabe-se que a fórmula “uma língua, um povo, uma nação” contribuiu para a delimitação de territórios nacionais e, ao mesmo tempo, para o desencadeamento de conflitos relacionados à defesa ou à apropriação desses territórios, cujo interesse era a criação de uma consciência nacional. Tal ideia foi defendida com mais ou menos vigor pelas nações, segundo tivessem conseguido integrar e homogeneizar as diferenças e as especificidades linguísticas locais e regionais (como na França), ou tivessem encontrado resistência, criando uma situação linguística fragmentada (como na Espanha ou no Reino Unido). Esse imaginário da identidade linguística é mantido por dois discursos que se reforçam mutuamente. Um deles sustenta a ideia de que a língua seria um dom da mãe natureza que nos seria oferecido desde o nascimento e que constituiria nosso ser de maneira própria: foi assim que se construiu a simbologia do gênio de um povo. O outro discurso afirma que esse dom, pelo qual seríamos todos responsáveis, seria recebido como herança e deveria ser transmitido dessa mesma forma. É por isso que se continua a dizer que aqui se fala a língua de Molière: lá, a língua de Shakespeare; lá ainda, a de Goethe, de Dante, ou de Cervantes, quando, na verdade, são outras línguas que falamos na nossa modernidade. É evidente que a língua é necessária à constituição de uma identidade coletiva, que ela garante a coesão social de uma comunidade e que constitui o “cimento” dessa comunidade, quanto mais presente se faz. É por meio dela que se dá a integração social e que se forja a simbólica identitária. É igualmente evidente que a língua nos torna responsáveis pelo passado, com o qual cria uma solidariedade, fazendo com que nossa identidade seja moldada na história e que, consequentemente, tenhamos sempre algo a ver com nossa própria filiação por mais longínqua que seja. Um outro ponto de vista assenta-se sobre a ideia de que a língua não é a totalidade da cultura. Com efeito, pode-se perguntar se é a língua que tem um papel identitário ou se é aquilo que chamamos de discurso, isto é, o uso que se faz da língua, por meio do ato de enunciação que a coloca em funcionamento. Contra uma ideia tão disseminada, seria necessário dissociar língua e cultura, e associar discurso e cultura. Se língua e cultura coincidissem, as culturas francesa, quebequense, belga e suíça seriam idênticas, sob a alegação de que há uma comunidade linguística. O mesmo se daria com as culturas brasileira e portuguesa, de um lado, e as diferentes culturas de países de língua espanhola ou inglesa na América e na Europa. Ora, estamos certos de que nos compreendemos perfeitamente, apesar da existência de uma língua comum? Identidade linguística, identidade cultural 27 Não são tanto as palavras na sua morfologia nem as regras de sintaxe que são portadoras de cultura, mas, sim, as maneiras de falar de cada comunidade, as maneiras de empregar as palavras, os modos de raciocinar, de relatar, de argumentar para fazer rir, para explicar, para persuadir, para seduzir. É necessário distinguir o pensamento em francês, em espanhol ou em português do pensamento francês, espanhol, mexicano, português e brasileiro. Podemos expressar uma forma de pensamento construída em nossa língua de origem por meio de outra língua, mesmo se esta tem, em contrapartida, alguma influência sobre esse pensamento; inversamente, uma língua pode veicular formas de pensamento diferentes. Todos os escritores que se expressaram diretamente numa língua que não a sua língua materna são uma prova viva disso. O que ocorre é que o pensamento se concretiza no discurso, e o discurso é a língua empregada socialmente, segundo os hábitos culturais do grupo ao qual pertence aquele que fala. A questão pertinente é, pois, a seguinte: troca-se de cultura quando se troca de língua? A resposta não é simples. Um francês que atravessa a fronteira espanhola vê, em primeiro lugar, espanhóis, não percebendo qualquer diferença entre um catalão, um basco, um galego, um castelhano, diferenças que são percebidas entre eles no interior do território espanhol. Será que um francês que fosse viver no Quebec poderia dizer que os quebequenses partilham com ele a mesma cultura, apesar de existir uma comunidade de língua? O que ocorre quando num mesmo território coexistem vários falares? O que prevalece: comunidades de discurso com línguas diferentes ou uma comunidade de língua com discursos diferentes? Responder a essas questões torna-se bem mais difícil quando, em certas circunstâncias históricas, a identidade linguística como língua se funde com uma identidade étnica, social ou nacional. Isso se produz a cada vez que uma comunidade se sente ameaçada e busca reaver uma identidade perdida, como nos países ou regiões que passaram por uma colonização cultural ou política. Mas é necessário, de todo modo, que se coloquem tais questões e que não se dê como adquirido aquilo que é sintoma do estado identitário de um grupo social. De qualquer forma, isso nos incita a reconhecer que nenhuma língua, em si, pode pretender à universalidade. Sabe-se, inclusive, que as línguas não desaparecem por causa de uma fraqueza inerente a seu sistema, mas por razões políticas, econômicas e sociais: de um lado, a vontade dos Estados que buscam estender sua hegemonia (imposição) ou preservar sua integridade (defesa); de outro, a vontade dos povos de preservar suas diferenças. Entre essas duas tensões, que jogo de regulação é mais vantajoso aos povos? Vários casos podem apresentar-se: um bilinguismo coletivo, uma situação de diglossia, em lugares onde a história permitiu uma coexistência entre duas línguas, 28 Discurso e (des)igualdade social como na Catalunha – mas essa situação diz respeito ao conjunto da população que vive no mesmo território? –; um pluri- (ou multi-)linguismo, nos lugares onde coexistem comunidades linguísticas, elas próprias bilíngues ou até trilíngues, como é o caso em certos países da África – mas aí também pode-se perguntar: que parte da população está envolvida? –; um mono- (ou uni-)linguismo, por um longo processo de assimilação de diferentes falares locais numa língua comum, como é o caso da França. Conclusão É em nome desses imaginários que se criam diversos comunitarismos, de Estados-Nação, de territórios, de grupos, de etnias, de doutrinas laicas ou religiosas. Mas o comunitarismo encerra armadilhas: a do aprisionamento dos indivíduos em categorias, em essências comunitárias, o que os leva a agir e a pensar apenas em função das etiquetas que carregam sobre a testa; a da dupla exclusão, de si em relação aos outros e dos outros em relação a si mesmo, o que, às vezes, os leva a bradar slogans de morte ao outro; a da autossatisfação, que consiste em se comprazer com sua própria reivindicação e em não mais ver como é o resto do mundo, o que não pode senão exacerbar as tensões entre comunidades opostas. Aí reside a origem dos conflitos pela marcação de uma diferença e pela apropriação de um território, como se viu nos Bálcãs e como ainda se vê no Oriente Médio. Inversamente, o imaginário do poder, da eficácia e mesmo da justiça (estender a igualdade ao maior número de pessoas) leva à extensão, à expansão e ao agrupamento do maior número, seguindo um processo de homogeneização uniformizante. É o mundialismo. Com isso, diante dessas tendências ao comunitarismo estreito ou ao mundialismo do anonimato, é preferível defender a ideia de que uma sociedade se compõe de múltiplas comunidades que se entrecruzam num mesmo território, ou se reconhecem a distância. No fundo, todas as sociedades, inclusive as europeias, são compósitas e tendem a sê-lo cada vez mais: movimentos complexos de migrações e de integrações, de um lado; multiplicação dos comunitarismos, do outro. É preciso defender a ideia de que a identidade cultural é o resultado complexo da combinação entre o “continuísmo” das culturas na história e o “diferencialismo” promovido pelos encontros, conflitos e rupturas; entre a tendência ao universalismo dos valores e a tendência à sua especificidade. A história é feita, já se disse, de deslocamentos de grupos humanos, de encontros de indivíduos, de grupos, de Identidade linguística, identidade cultural 29 populações, o que é acompanhado de conflitos, confrontos, cujo resultado é tanto a eliminação de uma das partes, quanto a integração de uma delas ao outro ou a assimilação de um pelo outro, mas sempre por meio de relações de dominaçãosujeição, como postula M. Weber (1971). E, se uma das partes consegue impor sua visão de mundo ao outro, ocorrem, ainda assim, entrecruzamentos de etnias, de religiões, de pensamentos, de usos e costumes, o que faz com que todo grupo cultural seja mais ou menos mesclado. Os grupos sociais devem saber se situar entre a tendência à “hibridização” das formas de vida, de pensamento e de criação e a tendência à “homogeneização” das representações para fins de sobrevivência identitária: “É no cerne da metamorfose e da precariedade que se abriga a verdadeira continuidade das coisas”, diz o antropólogo S. Gruzinski (2001). Notas Ver: o interacionismo simbólico da Escola de Chicago. Não esqueçamos que 1492 foi o ano de publicação da primeira gramática da língua espanhola, de Juan Antonio de Nebrija, que teve como efeito a instituição do castelhano (língua do povo espanhol). 1 2 Referências BAYART, J. -F. L’Illusion identitaire. Paris: Fayard, 1996. Gruzinski, S. La Pensée métisse. Paris: Fayard, 2001. TODD, E. Le Destin des immigrés. Paris: Le Seuil, 1994. WEBER, M. Économie et société. Paris: Plon, 1971.