UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM – MESTRADO KÁTIA APARECIDA DA SILVA NUNES MIRANDA ADOLESCENTES E JOVENS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL: UM ESTUDO CRÍTICO DAS REPRESENTAÇÕES DE ATORES SOCIAIS Cuiabá – MT 2014 ii KÁTIA APARECIDA DA SILVA NUNES MIRANDA ADOLESCENTES E JOVENS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL: ESTUDO CRÍTICO DAS REPRESENTAÇÕES DE ATORES SOCIAIS Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de Concentração: Estudos Linguísticos. Orientadora: Profa. Dra. Solange Maria de Barros Cuiabá 2014 iii iv DEDICATÓRIA Dedico esta dissertação aos adolescentes que, por algum tempo, partilharam comigo sua história de vida, associada a sonhos, alegrias e decepções... Angústias e fragilidades... Vocês foram minha fonte de inspiração, maior entre as maiores. v AGRADECIMENTOS Acima de tudo agradeço a Deus por ter-me concebido o dom da vida, pela força durante o meu caminhar e que me abriu as portas para realizar meus sonhos. Agradeço aos meus pais Odenir e Maria Joana pelo apoio, carinho e ajuda para chegar até aqui. Agradeço ao meu esposo Wilson pela paciência, pela cumplicidade e pelo apoio de sempre, mesmo nos momentos mais difíceis da árdua caminhada no curso do mestrado. À minha única tia, Carmen, que pelo seu amor incondicional sempre me acompanhou em todos os momentos importantes da vida. Aos meus filhos Diego, Camila e Gabriel pela oportunidade de experimentar a mais pura forma de amor. E ao meu neto Davi por existir, por estar ao meu lado, por iluminar todos os meus dias, por mais cinzentos que eles estejam. À minha orientadora Profa. Dra. Solange Maria de Barros, que sempre foi para mim mais que uma professora, uma grande amiga, acompanhando-me na minha caminhada com toda disposição sem se abster em nenhum momento de me acolher, ajudar, apoiar e por compartilhar generosamente seus conhecimentos e por ter me ensinado a acreditar que a emancipação e a transformação social são possíveis. Às professoras que de forma tão solícita e prestativa aceitaram fazer parte da minha banca examinadora: Profa. Dra. Viviane Cristina Vieira Sebba Ramalho, Profa. Dra. Maria Inês Pagliarini Cox e Profa. Dra. Ana Antônia de Assis-Peterson. À minha amiga Francismeire Pedrosa pelo incentivo e apoio aos estudos, por compartilhar vitórias alcançadas, momentos de angústia e por ter dividido comigo sua vasta experiência como professora e gestora da rede pública de educação. Onde quer que esteja, sou-lhe eternamente grata. Aos colegas de trabalho Maria Aparecida Mello, Maria Aparecida Borges de Barros, Sonizete Miranda, Luzia Abich, professores, técnicos, apoio escolar, coordenadores e diretor da Escola da Escola Estadual Meninos do Futuro, que são, assim como eu, socioeducadores, e enfrentam comigo a batalha diária de atender estes adolescentes em condições, por vezes, adversas, e que o fazem dedicada e vi amorosamente, sempre acreditando na capacidade desses seres humanos de mudança de trajetória de vida. Aos professores e colegas do curso de mestrado que me ajudaram no processo de construção de conhecimento. Por fim, gostaria de agradecer ao Instituto de Linguagens, em especial ao Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem – Mestrado/MeEL que me acolheu e possibilitou a construção deste trabalho. Obrigada! vii RESUMO Esta pesquisa se propõe a investigar as representações de atores sociais, adolescentes e jovens da Escola Estadual Meninos do Futuro, localizada no Centro Socioeducativo de Cuiabá (Complexo Pomeri), vinculado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado de Mato Grosso (SEJUDH). Os alunos estão sob guarda judicial e em situação de vulnerabilidade social. Cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade, conforme prevê o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990. Adolescentes e jovens privados de liberdade são, em geral, atores sociais encaminhados aos centros socioeducativos desprovidos de cidadania, do acesso aos direitos sociais e às necessidades básicas. Conhecer esses adolescentes e jovens é o primeiro passo para a construção de uma relação de confiança, fundamental para o diálogo que deverá ser estabelecido com esta pesquisadora. Trata-se de um estudo fundamentado na Teoria das Representações de Atores Sociais (VAN LEEUWEN, 1997). A expressão “atores sociais” é utilizada por Van Leeuwen (1997) para representar pessoas/indivíduos sob a ótica do discurso. Segundo o autor, os textos (discurso) são produzidos num sistema de contexto e cultura predefinidos e variam de acordo com o objetivo de quem fala ou escreve, pois as escolhas linguísticas constroem representações sociais. Fundamente-se também na teoria do Realismo Crítico (BHASKAR, 1998) e da Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 2001). Para o Realismo Crítico, a realidade social é compreendida como articulações das estruturas sociais e do agir humano; as estruturas são históricas e ao mesmo tempo independentes e conectadas, por ser uma totalidade complexa de relações sujeita a mudanças tanto em seus componentes estruturais (Real, Realizado e Empírico) quanto nas inter-relações com os diferentes estratos (biológico, físico, social, semióticos etc.), influenciando-se mutuamente. Fairclough (2001) considera o uso da linguagem uma forma de prática social e não uma atividade puramente individual ou situacional. Objetiva também compreender o cotidiano em que vivem esses jovens e adolescentes, sob o ponto de vista histórico, político, social e ideológico. A pesquisa tem como objetivos específicos: (1) Identificar e analisar as representações dos alunos acerca da escola, dos professores e da aprendizagem, aqui, nas produções escritas e nas entrevistas; (2) Analisar as categorias relevância da escola, aproximação com os professores e aprendizagem significativa materializados nas produções escritas e entrevistas dos alunos; (3) Identificar e analisar se há, ou não, (in)congruências nos textos escritos e orais dos alunos. O método analítico do discurso visa propor mudanças nas relações sociais de poder e opressão, presentes na estrutura social. A metodologia de pesquisa é qualitativa, de cunho etnográfico. Os resultados das análises esclarecem, por meio das produções escritas e entrevistas, a relevância da escola na vida de cada um, a aproximação com os professores por meio de suas práticas e a aprendizagem significativa. Conhecer esse contexto social é fundamental para saber se é um local de humanização, emancipação ou opressão, podendo proporcionar ou não condições de (ex)inclusão social. Palavras-chave: representações de atores sociais; escola pública; adolescentes e jovens. viii ABSTRACT This research aims to investigate the role of social actors, youth in the Boys State School of the Future, located in Cuiabá Socio Center (Complex Pomeri), linked to the Department of Justice and Human Rights of the State of Mato Grosso (SEJUDH). Students are under judicial custody and social vulnerability. Meet educational measures of deprivation of liberty, as required by the Child and Adolescent (ECA), Law No. 8069 of June 13, 1990. Teenagers and young people deprived of freedom are generally social actors referred to the deprived socioeducational centers citizenship, access to social rights and basic needs. Knowing these adolescents and young people is the first step to building a relationship of trust, essential for the dialogue to be established with this researcher. It is a based on the theory of representations of social actors (van Leeuwen, 1997) study. The term "social actors" is used by van Leeuwen (1997) to represent persons / individuals from the perspective of discourse. According to the author, the texts (discourse) are produced in a predefined context and culture system and vary according to the purpose of those who speak or write, because the linguistic choices construct social representations. Also is based on the theory of Critical Realism (Bhaskar 1998) and Critical Discourse Analysis (Fairclough, 2001). For Critical Realism, social reality is understood as articulations of social structures and human action; structures are historical and at the same time independent and connected, being a complex totality of relationships subject to changes both in its structural components (Real, Directed and empirical) and the inter-relationships with the different strata (biological, physical, social, semiotic etc.) influencing each other. Fairclough (2001) considers the use of language a form of social practice rather than a purely individual or situational activity. It also aims to understand the everyday living in these youngsters and adolescents, from the point of historical, political, social and ideological views. The research has the following objectives: (1) Identify and analyze the representations of students about the school, teachers and learning here in written productions and interviews; (2) Analyse the category relevance of school approach with teachers and materialized meaningful learning in written productions and interviews of students; (3) Identify and analyze if there is or not (in) consistencies in written and oral texts of students. The analytical method of discourse aims to propose changes in the social relations of power and oppression in the social structure. The research methodology is qualitative, ethnographic. The results of the analysis clarify, by means of written productions and interviews, the importance of the school in the life of each, the approach with teachers through their practices and meaningful learning. Knowing that social context is critical to know if it is a place of humanization, liberation or oppression, or not being able to provide conditions (ex) social inclusion. Keywords: representations of social actors; public schools; adolescents and youth. ix LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 – Sistema de Garantias de Direitos Ilustração 2 – Articulação e integração do SGD Ilustração 3 – Organograma do Sistema Socioeducativo x LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Linguagem como momento da vida social Quadro 2 - Categorias sociossemânticas de representação de atores sociais Quadro 3 - Atores Sociais Quadro 4 - Categorias de exclusão e inclusão Quadro 5 - Atores sociais incluídos Quadro 6 - Formas de representação xi LISTA DE SIGLAS ABMP – Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude CDC – Convenção Sobre os Direitos da Criança CEDECA – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente CEFAPRO – Centro de Formação e Atualização de Professores CF – Constituição Federal CISC – Centro Integrado de Segurança e Cidadania CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CP – Código Penal CPA – Centro Político Administrativo CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social DEA – Delegacia de Especializada do Adolescente DEDICA – Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente EMPAER – Empresa Matogrossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural FEBEMAT – Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor FEBEM – Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor FEEM – Fundação Estadual de Educação ao Menor FONSCRIAD – Fórum Nacional de Organizações Governamentais de Atendimento à Criança e ao Adolescente FUNABEM – Fundação Nacional do Bem Estar do Menor GPO – Gestão de Planejamento e Orçamento LA – Liberdade Assistida LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional OEA – Organização dos Estados Americanos OMS – Organização Mundial de Saúde ONU – Organização das Nações Unidas PDE – Plano de Desenvolvimento da Escola PIA – Plano Individual de Atendimento PPP – Projeto Político-Pedagógico PROSOL – Fundação de Promoção Social xii PSC – Prestação de Serviço à Comunidade SEDUC/MT – Secretaria de Estado de Educação do Estado de Mato Grosso SDH – Secretaria de Justiça e Direitos Humanos SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SUAS – Sistema Único de Assistência Social SUS – Sistema Único de Saúde SPDCA – Subsecretaria Especial de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UNCF – Fundo das Nações Unidas para a Infância xiii SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15 CAPÍTULO 1 REALISMO CRÍTICO, ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E REPRESENTAÇÃO DE ATORES SOCIAIS .................................................................................................... 20 1.1 Realismo Crítico: paradigma da inter-relação entre sociedade e indivíduo. .... 20 1.2 Emancipação e Transformação social ............................................................ 26 1.3 Análise Crítica do Discurso: abordagem transdisciplinar para estudos críticos da linguagem como prática social .......................................................................... 34 1.3.1 O discurso como prática social .................................................................. 39 1.3.1.1 Hegemonia e poder ................................................................................ 41 1.3.1.2 Ideologia ................................................................................................. 43 1.3.1.3 Identidades ............................................................................................. 45 1.3.1.4 Significados de discurso ......................................................................... 48 1.3.2 Gêneros Discursivos .................................................................................. 49 1.3.3 Intertextualidade e Interdiscursividade ...................................................... 50 1.4 A Teoria das Representações de Atores Sociais ............................................ 52 CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZAÇÃOÃO SÓCIO-HISTÓRICA e CULTURAL DO CENTRO SOCIOEDUCATIVO DE CUIABÁ – POMERI............................................................ 58 2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)............................................. 59 2.2 O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) ...................... 65 2.3 O Centro Socioeducativo de Cuiabá/MT— POMERI ....................................... 70 2.4 O Cenário atual do POMERI ............................................................................ 79 CAPÍTULO 3 CAMINHOS METODOLÓGICOS .............................................................................. 81 3.1 Abordagem de pesquisa ................................................................................. 81 xiv 3.2 O contexto sócio-histórico e pedagógico da Escola Estadual “ Meninos do Futuro” ................................................................................................................... 83 3.3 Caminhos percorridos na pesquisa .................................................................. 94 3.4 Atores sociais ................................................................................................... 96 3.5 Procedimentos para geração de dados ........................................................ 101 3.6 Procedimentos para análise de dados .......................................................... 102 3.7 O Corpus ........................................................................................................ 104 3.8 Aspectos éticos ............................................................................................. 105 CAPÍTULO 4 ANÁLISE DOS DADOS EMPÍRICOS DE CUNHO ETNOGRÁFICO ...................... 106 4.1 Produções escritas e entrevistas ................................................................... 106 4.1.1 Relevância da escola ............................................................................... 110 4.1.2 Aproximação com os professores ............................................................ 117 4.1.3 Aprendizagem significativa ...................................................................... 124 4.1.4 Sistematização Construída sob a luz do Arcabouço Teórico-Metodológico da Teoria da Representação dos Atores Sociais .............................................. 130 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 134 ANEXOS...................................................................................................................150 15 INTRODUÇÃO Se podes olhar, vê. E se podes ver, repara. José Saramago Este estudo tem por finalidade compreender as representações de adolescentes e jovens da Escola Meninos do Futuro e de que maneira essas representações estão materializadas nos textos orais e escritos. Esses alunos estão sob guarda judicial e em situação de vulnerabilidade social. Cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade, conforme prevê o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), Lei n.8.069, de 13 de junho de 1990, pertencente à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado de Mato Grosso (SEJUDH). No mais das vezes são jovens encaminhados aos centros socioeducativos desprovidos de sua cidadania, privados do acesso aos direitos culturais, sociais e das necessidades básicas. São sujeitos estigmatizados, moradores de bairros periféricos, desprezados em sua diversidade. Mais que isso: são rotulados como inferiores pelos discursos que percorrem camadas sociais dominantes. A história de vida de cada um é marcada por exclusão e marginalização. Eles subsistem numa sociedade letrada, todavia estão excluídos, de forma explícita ou implícita, do sistema educacional e, consequentemente, delongam o processo de escolarização devido ao acúmulo de repetência, abandono e evasão na vida escolar. Essas interrupções são emanadas pelo ingresso precoce no mercado, seja lícito, seja ilícito – de trabalho e/ou envolvimento com atividades criminosas, pelo simples fato de estas venderem ilusão e ascensão social. De acordo com Arroyo (2007), são sujeitos reais, vidas concretas, que vão se distanciando da possibilidade de um novo tempo, um tempo futuro com alternativas mais promissoras. O interesse pelo tema desta pesquisa se relaciona com minhas vivências profissionais na Secretaria de Estado de Educação do Estado de Mato Grosso (SEDUC), na qualidade de assessora técnico-pedagógica responsável pela Educação no Sistema Socioeducativo. Mas a partir de minha participação no Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI), atinente à Educação, Justiça, Saúde e Segurança Pública – o objetivo de estruturar e concretizar uma prática sociopedagógica nas unidades socioeducativas de Mato Grosso –; é que me veio o desejo de investigar a significação do processo educacional para os adolescentes e 16 jovens alunos de uma escola no interior de uma instituição. Refiro-me a Escola Estadual Meninos do Futuro. Conhecer esse contexto social é de fundamental importância para saber se, de fato, traduz um local de humanização, emancipação ou opressão, podendo proporcionar, ou não, condições de (ex)inclusão social. Ao longo de meu trabalho, utilizo a nomenclatura “adolescentes e jovens privados de liberdade” e “medida socioeducativa de privação de liberdade” por considerá-las mais adequadas e éticas. Em minha opinião, a terminologia “internos” e “medida socioeducativa de internação” remete à idéia de reproduzir as mazelas dos manicômios judiciários instalados no sistema penitenciário. Assim, conhecer esses adolescentes e jovens foi o primeiro passo para a construção de uma relação de confiança, indispensável para o diálogo que se estabeleceu com esta pesquisadora. A intenção do presente trabalho é analisar excertos das produções escritas e entrevistas realizadas com os adolescentes e jovens em privação de liberdade, e egressos do sistema socioeducativo. Trata-se de estudo fundamentado na Teoria das Representações de Atores Sociais (VAN LEEUWEN, 1997; 2008). A expressão “atores sociais” é utilizada por Van Leeuwen (1997; 2008) para representar pessoas/indivíduos, sob a ótica do discurso. Segundo o autor, os textos (discurso) são produzidos dentro de um sistema de contexto e cultura predefinidos e variam de acordo com o objetivo de quem fala ou escreve, pois as escolhas linguísticas constroem representações sociais. Fundamenta-se também na teoria do Realismo Crítico (BHASKAR, 1998, 2002) na Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 1989,2001, 2003). Para o Realismo Crítico, a realidade social é compreendida como articulações das estruturas sociais e do agir humano. As estruturas são históricas e, ao mesmo tempo, independentes e conectadas, por constituírem uma totalidade complexa de relações sujeitas a mudanças tanto em seus componentes estruturais (Real, Realizado e Empírico), quanto em suas interrelações com os diferentes estratos (biológicos, físicos, social, semióticos, etc.), influenciando as operações umas das outras. Fairclough (2001; 2003) considera o uso da linguagem uma forma de prática social, não uma atividade puramente individual ou situacional. Optei por um trabalho de caráter qualitativo, de cunho etnográfico, com prioridade de compreender o cotidiano onde vivem esses adolescentes e jovens, do ponto de vista histórico, político, social e ideológico. Finalidade é dar a voz a vozes 17 historicamente silenciada, esclarecendo, por meio do relato dos participantes da pesquisa, a relevância da escola na vida de cada um, a aproximação com os professores e a aprendizagem significativa. Diante disso, estas as questões que norteiam o presente estudo, a serem retomadas no Capítulo 3: 1) Quais são as representações dos alunos acerca da escola, dos professores e da aprendizagem? 2) De que maneira essas representações estão materializadas nos textos? 3) Existem ou não (in)congruências presentes nas redações e entrevistas dos alunos? Observando essas questões, é possível definir os objetivos que nortearão todo trabalho. Objetivo geral Compreender as representações de adolescentes e jovens da Escola Estadual Meninos do Futuro, acerca da escola, professores e aprendizagem dependendo da maneira como essas representações estão materializadas nos textos escritos e orais. Objetivos específicos Identificar e analisar as representações dos alunos acerca da escola, dos professores e da aprendizagem, aqui, nas produções escritas e nas entrevistas; Analisar as categorias relevância da escola, aproximação com os professores e aprendizagem significativa materializadas nas produções escritas e entrevistas dos alunos; Identificar e analisar se há, ou não, (in)congruências nos textos escritos e orais dos alunos. Para chegar às respostas a essas questões e atingir os objetivos perseguidos, parto de uma perspectiva teórico-metodológica de caráter crítico, voltada especialmente para as categorias de representação dos atores sociais desfilados por Theo van Leeuwen (1997; 2008) e para o discurso, como prática social, de Norman Fairclough (2001; 2003). Nesse sentido, os dados foram gerados através de uma produção escrita, redação com a temática “A minha Escola”, gravação de entrevistas informais e observação participante. Nesse giro, o contexto se revela fundamental para compreender o cotidiano onde vivem os adolescentes e 18 jovens, envoltos numa situação de vulnerabilidade social. Esta dissertação está estruturada em quatro capítulos, além desta apresentação e às considerações finais. O Capítulo 1 se volta à fundamentação teórica. Inicialmente, entreabro a proposta filosófica do Realismo Crítico (RC) que emergiu dos escritos do filósofo contemporâneo Roy Bhaskar (1998, 2002). O Realismo Crítico carrega, em sua centralidade, uma filosofia de caráter emancipatório que tem alicerçada reflexão teórica e metodológica de muitos pesquisadores das ciências sociais, empenhados em compreender o paradigma da inter-relação dialética entre sociedade e indivíduo. Em seguida, discorro sobre a proposta teórica e metodológica que baliza a Análise Crítica do Discurso (ACD), desenvolvida por Norman Fairclough (1989, 2001, 2003). A ACD se propõe a estudar a linguagem como prática social e, para tal, leva em conta o papel crucial do contexto. Arremato o capítulo delineando o arcabouço teórico-metodológico que baliza o presente estudo, ou seja, a Representação de Atores Sociais, sugerida por Theo van Leeuwen (1997,2008). Este autor se socorre da expressão “atores sociais” para representar as pessoas dentro de um discurso. Desigualmente, investiga as diferentes formas com que os atores sociais podem ser representados em um texto. Classifica a representação dos atores sociais como um compósito de elementos linguísticos que se articulam, podendo funcionar para incluir ou excluir indivíduos e grupos. No capítulo 2, descortino sumariamente o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) que demarcam as perspectivas protetivas e educativas das medidas socioeducativas retratadas neste estudo. Na sequência, contextualizo a trajetória sócio-histórica e cultural do Centro Socioeducativo de Cuiabá/MT – o POMERI, e esquadrinho a política de atendimento socioeducativo e sua gestão. Neste caso, o enfoque se assenta na concepção institucional da política nacional dos programas de atendimento socioeducativos para adolescentes e jovens, em cumprimento de medidas socioeducativas de privação de liberdade. O capítulo se encerra com reflexões acerca da situação atual do POMERI. Já no capítulo 3, trato dos procedimentos metodológicos aqui utilizados, apresento a abordagem da pesquisa, os contextos sócio-histórico e pedagógico da Escola Estadual Meninos do Futuro. Em complemento os caminhos percorridos na pesquisa, os atores sociais, os procedimentos para, geração de dados, bem assim 19 aqueles para a análise de dados, o corpus. Findo com os aspectos éticos, retomando as perguntas de pesquisa e os objetivos propostos. No capítulo 4, exibo a análise dos dados empíricos de cunho etnográfico, e alicerçada na análise das produções escritas e entrevistas, perfilo algumas categorias. O capítulo está dividido em três seções: A relevância da escola, a aproximação com os professores e a aprendizagem significativa. Nas considerações finais, teço algumas reflexões sobre o resultado alcançado e sua pertinência no presente trabalho de dissertação, à luz dos arcabouços teóricos aqui apontados, tendo como eixo norteador os objetivos delineados inicialmente. Proponho-me a contribuir com sugestões que visam à promoção dos direitos humanos dos adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, a começar pela reversão dos estigmas com eles relacionados em nossa sociedade. Além disso, em consonância com as instâncias públicas governamentais e com a sociedade civil, trabalhar na construção de um projeto político-pedagógico que busca respeitar as necessidades educacionais do adolescente – pessoa em processo de formação que está em momento crítico de construção de sua identidade –, fortalecendo laços familiares e comunitários numa perspectiva cidadã e de inclusão social. 20 CAPÍTULO 1 REALISMO CRÍTICO, ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E REPRESENTAÇÃO DE ATORES SOCIAIS A ação pesquisadora – também dita investigação – é caracterizada como o conjunto de atividades intelectuais tendentes à descoberta de novos conhecimentos” (SAAVEDRA, 2001, p. 61) Neste capítulo apresento os pressupostos teóricos que balizaram este estudo. Na primeira seção, discorro acerca do Realismo Crítico, doravante RC, de Bhaskar (1998), tecendo breves considerações sobre emancipação social. Na segunda, passo a aduzir algumas contribuições teóricas da Análise Crítica do Discurso, doravante ACD, tendo como expoente Norman Fairclough (1989, 2001, 2003). Na última seção, exponho conceitos acerca das Representações de Atores sociais (VAN LEEUWEN, 1997, 2008), numa perspectiva crítico-discursiva. 1.1 Realismo Crítico: paradigma da inter-relação entre sociedade e indivíduo. O Realismo Crítico, brevemente apresentado aqui, é importante arcabouço teórico para esta pesquisa, por tratar-se de movimento filosófico, especialmente da filosofia da ciência, originalmente britânico. Se bem assim, tem se propagado em alguns países, inclusive no Brasil, por meio de círculos de seguidores. Iniciou-se na Inglaterra, em 1975. Fundador da escola filosófica do “Realismo Crítico” foi grande teórico Roy Bhaskar. A expressão Realismo Crítico foi criada pelos seguidores de Bhaskar1, misturando seu naturalismo transcendental com o naturalismo crítico. Esta a obra fundadora de Roy Bhaskar: Uma teoria realista da ciência. A discussão se faz em torno da ciência natural ressaltando que essa corrente de pensamento tem ocorrido principalmente no campo da ciência social, a partir da década de 80. Uma vez que, em 1979, o autor direciona suas teses para além do campo da ciência natural, empreende uma crítica ontológica às ciências humanas contemporâneas por meio do livro A possibilidade do naturalismo (BHASKAR, 1979). Esses dois livros alicerçam suas concepções. Posteriormente 1 Conferir Ramalho (2006): Diálogos teórico-metodológicos: análise de discurso crítica e realismo crítico. 21 outras obras foram publicadas, ganhando evidência a obra Dialética: pulso da liberdade (BHASKAR, 1993). Bhaskar (1989:190) a tal respeito, ilumina-nos com esta explicação: Chamei minha filosofia geral da ciência de “realismo transcendental”, minha filosofia específica das ciências humanas de “naturalismo crítico”. Aos poucos, as pessoas começaram a misturar os dois e a referir-se ao híbrido como “realismo crítico”. Ocorreu-me que havia boas razões para não me objetar ao hibridismo. Para começar, Kant havia chamado seu idealismo transcendental de “filosofia crítica”. O realismo transcendental tinha o mesmo direito ao título de realismo crítico. O realismo crítico ofereceu uma alternativa às filosofias da ciência apenas conformada com a apreensão do mundo empírico e confrontou, pondo-me na contracorrente dos modos de pensamento científico hegemônico, ao mesmo tempo as correntes de pensamentos positivistas e pós-modernistas, respectivamente, em declínio e ascensão no período. O próprio nome do movimento ainda causa polêmica, pois é a junção dos termos “crítico” e “transcendental” do idealismo kantiano com o termo “realista”, sentido este empregado de forma materialista. O movimento do realismo crítico entrou em convergência polêmica com o marxismo, ao pretender proporcionar uma filosofia da ciência que servisse também às demandas da crítica social no atual estágio do capitalismo. Segundo Bhaskar (1989), a concepção da realidade é compreendida como complexa, estruturada e estratificada, de tal modo que aquilo que se apresenta à observação em determinado nível é concebido por poderes característicos às interações dos elementos implícitos. Ademais, expõe um conceito de realidade que integra, o universo natural que existe, independentemente do homem, um universo social, a depender da atividade social humana, individual ou coletiva. Compreende a ciência como atividade social, referentemente autônima, cuja capacidade para apreender a realidade profundamente resulta da própria capacidade e habilidade do homem em controlar as condições em certos fenômenos que ocorrem em seu cotidiano. Essa concepção de mundo, aos olhos do Realismo Crítico, é um sistema aberto, em contínua mudança, formado por diferentes domínios da realidade, conforme Papa (2008; 2009), especificamente: Real, Realizado e Empírico2. Igualmente por diferentes estratos. Os estratos – físico, biológico, social, semiótico, 2 Neste trabalho, optei pela tradução apresentada por Barros (2008; 2009) para esses três domínios. 22 etc. – possuem estruturas distintas e mecanismos gerativos que se situam no domínio do potencial, ou seja, do que pode, ou não, ser ativado. Quando são ativados simultaneamente, causam efeitos imprevisíveis nos demais domínios. Bhaskar (1989) lança mão dos termos Real, Actual e Empirical para aludir à ontologia estratificada do Realismo Crítico. O domínio do Real se define como categoria ontológica: são as estruturas, os mecanismos, os eventos, os processos e as experiências do mundo (natural e social). Neste domínio, estruturas que geram variados estratos – biológico, físico, químico, social, semiótico, e outros – atuam concomitantemente com seus poderes causais, repercutindo nos outros domínios, relacionados com eventos e experiências vividas (RESENDE & RAMALHO, 2011, p. 32-33). O domínio do Realizado é definido como categoria ontológica, é o domínio dos eventos que percorrem ou não nossas experiências vividas, é possível localizálo nas estruturas e poderes (forma abstrata) e nos eventos experienciados (formaconcreta). Bhaskar e Lawson (1998, p. 5) ressaltam: [...] realidade é constituída não apenas de experiências e do curso de eventos realizados, mas também de estruturas, poderes, mecanismos e tendências – de aspectos da realidade que geram e facilitam eventos realizados que nós podemos (ou não) experienciar. O “empírico” se particulariza como categoria epistemológica. Não é equivalente ao potencial, nem ao realizado. É o domínio das experiências, das observações, referindo-se ao que de fato observamos em relação aos efeitos das estruturas, das capacidades e das realizações. Resende & Ramalho (2011, p. 34) aclara: O empírico, por sua vez, é o domínio das experiências efetivas, a parte do potencial e do realizado que é experienciada por atores sociais específicos. Neste caso, o exemplo seriam os textos (orais, escritos, visuais, multimodais) com que de fato tivemos contato em nossa vida. Estudos realizados pelas pesquisadoras brasileiras Papa (2008), Barros (2012), Ramalho (2008 ) e Resende (2008) têm se alicerçado nessa concepção de mundo: presume-se que só podemos estudar o “real” passando pelo universo das experiências que tivemos em nossa vida. Segundo Papa (2008), o RC preceitua a compreensão da intensidade dos níveis da realidade, onde se “ocultam” os determinantes causais, nos quais se 23 inserem seus agentes causais e seus poderes. Assim, essa compreensão é norteada por várias características relevantes que dizem respeito aos fenômenos das práticas da estratégia, corroborando práticas antecedentes (o “quê” da prática), como perspectiva (o “como” da prática) e como filosofia (o "porquê" da prática) O Realismo Crítico entende que a vida social não é um sistema fechado. Diversamente disso, encerra um sistema aberto, no qual qualquer evento é governado por mecanismos ou poderes emergentes que operam simultaneamente. Num sistema aberto, por exemplo, não é possível identificar determinadas sequências de eventos, caso contrário a atividade experimental não faria sentido (PAPA, 2009, p. 145). Bhaskar afirma que atividade experimental é a base de sustentação, que define as ciências (naturais). De modo geral, um experimento deve possibilitar diagnosticar leis ou mecanismos causais a partir do afastamento de determinado evento (a causa) de outros eventos que possam encontrar-se também no controle de um dado evento (o efeito). Portanto, geralmente um experimento é aplicado sob a esfera de isolamento do mundo, isto é, em sistemas fechados. Já no mundo real, enquanto sistema aberto, normalmente não podemos identificar determinados fluxos de eventos. Caso isso ocorresse, a atividade experimental não faria sentido. O cerne do argumento de Bhaskar advoga a ideia de que é preciso compreender camadas mais profundas da realidade, nas quais se “escondem” os determinantes causais, incluindo os agentes causais e seus poderes (PAPA, 2009, p. 146). A conjuntura da realidade independe das observações e descrições que alcançamos a respeito dela. Não quer dizer, todavia, que possamos compreender a realidade independentemente de tais observações e descrições. Há não ocorrência da distinção entre uma realidade objetiva e as formas como a representamos e/ou a descrevemos, o nosso conhecimento não seria controlado pelo mundo “real”. Antagonicamente, a construção de nosso conhecimento sócio-histórico e cultural mutável edificaria a realidade, ou melhor, a forma como adquirimos o conhecimento é que caracteriza o que subsiste. Para Bhaskar (1978, p. 36) essa inabilidade de discernir entre uma realidade objetiva e os diversos modos de como a representamos ou descrevemos é cognominada “falácia epistêmica”. A falácia epistêmica se apoia em admitir que nossas práticas sociais decorrentes têm inferências ontológicas, ou seja, delimitam aquilo que existe. Esse ponto é crucial para o enfoque teórico-metodológico do RC, pois as 24 observações são sempre sobredeterminadas pela teoria, e as teorias são sempre subdeterminadas pelas observações (VANDENBERGHE, 1996, p.7). Porém, se ansiamos impedir a “falácia epistêmica” de Bhaskar (1978: 36-38), que consiste na redução de questões ontológicas a questões epistemológicas, temos de distinguir categoricamente o que Bhaskar chama de dimensões intransitiva e transitiva do conhecimento. O processo do conhecimento independe dos sujeitos, é produto social convencionado mediante produções sociais anteriores. São coisas e estruturas, mecanismos e processos, eventos e possibilidades reais do mundo, e ocorrem a despeito de nossas atividades. A dimensão transitiva se especifica como objeto, é a causa material ou o conhecimento anterior empregado para gerar novo conhecimento. Nela o objeto é a real estrutura ou mecanismo existente que age na produção do conhecimento, realizada pelos sujeitos. Já a dimensão intransitiva é representada pelos os objetos reais: as estruturas, os mecanismos, os processos, os eventos e as possibilidades que o mundo oferece. São independentes das atividades do universo científico. Por conseguinte, as leis causais operariam mesmo que não existisse pessoa alguma para tomar conhecimento. É com base nessa concepção que não se pode pensar na esfera de objetos intransitivos sem a ciência. Contudo, é impossível pensar em ciência sem objetos transitivos, visto que o conhecimento científico é estabelecido pelos precedentes pré-científicos ou científicos. Sendo assim, dependem da prática científica e de sua submissão as mudanças do que diz respeito à produção social. Nessa perspectiva, porém, Bhaskar enfatiza: “Eles incluem fatos e teorias estabelecidos anteriormente, paradigmas e modelos, métodos e técnicas de inquérito disponíveis para um cientista” (BHASKAR, 2000, p. 8). Nessa marcha, retomando a questão ontológica, Bhaskar (1998) elaborou o modelo transformacional da atividade social. O intuito desse modelo é a superação dos limites apresentados pelas teorias sociais constituídas pelo voluntarismo weberiano (individualismo metodológico), cujas estruturas sociais são produtos imediatos da ação humana, e do estruturalismo durkheimiano (holismo metodológico), em que a ação humana é totalmente deliberada pela caracterização estrutural. Por um lado, a ação humana está desprendida de qualquer controle estrutural, contraparte, é imposto um controle absoluto da caracterização estrutural. O modelo transformacional pressupõe que, dialeticamente, as sociedades 25 e as pessoas não se relacionam, são entes extremamente diferentes. Neste âmbito, ele distingue que as sociedades são independentes do conhecimento que as pessoas exercem sobre elas, todavia não são independentes das relações entre as pessoas. Isto é, há uma diferença ontológica entre sociedades e pessoas, mesmo que elas sejam irredutíveis e inseparáveis. Nesse sentido, o modelo transformacional, proposto por Roy Bhaskar, parte da compreensão de que a sociedade preexiste ao indivíduo. Segundo o autor, é possível concordar com Durkheim que a “sociedade está para os indivíduos (...) como algo que eles nunca fazem, mas que existe apenas em virtude de sua atividade” (BHASKAR, 2000 p. 8). Portanto, deve-se ter clareza de que o social não pode ser substanciado ao indivíduo, visto que a sociedade é essencial para qualquer ação natural ou intencional que a pessoa utiliza para solucionar os problemas e/ou construir conhecimentos, pois as formas sociais presumem previamente a ação humana. Bhaskar (2000, p.10) expende seu entendimento a tal respeito: as pessoas não criam a sociedade. Pois a sociedade sempre preexiste às pessoas e é uma condição necessária para sua atividade. Ao contrário, a sociedade deve ser encarada como um conjunto de estruturas, práticas e convenções que os indivíduos reproduzem ou transformam, mas que não existiria a menos que eles assim o fizessem. A sociedade não existe independentemente da atividade humana (o erro da reificação). Mas não é o produto da atividade humana (erro do voluntarismo). (...) É importante salientar que a reprodução e/ou transformação da sociedade, embora na maioria dos casos seja inconscientemente alcançada, é ainda assim, não obstante, uma realização, uma realização competente de sujeitos ativos, e não uma consequência mecânica de condições antecedentes. Para o autor, o foco dessa relação encontra em seu bojo algumas possibilidades emergentes dos sistemas sociais, após ter instituído essa caracterização ontológica de sociedade e atores sociais. O Realismo Crítico compreende que as práticas sociais agasalham incumbência: o fornecimento de produtos sociais e as condições de sua produção. Tendo isso em vista, parece claro que, se os produtos sociais são estruturas sociais, logo são possíveis e suscetíveis alvos de transformação. A respeito dessa perspectiva, Bhaskar (2001, p. 12) explica: A sociedade é concebida, dessa forma, como “um conjunto articulado de tais estruturas generativas relativamente independentes e duradouras, ou seja, como uma totalidade complexa sujeita à mudança tanto em seus componentes quanto em suas inter-relações.” 26 A sugestão de Bhaskar (1998) é que se considere o caráter dual tanto da práxis quanto da estrutura. Os sujeitos, afirma Bhaskar, nunca fazem as estruturas sociais. A ação humana, no entanto, possui o potencial seja de reproduzir seja de produzir tais estruturas sociais — dualidade da práxis. Quanto às estruturas sociais, estas são, ao mesmo tempo, condição e resultado do agir humano intencional — dualidade da estrutura. Dessa maneira, a ação humana não se desenrola num vácuo estrutural, e as estruturas não configuram um sistema imutável de posições que os sujeitos simplesmente reproduzem. Como vimos, o Realismo Crítico busca transcender as perspectivas das correntes dominantes do pensamento científico e entreabre um novo paradigma da análise crítica da realidade. Os pressupostos do Realismo Crítico, apresentam a concepção de transcendência e emancipação como elementos essenciais na construção dos conhecimentos articulados acerca da vida social, principalmente no que concerne às estruturas micro e macrossociais. A seguir, desfilo algumas reflexões teórico-metodológicas sobre emancipação e transformação social, cujo paradigma é romper com os preconceitos, desigualdades, injustiças, opressão e miséria presentes na sociedade e propor soluções práticas para sua superação. 1.2 Emancipação e Transformação social Para entender o processo da emancipação e transformação social, buscou-se conceituar os dois processos e fundamentá-los nos pressupostos teóricos da abordagem da ciência social crítica, pautando-se nas concepções do Realismo Crítico, de Roy Bhaskar (1989, 1998). Ressaltam-se, por igual, as contribuições dos pensadores da Teoria Crítica, em especial Adorno (1995,2000) e Freire (1980, 1991). Por fim, respaldou-se no clássico teórico da sociologia Karl Marx (2001, 2003, 2005), para melhor compreensão da dinâmica da sociedade. O conceito de emancipação enfaixa, em sua essência, o caráter interdisciplinar. Então, é importante construir de forma holística esse conceito. É imperativo frisar que há vários autores e conceitos quando o tema é emancipação. Relevante é analisar, à luz da etimologia o sentido de emancipação. O verbo emancipar é originário do termo latino emancipare, de significado para fora. 27 Ao prefixo se acorrenta o substantivo e de mancipium, sinônimo de escravo, prisioneiro, indivíduo dependente. Emancipar remete à liberdade concedida, adquirida ou conquistada (CATTANI et al., 2009, p.175). Juridicamente ele condiz ao direito romano, concebendo ações de libertação legal, alforria ou suspensão da tutela e da autoridade de um sobre outrem. Digamos mais. Parafraseando o dicionário escolar latino-português, de Ernesto Faria, o termo emancipar, se assenta em mancipium, de sua vez depreendido do substantivo manus (mão), associado ao verbo capere (tomar). Carrega, portanto, esta compreensão: mancipium é a ação de tomar na mão, isto é, pegar a coisa, fazendo com que desta nos tornaremos proprietários. Daí a relação do termo coisa com o próprio escravo, identificado que foi, sempre, como coisa, como objeto. Torna-se independente, isto é responsável por seus atos. Sob qualquer pretexto, imprescindível e banir a escravidão — esse refino social de sujeição do homem e utilização de sua força, explorada pra fins econômicos, como propriedade privada. Afinal, a escravidão traduz uma nódoa, um grilhão que acorrenta os pés de alguém ao atraso. Em pensar que o analfabetismo é forma moderna do mesmo grilhão que prende uma nação à estrangulação, impedindo que esta alce seu grande voo da liberdade, da construção de uma sociedade mais fraterna, mais solidária e mais justa para todos. Nesse andar, aflora o termo emancipar: põe fora a tutela, liberta do jugo de alguém, livra-se do pátrio poder. Enfim, Para que haja uma sociedade emancipada, é preciso que os indivíduos participem de forma coletiva e solidária, por isso, é que as varias maneiras de participação têm que ser estimuladas no âmago da comunidade, a fim de formar cidadãos críticos e emancipados. De consequência, “a ideia de Emancipação, como parece inevitável com conceitos deste tipo, é ela própria ainda demasiado abstrata, além de encontrar-se relacionada a uma dialética” (ADORNO, 1995, p.143). A construção do conceito de emancipação está alicerçada aos pressupostos da vida em sociedade. Nesse norte é impossível emancipar-se na solidão. Então, conceitos como emancipação e emancipação social, por vezes, são colocados como sinônimos. Segundo Cattani (2006, p. 44), “a realização e o discurso da autonomia no seu sentido coletivo [são] também identificados sob o conceito de Emancipação Social”. Nesse sentido, “a emancipação só acontece de fato quando o cidadão exerce seus direitos políticos, que têm por essência de conteúdo a participação na 28 vida da comunidade” (MARX, 2005, p. 22) Enfim, o conceito de emancipação é prognosticado historicamente pela razão crítica, não devendo ser recortado de forma temporal. Ela encarta um conceito atemporal. Assim, “o indivíduo só se emancipa quando se liberta do imediatismo de relações que, de maneira alguma, são naturais, mas constituem meramente resíduos de um desenvolvimento histórico” (ADORNO, 1995, p. 76). Este empoderamento está diretamente relacionado com a condição de autonomia, emancipação e cidadania. Pressupõe, no entanto, a transformação social. Se nos reportarmos aos desígnios da transformação social sem o acompanhamento da transformação individual, teremos no máximo uma mudança estrutural completamente limitada, impossibilitada de produzir uma sociedade justa, solidária e pacífica se os sujeitos da mudança não estão engajados em desenvolver a autoemancipação. No que se refere à noção de emancipação na qualidade de autoemancipação, Papa (2009, p. 144) ressalta: Se a emancipação significa libertação, a autoemancipação pressupõe então a transformação do próprio indivíduo, do ‘eu’ individualista, unificado, centrado na própria pessoa, para um eu exterior voltado para solidariedade e fraternidade. A autoemancipação da qual fala Bhaskar, deve, necessariamente, passar pela transformação dos próprios agentes ou participantes. Se olharmos a realidade social, não vemos nada mais do que (re)ações, com seus efeitos e causas. Dessa forma, a transformação individual é mantida por ideias e ação solidárias, democráticas, éticas, empoderando o companheirismo em uma comunidade. Destarte, o engajamento que um grupo ou uma comunidade social têm com o processo da transformação social poderá servir como pilar de sustentação para a transformação individual de seus membros, com vista a promover a mudança da sociedade em si. Do mesmo modo, para alcançar a transformação social, é primordial idealizar a sociedade desejada, ter consciência do compromisso com os princípios sobre os quais norteará seus fundamentos, desenvolvendo capacidades para efetivar esses ideais. Nota-se que o conceito de transformação social depende do referencial teórico que o analisa. Para Marx (2001), o processo de transformação social, está absolutamente entrelaçando com as contradições e lutas de classes que se avultam 29 na base material da sociedade. Weber contradiz a teoria marxista, ao reforçar a ideia de que a transformação social é um processo que perpassa pelas lutas simbólicas travadas entre diversos agentes sociais. Já Durkheim se fundamenta na divisão do trabalho para esclarecer a evolução da sociedade. A seguir, serão apresentados alguns pressupostos teóricos que reforçam os conceitos de emancipação e transformação social. Em termos ontológicos, portanto, o duplo complexo – emancipação e transformação social – tem sua gênese no pensamento filosófico de Roy Bhaskar (1998, p.462), cuja proposta é destinada à ciência social crítica e suas consequências da práxis social. Conforme afirma Bhaskar, os mecanismos que produzem os problemas podem ser retirados. Para esse autor, a emancipação passa impreterivelmente pela autoemancipação, não consistindo meramente na transformação da consciência. Efetiva-se na prática, ou seja, buscando uma transformação social interna e microssocial para um contexto macrossocial Barros (2011, p.13). Barros (2010, p.71) ressalta: Bhaskar (1998: 462), ao construir seu pensamento filosófico sobre emancipação e transformação social, apresenta uma proposta para a ciência social crítica, pois, segundo ele, os mecanismos geradores dos problemas podem ser removidos. Para esse autor, a emancipação não pode ser alcançada apenas pela mudança da consciência; ao contrário, ela deve ocorrer na prática, ou seja, deve passar pela transformação dos próprios agentes ou participantes. Segundo Bhaskar (1998, p.462): Meu ponto de vista é que aquele tipo especial e qualitativo de libertação que é a emancipação e que consiste na transformação, na autoemancipação dos agentes envolvidos, partindo de uma fonte de determinação indesejada e desnecessária para uma desejada e necessária, é, ao mesmo tempo, pressagiado causalmente e acarretado logicamente por uma teoria explanatória, mas só pode ser efetivada na prática. O autor pressupõe, que, se a emancipação significa libertação, a autoemancipação pressupõe então a transformação do próprio indivíduo, do ‘eu’ individualista, unificado, centrado na própria pessoa, para um eu exterior, revoltado para a solidariedade e fraternidade (BHASKAR, 1998, apud BARROS, 2009, p.144). Bhaskar (1989), em sua visão a respeito da emancipação e transformação social, preconiza que é preciso que os agentes/participantes reflitam sobre suas práticas sociais e que haja engajamento dentro do contexto em que está 30 inserido. Assim, o autor propõe o paradigma da transformação social, como a mola propulsora do inconformismo contra os preconceitos, desigualdades, injustiças, miséria e opressão social e pela possibilidade de mudança dessa triste realidade. Seguindo esses passos, Barros e Mattos asseveram: “Nossa compreensão é que a Emancipação e a Transformação Social nascem de um desejo de viver em um mundo com menos miséria, desigualdade, preconceito e opressão. Esse desejo deve nascer das pessoas que se propõem a trilhar esse caminho”. (BARROS e MATTOS, 2011, p.133) Nesse sentido, alinhando-se com a concepção de Bhaskar, as autoras sugerem o engajamento em ações práticas para que, de fato, haja transformação social, indicar possibilidades de aplicação dessa transformação. Para Theodor Adorno (1995), a emancipação só é possível por meio de uma educação empenhada no processo formativo da consciência crítica, ainda que o fetichismo da mercadoria cultural3, ideologicamente, repasse valores de consumos cristalizados pela indústria de consumo4, levando as pessoas a não refletirem sobre seus atos. Na estrutura de Adorno, a educação não se restringe apenas em repassar conteúdo e nem apenas em desenvolver habilidades nos sujeitos envolvidos, devese lançar fora a pratica da reprodução de conteúdo, é necessário fomentar a reflexão crítica sobre a realidade, passando para a condição de sujeitos do processo de transformação social. Ensinar o sujeito a pensar seu contexto, sua vida, pensar essas contradições e pensar formas de ações que se posicionam contra a disseminação da semicultura5 na sociedade da contradição (LUSTOZA, PIRES e MARQUES, 2012, p.6) Perante essa posição, Adorno evidencia a visão de Kant, onde a emancipação se reporta ao homem autônomo, emancipado, isto é, para a "exigência de que os homens tenham que se libertar de sua autoinculpável menoridade6" 3 A produção cultural, particularmente, tem como objetivo construir os modelos de reprodução do capitalismo e dar atributos humanos nas mercadorias para reforçar o consumo. 4 Conceito criado pelos filósofos e sociólogos Theodoro Adorno e Max Horkheimer, com a finalidade de designar a situação da arte na sociedade capitalista. É um instrumento de manipulação das consciências, usada pelo sistema para se conservar, se manter ou submeter os indivíduos (OLIVEIRA, 2010 p.39) 5 Está presente somente na sociedade industrializada, evidente nos produtos culturais estandardizados pela técnica, mais precisamente a Industria Cultural. (IOP, 2009, p.21) 6 Um estado do ser humano de dependência e conformismo, ou seja, é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. 31 (ADORNO, 1995, p. 141). De conseguinte, a educação engajada em um processo que forneça uma ideia de ser social, e da ação consciente à transformação social, estaria contribuindo para um processo de formação e emancipação. Adorno (2000), em sua obra Educação e emancipação, aborda a questão dessa mesma emancipação no processo educacional, atribuindo à educação o dever de impedir o que ele chama de “barbárie”, buscando a emancipação dos sujeitos. Não outra a preocupação de Adorno (2000): [...] reside na sociedade e em sua relação com a escola [...] Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades (ADORNO, 2000, p. 116-117). Conforme esse autor, a educação deve contemplar a formação da consciência crítica à autonomia e à emancipação dos sujeitos. Destarte, é imprescindível que se conduza à elucidação das incongruências e às contradições sociais. Adorno (2000) propagou a ideia da educação política, como eixo do projeto emancipatório. Contudo, pressupõe que esta mesma educação conceba uma atitude de resistência à barbárie, ou melhor, à relevância da educação nos processos de emancipação e desbarbarização. Assim, Viana (2009) ressalta que, “a emancipação, na perspectiva de Adorno, não se refere apenas ao indivíduo como entidade isolada, mas fundamentalmente como um ser social”. Ela é crucial para a democracia e se incorpora ao desejo individual, semelhantemente ao que se dá com instituições representativas. E preciso, porém desviar-se de um desfecho irracional, para isso é importante que cada individuo desfrute de seu próprio saber, ou seja, de sua capacidade de intervir e refletir criticamente o contexto social em que se insere. O ideário norteador de Paulo Freire (1991) se destaca pelo reconhecimento de que pensar em emancipação é procurar o oposto: a opressão. O estado de opressão, salientado em suas obras, traz o recorte relacionado com a classe social. Se bem assim, esta classe é composta de sujeitos sedentos de liberdade, autonomia e emancipação, susceptíveis do grande triunfo, pela práxis 32 revolucionária que os concebe. No entanto, Freire (1980) enfatiza que os oprimidos estão condicionados aos ideais humanos dos opressores, assim a práxis da libertação é uma das dinâmicas para esta superação. Outro aspecto da teoria freiriana é compreensão de que a inversão de papéis com os opressores – autoritarismo e o individualismo – pode ser superado: somente os oprimidos podem libertar os seus opressores, libertandose a si mesmos. (...) É, pois, essencial que os oprimidos levem a termo um combate que resolva a contradição em que estão presos, e a contradição não será resolvida senão pela aparição de um “homem novo” e nem o opressor nem o oprimido, mas um homem em fase de libertação (FREIRE, 1980, p. 59). No entanto, as lutas pela emancipação humana apresentam em seu contexto sócio-histórico, lutas ininterruptas, em que a busca pela superação da relação contraditória entre oprimido/opressor se constitui “homens novos”, em relações de liberdade, autonomia e emancipação, por meio de uma educação humanizante, que melhor corresponda à sua formação ética e capacidade ontológica, ou seja, a de compartilhar e intervir no mundo que o cerca. Conforme Freire, um processo que faz parte da própria humanização do ser humano, da sua vocação para “ser mais”. Nesse sentido, é importante resgatar a perspectiva da práxis humana, dado que o processo de emancipação concebe ao oprimido o sentido de reconstruir sua humanização de não transformar-se opressores, mas reconstrutores da humanização de ambos. “E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores.” (FREIRE, 1991, p. 30): “A libertação, por isto, é um parto [...] O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressor-oprimido, que é a libertação de todos” (FREIRE, 1991, p.35). A teoria freiriana compreende que o estado de emancipação contempla a plenitude dos sujeitos em uma sociedade efetivamente transformada, resistindo e superando contextos de opressão. Portanto, a emancipação se denomina como uma categoria universal, cuja realização plena perpassa pela autonomia, liberdade e igualdade entre os sujeitos, pois é o que define uma sociedade emancipada para Freire. 33 A perspectiva da emancipação social está no cerne de toda produção de Marx: é a força motriz pelo qual sucederia a possibilidade de ruptura e superação do modelo social do capital e a supressão da dualidade do homem na sociedade por meio da contingência da instauração de um novo modelo social. Ou melhor, a emancipação social só será consolidada se homem individual for superado e, coletivamente, estabelecer-se como ser genérico. Então, é fundamental haja uma nova consciência política e social, assim, requisitaria uma formação integral do homem e de suas capacidades – por meio da Educação e do Trabalho. Nesse sentido, almeja-se despertar, no homem, a consciência de seu papel na sociedade burguesa/capitalista, instituindo em seu âmago a mudança social. Para Marx, a emancipação social só é possível em um novo ordenamento social. Vejamos Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual em suas relações individuais somente reconhecido e organizado suas “forces propes” como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob forma de força política, somente então se processa a emancipação humana (MARX, 2003, p. 42, grifos do autor). Neste contexto, o autor pontua que a emancipação social só poderá ser realizada com a superação do sistema do capital, e esse objetivo não se alcança na individualidade, uma vez que caracteriza processo coletivo e social. No entendimento de Marx (2001), trata-se de uma concepção que preza por uma relação dialética entre infraestrutura e superestrutura, entre a essência do ser e a consciência. Afinal, uma conexão onde o homem é considerado sujeito ativo do processo, um sujeito que, dentro de certos contextos, influi na transformação social. Outrossim, para o pensamento marxista, a transformação social ocorre em determinada consciência, resultado das contradições que se exteriorizam na base material da sociedade, que acabam levando os sujeitos a ações que conservam ou modificam a realidade social. Por fim, emancipação é fruto da consciência crítica daquele que busca a transformação social, almejando o benefício coletivo, em função de uma participação ativa, revelada em ações organizadas e eficazes. A seguir, abordarei os conceitos sobre a Análise Crítica do Discurso, doravante ACD. 34 1.3 Análise Crítica do Discurso: abordagem transdisciplinar para estudos críticos da linguagem como prática social Na década de 1980, emerge na Inglaterra uma abordagem elaborada por Norman Fairclough da Universidade de Lancaster, denominada Critical Discourse Analysis. A expressão foi traduzida no Brasil como Análise Crítica do Discurso e Análise de Discurso Crítica. No início da década de 90, outros trabalhos foram publicados. O de Van Dijk, na revista Discourse and Society, revela-se precursor. Em 1992, foi lançado o livro Discourse and Social Change de Norman Fairclough, desenvolvendo tópicos poucos fundamentados em sua publicação anterior, Language and Power, expondo pela primeira vez sua teoria-crítica para análise do discurso. A Análise Crítica do Discurso vem sendo desenvolvida e disseminada, no Brasil, em programas de pós-graduação na área das ciências sociais, principalmente da linguagem, em várias universidades brasileiras. Fairclough (2003) assegura: a ACD é a análise das relações dialéticas entre a semiose (incluindo a linguagem)e outros elementos das práticas sociais. Sua preocupação particular está nas trocas fundamentais que têm lugar na vida social contemporânea, e no modo em que figura a semiose nos processos de troca. A ACD é indispensável para a compreensão do que vêm a ser os estudos críticos da linguagem. Fazer análise de discurso é descrever, interpretar e explicar como a vida social se realiza por meio da manifestação linguística, uma vez que o discurso consiste numa prática social interconectada com outras, igualmente importantes, que funcionam como partes constituintes da sociedade (FAIRCLOUGH, 2003). Desse modo, ao analisar um discurso é necessário identificar os mecanismos que montam as formações ideológicas imbricadas na formação. A esse respeito (FAIRCLOUGH, 2003, apud, SILVA, 2009, p.2) aponta: a ACD é uma forma de ciência crítica que é conhecida como ciência social destinada a lançar luz sobre os problemas que as pessoas enfrentam por efeito das formas particulares da vida social; destinada igualmente a fornecer recursos, com os quais as pessoas se valem para abordar e superar esses problemas. Fairclough (2001; 2003) ainda reconhece que é de responsabilidade do 35 analista crítico do discurso investigar as relações dissonantes de poder investidas na linguagem, fornecendo ferramentas de compreensão sobre os mecanismos que podemos usar para investir tais desigualdades. O autor elaborou um método que compreende a composição do discurso como, simultaneamente, três dimensões de análise: o texto, a prática discursiva e a prática social. Tal tríade deve ser entendida como uma realização única no funcionamento do discurso. Essas três dimensões abrigam o objetivo de estabelecer uma teoria linguística que forneça dados relevantes para as Ciências Sociais, analisando o texto não apenas em sua versão estrutural, mas também em sua forma organizacional, ou seja, de produção e consumo – discursiva –, e em sua função eminentemente social, isto é, como uma prática comum e concreta à nossa vida cotidiana. Nesse sentido, a proposta teórico-metodológica da ACD fundamenta-se numa abordagem científica transdisciplinar para estudos da linguagem como prática social. Fairclough (2001) reconheceu o valor primordial da dialética que o discurso estabelece com a sociedade, constituindo, ao mesmo tempo, representações sociais, identidades, crenças e conhecimento. Na estrutura textual, é relevante analisar a lexicalização e a significação do vocabulário, pois sinalizam o imbricamento de sentidos de mundo que se materializam em tempos e espaços variados para igualmente diversificados grupos e pessoas. Essas estruturas também podem ampliar o conhecimento sobre as relações sociais e as identidades sociais e os sistemas de crenças que estão implicados nas convenções da discursiva. Há muitos vocabulários em competição, correspondendo aos diferentes domínios sociais. Por isso, é mais apropriado falar em ‘lexicalização’ e ‘significação’ do que em ‘vocabulário’, pois esses termos indicam a constituição de sentidos do mundo que ocorrem diferentemente em tempos e épocas para diversos grupos de pessoas diferentes”. Também podem ampliar o conhecimento sobre as relações e identidades sociais, bem assim sobre os sistemas de crenças que estão implicados nas convenções dos tipos de texto. Fairclough (1992) estabelece a distinção entre prática discursiva e prática social. A primeira se manifesta em forma linguística, na forma de ‘textos’, usando ‘texto’ no seu sentido amplo: linguagem falada e escrita. A segunda é uma dimensão do evento discursivo, da mesma forma que o texto. Em alguns casos, a prática 36 social pode ser inteiramente constituída pela prática discursiva, enquanto, em outros, pode amalgamarem conjunto de práticas discursivas e não discursivas. Segundo o autor: “A análise de um discurso particular, como o exemplo de prática discursiva, focaliza os processos de produção, distribuição e consumo textual” (FAIRCLOUGH 2001, p.99). A Teoria Social do Discurso trabalha com um modelo tridimensional do discurso em que qualquer aspecto textual é elemento significativo na análise do discurso, ao ampliar o diálogo entre a Análise de Discurso Crítica/ ADC e a Linguística Sistêmico-funcional/LSF. Fairclough (2003) escolhe tratar de três tipos principais de significado – Acional, Representacional e Identificacional –, em vez de falar em macrofunções/LSF. O autor relaciona a multifuncionalidade da linguagem à tríade que sustenta sua obra: gêneros, discursos e estilos, bem assim aos três modos principais pelos quais o discurso se apresenta como uma parte da prática social: modos de agir, modos de representar, modos de ser. Fairclough (2003) defende que os significados, por ele definidos, estão copresentes nos textos, numa relação dialética, da mesma forma que as macrofunções, na perspectiva da LSF. Ele demanda uma correlação entre ação e gêneros, representação e discursos, identificação e estilos. Assim, Fairclough (2003) alarga o diálogo teórico que fez com a teoria multifuncional do Halliday e alvitra uma relação entre as metafunções e os conceitos de discurso, gênero e estilo. Nesse norte, propõe a substituição das funções apresentadas por Halliday, com três tipos de significados: representacional, identificacional e acional. Fairclough (2003) conceitua os significados da seguinte forma: O significado acional põe em evidência os gêneros textuais ou discursivos, ancorados nos quais os textos se declaram como modos de interação em eventos sociais. Cada prática social engendra e utiliza gêneros discursivos peculiares, que articulam estilos e discursos de maneira referentemente estável em determinado contexto sócio-histórico e cultural. O significado representacional de textos é atrelado ao conceito de discurso como modo de representação de aspectos do mundo. Para o autor, diferentes discursos representam diferentes perspectivas do mundo, que são referentes às relações que as pessoas estabelecem com o mundo, com posições, e às relações que estabelecem com outras pessoas. Sendo assim, os diferentes discursos não apenas representam o mundo ‘real e concreto’, mas também podem 37 possibilitar mudanças da ‘realidade’. O significado identificacional traduz o aspecto discursivo de identidades. O seja, relaciona-se com a identificação de atores sociais em textos e com a forma como o processo de identificação no discurso envolve seus efeitos constitutivos. Respectivamente, estes correspondem às funções ideacional, identitária, e relacional, encadeada à textual. Fairclough justifica a união da relacional com a textual por compreender que esta última, mais do que sugerir informações e propósitos, integra uma ação, sobrelevando que a relacional, ou melhor, ambas têm significado acional no texto. Conforme Fairclough (2003), a relação entre os significados acional, representacional e identificacional é dialética. Doutro modo dizendo, os três aspectos não são isolados entre si, dado que sua distinção é somente uma imposição metodológica. Nesse sentido, o autor entende que esses três significados devem ser levados em linha de conta na análise das práticas sociais. Palmilhando ainda a mesma vereda, neste estudo darei atenção ao significado representacional, considerando que os discursos incluem representações de como os eventos são construídos socialmente, portanto os discursos, como modo de representação, integram pontos essenciais na relação dialética entre linguagem e outros componentes da vida social. Fairclough afirma: “Representação é um processo de construção social de práticas, incluindo a construção reflexiva de si – representações penetram em processos sociais e práticas e os moldam” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 123). No interior de qualquer prática social, atores sociais produzem representações de outras práticas. Em sua trajetória dentro da prática, eles acabam agregando uma prática para o contexto de outra prática, ou seja, recontextualizam outras práticas, buscando transformá-las e ressignificá-las. De acordo com Fairclough (1992), o discurso é concebido como prática social, de representação e de significação do mundo. Para ACD, o discurso é compreendido como elemento constituidor do social, à guisa de ação – visto que é uma dos modos pelos quais as pessoas podem agir, interagir sobre o mundo e sobre os outros. Todavia é também conceituado como uma forma de representação, em que valores e identidades são representados de forma particular. Assim, os discursos são concebidos não apenas como reproduzindo entidades e relações sociais, mas também como as construindo de diversas maneiras, cada uma das 38 quais posicionando os sujeitos sociais também de diferentes maneiras (Fairclough,1992). Os discursos, como formas de representação, estabelecem pontos essenciais na relação dialética entre linguagem e vida social. O significado representacional aborda a representação da realidade nos textos, estampando três elementos principais nas orações: participantes, processos e circunstâncias (Halliday, 1978, 1994). Desses elementos experienciais, “os processos geralmente se realizam sob a forma de verbos, os participantes sob a forma de sujeitos, objetos diretos e indiretos, e as circunstâncias sob a forma dos diferentes tipos de elementos adverbiais, como adjuntos adverbiais de tempo ou lugar” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 135). Os textos podem ser analisados por uma perspectiva representacional. No pensar de Fairclough (2003), envolve investigar a representação dos atores sociais. Esse autor, em consonância com van Leeuwen (1997), difunde algumas variáveis que equivalem às escolhas disponíveis na representação: Inclusão ou exclusão — quais atores são incluídos e/ou excluídos; ativo ou passivo: como os atores sociais são representados – de modo ativo (como ator no processo) ou passivo (como afetado ou beneficiário); pronome ou nome: se os atores sociais são realizados como um pronome ou como um nome; Pessoal ou impessoal: se os atores sociais são representados pessoal ou impessoalmente; nomeado ou classificado: se os atores sociais são nomeados (representados pelo nome) ou classificados (representados em termos de classe ou categoria); específico ou genérico: se os atores são classificados, devendo-se verificar se são representados específica ou genericamente (Silva, 2009, p.4). Assim, estratégias de representações dos atores do discurso podem preconizar posições ideológicas em relação a eles e às suas ações. “Determinados atores, por exemplo, podem ter sua agência ofuscada ou enfatizada em representações, podem ser representados por suas atividades ou enunciados, ou, ainda, podem ser referidos de modos que presumem julgamentos acerca do que são ou do que fazem. Por isso, a análise de tais representações pode ser útil no desvelamento de ideologias em textos e interações” (RESENDE e RAMALHO, 2006, p.72). Enquanto as práticas sociais agregam as representações, elas são acometidas ideologicamente, colaborando para as relações de sustentação ou reestruturação do poder. Todavia, uma conexão produtiva pode ser realizada entre 39 discurso, como meios de representar, e de ideologia. Na próxima seção discuto, brevemente, o conceito de discurso como prática social. 1.3.1 O discurso como prática social Na ACD, o discurso é compreendido como uma prática social, cuja ação produz, reproduz e transforma sujeitos da linguagem e realidades sociais, com base em processos sociocognitivos em uma perspectiva histórica, total ou parcialmente mediado pelos gêneros textuais específicos. O discurso predispõe, tanto o amoldamento ideológico e linguístico quanto a ação transformadora de suas próprias práticas discursivas, opondo-se e transformando as relações de poder, dominação e correntes ideológicas. Age, assim, de forma interposta, conformando-se com as formações discursivas/ sociais. Já em outro momento apresenta resistência e ressignificação. Desse modo, Fairclough ressalta: Há uma boa razão para usar “discurso” em vez desses termos tradicionais: um discurso é um modo particular de construir um assunto, e o conceito difere de seus predecessores por enfatizar que esses conteúdos ou assuntos – áreas de conhecimento – somente entram nos textos na forma mediada de construções particulares dos mesmos (FAIRCLOUGH, 2001: 64). Percebe-se que há “um movimento do discurso para prática social, ou seja, a centralidade do discurso como foco dominante da análise passou a ser questionada, e o discurso passou a ser visto como um momento das práticas sociais” (Fairclough, 2001, p. 101). De acordo Chouliaraki e Fairclough (1999), práticas sociais são “maneiras habituais, em tempos e espaços particulares, pelas quais pessoas aplicam recursos – materiais ou simbólicos – para agirem juntas no mundo” (Resende e Ramalho, 2006, p. 35). Consequentemente, a ACD estabelece que toda análise parte da questão da reprodução de discursos imbuídos de ideologias, que devem ser superadas por meio da reflexão crítica. Nessa óptica, o momento da prática social no discurso é fruto da articulação de recursos discursivos em rede, ou seja, as práticas discursivas “são determinadas umas pelas outras, e cada uma pode articular outras gerando diversos efeitos sociais. As redes são sustentadas por relações sociais de poder [...] ligadas a 40 lutas hegemônicas” (Resende e Ramalho, 2006, p. 43). Pode-se afirmar que o discurso, no processo de construção de significados, habilitados para dar sentido à realidade organizacional ou de alguma outra instituição humana, pode ser compreendido como uma prática social, ponderando a participação fundamental do contexto histórico, social e cultural na reflexão das percepções de mundo que envolve os sujeitos. Portanto, as atividades discursivas, provenientes das diversas formas de comunicação e linguagem, devem ser analisadas em conformidade com a conjectura da comunicação organizacional, também fruto das práticas sociais. MEURER (2005), assinala que a concepção do discurso como prática social, de acordo com Fairclough, Reflete três inferências fundamentais. Na primeira, os indivíduos realizam ações por meio da linguagem. Já na segunda, o discurso é simultaneamente influenciado pelas estruturas sociais e as influências. Na terceira os discursos moldam a forma, e os textos significam aquilo que os discursos permitem que signifiquem (MEURER, 2005, apud MOREIRA, 2013: 29). A seguir, ilustramos o quadro elaborado por Faircloug (2003), para apresentar a linguagem como momento da vida social: Quadro 1 – Linguagem como momento da vida social Níveis do social Níveis da linguagem Estrutura social Sistema semiótico Práticas sociais (Ordens de) discurso Eventos sociais Textos Baseado em Fairclough, 2003 (apud RAMALHO, 2008, p.52) Como se pode observar, o modelo de análise proposto por Fairclough (2003) descortinar os três níveis da vida social e sua correlação com os níveis da linguagem relevantes: a relação dialética entre o discurso e outros elementos das práticas sociais – outras formas de semioses: linguagem corporal, imagens visuais, etc. (BARROS, 2009: 5). Para tanto, Fairclough (2003) propõe a seguinte análise: No primeiro nível, o sistema semiótico (lexicogramaticais) pode ser abalizado no interior da estrutura social abstrata – classe social, língua, estrutura econômica, física, biológica e psicológica. Dispõe de estruturas dessemelhantes, com efeitos gerativos nos eventos – o fazer concreto dos agentes sociais 41 materializado em forma de textos –, através de mecanismos particulares. Todavia, existe uma complexidade entre estruturas e eventos. No segundo nível, a relação entre as estruturas e eventos, que são ‘práticas sociais’, é mediada por entidades organizacionais, relacionadas com as ordens de discurso – “as combinações particulares de gêneros, discursos e estilos, que constituem o aspecto discursivo de redes de práticas sociais” (MOREIRA, 2013, p. 29). Busca-se compreender como as estruturas sociais moldam os textos e como eles refletem as estruturas sociais. A análise da prática social traz à tona os efeitos ideológicos e políticos presentes nos textos (BARROS, 2009, p. 3). Para FAIRCLOUGH (2003, p. 26), o discurso figura de três maneiras nas práticas sociais: na forma de gêneros textuais (como modos de agir), de discursos (como modos de representar), e de estilos (como modos de ser). No terceiro nível, aflora a linguagem como texto, tratando-se material mais concreto dos eventos. Diz Fairclough, nesse sentido, que os textos se realizam mediante o modo como os sujeitos aprenderam a realizá-los em determinados meios sociais e mediante determinado discurso. Este saber, contudo, é dinâmico e está em transformação constante (BONINI, 2007, p. 62). A seguinte seção encerra, sob a lupa da ACD, a concepção de hegemonia e poder, os quais sustentam relações de poder e controle. 1.3.1.1 Hegemonia e poder A noção de hegemonia foi criada no cerne da tradição marxista sustentado pelo pensamento voltado para configurações sociais que se expressavam, peculiarmente, no tempo e espaço. Mas foi Gramsci que conceituou a hegemonia de forma mais elaborada e apropriada para pensar as relações sociais. Portanto, A noção de hegemonia propõe uma nova relação entre estrutura e superestrutura e tenta se distanciar da determinação da primeira sobre a segunda, mostrando a centralidade das superestruturas na análise das sociedades avançadas. Nesse contexto, a sociedade civil adquire um papel central, bem como a ideologia, que aparece como constitutiva das relações sociais. Deste modo, uma possível tomada do poder e construção de um novo bloco histórico passa pela consideração da centralidade dessas categorias que, até então, eram ignoradas (ALVES, 2010, p.71). 42 A fim de melhor definir o conceito hegemonia, a ACD pressupõe que esta, é foco de luta constante sobre pontos de instabilidade entre as classes e blocos dominantes, com o objetivo de construir, sustentar ou, ainda, quebrar alianças e relações de dominação e subordinação, tomando formas econômicas, políticas e ideológicas (MAGALHÃES, 2001, p. 18). Conforme o autor, a presença da hegemonia se dá por meio de um desequilíbrio, pois, havendo estabilidade, não há hegemonia. Fairclough caracteriza hegemonia como “domínio exercido pelo poder de um grupo sobre os demais, baseado mais no consenso do que no uso da força” (FAIRCLOUGH, 2001, apud RESENDE & RAMALHO, 2006). É sabido de todos que a sociedade esta estruturada de forma hierárquica, e é normatizada por determinados comportamentos, ideias e atitudes. Em suma, busca colar limites aos indivíduos que a constituem. Sendo assim, fixemos sua compreensão: “Hegemonia são relações de dominação baseadas no consentimento, em lugar de coerção, envolvendo a naturalização de práticas e suas relações sociais bem como relações e práticas, como questões do senso comum” (CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999, p.24) Pode-se afirmar que a hegemonia concentra, em seu seio, ideal de dominação, especialmente desempenhada no campo ideológico, onde cada sujeito constrói sua realidade. Afinal, há uma afirmativa de que hegemonia e ideologia encerram forte ligação dentro do discurso. Juntas, ambas as partes formam bases de sustentação para o poder. Entretanto, vale ressaltar que a hegemonia é instável e a relação de dominação pode ser rompida. Apesar disso, é importante pôr em evidência que a hegemonia é uma dimensão efêmera. Assim a qualquer instante a dominação pode sofrer ruptura, pois ela é um espaço de luta entre dominadores e dominados, ou seja, opressores e oprimidos. O intuito da ideologia, hegemonia e poder é sustentar o ideal de status de certo grupo, a universalização, quando não eternizar monopólios e privilégios. A ACD “cuida tanto do funcionamento do discurso na transformação criativa das ideologias quanto do funcionamento que assegura sua reprodução.” (RESENDE & RAMALHO, 2006, p. 47). Diante dessa óptica, a ACD opera com o objetivo de 43 investigar o discurso e desmascarar a ideia de que o discurso trabalha para a manutenção do poder. Este pensar de Resende e Ramalho (2006, p.49): A concepção crítica postula que a ideologia é, por natureza, hegemônica, no sentido de que ela necessariamente serve para estabelecer e sustentar relações de dominação e, por isso, serve para reproduzir a ordem social que favorece indivíduos e grupos dominantes. Essas relações de poder se configuram de forma desigual, cujo escopo é favorecer a relação de dominação. Embora assim, a hegemonia está fortemente encadeada a questões de poder – que pode ser conceituado tanto num sentido mais geral, quanto no sentido ‘relacional’. No sentido mais geral, poder é “a capacidade transformadora da ação humana, a capacidade tanto para intervir numa série de eventos quanto para alterar o seu curso” (Fairclough, 2003, p.41). Assentado nessa dessa análise, pode-se afirmar que o poder se translada entre os grupos perante a capacidade de manter o controle de certas circunstâncias sociais, através dos textos orais e/ou escritos. A ACD traz à tona a importância de investigar de que forma o poder é construído e fortalecido dentro do discurso. É relevante vincar que a ACD propicia a inter-relação entre a linguística e a ciências sociais, analisando o discurso hegemônico e ideológico que fortalece as relações de poder e dominação. Em sequência, descortino conceito de ideologia, dentro da perspectiva da Análise Crítica do Discurso, em que as circunstâncias e contextos são capazes de desvelar ideologias e representações das desarmônicas de poder, que se encontra instalado nas relações sociais. 1.3.1.2 Ideologia A ideologia não é conceituada na ACD de forma categórica. Esta vertente leva em conta que as considera que as situações e contextos podem revelar ideologias, visto que são também representações dos aspectos deste mundo. Nesse sentido, as ideologias contribuem para o estabelecimento e a manutenção das relações de poder, dominação e exploração (FAIRCLOUGH, 2001, 2003). Cabe à ideologia a função de fortalecer as relações desarmônicas de poder, reestabelecendo e reproduzindo os discursos de ordem social dos grupos 44 dominantes e dos sujeitos que os compõem. Esse poder é estabelecido, e/ou reproduzido, não pelo uso da força, mas pelo consenso, mediante “concessões ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento” (Idem, 2001, p. 122). Fundado numa perspectiva crítica, Thompson conceitua a ideologia da seguinte forma: Em termos das maneiras como sentido, mobilizando pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas (THOMPSON, 1995, p.79). Thompson adverte que a ideologia “pode operar através do ocultamento e do mascaramento das relações sociais, através do obscurecimento ou da falsa interpretação das situações” (op.cit.,76)7. Thompson (2009) distingue cinco modos de operação da ideologia. Tais modos estabelecem e sustentam a relação de poder. Embora sejam suscetíveis de sobrepor-se e trabalhar juntos, de haver outras formas de manifestação, ele os liga à legitimação, à dissimulação, à unificação, à fragmentação e à reificação. Essas estratégias não são especificamente ideológicas. Seu emprego ideológico deriva de condições particulares, dependendo de sua aplicação para estabelecer e romper relação de poder. A legitimação representa as relações como legítimas, podendo atuar por meio de estratégias como a Racionalização, a Universalização e a Narrativização; (b) a dissimulação encerra relações de poder negadas, obscurecidas ou ocultadas, operando por meio do deslocamento, da eufemização e do tropo; (c) a unificação mantém relações dissonantes de poder por meio da construção de identidades coletivas, que interligam os sujeitos desprezando suas diferenças, podendo atuar por meio da estandardização e da simbolização da unidade; (d) a fragmentação preserva a relação de dominação, ordenada e conservada por meio da segmentação dos indivíduos e ameaça aos grupos dominantes; (e) a reificação, que retrata uma relação transitória apresentada como permanente e natural, pode efetuar-se por meio da naturalização, da eternalização e da nominalização/passivização. Para Fairclough (2003), as ideologias são referendadas em formas de 7 Ver EAGLETON, Terry.Ideologia. Uma introdução. São Paulo: Boitempo, 1997. 45 interação, portanto, em gêneros e, incomensuravelmente, em identidades. Logo em estilo. Daí, as ideologias são consequências sociais dos textos e relativamente naturalizadas e automatizadas. As ideologias são construções discursivas (Chouliaraki e Faircloug, 1999), e a concepção de ideologia aflora nas relações inclusas nas redes de práticas, particularmente nas práticas discursivas na relação entre o discurso e a prática. Nesse sentido, o discurso pode estar sob a incumbência da ideologia, para legitimar relações de dominação. Dentro das estruturas sociais, as pessoas têm acesso aos diferentes graus de recursos, em que seu posicionamento social lhes garante diferentes posições de poder, para alcançar seus objetivos, tomar decisões, realizar seus interesses e até mesmo levar as pessoas a reproduzir, por meio do discurso, sentidos de dominação e submissão. Todavia, a ideologia decorre de questões alcançadas como estabelecidas dentro do senso comum e favorecer interesses hegemônicos, a serviço do poder. A próxima seção aporta uma discussão sobre o conceito de identidades, tão importante para a compreensão da forma de como os sujeitos se representam no discurso. 1.3.1.3 Identidades As representações da vida social são marcadas por diferentes discursos, cujo posicionamento se encontra deliberadamente intrínseco: os atores sociais de diferentes posturas compreendem e representam a vida social de maneiras peculiares, com diferentes discursos. “As pessoas que diferem por sua classe social, por seu gênero, por sua nacionalidade, por seu pertencimento ético ou cultural, por sua experiência de vida geram ‘realizações’ de uma posição concreta.” (Fairclough, 2003: p. 182) Segundo Fairclough (2001), a construção das identidades sociais, por meio de sua posição no discurso e para instituir essa posição no discurso, é imprescindível para pactuar as relações sociais com os outros participantes. A discussão sobre as identidades está conectada aos paradigmas da ACD. Conforme esta vertente, um dos frutos constitutivos do discurso é o de colaborar para a construção de identidades sociais. Alguns estudiosos têm se interessado por questões identitárias, 46 associadas às intensas mudanças sociais, culturais e econômicas – características da modernidade posterior — que provocam rupturas nas estruturas anteriormente estáveis. Partindo desse contexto, a discussão sobre as identidades sugere o pressuposto: as identidades pós-modernas estão sendo descentradas, deslocadas, fragmentadas (HALL, trad., 2003). Particularmente as mudanças nas esferas global, local e pessoal, acabam atingindo as identidades. Antes apontadas como fixas e imutáveis, transformaram-se em espontâneas e desestabilizadas. Construídas histórica e socialmente, estão sempre num estado de fluxo (RAJAGOPALAN, 1998; HALL, 2003). Vinculando-se a essa concepção, Holmes e Meyerhoff (2006, p. 11) elucidam: as identidades de gênero devem ser consideradas “como um construto social em vez de uma categoria social ‘dada’, para a qual as pessoas estão designadas. O gênero é tratado como a realização e o produto da interação social”. Embasado nessa perspectiva e considerando o cenário de mobilidade e de transformação, Fairclough (2003) defende que os discursos não apenas refletem ou representam identidades e relações sociais; eles as constroem ou as constituem, sendo, portanto, representação, ação e identificação. Sendo assim, perspectivamente, ao analisarmos o discurso, fazemos alusão de como os sujeitos estão agindo, interagindo no mundo e construindo sua realidade pessoal e social. Logo, implica ainda a influência de fenômenos externos afetando “aspectos da intimidade dos sujeitos, modificando vidas e o modo de ser de cada um deles” (VIEIRA, 2005, p. 209). Para Castells (trad., 2002), é importante reconhecer a inter-relação discurso e identidade, pois a construção das identidades implica a interação entre os sujeitos agindo em práticas sociais nas quais estão posicionados. Desta forma, os discursos refletem as identidades, ao mesmo tempo em que as constroem. Eles também exprimem a maneira como os sujeitos se relacionam. Segundo Castells (1999, p.23) toda e qualquer identidade é construída, e para ele a principal questão acerca da construção da identidade é “como, a partir de quê, por quem e para quê isso acontece”, uma vez que isso é fundamental para o conteúdo simbólico da identidade. Nesse processo de construção, sempre se relaciona em contextos de poder, pois as identidades podem ser fixadas com propósitos ideológicos ou subvertidas, com propósitos de resistência à dominação, pois a identidade é significado atribuído cultural e socialmente (SILVA, 2000). Consideradas as discussões, em torno das ações mediadas pela 47 linguagem, é pertinente ressaltar que tais ações fazem com que os sujeitos alicercem o seu lugar nos dessemelhantes contextos em que ele se depara, assim, o sujeito particulariza o mundo a partir de papéis sociais que ele adota. Para Fairclough (1992, p. 37) as identidades sociais como manifestações do “eu” que são redefinidas e reconstruídas de acordo com o contexto. Portanto, o sujeito assume identidades diferentes em momentos diversos. Segundo Louro (1997, p.25) “os sujeitos são compreendidos como tendo identidades plurais, múltiplas identidades, que se transformam que não são fixas ou permanentes, que podem, até mesmo, ser contraditórias” e que, sendo assim, o sentido de pertencer a diferentes grupos – étnicos, sexuais, de classe, sejam ainda de gênero social – constitui o sujeito. A cultura de um grupo é determinada pelo meio social, que utiliza a linguagem para expressar significados que a constituem. De acordo com Moita Lopes (1998, p.308), as pessoas são essencialmente seres produzidos por outros seres: a identidade de uma pessoa é o que dizem que ela é em seu meio. O autor tece este esclarecimento: As práticas discursivas moldam nossas identidades sociais, pois a identidade não é uma qualidade inerente de uma pessoa, ela nasce na interação com os outros; em outras palavras, as identidades são construídas no discurso e é neste processo que construímos a história de nossas vidas, que ‘contamos’ os outros e a nós mesmos (MOITA LOPES, 1998, p.67). Segundo esse autor, as práticas sociais discursivas determinam as identidades sociais, pois é, na reciprocidade com os outros, que as pessoas se representam. O autor ainda ressalta que a construção da identidade, em determinado contexto, evidencia que as identidades são construções sociais, resultando na supressão ou promoção conforme os interesses da ordem social dominante. Por meio dessa concepção, é possível observarmos que o sujeito se estabelece dentro do contexto, adequando-se às necessidades desse contexto. O sujeito se constrói, e constrói o mundo em seu redor, assentado em suas experiências. A seguir, discorro sobre os significados do discurso, que visa descrever o discurso como prática social. 48 1.3.1.4 Significados de discurso A ADC conceitua o discurso como prática de significação de mundo, e a linguagem é concebida como dialeticamente interconectada a outros elementos da vida social (FAIRCLOUGH, 2003). Para Fairclough (2003), o discurso é tido como forma de prática social, e não como atividade puramente individual ou reflexa de variáveis situacionais, uma vez que esse autor defende que a linguagem se constitui por sujeitos e relações sociais (FAIRCLOUGH, [1992] 2008). Norman Fairclough pontua que a maneira como o indivíduo fala ou escreve revela quem ele é, ou seja, a linguagem utilizada pelas pessoas em determinado contexto social e cultural pode revelar suas identidades. Nesse sentido, Fairclough (2003) compreende que as análises textuais devem se preocupar em identificar traços linguísticos que possibilitem perceber os estilos ou o modo como o enunciador identifica a si mesmo e como identifica outras pessoas. Essa compreensão está relacionada com o fato de o discurso ser socialmente influenciado e estabelecer efeitos ideológicos de forma a produzir e reproduzir relações de poder por meio da forma como as pessoas representam discursivamente coisas e posições sociais (FAIRCLOUGH e WODAK (1997), FAICLOUGH, [1992] 2008). De acordo com Fairclough e Wodak (1997), fundamentada no arcabouço teórico de Michel Foucault, a ACD entende o discurso – textos orais e escritos – como prática social. O discurso, como prática social, requer uma relação dialógica entre o discurso de um evento discursivo específico as circunstâncias, instituições e as estruturas sociais em que o evento está inserido.Portanto, essa relação dialógica permite compreender que o discurso é socialmente constituído, ao mesmo tempo em que a sociedade o constitui. É constituído para manter e reproduzir posições sociais, da mesma forma que contribui para transformá-las. Para Fairclough (2008), as práticas discursivas também fundamentam a ACD. Estas são processos de produção, distribuição e consumo textual, sendo a natureza desses processos variável nos diferentes tipos de discurso, de acordo com fatores sociais. Para esse autor, as práticas discursivas contribuem para reproduzir a sociedade como ela é – identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e crença –, mas também contribuem para sua transformação (FAICLOUGH, 2008). Na próxima seção, entreabro o conceito de gêneros discursivos, que 49 contribuirão para a descrição e interpretação dos textos. 1.3.2 Gêneros Discursivos Segundo Fairclough (2003, p.65), “são gêneros o aspecto especificamente discursivo de formas de agir e interagir no curso dos eventos sociais”. Portanto, analisar um texto, ou com ele interagir, é investigar como ele age e contribui para a ação e interação nos eventos sociais. O autor estabelece a relação entre análise de gêneros e os diversos temas das produções científicas das ciências sociais. Os gêneros discursivos8 são tipos relativamente estáveis de enunciado. Mais precisamente, são produções escritas ou orais heterogêneas, ligados especificamente a uma atividade: atuam em um determinado contexto; são reflexos de uma cultura e de estruturas sociais; abarcam em seus desígnios, funções e objetivos; são regulados por fatores semânticos, gramaticais e lexicais; são variáveis discursivamente, concretizados estabelecendo por fatores relação de sócio-históricos, poder, e refletem tecnológicos, autoridade, comunicativos e institucionais. Intrinsecamente, a forma favorece as práticas sociais e as inter-relações em eventos sociais. Pode-se afirmar que os diferentes tipos de gêneros agem dessemelhantemente na ação e interação com o discurso. Os gêneros discursivos são desenvolvidos em significados acionais e formas de um texto; os discursos, em significados representacionais e formas; já os estilos, em significados identificacionais e formas, de maneira que as dimensões textuais permanecerão, antes de tudo, agregadas a determinadas relações semânticas ou categorias gramaticais. Conforme Fairclough, eles também podem ser considerados como “redes de práticas sociais em seus aspectos linguísticos” (FAIRCLOUGH, 2003, p.24). À luz do autor, os gêneros podem ser definidos em diferentes níveis de abstração. Fairclough considera alto nível de abstração os pré-gêneros. Sejam exemplo a narrativa, o diálogo, a argumentação, a descrição e a conversação. 8 Bakhtin (2000) define gênero do discurso como sendo tipos de enunciado, que se caracterizam por seu conteúdo temático, unidade composicional e estilo. 50 Revelam-se categorias que transcendem redes particulares de práticas sociais. Assim, podemos citar gêneros narrativos, narrações convencionais, histórias narradas em noticiários, bem assim gêneros descritivos, descrição de produtos em manuais de inscrição. Os gêneros são identificados por sua estrutura genérica. Todavia, os textos podem ser ativos sem termos de gênero, mesclando vários tipos deste. Mas, de acordo com Fairclough (2003), os gêneros discursivos, por vezes, vêm sendo mesclados com os gêneros híbridos, no caso da comunicação, por exemplo, com o anúncio publicitário. Nesse norte a estrutura genérica se pulveriza em gêneros situados, específicos para redes particulares, como numa entrevista etnográfica. Então, em certos casos, podemos perceber uma hierarquia genérica nos textos, havendo gêneros principais, como entrevista, e subgêneros. A próxima seção apresenta o conceito de intertextualidade e interdiscursividade, particularizando representação das vozes, dos textos e discursos que um autor retoma do outro em seu próprio percurso da construção de um novo texto. 1.3.3 Intertextualidade e Interdiscursividade Para Fairclough (2001), a intertextualidade tem seu foco assentado no discurso, visto como mudança social. O autor ressalta que, preliminarmente, as mudanças na prática social são abalizadas na estrutura da linguagem pelas transformações no sistema de gêneros discursivos. Os sistemas são constituídos na sociedade, por meio de uma configuração particular de gêneros que se entrelaçam entre eles. Convenientemente às transformações espontâneas, que sucedem na sociedade, resulta a alteração das correlações entre os gêneros, e decorrentemente, o seu sistema. Na esteira desse mesmo autor, as concepções de texto e de prática discursiva, desenvolvidas na ACD, fazem conexão com o conceito de intertextualidade, termo cunhado por Julia Kristeva no final dos anos de 1960, a partir do conceito de dialogismo de Mikhail Bakhtin. A concepção de intertextualidade, desenvolvida por Bakhtin e Fairclough, é abundantemente disseminada nos estudos culturais e da linguagem. Apesar de Bakhtin não utilizar em seus pressupostos, o termo “intertextualidade” se alicerçava na perspectiva da abordagem intertextual amarrada diretamente às questões de gêneros. De acordo 51 com Fairclough (2001, p. 135), a intertextualidade “aponta para a produtividade dos textos, para o modo como os textos podem transformar textos anteriores e reestruturar convenções existentes”. Fairclough, assina intertextualidade: a propriedade que têm os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos, que podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante. (FAIRCLOUGH, 2001 p.135) Nesse giro, existem dois modos de realização da intertextualidade em um texto, registrando que a diferença entre os dois é efetuada com apoio no modo como se configura no discurso. Seu pronunciamento gráfico é denominado, pelo autor, de “intertextualidade manifesta”, associada à redundância manifestada a outros textos, marcados ou propostos por aspectos presentes na superfície do texto. De outra parte, a “intertextualidade constitutiva” ou “interdiscursividade” está relacionada com a complexa configuração, interdependentemente formações discursivas (FAIRCLOUGH, 1995, p. 95), é ligada internamente ao texto, conduzindo ao modo como valores, crenças e hábitos de um discurso são renovados em outro. Fairclough se refere à intertextualidade constitutiva introduzindo o termo “interdiscursividade”: A teoria da intertextualidade manifesta é o caso em que se ocorre explicitamente a outros textos específicos em um texto, enquanto a interdiscursividade é uma questão de como um discurso é constituído de uma combinação de elementos de ordens de discurso. (FAIRCLOUGH, 2001, p.152) Na intertextualidade manifesta, outros textos estão explicitamente marcados por aspectos na superfície do texto, a exemplo das aspas, enquanto que, na intertextualidade constitutiva (interdiscursividade), um texto pode incorporar outro texto, sem que o último esteja explicitamente apresentado; ou melhor, é a configuração de convenções discursivas que entram em sua produção. (BRITO, 2009, p.3) Portanto, a intertextualidade e a interdiscursividade são estratégias empregadas no discurso com o sentido de produzir coerência e, efetivamente, cativar o receptor das proposições. São definidos pela ACD como propriedades que os textos têm de estar abarrotados de fragmentos de outros textos. Tais fragmentos podem estar demarcados claramente ou miscigenados com o texto. Entretanto, esses fragmentos podem compreender contestar ou fazer repercutir, satiricamente. 52 Sendo assim, a intertextualidade e a interdiscursividade não se manifestam sem motivos, pois, quando se dá espaço para outra voz no texto, de forma explícita se busca a intenção de corroborar as próprias ideias a partir do enunciado do outro, uma vez que as escolhas são impulsionadas. A próxima seção discorre sobre as construções conceituais da Teoria das Representações de Atores Sociais, de Theo van Leeuwen, que vem sendo utilizada como ferramenta metodológica na análise crítica do discurso, fomentando discussões que orbitam a questão da agência discursiva. Assim evidenciando os modos pelos quais os atores sociais podem ser linguisticamente representados. 1.4 A Teoria das Representações de Atores Sociais A proposta teórico-metodológica de Theo van Leeuwen (1997; 2008), a teoria da representação de atores sociais, vem sendo aplicada como ferramenta na análise crítica do discurso, disseminando debates que dizem tese da agência discursiva. Nesse andar, põe à mostra os modos pelos quais os atores sociais podem ser representados linguisticamente. As pessoas representam as vivências comuns de terminada comunidade/sociedade, pois o conhecimento não é empírico ao ser humano, mas, sim, construído com as pessoas a outras pessoas, por meio das experiências individuais. Na interação entre sujeito e sociedade, a linguagem se sobreleva no processo de construção das realidades. As produções textuais estão dentro de um sistema de contexto e cultura predefinidos e variam de acordo com o objetivo de quem fala ou escreve. As escolhas linguísticas constroem representações sociais. Nessa perspectiva, os atores sociais são representados como agentes ou como pacientes. Contudo “não é necessário que haja congruência entre os papéis que os atores sociais desempenham, de fato, em práticas sociais, e os papéis gramaticais que lhes são atribuídos” (van Leeuwen, 2008, p. 32). Portanto, sob a concepção da representação da prática é possível investigar as escolhas léxicogramaticais realizadas, os contextos institucionais e sociais em que se concretizam e, também, a finalidade pela qual essas preferências são efetivadas, depreendendo quais as relevâncias implícitas a elas e quais desígnios são alcançados. Van Leeuwen (1997) se apadrinha com a expressão “atores sociais” para representar as pessoas dentro de um discurso. O autor investiga as diferentes 53 formas com que os atores sociais podem ser representados em um texto. Van Leeuwen (1997) classifica a representação dos atores sociais como um conjunto de elementos linguísticos que se articulam, podendo funcionar para incluir ou excluir pessoas e grupos. As formas de representação podem estar relacionadas com as escolhas linguísticas que os sujeitos fazem para externar suas experiências no mundo. Dessa forma, o teórico dispõe de duas categorias essenciais para essa representação, chamadas de Exclusão e Inclusão. A representação por exclusão se dá quando há a supressão ou encobrimento (segundo plano) do ator social. No primeiro, não há, ao longo do texto, referência aos atores sociais em questão. Já o encobrimento ocorre quando o participante é posto em segundo plano. Neste caso, que pode ser resultado de simples elipses ocorridas em orações infinitivas e coordenadas, a exclusão não é total, pois os atores sociais excluídos podem não ser mencionados em relação a determinada atividade, mas são mencionados em outras partes do texto, podendo ser recuperados. Para van Leeuwen (1997), a exclusão de atores sociais torna-se possível por meio da utilização de alguns recursos léxico-gramaticais: nominalização, adjetivação, elipse, apagamento do agente da passiva e do beneficiário. Na representação por inclusão, os atores sociais estão materializados linguisticamente no texto e podem revestir-se de diferentes papéis. Nessa divisão de papéis sociais. Portanto, é possível acontecer do ator social não ser o integrante agente na oração, podendo exercer outra função de acordo com a estrutura linguística inquirida. Já na inclusão, ocorre por ativação, passivação, gerenciação, especificação, personalização e impersonalização. Em relação a seu tipo ou definição, categorias de inclusão – como especificação, personalização e impersonalização – possuem subdivisões, de acordo com o modo como se realizam. Com base na teoria desse pensador, a inclusão ocorre através da ativação e passivação dos atores sociais no texto. Na categoria ativação, os atores sociais são representados como força ativa numa ação. Já na categoria passivação, os atores sociais representados se submetem às ações, quando não se revelam afetados por elas. Tanto a ativação quanto a passivação de um ator social ocorrem por meio das seguintes categorias: participação, circunstancialização e possessivação. E de registrar que a participação e circunstancialização se referem à possibilidade de os 54 atores sociais serem representados no âmbito preposicional, ou melhor, através de proposições. Quanto a categoria possessivação, está relacionado ao uso de pronomes possessivos. A exposição sobre as categorias sociossemânticas ressalta, a categoria generalização, na qual os atores sociais são representados como classes: realiza-se com o plural sem artigo definido, singular com artigo definido, tempo presente (ações habituais e universais). A categoria especificação pode ocorrer por meio da individualização: realiza se na singularidade e nos dados identificadores. Ocorre também por meio da coletivização e agregação. A coletivização corresponde aos atores sociais, através de um substantivo ou pronome coletivo que denota grupo de pessoas. A agregação, de sua vez consiste em que os atores sociais são representados por meio da quantificação (maioria, grande parte, minoria, etc.), definido ou indefinido. Segundo van Leeuwen (2008), a categoria personalização se reporta às escolhas sócio-semânticas por inclusão dos atores sociais nos textos, aí representados na condição de seres humanos. Na diferenciação – indivíduos ou grupos identificados concretizam-se pelos pronomes pessoais ou possessivos, por nomes ou substantivos próprios, outras vezes por meio de adjetivos que apresentam características humanas. Portanto é fundamental explanar as definições que compõe esta categoria. Destacam-se, também, a Determinação – relaciona, de forma específica, a identidade dos atores sociais no texto; a Indedeterminação – os atores sociais não especificados anônimos, ou seja, referenciados através de pronomes indefinidos; a Categorização – marca os atores sociais conforme a função que ocupa; a Nomeação – na qual os atores sociais fazem referências por meio de nomes próprios (primeiro nome, sobrenome). Revela-se, por igual, a Funcionalização, cuja menção aos atores sociais, se faz através de um substantivo ou grupo nominal de papéis participantes e processos que denotam determinada ocupação, profissão, função relativa a dada atividade concretizando-se no texto por meio de substantivos, formados por verbos. Ressaltem-se, ainda, outros tipos ou definições, de representação de atores sociais.Como a Identificação, o ator social é representado pelo que ele é, não daquilo que ele realiza. Conforme van Leeuwen (1993, p. 145), há três tipos de identificação: a classificação, a identificação relacional e a identificação física. A classificação sucede por meio de categorias sócio-historicamente empregadas com 55 o intuito de dividir as pessoas em classes, ou seja, idade, sexo, religião, etnia, entre outros. Os critérios de classificação podem variar tanto do ponto histórico, quanto cultural. Na identificação relacional, os atores sociais são representados e desenvolvidos por substantivos que caracterizam as relações que eles sustentam com outras pessoas. Esses substantivos vêm frequentemente conduzidos por pronomes possessivos ou por uma frase preposicionada com de (posse). Já na identificação física, as características não se correspondem, por serem únicas, pois um participante discernindo do outro. Na língua, a identificação física ocorre por meio de um conjunto de substantivos/adjetivos que apresentam características, ou por frases com as preposições com e sem. A Avaliação diz respeito à utilização de termos interpessoais. Ao contrário das experiências, é realizada por substantivos e/ou expressões idiomáticas. A Generalização ocorre de forma genérica: usa-se o substantivo comum plural sem artigo definido, podendo ocorrer também no singular, quando os atores sociais são representados como um individuo, exigindo o uso de um artigo definido ou indefinido antes do substantivo comum. A Especificação apresenta os atores sociais como indivíduos (identidade/individualidade) ou grupos plenamente identificáveis. Segundo van Leeuwen (1993, p 128), há dois tipos de Especificação: a individualização e a assimilação. A “individualização ocorre quando os participantes são representados como indivíduos” (1993, p. 128), ao passo que na assimilação, eles são representados como grupos. Na Agregação, estatisticamente. Sua os ação atores sociais linguística está são quantificados, direcionada à tratados presença de quantificadores definidos ou indefinidos que atuam como numerativos ou como núcleos de grupos nominais. A Coletivização evidencia os atores sociais através de um substantivo, ou pronome coletivo, que represente um grupo. Com a Sobredeterminação, os atores sociais são representados na qualidade de participantes de diversas práticas sociais ao mesmo tempo. A última subcategoria é a da Impersonalização. Ocupa-se dos participantes que não apresentam aspectos humanos. Ou melhor, trata-se de objetos, seres ou coisas que não são humanos. É geralmente concretizada por meio de substantivos abstratos ou substantivos concretos que não possuem, em sua opção, característica humana. Para van Leeuwen (1997:208), há dois tipos de Impersonalização: a abstração e a objetivação. A abstração ocorre quando uma qualidade do participante, faz menção ao próprio participante sendo efetivada por um substantivo 56 abstrato. Já a objetivação se dá quando os participantes são evidenciados pelo local ou por algum fato diretamente ligado a sua pessoa ou às atividades que desenvolve, ou seja, por meio da objetivação se desenvolve uma referência metonímica. A seguir dispomos de um quadro das categorias sociossemânticas, aliado ao e/ou definição das representações de atores sociais, adaptado com base em van Leeuwen (1997, p.219). Quadro: 2 Categorias sociossemânticas de representação de atores sociais Exclusão Supressão Encobrimento Ativação Passivação Sujeição → Associação Dissociação Beneficiação → Diferenciação Indiferenciação Participação Categorização → Funcionalização Circunstancialização Identificação →Classificação Identificação Relaciona Identificação Física Avaliação Possessivação Determinação Inclusão Nomeação→ Formalização Semiformalização Informalização Titulação →Honorificação Afiliação Destilação Personalização Determinação única Sobredeterminação → Inversão → Anacronismo Desvio Indeterminação Simbolização Conotação Destilação Generalização Especificação→ Individualização →Coletivização Assimilação Agregação Impersonalização →Abstração Objetivação 57 Adaptado com base na teoria de van Leeuwen (1997, p.219) O intuito de o autor nos proporcionar um conjunto de categorias que abasteçam as práticas sociais no discurso tem sido obtido, conforme a aplicação da teoria na análise das práticas discursivas, em diferentes campos de uso, da, possibilitando, especialmente, o desenvolvimento dessas categorias e um estudo crítico sobre as questões referentes à agência. A teoria da representação dos atores sociais advém da magnitude da noção de agência para a análise crítica do discurso. Ao estabelecer um “inventário socios-semântico” que sirva à identificação e à classificação das inumeráveis formas de representarem os atores sociais, van Leeuwen reitera a importância da agência linguística para os estudos discursivos. A agência [...], enquanto conceito sociológico, revela-se a maior importância clássica na análise crítica do discurso: quais os atores sociais e em que contextos estão eles representados como “agentes” e como “pacientes”? (VAN LEEUWEN, 1997, p.169). De consequência, van Leeuwen parte da relevância crítica e sociológica das categorias, para então pensar como elas se caracterizam linguisticamente. Além disso, o autor afirma que “o significado é inerente à cultura e não à linguagem, e não pode ser associado a uma semiótica específica (1997, p. 171). Considera que as categorias devem ser vistas como pansemióticas9, dadas as diferenças entre culturas e códigos sujeitos à mudança histórica. Sendo Assim, todas as categorias estabelecidas na teoria das representações de atores sociais estão relacionadas com realizações linguísticas específicas, que serão analisadas no decorrer da pesquisa. No próximo capítulo, exibo a contextualização sócio-histórico e cultural do Centro Socioeducativo de Cuiabá — Pomeri, a fim de investigar aspectos importantes interconectados entre os elementos que caracterizam as mediações da questão social, histórica e cultural, relacionadas com a instituição de direitos. 9 Deriva da visão de Peirce (1972) discutida no cotejo com visões contemporâneas sobre a interação mente/matéria no campo das ciências cognitivas. Baseada nestas considerações, uma postura semiótica é proposta, com vista à definição de uma estratégia para identificação e análise de sistemas usuários de signos. 58 CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZAÇÃOÃO SÓCIO-HISTÓRICA e CULTURAL DO CENTRO SOCIOEDUCATIVO DE CUIABÁ – POMERI10 Rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem. Bertold Brecht Neste capítulo, teço considerações acerca do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que balizam as perspectivas protetivas e educativas das medidas socioeducativas abordadas nesta pesquisa. Em seguida, discorro sobre a política de atendimento socioeducativo e sua gestão, analisando a trajetória histórica e social do Centro Socioeducativo de Cuiabá – POMERI e de suas relações no âmbito intersetorial. Por último, descortino o cenário atual do POMERI, cujo desafio é garantir os direitos preconizados no ECA e no SINASE, com vistas a mudar a história de vida dos adolescentes privados de liberdade. A propósito, palavras de Bertold Brecht estão a merecer reflexão. Porque, em movimento, as águas de um rio às vezes descem apressadamente, levando tudo que se apresenta à sua frente e desconhecem qualquer obstáculo. Violentas, vão atropelando o que se interpõe a seu caminho, tomando de roldão. Isso se nos revela claro por que escancarado a nossos olhos como diria o poeta: “ver só com os olhos é fácil”. No instante, não menos violenta que a força da ajuda, são, nas palavras de Brecht, as margens desse mesmo no que conferem. Como esse pensamento se afeiçoa adequadamente ao aprisionamento de adolescentes que, de igual modo, se veem presumidos em sua liberdade, afogados em sua inanição, em seus projetos, refratados em sua vida pessoal e família. Trancafiados, depenados em seus sonhos, abriu-se espaço para a possibilidade de se encarnarem em seus crimes, fazendo deste período uma pós-graduação de tudo que não presta. Cerimonial indígena onde os jovens passam por um processo de “reclusão” em torno de 18 meses, visando a preparação para o exercício da cidadania junto às suas respectivas comunidades. 10 59 2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Em 13 junho de 1990, nascia, na Constituição Brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido no Brasil como ECA. Foi instituído por meio de uma emenda de iniciativa popular à Constituição do Brasil de 1988, o artigo 227, que criava o ECA, sancionado pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello. Antes do surgimento da ECA, existia apenas o Código de Menores. A primeira versão do Código foi formalizada em 1927. A segunda, em 1979. Era uma lei voltada apenas para os “menores” de 18 anos, aí particularizados os pobres e abandonados, carentes ou infratores. O Código de Menores, que vigorou na Legislação Brasileira pelo Decreto número 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, foi uma lei que consolidou a doutrina da “situação irregular”, concedendo poder absoluto ao Juiz de Direito, com objetivo de adotar medidas para que fosse restabelecida a situação de “normalidade” para a criança ou adolescente. Amparado neste principio, juízes aplicavam medidas sem que as crianças ou adolescentes fossem ouvidas ou estabelecida sua defesa. Nesse sentido, colocava-se a criança ou adolescente numa posição de cidadão de segunda categoria, ou seja, um “menor”. Um novo Código de Menores foi instituído pela lei 6697, de 10 de outubro1979, elaborado por juristas escolhidos pelo governo federal, com o intuito de substituir o Código de Menores anterior. O novo Código de Menores tinha um caráter discriminatório, que agregava a situação de pobreza à “delinquência”, escondendo as reais causas das dificuldades vividas por essa população: as desigualdades sociais. Além disso, não entreabria mudanças expressivas: representava conjecturas e aspectos que situavam as crianças e os adolescentes – “pobres, carentes, infratores ou abandonados” – como pessoas inferiores e ameaçadoras à ordem vigente. O Código funcionava como instrumento de controle, correção e repressão, transferindo para o Estado a tutela dos “menores inaptos”, que eram integrados a instituições como FEBEM, FUNABEM e FEEM, entre outras, valendo-se dos antigos modelos correcionais e repressivos. O ECA rompeu com a antiga tradição do Código de Menores e, avançando sobre o senso comum, realizou diversas mudanças, enfeixando inovações e 60 traçando novo paradigma na construção de políticas públicas e sociais para a criança e para o adolescente do Brasil. Esse novo paradigma foi à consagração na “Doutrina da Proteção Integral” da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da Criança, em 20 de novembro de 1989, uma Carta Magna para crianças de todo mundo, abrangendo as diferentes conjunturas socioculturais entre os povos. No ano seguinte, o documento foi oficializado como lei internacional. Fiquemos com o pensar de CURY, GARRIDO & MARÇURA (2002, p. 19): O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma consequência natural da Constituição Federal de 1988; o legislador constituinte, em seu artigo 227, ‘caput’, vinculou a legislação ordinária à concepção integral ao afirmar que crianças e adolescentes têm direitos que podem ser exercitados em face da família, da sociedade e do Estado. Observa-se que a Constituição Federal tinha, em seu bojo, a necessidade de prever uma norma de proteção integral à criança e ao adolescente, tendo o ECA como sua diretriz na Carta Magna de 1988. Outra consequência dos avanços trazidos por estas mudanças, no âmbito local, foi a substituição do termo pejorativo “menor” por “criança” e “adolescente”. Esse termo, “menor”, encantava ideia de uma pessoa não detentora de direitos. Desse modo, a utilização da palavra “menor,” com o sentido da abreviação de “menor de idade”, foi retirada do vocabulário de quem defende os direitos da criança e do adolescente, pois remete à “doutrina da situação irregular” ou do “direito penal do menor”, ambos superados. Para entendermos o contexto da implementação do ECA, devemos conhecer as principais normativas que influenciaram sua consecução: Declaração de Genebra (1924) – Adotada pela “Liga das Nações”. Declaração Universal dos Direitos do Homem. Adotada e proclamada pela Resolução n.217-a (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em1012-1948. Declaração Universal dos Direitos da Criança – Aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10-11-1959, por meio da Resolução n. 1.386 (XIV) da qual o Brasil é signatário. Regras de Beijing ou Regras mínimas da ONU para a administração da Justiça da Infância e Juventude (1985). Resolução n. 40/33, de 29-11-1985. Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) da ONU - Resolução 61 44/25 da ONU, de 20-11-1989. Ratificada pelo Brasil pelo Decreto n. 99.710, de 2109-1990. Diretrizes de Ryad para a prevenção da delinquência juvenil – ONU (1990). Resolução n. 45/112, de 14-12-1990. Regras mínimas das Nações Unidas para a proteção de jovens privados de liberdade – ONU (1990). Resolução nº 45/113, de 14-12-1990. Convenção Interamericana de Direitos Humanos (OEA 1969). Ratificado pelo Brasil em 06-11-1992, Decreto n. 678. Conforme DIAS (2009, p. 383): O Estatuto da Criança e do Adolescente, acompanhando a evolução das relações familiares, mudou substancialmente o instituto. Deixou de ter um sentido de dominação para tornar-se sinônimo de proteção, com mais características de deveres e obrigações dos pais para com os filhos do que de direitos em relação a eles. Segundo Costa (1990), o ECA é um instrumento de cidadania, fruto de movimentos sociais, construídos progressivamente ao longo da história, movidos por pessoas preocupadas com as condições da vida e direitos infantojuvenis no Brasil. O objetivo do ECA é garantir a proteção de crianças e adolescentes, proporcionando a eles um desenvolvimento físico, mental, moral e social compatível com os princípios constitucionais da dignidade e da liberdade, preparando-os para a vida em sociedade. Trata-se de documento que faz parte do direito especializado, contendo em sua divisão, partes geral e especial, em que a primeira parte dispõe de princípios norteadores do Estatuto. Quanto à segunda parte, estrutura a política de atendimento, discrimina medidas, diz do Conselho Tutelar, municiando elementos relativos ao acesso jurisdicional e à apuração de atos infracionais. O ECA é um dispositivo jurídico inovador no que diz respeito ao conteúdo e ao paradigma estabelecido no tratamento à criança e ao adolescente, considerando-os pessoas em condição especial de desenvolvimento e sujeitos de direito. Com a implantação do ECA, a criança e o adolescente passam a desfrutar de direitos fundamentais característicos à pessoa humana. Trata-se de pacto nacional em defesa dos direitos da criança e do adolescente, independentemente de cor, etnia ou classe social, assegurando a total atenção, proteção e cuidados especiais para se desenvolverem e serem adultos saudáveis. 62 A criança e o adolescente são receptores da proteção integral, cabendo à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao poder público, com absoluta prioridade, oferecendo-lhes os direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. O artigo 3° do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) prescreve: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. O ECA, além de garantir os diversos direitos da criança e do adolescente quanto à proteção de viver dignamente, desde seu nascimento até seu desenvolvimento integral com a família e com a sociedade, proporciona a eles que, em hipótese alguma, serão objetos de negligência, exploração e violência, sob pena de a pessoa que, eventualmente, assim o fizer, ser por isso responsabilizada. No Brasil, o ECA, Lei n. 8.069/90, classifica como criança as pessoas até 12 anos de idade incompletos, e, adolescente, aquela entre 12 e 18 anos de idade. Nos casos expressos em lei, é aplicado excepcionalmente às pessoas entre 18 e 21 anos de idade. (Artigos 2º e 3º do ECA). “Adolescência” e “juventude” são termos usados por vezes como sinônimos, mas são duas fases distintas, que se justapõem. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a adolescência como a fase em que o indivíduo se encontra entre os 10 e 20 anos de vida, cabendo à juventude o período entre 15 e 24, o que acaba por gerar uma fase de coincidência entre adolescência e juventude, dos 15 aos 20 anos de idade). Para a Organização das Nações Unidas (ONU), o conceito de criança abrange o conceito brasileiro de criança e adolescente. Assim, a partir dos 12 anos de idade, o adolescente que cometer algum tipo de ato infracional pode ser considerado passível de cumprir medidas socioeducativas. Segundo o ECA, o ato infracional é ação praticada pela criança ou adolescente, caracterizada na lei como crime ou contravenção penal (ECA, artigo 103). A Constituição Federal (art. 228), o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 104) e Código Penal (art. 27) ressaltam que o adolescente que comete um ato infracional é inimputável penalmente, ou seja: não tem responsabilidade penal e, por isso, é subjugado a uma responsabilização jurídica especial, que requer proteção e 63 tratamento especial. O adolescente só é considerado autor de ato infracional depois de transitado um processo judicial, comprovando-se a materialidade do cometimento do ato infracional. Assim, a medida socioeducativa só será aplicada após a verificação do ato infracional por ele praticado: Está expresso na Constituição Federal e no ECA que nenhum adolescente será responsabilizado ou privado de sua liberdade sem o devido processo legal. Isto já é aceito, em nível internacional, que uma criança ou adolescente, que comete uma infração penal, deve receber proteção e tratamento especial, pela existência especificamente de instrumentos elaborados para proteger seus direitos. As medidas socioeducativas são formadas por sistemas de responsabilização jurídica especial, aplicando-se ao adolescente que cometeu ato infracional. Nelas estão contidos os dois principais elementos que revelam sua finalidade: defesa social e intervenção educativa. Possui, em sua essência, uma natureza sociopedagógica, regulada à garantia de direitos fundamentais e ao desenvolvimento de ações e práticas que objetivem a formação do adolescente ao exercício da cidadania. O artigo 112 do ECA prevê aplicação de seis medidas socioeducativas ao adolescente que praticar algum tipo de ato infracional: 1. Advertência: É uma admoestação verbal, reduzida a termo e assinada (art.115). Ela somente poderá ser aplicada quando houver a prova de materialidade e indícios suficientes de autoria. 2. Obrigação de reparar o dano: É aplicada quando se trata de ato infracional com reflexos patrimoniais, constituinte na restituição do dano (a coisa), no ressarcimento do dano ou por outra forma que compense o prejuízo da vítima (art.116). 3. Prestação de serviços à comunidade: Consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, em entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários e governamentais (art.117). 4. Liberdade assistida: Será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente, com duração de seis meses, podendo ser prorrogada, revogada ou substituída (art.118). 5. Inserção em regime de semiliberdade: Pode ser determinada também 64 como forma de transição da internação para o meio aberto, ensejando a realização de atividades externas independentemente de autorização de juiz. Não comporta prazo determinado (art.120). 6. Internação em estabelecimento educacional: É a medida privativa de liberdade, sujeita a princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Não comporta prazo determinado, devendo ser reavaliada, no máximo, a cada seis meses. Contudo, não pode ultrapassar o período de três anos, conforme o art. 121. (SOUZA & LIRA, 2008, p. 26). Compete ao juiz de direito ou promotor de justiça, a aplicação das medidas socioeducativas, sempre que o adolescente praticar um ato infracional, lembrando que aos abaixo de 12 anos se aplica a medida protetiva e não a socioeducativa. Então, antes da aplicação de qualquer das medidas do artigo 112 do ECA, deverá ocorrer o processo de apuração da infração, respeitando-se todos os direitos e garantias inerentes à criança. Antes da sentença julgada, poderá ser decretada ao adolescente a medida cautelar privativa de liberdade provisória (internação provisória). Esta se da quando há indícios suficientes de autoria e materialidade do ato infracional empreendido pelo adolescente ou quando há descumprimento de ordem anterior determinada pelo Poder Judiciário, conforme prevê o artigo 183 do ECA. Caracteriza-se por um período máximo de 45 dias, em respeito à garantia da brevidade e da excepcionalidade. Nesse âmbito, a permanência do adolescente para cumprir a internação provisória somente se aplicará de acordo com a gravidade do ato infracional ou, ainda, se a repercussão social deste ato implicar a permanência do adolescente. Assim, durante esse período provisório, serão realizados estudos sobre a situação e condição do adolescente, uma vez que se encontra à disposição da Justiça para audiências, entrevistas e/ou outras ações necessárias para a aceleração do processo e parecer da justiça. Cabe ressaltar que, mesmo o adolescente privado de liberdade provisoriamente, a ele é permitido o acesso às principais ações de políticas públicas (educação, saúde, assistencial social e jurídica). Entretanto, as atividades externas serão permitidas conforme o critério da equipe técnica da unidade, salvo expressa determinação judicial em contrário. Vale destacar que alguns fatores associados ao envolvimento de 65 adolescentes com práticas infracionais, na grande maioria dos casos, estão relacionados com contextos de pobreza e vulnerabilidade social. São geralmente adolescentes excluídos, sem perspectivas de inclusão no mundo do trabalho, vivendo em um contexto de grande oferta de drogas, armas, inserção no tráfico de drogas, ou seja, sujeitos a todo tipo de ilicitude. Vimos, neste tópico, a natureza e o significado sócio-histórico do ECA, bem como as diferenças entre os paradigmas que antecederam sua implementação. No próximo, apresentamos as políticas que norteiam o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), a balizam perspectivas protetivas e educacionais das medidas socioeducativas, retratadas no capítulo anterior, destinadas a determinado segmento da sociedade, ou seja, ao público infantojuvenil em nosso país. 2.2 O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo — SINASE (Resolução n. 119 do CONANDA, 11 de novembro 2006) é o Projeto de Lei 1.627/07, aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e sancionado por meio da Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que regulamenta a implementação e execução das medidas socioeducativas especificamente destinadas ao atendimento de adolescentes autores de ato infracional e suas respectivas famílias, de cunho intersetorial, em nível local, e a constituição de redes de apoio nas comunidades. A partir do ano 2000, o CONANDA e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH/SPDCA), da Presidência da República, em parceria com a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude (ABMP) e o Fórum Nacional de Organizações Governamentais de Atendimento à Criança e ao Adolescente (FONACRIAD), realizaram uma série de encontros estaduais e regionais e um encontro com juízes, promotores de justiça, conselheiros de direitos, técnicos e gestores de instituições e/ou programas de atendimento socioeducativo. O objetivo foi debater e avaliar, com os operadores do Sistema de Garantias de Direitos (SGD), a proposta da lei de execução de medidas da ABMP, bem como a prática pedagógica desenvolvida nas unidades socioeducativas, com o intuito de subsidiar o CONANDA na construção de parâmetros e diretrizes para a execução 66 das medidas socioeducativas. Os encontros realizados resultaram na constituição de dois grupos de trabalho. Estes tiveram como encargos a elaboração de um projeto de lei de execução das medidas socioeducativas e um documento teórico-operacional para a execução dessas medidas. Em fevereiro de 2004, a proposta do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE foi consolidada. As instituições que sistematizaram e organizaram esta proposta foram a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), por meio da Subsecretaria Especial de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA), em conjunto com o CONANDA e com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Em novembro do mesmo ano, fomentaram um amplo diálogo nacional, com a duração de três dias de discussão, que contou com a participação aproximada de 160 operadores do Sistema de Garantias de Direitos – SGD, do qual resultou o SINASE. O SINASE foi elaborado com o intento de consolidar o Estatuto da Criança e do Adolescente, deliberando diretrizes claras e exclusivas para o cumprimento das medidas socioeducativas executadas pelas instituições e profissionais que operam nesta área. Esta, sua abrangência, seu alcance: [...] conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescentes em conflito com a lei. (Lei 12.594, art. 1º, § 1º) O SINASE é considerado um subsistema incorporado no Sistema de Garantias dos Direitos (SGD), responsável pelo atendimento ao adolescente autor de ato infracional. Há uma relação de comunicação e interferência entre o SINASE e os demais subsistemas internos do Sistema de Garantias dos Direitos, tais como educação, saúde, assistência social, justiça e segurança pública. O SGD encampa o conjunto de articulações integradas com o Poder Público e a sociedade civil, para a aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento de mecanismos de promoção, defesa e controle para a execução de todas as políticas voltadas para os direitos do universo infantojuvenil, nos níveis federal, estadual, distrital e municipal. Compete ao SGD concretizar as políticas públicas, a exemplo dos direitos fundamentais, e atuar diante da violação de direitos, realizando 67 o controle social, por meio da sociedade civil, que colabora participando dos conselhos, efetuando políticas complementares, fornecendo conhecimento técnico, informal e mobilizando toda a sociedade. O Sistema de Garantias de Direitos é constituído, no campo do Controle Social e, auxiliado, na Promoção dos Direitos, pelas seguintes órgãos: Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente e no Campo da Defesa dos direitos, pelo Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Centros de Defesa (CEDECA), Segurança Pública e Conselhos Tutelares, Secretarias de Educação, Sistema Único de Saúde (SUS) e Sistema Único da Assistência Social (SUAS), que se inscrevem no contexto da legislação atual e na Política de Proteção Integral da Criança e do Adolescente. A ilustração 1, a seguir, possibilita a visualização do funcionamento do Sistema de Garantias de Direitos: Adaptado pela autora com base no texto do SINASE Na ilustração 2, é possível visualizar a distribuição da articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal. 68 Fonte: www.criança.caop.mp.pr.gov.br O SINASE alberga, em seu seio, o conceito de incompletude institucional e a ideia de integração de políticas públicas na realização dos direitos dos adolescentes autores de ato infracional. Primordialmente, sua implementação objetiva o desenvolvimento de uma ação socioeducativa, assentada nos princípios dos direitos humanos. Propõe princípios, parâmetros e diretrizes para uma política pública voltada à efetivação das medidas socioeducativas previstas no ECA e estabelece um conjunto de regras e critérios de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que devem ser seguidos durante o processo de apuração de ato infracional cometido por adolescentes, até a execução de medidas socioeducativas. Igualmente, propõe as medidas em meio aberto (prestação de serviço à comunidade – PSC – e liberdade assistida – LA), em preferência às privativas de liberdade, as quais somente devem ser aplicadas em caráter excepcional, nos casos de atos infracionais mais graves. Cada princípio, parâmetros e diretrizes do SINASE devem estar descritos claramente no Projeto Político-Pedagógico (PPP) das unidades e programas que efetuam o atendimento socioeducativo. O PPP é um instrumento de extrema importância para organização, planejamento, monitoramento e avaliação da Gestão da Ação Socioeducativa. Para assegurar o comprometimento de todos os atores 69 envolvidos, deve priorizar os aspectos educativos das medidas socioeducativas, com base nos pressupostos da Educação Social². Sua construção pressupõe a participação de toda comunidade socioeducativa. O SINASE vem normatizar o que já está disposto no ECA, em interface com as políticas públicas dos sistemas municipais, estaduais e distrital, com as políticas de educação, saúde, trabalho, previdência social, assistência social, cultura, esporte, lazer, segurança pública e outras, bem assim com programas destinados a efetivar a proteção integral dos adolescentes que cometeram ato infracional. Assim, o SINASE criou a obrigatoriedade do Plano Individual de Atendimento (PIA). O PIA é um instrumento de planejamento, registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o público infantojuvenil, sobretudo crianças, adolescentes e famílias que vivem em vulnerabilidade social e medidas socioeducativas postuladas pelos envolvidos na execução da medida. Substancialmente, o objetivo do PIA é a personalização do atendimento ao jovem em cumprimento de medida socioeducativa; portanto o PIA caracteriza importante ferramenta para o desenvolvimento pessoal e social do adolescente, visando à estruturação da execução da medida socioeducativa, conquista de metas e compromissos estabelecidos no decorrer da medida e adaptação às necessidades do adolescente e sua família. A construção do PIA, para os privados de liberdade, é realizada com base em uma proposta de diagnóstico polidimensional e individualizado, com definição de ações a serem implementadas, compreendendo a situação processual e as providências necessárias à fixação das metas a serem alcançadas pelo adolescente e à definição das atividades internas e externas, individuais ou coletivas, das quais o adolescente irá participar. Ademais, a elaboração, acompanhamento e reavaliação do PIA incluem discussão permanente em encontros periódicos, com a equipe multiprofissional de referência do adolescente e sua família. Outrossim, o PIA deverá estar sempre sujeito a reformulações de acordo com o processo de desenvolvimento do adolescente ou quando forem necessárias, por demanda do adolescente, dos familiares ou dos profissionais responsáveis pelo atendimento do jovem. Para o acompanhamento da medida socioeducativa e/ou para a elaboração de uma sentença final no processo, o juiz precisa conhecer aspectos subjetivos do 70 adolescente, contidos no PIA. O SINASE pontua que as crianças e os adolescentes são pessoas em desenvolvimento, daí por que necessitam de proteção, tendo direito à possibilidade de formar sua personalidade de recuperação. O atendimento socioeducativo deve assegurar aos adolescentes, mesmo àqueles em privação de liberdade, todos os direitos fundamentais, como a educação, o esporte, o lazer e a convivência familiar e comunitária. Para tanto, é fundamental que as unidades socioeducativas possuam estrutura física e material adequada à execução da medida, servidores suficientes e qualificados, atendimento psicossocial e pedagógico, que facilitem o pleno exercício dessas garantias. Reconhecemos, por meio da presente pesquisa, que o SINASE é, portanto, um instrumento essencial para a efetivação integral do ECA e para a transformação da realidade no atendimento socioeducativo. A seguir, apresentamos o contexto histórico-social do Cento Socioeducativo de Cuiabá/MT— POMERI. 2.3 O Centro Socioeducativo de Cuiabá/MT— POMERI Em Cuiabá, localiza-se o Centro Socioeducativo – COMPLEXO POMERI, que abriga adolescentes e jovens que estão sob guarda judicial e vulnerabilidade social. Estes cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade, na faixa etária dos 12 aos 18 anos e, excepcionalmente, até os 21 anos de idade, conforme prevê o ECA. O atendimento ao adolescente em situação de vulnerabilidade social e autor de práticas infracionais, no Estado de Mato Grosso, tem como marco a criação da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEMAT), por meio da lei 3.137, de 13 de dezembro de 1971, seguindo diretriz nacional, instituindo que a responsabilidade pela política de assistência social ao menor estava aos cuidados da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM). Portanto, a FEBEMAT estava ligada à Secretaria do Interior e Justiça, cujo objetivo era formular e implantar, no Estado de Mato Grosso, uma política de bem-estar do menor. Além do atendimento ao adolescente autor de ato infracional, competia à FEBEMAT a execução de todos os programas de atendimento às crianças, adolescentes em situação de risco e portadores de necessidades 71 especiais. Em suma, era o órgão responsável pela política de assistência social. Em 1992, à FEBEMAT é incorporada a Secretaria de Promoção Social (PROSOL), pelo decreto n. 1224, de 11 de fevereiro do mesmo ano, o qual impôs a construção de casas de retaguarda com o objetivo de atender a um público específico. Assim surge, no bairro do Porto, a Casa do Porto, com feição transitória, onde os Adolescentes encontravam alimentação, escola e abrigo, mas não tinham a obrigatoriedade de permanecer por tempo integral. A unidade, que recebia crianças em situação de risco, do berçário até os onze anos e onze meses, de ambos os sexos, era o Lar da Criança, situado primeiramente na Rua 13 de Junho. Anos mais tarde, mudou-se para o bairro Bandeirantes. As crianças ficavam sob a tutela da instituição até serem reintegradas às suas famílias ou disponibilizadas para o processo de adoção. Outra instituição criada foi o Lar Solidariedade, que abrigava pessoas portadoras de necessidades especiais, a despeito de gênero e faixa etária. O Lar Meninos do Futuro, nome escolhido pelos próprios adolescentes, em um concurso de desenho, funcionava como uma instituição de internação, com característica de abrigo, porém reencaminhava os internos a seus familiares. Recebia exclusivamente adolescentes do sexo masculino em situação de vulnerabilidade social e/ou por terem cometido infração. Funcionava na antiga EMPAER—Empresa Mato-Grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural – localizada no município de Várzea Grande. Possuía uma estrutura de fazenda, com cultivo de frutas e criação de gado leiteiro para a fabricação de queijo. Por falta de recursos, não foi possível continuar o trabalho na fazenda- modelo e a unidade Meninos do Futuro acabou sendo instalada em um prédio residencial no bairro Duque de Caxias, até seu fechamento. Os adolescentes internados na unidade tinham acesso à educação, participavam de cursos profissionalizantes e atividades extras, até serem reintegrados às suas famílias ou parentes próximos. Para atender o público feminino, foi instituído o Lar Menina Moça. A instituição abrigava adolescentes em situação de vulnerabilidade social, condições de risco que demandavam abrigo, somadas ao fato de terem cometido práticas ilícitas. Já esteve situado no bairro Dom Aquino e no Centro Político Administrativo (CPA). Atualmente se encontra no Complexo POMERI, sob a denominação jurídica: 72 Centro Acautelatório Feminino. Quanto à Fazendinha Lar do Adolescente, recebia adolescentes somente do sexo masculino em situação especial de Justiça, em que se busca abrigo, também agrupando os adolescentes que cumpriam medida socioeducativa de privação de liberdade. Foi uma unidade de atendimento da FEBEMAT que nunca mudou de endereço, embora venha sofrendo mudanças estruturais e de nomenclatura ao longo dos anos. Atualmente, denomina-se Centro Socioeducativo — POMERI, com as unidades de internação e internação provisória. Conforme informação obtida pelo setor de assistência social da Secretaria de Estado de Trabalho e Assistência Social (SETAS/MT), todas as casas foram instituídas no ano 1992. No ano de 2001, foi inaugurado o Complexo Pomeri, para adequação ao ECA, que prevê, em seus artigos, a centralização do atendimento à criança e ao adolescente. O Complexo POMERI é composto pelos seguintes órgãos: Juizado da Infância e da Juventude – Varas: Cível e Infracional; Ministério Público – Varas: Cível e Infracional; Defensoria Pública – Varas: Cível e Infracional; Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos/SEJUDH: Superintendência do Sistema Socioeducativo, Centro Socioeducativo, Diretoria do Centro Socioeducativo, Gerência de Atendimento Meio Aberto; Secretaria de Segurança Pública/SESP; Delegacia Especializada do Adolescente – DEA, Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – DEDICCA, Projeto Rede Cidadã – PM, Batalhão da Guarda – PM; Centro Integrado de Segurança e Cidadania – CISC, Secretaria de Estado de Educação/SEDUC – Escola Estadual Meninos do Futuro. O Complexo POMERI é um conjunto de órgãos e poderes de atendimento à criança e ao adolescente, destinado a programas de execução das medidas socioeducativas, antes sob a gestão da Fundação de Promoção Social (PROSOL/MT). A partir de 6 de janeiro de 2003, com o Decreto n. 04, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP/MT) assumiu a Gestão da Política de Atendimento ao Adolescente Autor de Atos Infracionais no Estado de Mato Grosso. Consequência disso, houve adequação da estrutura organizacional, instituindo-se a Superintendência do Sistema Socioeducativo, que é a Gestora da Política no Estado, responsável pela execução e efetivação direta das Medidas de 73 Privação de Liberdade e pelo processo de descentralização e implantação de coordenações municipais para execução das Medidas do Meio Aberto. Em 20 de dezembro de 2010, por meio da Lei Complementar n. 413, foi criada a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Estado de Mato Grosso — SEJUDH, e sua estrutura organizacional foi aprovada em 10 de março de 2011, pelo Decreto 170. A Superintendência do Sistema Socioeducativo do Estado de Mato Grosso pertence à Secretaria adjunta de Direitos Humanos, cujo objetivo é o fortalecimento das atividades voltadas ao atendimento das atividades socioeducativas, em conformidade com o ECA e o SINASE. Garante os direitos fundamentais dos adolescentes, propiciando seu desenvolvimento físico, psicossocial, afetivo e cognitivo, respeitando as orientações da legislação nacional e internacional dos Direitos Humanos. A Superintendência do Sistema Socioeducativo é composta pela Diretoria do Centro Socioeducativo de Cuiabá, pelo Centro Socioeducativo de Cuiabá – POMERI, pelos Centros Regionais Socioeducativos de Cáceres, Barra do Garças, Rondonópolis e Sinop, bem assim pela Gerência de Meio Aberto (GAMA) e Gerência Técnica. O Centro Socioeducativo de Cuiabá, sobretudo no que diz respeito à medida de privação de liberdade, busca executar a legislação conforme o que preconiza o ECA e SINASE. Tem por objetivo deixar prevalecer o caráter sociopedagógico, que visa possibilitar ao adolescente um despertar para sua responsabilidade social, proporcionando-lhe novo projeto de vida, que o liberte do submundo do crime e da marginalização, por meio de sua reinserção familiar e social. Segundo o Projeto Político-Pedagógico do Centro Socioeducativo de Cuiabá -MT/POMERI, almeja-se colaborar para a transformação de valores e para a construção do projeto de vida do adolescente. Portanto, prioriza aspectos educativos. Os objetivos e as metas estão organizados no campo educacional, profissional, material e emocional do adolescente, com o intuito de prepará-lo para enfrentar as dificuldades da vida, certo de que conseguirá apoio familiar e social. Desenvolve alguns projetos, voltados para a educação profissional, oferecendo cursos de qualificação em parceria com o SENAI. Os cursos oferecidos no momento de realização desta pesquisa eram o de Auxiliar Administrativo e Operador de Caixa. 74 Administrado pela Gerência de Educação e Formação Profissional, são ofertados, aos adolescentes, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM/MEC), específico para os privados de liberdade, em datas diferenciadas. Já em parceria com a Coordenadoria da Educação de Jovens e Adultos/SEDUC, é oferecido uma vez ao ano o Exame Supletivo, ambos são aplicados na própria unidade socioeducativa. Os projetos de esporte e lazer são considerados, pelos adolescentes, como um dos principais atrativos do POMERI. São franqueadas aulas de natação, futsal — daí se formou uma seleção para competição —, hip-hop, xadrez e a horta em parceria com a SEDUC, Fundação André Maggi e EMPAER. O contexto pode ser definido pelo espaço social-histórico e cultural vivido e pela perspectiva temporal do cotidiano desses sujeitos. O Centro Socioeducativo está organizado da seguinte forma: 75 Fonte: Secretaria de Justiça e Direitos Humanos/SEJUDH, ano 2013. De acordo com o documento fornecido pela Diretoria do Centro Socioeducativo de Cuiabá, o trabalho desenvolvido pela Superintendência do Sistema Socioeducativo de Mato Grosso segue a seguinte organização: Estrutura organizacional da Superintendência: Gerência de Atendimento do Meio Aberto (GAMA): cuida dos adolescentes egressos da medida privativa de liberdade, bem assim dos 76 adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em meio aberto e de suas famílias. Em Cuiabá, conta com duas equipes multidisciplinares, disponíveis para os respectivos atendimentos, como prioridade do Plano Estadual Socioeducativo e do SINASE. Gerência Técnica (GT): responsável pelo processo de municipalização do atendimento às medidas em meio aberto no Estado de Mato Grosso. Capacitam os municípios do Estado para que tenham subsídios necessários para a garantia das medidas socioeducativas em meio aberto. Estrutura organizacional da Diretoria do Centro Socioeducativo de Cuiabá/MT — POMERI: Unidade de Internação Provisória Masculina – abriga adolescentes, na faixa etária de 12 a 18 anos, que estão à disposição da Justiça para averiguação quanto ao ato infracional. Não se caracteriza medida socioeducativa, dado que ficam contidos no prazo máximo de 45 dias, aguardando decisão judicial. Unidade de Internação Masculina – atendimento exclusivo para adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade, na faixa etária de 12 a 18 anos, excepcionalmente até os 21 anos de idade, autores de práticas infracionais e sentenciados pelo Juiz da Infância e Juventude. Não comporta prazo determinado, devendo ser avaliado a cada seis meses. Contudo, não pode ultrapassar o período de três anos nesta Unidade. Unidade de Internação Provisória e Internação Feminina – responsável pelo atendimento à adolescente de 12 a 18 anos, que estão aguardando decisão judicial provisoriamente, e também para as que estão cumprindo medida socioeducativa de privação de liberdade. Gerência de Serviço Social e de Saúde – oferece atendimento básico de saúde a todos os adolescentes do Centro Socioeducativo. Quando à necessidade de atenção à saúde de média e alta complexidade, elas são supridas pela rede socioassistencial do estado e município, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Gerência de Educação e Formação Profissional – equipe responsável pela formação profissional dos adolescentes do Centro Socioeducativo, por meio de cursos, palestras e oficinas, bem como responsável por oferecer formação para os servidores do Centro, com o objetivo de melhorar seu desempenho profissional. O desenvolvimento do trabalho da gerência é realizado de forma intersetorial e por 77 meio de parcerias. Mesmo com uma estrutura organizacional bem-definida, o POMERI, vem sendo acompanhado por uma comissão intersetorial. O Governo do Estado de Mato Grosso criou a Comissão Intersetorial de Acompanhamento do Sistema de Atendimento Socioeducativo por meio do Decreto n.1.454, de 12 de dezembro de 2012, visando à implementação, execução, acompanhamento e avaliação do SINASE. O Decreto tem a seguinte fundamentação e conteúdo: O GOVERNADOR DO ESTADO DE MATO GROSSO, no uso das atribuições que lhe confere o art. 66, incisos III e V, da Constituição Estadual, e Considerando que a política pública de atendimento ao adolescente em conflito com a lei deve se inserir como prioridade na agenda do Poder Executivo Estadual, conforme Lei federal n. 12.594/2012; Considerando que a Comissão Intersetorial de Acompanhamento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo foi criada, nacionalmente, através de Decreto Presidencial, em 13 de julho de 2006, e vem mantendo funcionamento regular; Considerando que a implementação do SINASE — SISTEMA NACIONAL DO ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO — requer esforço conjunto dos diversos órgãos das políticas setoriais, em especial do órgão gestor do atendimento socioeducativo na condição de coordenador da política; Considerando que a responsabilidade precípua do Governo do Estado, no âmbito do SINASE — SISTEMA NACIONAL DO ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO, é a de execução das medidas de restrição e privação de liberdade e de apoio aos municípios na execução das medidas em meio aberto; Considerando que o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente — SGD inclui em seu funcionamento a articulação entre os Conselhos de Direitos e Tutelares — o Poder Executivo, Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública — e que o atendimento ao adolescente em conflito com a lei engloba os programas e ações vinculados ao SGD; Considerando que a instituição da Comissão Intersetorial estabelece o local de articulação necessária à implantação, execução, acompanhamento e avaliação do SINASE — SISTEMA NACIONAL DO ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO, na seara estadual, facilitando a pactuação de compromissos institucionais, bem como 78 sua efetivação; DECRETA: Art. 1º Fica criada, no âmbito do Estado de Mato Grosso, a Comissão Intersetorial do Sistema de Atendimento Socioeducativo — SINASE, com a finalidade de promover a articulação interna do Poder Executivo na implementação do Sistema Socioeducativo. Art. 2º A Comissão Intersetorial do SINASE terá as seguintes atribuições: I - pactuação de estratégias de implementação do SINASE no âmbito do Governo Estadual; II - estabelecimento de pauta e agenda de compromissos conjuntos para implementação do SINASE no Estado; III - articulação com os órgãos das políticas setoriais para a assunção de suas competências e atribuições no SINASE, formalizando, em instrumentos de cooperação, as responsabilidades institucionais, tais como resoluções, portarias, decretos, protocolos, que considerarem pertinentes; IV - envolvimento no processo de planejamento orçamentário e financeiro, com a assegurar a previsão de recursos necessários à implementação do SINASE; V - participação na elaboração de propostas dos documentos que deverão ser apresentados e aprovados nos Conselhos Estaduais dos Direitos da Criança e do Adolescente, tais como planos e normas; VI - estabelecimento de mecanismos de acompanhamento e avaliação das atividades programadas e ações desenvolvidas no âmbito do SINASE; VII - estímulo à criação e funcionamento das Comissões Intersetoriais na seara municipal, em especial nos municípios que concentrem parcela significativa do atendimento socioeducativo; e VIII - outras atribuições pertinentes e relevantes. Art. 3º A Comissão Intersetorial Estadual do SINASE será composta por representantes dos órgãos do Governo do Estado, em caráter permanente, e de representantes de outros poderes, na figura de convidados. (Decreto n. 1.454, de 12 dezembro de 2012). O principal Acompanhamento do propósito Sistema da Comissão de Atendimento Intersetorial Estadual Socioeducativo será de a implementação eficaz das políticas implementadas pelo SINASE e a consolidação das políticas de atendimento ao adolescente autor de ato infracional, visando 79 garantir a excelência no atendimento, com foco em sua humanização, bem como a efetivação das Doutrinas de Direitos Humanos e da Proteção Integral no Sistema Socioeducativo Estadual. Na sequência, teço considerações a respeito da situação atual do Centro Socioeducativo de Cuiabá/ MT – POMERI. 2.4 O Cenário atual do POMERI Mesmo com a criação da Comissão Intersetorial Estadual de Atendimento Socioeducativo, o POMERI vem sofrendo fortes críticas, principalmente pela mídia local, pela população mato-grossense, pelo Poder Judiciário, pelos conselhos e organizações de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, devido à falta de políticas públicas eficazes. Este é um dos trechos da decisão exarada pela Vara da Infância e Juventude: Não há condições de seres humanos habitarem aquele local. São pessoas em formação, o estado de abandono é muito grande. Falta inclusive material de higiene. Todas as medidas administrativas já foram tentadas. A Justiça não pode se abster de uma atitude. Diante desse cenário caótico, desde novembro de 2011 o POMERI vem se mantendo sob a interdição da Justiça, que proibiu o ingresso de adolescentes de outros municípios, eliminando assim a superlotação na Unidade. A juíza Gleide Bispo dos Santos, da Primeira Vara da Infância e Juventude Comarca de Cuiabá, determinou a remoção dos adolescentes que se encontravam alojados no bloco antigo (considerado insalubre), bem como sua demolição, com a separação imediata dos adolescentes, atendendo a critérios de idade, compleição física, gravidade da infração e tempo de cumprimento da medida, conforme dispõe o artigo 123 do ECA, a efetivação e execução do PPP e do PIA. Em dezembro de 2013, esta mesma decretou, em decisão de mérito, a construção de projetos de reinserção social para os socioeducandos, criação de uma unidade destinada a tratamento de dependência química, saneamento das irregularidades apontadas pelo Conselho Regional de Nutrição praticada pela empresa que fornece as refeições os adolescentes e a utilização dos refeitórios para as refeições diárias. 80 Ainda nesse mesmo período, ocorreu processo de demolição de parte — restrita ao bloco antigo — do Centro Socioeducativo de Cuiabá, Unidade de Internação Masculina do Complexo Pomeri, em atendimento à determinação da juíza Gleide Bispo Santos. Salienta a magistrada em trecho da decisão: Por ocasião da apreciação da antecipação de tutela, restou consignado que não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais depende do vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, porém o Estado de Mato Grosso, ao que parece, não enfrenta problemas financeiros, pois está gastando fortunas com a ‘Copa do Mundo’, escolha política discricionária e, para tanto se propôs a instalar transporte bilionário (VLT) – que nem sequer será utilizado pelos visitantes, construir arena de futebol onde serão realizados apenas quatro jogos, enfim, este não é o cenário de um Estado que não pode investir em Centros Socioeducativos para recuperar seus adolescentes vítimas da própria ineficácia estatal (Gleide Bispo Santos, Juíza da Primeira Vara Especializada da Infância e Juventude de Cuiabá, 2013). Atualmente, mesmo com a interdição do Poder Judiciário, as práticas sociais, desenvolvidas pelos operadores do Sistema Socioeducativo, ainda se encontram distantes do que está preconizado no Princípio da Doutrina de Proteção Integral, que instaura crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e garantias fundamentais, considerando-os indivíduos em condição peculiar de desenvolvimento, com o status de absoluta prioridade. A seguir, discorro sobre os aspectos metodológicos utilizados neste estudo. 81 CAPÍTULO 3 CAMINHOS METODOLÓGICOS Curiosidade, criatividade, disciplina e especialmente paixão são algumas exigências para o desenvolvimento de um trabalho criterioso, baseado no confronto permanente entre o desejo e a realidade. Mirian Goldenberg Neste capítulo, empreendo considerações acerca da abordagem de pesquisa. Em seguida, discorro sobre os caminhos percorridos, trazendo noções relevantes para este trabalho. Descortino sobre o contexto sócio-histórico e pedagógico da Escola. Apresento também alguns conceitos acerca da ACD e das representações de atores sociais. Em arremate, delineio os procedimentos de coleta e análise. 3.1 Abordagem de pesquisa Toda abordagem de pesquisa tem como objetivo abrir o caminho a ser percorrido pelo pesquisador, tentativa de relacionar a teoria com a vivência. A metodologia dá origem ao método, e é este que possibilita a pesquisa. É a metodologia que explicita as opções teóricas fundamentais, expõe as implicações do caminho escolhido para compreender determinada realidade e o homem em relação com ela (MINAYO, 1994, p. 22). Segundo Gil (2009, p. 8), método de pesquisa é assim definido: “[...] caminho para se chegar a um determinado fim. E método científico como é visto é visto como o conjunto de procedimentos intelectuais e técnicos adotados para atingir o conhecimento” (GIL, 2009, p.8). Por essa perspectiva, discorremos que o método dará ensejo à sistematização e ao discernimento dos dados da pesquisa para convertê-los em conhecimento. A abordagem qualitativa confere especial valor às opiniões dos participantes procurando construir uma compreensão dos temas estudados, que venha abraçar os diferentes pontos de vista dos sujeitos envolvidos. Rey (2010, p. 59) ressalta que uma das características epistemológicas da pesquisa qualitativa é sua natureza teórica. Segundo o autor, nessa abordagem a teoria ocupa um lugar central “[...] o 82 que não implica um divórcio com o empírico [...]”. Marli André (1995) também afirma que a relação com a teoria nas pesquisas qualitativas é permanente, desde a concepção do projeto até o momento da análise. A pesquisa qualitativa ocupa um lugar reconhecido na teoria, estudando os fenômenos que envolvem as pessoas e suas relações sociais. Trata-se basicamente de um conjunto de métodos a ser adotado para construir uma realidade estabelecida em diversos contextos. Segundo esse volva de olhos, os estudos denominados “qualitativos” se preocupam com as ciências sociais em um nível de realidade que não pode ser quantificado, trabalhando com o universo de representações, ideologias, crenças, valores e significados, considerando as variadas e significativas facetas. Para Minayo (2003), referindo-se à pergunta qualitativa, “trata-se de uma atividade da ciência que visa a construção da realidade, mas que se preocupa com as ciências sociais em um nível de realidade que não pode ser quantificado e não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. Sendo assim, a pesquisa qualitativa deve ser direcionada através de diferentes caminhos. Por outras palavras, não se apresenta como uma proposta rigidamente estruturada, antes permite que a imaginação e a criatividade levem o pesquisador a buscar novos horizontes. Nesse sentido, acreditamos que a pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, representa uma forma que pode se revestir de um caráter inovador, contribuições importantes para esta pesquisa. A etnografia, em sua acepção mais ampla, pode ser entendida, etimologicamente, como descrição cultural ou, conforme Fetterman (1989), como “a arte e a ciência de descrever uma cultura ou grupo”. Assim, ela representa a tentativa de descrever e estudar os eventos que ocorrem na vida social e cultural de um grupo (valores e práticas). O trabalho de campo é essencial para a pesquisa etnográfica, pois, para conduzir sua pesquisa, o pesquisador participa, durante intensos períodos, da vida diária do grupo, observando tudo aquilo que acontece, entrevistando e reunindo todas as informações necessárias que possam desvelar as características culturais do grupo social em estudo. Assim, a pesquisa etnográfica envolve observação espessa, criteriosa, minuciosa, tendo como foco a fala e a interpretação dos sujeitos participantes da pesquisa, encantando uma visão holística do contexto sociocultural das ações dos sujeitos aí inseridos. Segundo André (2004, p. 20), o pesquisador etnógrafo lida com uma 83 modalidade de pesquisa que se vê “diante de diferentes formas de interpretações da vida, formas de compreensão do senso comum, significados, variados atribuídos pelos participantes às suas experiências e vivências e tenta mostrar esses significados múltiplos ao leitor”. RockwelI, explica que a etnografia é um “processo de documentar o não documentado”, tendo como base um longo e intenso trabalho de campo. Implica estar em um local, participar, observar, conversar com aqueles que se dispuserem e conservar, o máximo possível, essa experiência por escrito. Os caminhos percorridos são construídos no próprio andar da pesquisa, dependendo, entre outros fatores, da interação pretendida, do objeto que se constrói e das concepções dos sujeitos e do próprio pesquisador (1987, p.17). O trabalho etnográfico tem como característica enfatizar o comportamento social do sujeito no cotidiano, depositando sua confiança em dados qualitativos obtidos a partir de observações e interpretações feitas no contexto da totalidade das interações humanas. Nessa esteira, os resultados da pesquisa são interpretados com referência ao grupo ou cenário, conforme as interações no contexto social e cultural, clicado pelo olhar dos sujeitos da pesquisa. Neste estudo, optei pela pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico. Utilizei-me também da abordagem analítica do discurso proposto por Fairclough (2001; 2003). O método de análise de discurso propõe verificar as mudanças sociais e como essas mudanças estabelecem mudanças na estrutura social. Nesse norte, o discurso reflete muito do contexto de uma sociedade, ressaltando que a Análise Crítica do Discurso tem por intuito exaltar o meio de produção discursiva, levando em conta não apenas os aspectos linguísticos e gramaticais, igualmente os aspectos socioculturais. O discurso contribui para determinar e fixar novas práticas, mas também pode ser entendido como ação social. A seguir, apresento o contexto sócio-histórico e pedagógico da Escola Estadual Meninos do Futuro, tecendo relações entre os diferentes aspectos da estrutura organizacional em que foi constituída. 3.2 O contexto sócio-histórico e pedagógico da Escola Estadual “ Meninos do Futuro” Conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente, é obrigatório o 84 oferecimento de escolarização para adolescentes que estejam cumprindo medida socioeducativa. A aplicação dessas medidas deve ter natureza essencialmente pedagógica, respeitando efetivamente sua peculiaridade. Até 1995, a Escola do 1º Grau Agostinha Guimarães atendia a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social e sob guarda judicial, encaminhados pela as Unidades da PROSOL— Fundação de Promoção Social de Mato Grosso, pertencente ao Complexo POMERI. Após a sua extinção, foi criada, pela Secretaria de Estado de Educação (SEDUC), por meio do Decreto n. 40421.746 de 22-09-95; autorizada pela resolução 27, em 14-02-97, a Escola Estadual “Meninos do Futuro”, localizada na Avenida Jurumirim, s/n, Bairro Planalto — Complexo POMERI, em Cuiabá, com a finalidade de atender a adolescentes privados de liberdade, do Centro Socioeducativo de Cuiabá. A denominação Meninos do Futuro foi escolhido pelos próprios adolescentes em um concurso integrado a uma oficina de pintura e desenho. Segundo os organizadores da oficina, o nome eleito representa o futuro de cada um, pois os internos esperam, por meio da escola, que eles possam galgar uma vida melhor. Portanto, atualmente a Escola Estadual Meninos do Futuro atende as Unidades de Internação Provisória e Internação Masculina e Feminina, do Centro Socioeducativo de Cuiabá — POMERI. Além da educação básica, a escola oferece o atendimento integral, com oficinas pedagógicas, o Programa Federal Mais Educação, bem assim atividades recreativas e esportivas. A escola não oferece atendimento ao egresso, que, após sua saída, recebe toda a documentação necessária para se matricular em uma escola da Rede Pública de Mato Grosso. É importante ressaltar que, no curso da história, a escola encontrou e ainda encontra dificuldades para desenvolver suas ações, por diversos motivos, entre eles, a falta de agentes orientadores, segurança, precariedade das instalações, ingerência, suspensão das atividades pedagógicas e punições desenfreadas cometidas contra os adolescentes. Trata-se de duas instituições que ao longo da trajetória histórica têm representado diferentes papéis sociais, ideologias e posturas diferentes, porém, podem em um determinado ponto se convergirem ou divergirem na disputa pela alma dos jovens e adolescentes por meio da imposição de suas disciplinas (FOUCAULT,1977) reivindicando um caráter educativo. 85 A Secretaria de Estado de Educação se fundamenta na proposta de humanização, buscando a formação humana para atender às necessidades sociais e econômicas, “aliando-se aos aspectos da ética, da solidariedade, da gestão verdadeiros aspectos do que se possa constituir como uma sociedade sustentável”, conforme as Orientações Curriculares para a Educação Básica de Mato Grosso (2012). De acordo com este documento da SEDUC, a educação no Sistema Socioeducativo, em seu papel preponderante, vê-se instada a desenvolver uma educação diferenciada e significativa, de forma integral, às necessidades dos adolescentes em situação de vulnerabilidade social e sob guarda judicial. É de sobrelevar: Considerando o que compete à Educação, através da SEDUC, garantir o regresso, sucesso e a permanência do adolescente e jovem na rede da educação, seja básica, profissional ou superior. Esta garantia de ingresso, sucesso e permanência dos adolescentes na rede formal de ensino visa o cumprimento do capítulo IV, em especial os artigos 54, 56 e 57 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Orientações Curriculares para a Educação Básica de MT, 2012). Em 2011, a Secretaria de Estado de Educação unificou dois instrumentos de planejamento, que caminhavam paralelos, o Projeto Político Pedagógico (PPP) 11 e Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE)12 intuitos foi facilitar o processo, com a criação do PPP on-line no módulo Gestão de Planejamento e Orçamento (GPO)13. A ideia é aproveitar as dimensões do planejamento estratégico na elaboração do PPP, visando facilitar a execução, revisão e avaliação do plano de ações do PDE, em concordância com o que foi expresso como primordial em relação aos objetivos e ideais da Instituição no Projeto Político Pedagógico. O Projeto Político-Pedagógico da Escola Estadual Meninos do Futuro, em 2011, passa a ser on-line, atendendo à determinação da SEDUC. Conforme documento oficial, o PPP da Escola objetiva uma educação emancipadora, diretiva, 11 O PPP é um instrumento teórico-metodológico que norteia o desenvolvimento das atividades da escola, articulado com toda comunidade escolar, para garantir a formação de um cidadão crítico, criativo e consciente. 12 O PDE é um programa do Governo Federal, que visa apoiar à gestão escolar com base no planejamento participativo cujo objetivo é auxiliar as escolas públicas a melhorar gestão. O MEC repassa recursos financeiros destinados a apoiar a execução de todo ou parte do planejamento escolar 13 Sistema online de Planejamento e Orçamento da Secretaria de Estado de Educação do Estado de Mato Grosso. 86 crítica e democrática, norteada pelas ações que satisfaçam às necessidades e especificidades do adolescente que cumpre medida socioeducativa de privação de liberdade. A filosofia da Escola Estadual Meninos do Futuro tem como foco principal o desenvolvimento de uma educação democrática, transformadora, comprometido com o processo de ensino-aprendizagem do educando. Em consonância com a comunidade escolar, bem assim com os gestores governamentais e educacionais, a escola busca promover a formação integral do educando e comunidade envolvida, procurando instigar o senso critico do educando por meio do seu conhecimento e experiência já adquirida, dentro dos parâmetros educacionais e da socioeducação, respeitados os seguintes princípios: A preservação da dignidade humana; A busca da identidade de cada educando; O exercício da cidadania. O Projeto Político-Pedagógico da Escola Estadual Meninos do Futuro parte destes pressupostos básicos democráticos: Liberdade, Igualdade, Ética, Qualidade e Valorização do educador e educando. A proposta pedagógica da escola tem, como base teórica a Concepção Interacionista do Desenvolvimento, fundamentada nas teorias elaboradas por Jean Piaget, Vygotsky e Wallon. As Teorias Interacionistas do desenvolvimento se apoiam, na ideia de interação entre o organismo e o meio. A aquisição do conhecimento é entendida como um processo de construção contínua do ser humano em sua relação com o meio: “Organismo e o meio exercem ação recíproca” (FOSNOT, 1998). O documento nos mostra que essas construções dependem das relações que se estabelecem com o ambiente numa dada situação. Sendo assim, uma vez que existe a “construção” do conhecimento, considera-se a verdadeira aprendizagem. Nessa perspectiva, o aprendizado científico está correlacionado ao conhecimento prático, buscando a essência da concretização de investigações técnicas e científicas nos processos de observação, pesquisas, experiências, análise e síntese do conhecimento adquirido, abrindo ensejo o exercício das potencialidades de cada educando. No ano de 2011, a SEDUC/MT, associada à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Mato Grosso (SEJUDH/MT), observando os direitos 87 preconizados no ECA e as diretrizes previstas no SINASE, propõe — por meio do PROJETO EDUCAR: Estruturação e implementação de uma prática pedagógica nas Unidade Socioeducativas de Mato Grosso — ressignificar ações desenvolvidas nas unidades socioeducativas, orientadas numa linha de educação libertadora e humanizante (Projeto Educar; p.20, 2011). De acordo com o projeto, a educação libertadora vê o educando como sujeito da História. Vê na comunidade “educador-educando-educador” uma relação horizontal, sendo o diálogo, traço essencial dessa educação. No mesmo ano, a SEDUC publica, em Diário Oficial, por meio de portaria, o processo de atribuição de seleção e classes/aulas e da jornada de trabalho para compor o quadro de lotação dos profissionais da educação básica que atuarão na Escola Estadual Meninos do Futuro e nas Escolas que possuem salas anexas nas Unidades de Privativas de Liberdade do Sistema Socioeducativo — PROJETO EDUCAR. A primeira portaria publicada foi a de n. 450/11/GS/SEDUC/MT, de 2 de dezembro de 2011. Já segunda publicada foi a de n. 310/12/GS/SEDUC/MT, de 23 de outubro de 2012. Mais tarde, a terceira foi a de n. 346/13/GS/SEDUC/MT, 11 dezembro de 2013. É importante vincular que o regime de trabalho do professor da E. E. Meninos do Futuro acorda com a matriz curricular. De outra parte, a do diretor, coordenadores pedagógicos e secretário corresponde ao regime de trabalho de 40 horas semanais ao passo que os demais profissionais têm a jornada 20 horas semanais. A escola conta com um quadro de 39 profissionais da educação básica: sendo dois efetivos e trinta e quatro contratados temporariamente, acrescidos de três monitores do Programa Federal Mais Educação. A relação abaixo no-lo confirma: Um Diretor; Um Secretário Escolar; Vinte professores, Três monitores do Programa Mais Educação; Dois Técnicos Administrativo-Educacionais; Dois Coordenadores Pedagógicos; Dois TAE – para Laboratório de Informática; Um Técnico Administrativo Educacional para a Biblioteca Escolar; 88 Dois Apoios Administrativos Educacionais/nutrição escolar Três para função de vigilante; Dois para a função de manutenção de infraestrutura/limpeza Desse modo, o Projeto Educar desenvolveu formas de atendimento diferenciado, assegurando que a enturmação não tem como parâmetro o histórico escolar, mas sim a avaliação diagnóstica, realizada na entrada do adolescente à escola. Esta definirá a capacidade cognitiva do aluno para a composição de turmas, tanto na internação provisória quanto na internação do cumprimento da medida socioeducativa. Essa enturmação se faz necessária, pois muitos dos adolescentes abandonaram os estudos há algum tempo ou se encontram defasados em relação às capacidades cognitivas esperadas para determinadas etapas da educação básica. As turmas são compostas por grupos de oito a dez alunos, registrado que esse número serve de parâmetro para a atribuição de classes/aulas dos professores. Contudo, internamente existe a reorganização dos grupos de alunos para otimizar o atendimento, conforme encaminhamento da Equipe Gestora da escola. De acordo com os resultados obtidos na avaliação diagnóstica, a enturmação ocorrerá dentro dos estágios básico, intermediário e avançado. ESTÁGIO BÁSICO: São grupos de adolescentes que se encontram na fase inicial do processo de desenvolvimento de habilidades linguísticas, incluindo desde a capacidade de decodificar palavras até a compreensão de textos e aprendizagem da matemática. A matriz curricular é globalizada, com foco na língua portuguesa e matemática. ESTÁGIO INTERMEDIÁRIO: São grupos de adolescentes que já possuem conhecimento mínimo da leitura, escrita e matemática, necessitando de aprofundamento na construção desses conhecimentos para melhor interpretar e se comunicar com os outros. A matriz curricular é organizada por área de conhecimento, adotando método contextualizado e interdisciplinar. ESTÁGIO AVANÇADO: 89 São grupos de adolescentes que estão aptos a realizar estudos de acordo com o resultado do diagnóstico cognitivo e em consonância com seu histórico escolar. A matriz curricular é organizada por área do conhecimento. Desenvolve, de forma concomitante, a educação escolar projetos e oficinas com objetivo de aprimoramento e desenvolvimento integral dos adolescentes, fundamentada numa metodologia de total participação, dialógica e ajustada à realidade e interesse dos educandos, favorecendo grande articulação entre teoria e realidade/prática. A estratégia didática e metodológica é por eixo integrador: conhecimento, cultura e trabalho articulado com as diferentes áreas do conhecimento Resolução CNE/CEB n.07/2010: Linguagens, Ciências Humanas, Ciências da Natureza e Matemática. O tempo de permanência e avanço do educando por cada estágio está vinculado ao cumprimento do currículo proposto em cada um deles, portanto independe do ano civil. Para todos os estágios, as turmas serão compostas por grupos de oito a dez alunos número que servirá de parâmetro para a atribuição de classes/aulas. Contudo, internamente, haverá reorganização dos grupos de alunos para otimizar o atendimento, conforme encaminhamento da Equipe Gestora da escola. A organização das aulas é de 60 minutos, sendo quatro horas-aula diárias para cada turma formada, referente aos componentes curriculares da Base Nacional Comum dos estágios: básico, intermediário e avançado. Os alunos são atendidos no turno e/ou contraturno, em oficinas pedagógicas e projetos pedagógicos interdisciplinares e outros, de acordo com o planejamento da Escola. A frequência, a carga horária cursada, o conteúdo e as atividades são registrados no portfólio individual de cada aluno. O portfólio parametrizado no sistema on-line da SEDUC tem acompanhamento e controle por parte da secretária escolar e coordenação pedagógica, uma vez que subsidia as orientações pedagógicas e os serviços de escrituração da escola. O outro instrumento de registro utilizado pela escola é o relatório descritivo da aprendizagem (on-line), que pode ser anual ou parcial. Em caso de transferência, expressa a dimensão cognitiva do aluno, são atribuído periodicamente, não podendo ser traduzidos em representações numéricas que levem a uma média aritmética ou ponderada. Os critérios de avaliação expressam o nível de operações mentais e a 90 construção do conhecimento elaborado. A avaliação socioemocional se reveste de caráter diagnóstico, alicerçado no qual os professores organizam novas situações de ensino e aprendizagem, com a finalidade de auxiliar o aluno em seu desenvolvimento. Ao encerrar seu tempo na Instituição Socioeducativa, o aluno é encaminhado a uma escola regular da rede pública com um Relatório de Avaliação Descritiva. Com base no referido relatório, acrescido do documento de escolaridade formal anterior do aluno (se ele tiver), a escola receptora fará sua enturmação mediante processo de classificação (Res. 002/09-CEE/MT) ou enturmação por idade (Res. n.262/02-CEE/MT). Para atender às especificidades dos alunos e ressignificar as ações socioeducativas no POMERI, com seu tempo, ritual, processos e rotinas, a escola propõe a Pedagogia de Projetos que visa à ressignificação do espaço socioeducativo, transformando-o em um espaço vivo de interações aberto ao real e às suas múltiplas dimensões, conforme se deflui dos Fundamentos da Pedagogia de Projetos, a seguir: Pedagogia de Projetos corresponde a uma concepção e a uma postura pedagógica; É a construção de uma prática pedagógica centrada na formação global dos educandos, com base pluralidade e diversidade de ações e contextos; Parte do princípio que todo conhecimento é construído em relação com os contextos em que são utilizados. Por isso é impossível separar aspectos cognitivos dos emocionais e sociais; Entende que as necessidades de aprendizagem afloram com as tentativas de resolver situações-problema; Considera fundamental que os educandos construam sua autonomia e seu compromisso com o real; que ele desenvolva capacidade e habilidade de adaptação e atitudes colaborativas somadas as o gosto por aprender e reaprender durante toda a sua vida; Considera que os conhecimentos empíricos e científicos são instrumentos valiosos para compreender a realidade e nela fazer interferências. São meios para ampliar a formação dos educandos, mas não são neutros nem fins em si mesmos. Dessa forma, o trabalho com projetos encartou uma nova perspectiva de 91 integração entre a Escola e o Pomeri: é um processo global e complexo, em que o conhecer e o real não se encontram dissociados. Nessa postura, todo conhecimento é construído em estreita relação com os contextos em que são utilizados, sendo, por isso mesmo, impossível separar os aspectos cognitivos, emocionais e sociais presentes nesse processo. Assim, a formação desses adolescentes e jovens que cumprem medida socioeducativa, não pode ser pensada apenas como atividade intelectual. A escola, ao trabalhar com a concepção de projeto, promove mudanças de paradigmas na estrutura organizacional e metodológica do POMERI, ou seja, propõe um currículo significativo, um planejamento diário, com finitude diária, que pressupõe ter começo, meio e fim no mesmo dia. Cada dia equivale a um projeto-aula, o que se propõe, portanto, é a organização de projetos de trabalhos, mas não em detrimento do conteúdo das disciplinas, antes construção de uma prática pedagógica centrada na formação global dos educandos. Segundo a coordenação da escola a prática pedagógica deve agir com a intenção de criar condições efetivas para a construção de experiências significativas na vida dos diferentes atores sociais envolvidos no processo pedagógico, atendendo de forma humana, solidária e fraterna a todos os educandos que se encontram privados de liberdade. A concepção metodológica que permeia todas as etapas da Proposta Pedagógica da Escola contempla princípios pautados na “concepção libertadora de educação” e na “concepção socioconstrutivista do conhecimento.” Conforme a Proposta Pedagógica da Escola Estadual Meninos do Futuro, a concepção metodológica é o caminho da prática social que revela determinada visão de mundo. Implica constante movimento de ação-reflexão-ação, ou seja, da práxis pedagógica. Almeja-se uma educação capaz de contribuir para a formação de adolescentes e jovens dotados de consciência social e de responsabilidade histórica, aptos para a intervenção coletiva organizada sobre a realidade, assentados em sua comunidade local e regional, sempre em busca da melhoria de qualidade de vida para todos. Esta educação busca inspiração na concepção libertadora da práxis de Paulo Freire. Dessa forma, entendemos que a educação é um processo discursivo-dialógico. Pauta-se nas relações interpessoais dialógicas, na interatividade da relação educador-educandos e dos educandos entre si. 92 A E. E. Meninos do Futuro, visando à formação integral do educando, adota o método de ensino globalizado para desenvolvimento da proposta pedagógica, a mais adequada à realidade do sistema socioeducativo. O método globalizado busca contribuir que o ensino exerça sua função social, propondo-se a serviço da formação integral do indivíduo. Com o enfoque globalizador, a escola pretende a aproximação entre o ensino e a realidade através de uma perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar, iniciando, assim, um processo de “construção” do conhecimento. No método globalizado, os socioeducandos se mobilizam com o intento de chegar ao conhecimento de um tema que lhes interessa, seja para resolver alguns problemas do meio social ou natural que lhes são questionados, seja para realizar algum tipo de construção. Nessa ação, para conhecer ou realizar alguma coisa, o educando precisa utilizar e aprender uma série de fatos, conceitos, técnicas, capacidades e habilidades que tem correspondência com matérias ou disciplinas convencionais, além de adquirir uma série de atitudes. Nesse sentido, a Escola Estadual Meninos do Futuro vem desenvolvendo projetos interessantes mantidos com recursos do governo federal e estadual, destacando-se as seguintes atividades: Programa Mais Educação: letramento, música, violão, teatro e dança Percussão Artes plásticas Jornal Jogos pedagógicos Roda de leitura Informática Padaria Mão na assa 93 A escola, desde 2006, realiza o Seminário de Leitura, projeto que vem sendo desenvolvido com os educandos e educadores, em parceria com os operadores do Sistema Socioeducativo. Agasalha, como proposta, incentivar a prática da leitura e a produção textual. A escolha do tema é feita por meio de um concurso entre os educandos. Após essa escolha, são realizadas pesquisas, debates e produções. No final é feita a culminância, com um grande seminário, no qual participa toda comunidade escolar e socioeducativa, o Poder Judiciário, Secretarias, Conselhos e Órgãos de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, secundados por sua família. Em 2006 a pesquisadora e orientadora desta pesquisa implantou o projeto Formação Crítica de Educadores na Escola Estadual 'Meninos do Futuro', visando emancipação realizadas (BARROS, e 2010, transformação 2012, 2013; social. As experiências CORREA, 2012) já evidenciaram o engajamento dos professores nas questões da escola e da comunidade. Em 2011 esses mesmos educadores participaram do curso sobre Letramento Crítico, realizado na própria escola. Procurou-se discutir, planejar e realizar atividades práticas de leitura e produção textual. Em se tratando de jovens e adolescentes, em situação de vulnerabilidade social, o curso se concentrou em uma abordagem teórico-metodológica que envolvesse não apenas o trabalho com gêneros, mas também a inclusão dos três níveis de reflexão, deslocando do eixo de formação crítica para o eixo mais pedagógico, visando emancipação social (cf. BARROS, 2012). Outro projeto de grande importância, que se dá na Escola Estadual Meninos do Futuro é a Sala do Educador. Os encontros são realizados uma vez na semana, no final do expediente, em parceria com a SEDUC e o CEFAPRO. O Projeto Sala do Educador tem como princípio, a formação continuada de professores, por meio de grupos de estudo, que buscam a propósito de sua prática pedagógica. Estes têm, como meta, conhecer e compreender a realidade social onde se inserem e contribuir nas intervenções ao processo de ensino-aprendizagem. Propósito é superar as dificuldades deparadas no diagnóstico do contexto escolar, a melhoria da qualidade da educação. O eixo fundante e estruturante da Sala do Educador da escola é norteado pela execução dos quatros pilares da Educação, baseados no relatório da UNESCO: 94 aprender a ser, aprender a conviver, aprender a aprender e aprende a fazer (DELORS, 1998). A metodologia do Projeto abrange a participação de todos os educadores e demais profissionais da unidade escolar, desenvolvida por meio de estudos de textos predefinidos, lidos, pesquisados e apresentados, e/ou em grupos. Às vezes, conta com a participação de formadores do CEFAPRO, técnicos da SEDUC, assessores pedagógicos, conselheiros, professores pesquisadores da UNEMAT e UFMT, gestores e técnicos do Sistema Socioeducativo, aos quais somam outros convidados. No final do ciclo de estudos é feita uma avaliação reflexiva, transformada em ação para posta em prática no decorrer do ano seguinte, pois a conclusão da Sala do Educador é no final do ano vigente. A certificação é expedida pelo CEFAPRO/CUIABÁ, com carga final de 80 horas. Também garante pontuação na seleção e atribuição de classe e da jornada de trabalho para compor o quadro dos profissionais da educação que atuarão na Escola Estadual Meninos do Futuro. Neste capítulo, procurei demonstrar o contexto histórico-social e os paradigmas que instituíram o ECA e o SINASE, evidenciando o percurso histórico, as práticas sociais e a problemática do Sistema Socioeducativo de Mato Grosso e do Centro Socioeducativo de Cuiabá — POMERI. Finalizei apresentando o contexto sócio-histórico e pedagógico da Escola Estadual Meninos do Futuro. A seguir, explicito os caminhos percorridos no presente estudo. 3.3 Caminhos percorridos na pesquisa Com o intuito de ressignificar as ações desenvolvidas nas unidades socioeducativas do Estado de Mato Grosso, nos anos 2010 e 2011, a Secretaria de Estado de Educação (SEDUC/MT) associada à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Mato Grosso (SEJUDH/MT), observando os direitos preconizados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as diretrizes previstas no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), resolve criar um Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI). Enfeixa a Educação, a Justiça, a Saúde e a Segurança Pública, objetivando a estruturação e concretização de uma prática sociopedagógica nas unidades socioeducativas de Mato Grosso. Durante a 95 criação GTI, fui convidada pela Secretária Adjunta de Políticas Educacionais a compor esse grupo. Acredito que isso se deve à minha experiência como professora e técnica com a educação no sistema socioeducativo, e por ter participado anteriormente do plano de educação em prisões. Assim, por meio da coordenação do GTI, realizei uma avaliação diagnóstica intentando dar vozes aos adolescentes, professores, gestores e técnicos da Escola Estadual Meninos do Futuro. O trabalho com os adolescentes ocorreu por meio de uma redação dissertativa, cujo tema trabalhado foi “A minha escola” e rodas de conversa. Quanto aos demais profissionais, realizamos duas reuniões e uma avaliação relacionada com as ações desenvolvidas pela escola e o centro socioeducativo. Meu primeiro contato com o ambiente de pesquisa foi após a realização dos trabalhos realizados pelo GTI. A ideia do tema para o projeto emergiu após analisar as redações dos alunos, na quais se comentou sobre a escola, os professores e os trabalhos desenvolvidos pela a equipe escolar. A inserção no campo de pesquisa ocorreu em 2012, período em que ingressei no mestrado. Utilizou-se, como método para escolha do campo de pesquisa, a acessibilidade da pesquisadora à instituição. Nesse momento, busquei informações sobre os procedimentos para a realização das entrevistas com os adolescentes, e acesso a documentos oficiais dessa instituição, pois precisava ir além do material que tinha em mão. Recebi, como informação, a necessidade de entrar em contato com a Superintendência do Sistema Socioeducativo (SEJUDH/MT) e com a Secretaria de Estado de Educação (SEDUC/MT) para encaminhar um pedido oficial, tendente à realização da pesquisa na Escola Estadual Meninos do Futuro, que atua no processo de escolarização do Centro Socioeducativo de Cuiabá, no Complexo POMERI, em Cuiabá/MT. O primeiro contato como pesquisadora não revelou boa recepção à minha entrada para a realização da pesquisa e, em alguns momentos, não foi possível nem falar com o diretor do Centro Socioeducativo de Cuiabá/POMERI. Embora assim, com o diretor da escola o contato foi maior, tendo percebido resistência quanto à gravação das entrevistas com os adolescentes. Na busca pela entrevista, além da não recepção por parte dos diretores à pesquisa, ouvi justificativas de que não era tanto a direção do Centro que impossibilitava, ressalvando que em alguns casos, os juízes da Vara da Infância e 96 da Juventude não estavam permitindo o acesso aos adolescentes, muito menos entrevistas gravadas. Durante o ano de 2012, deparei com algumas barreiras institucionais que acabaram conduzindo a pesquisa a um ritmo mais lento. Esses entraves foram promovidos pela intervenção do sistema socioeducativo, decisão proferida pela juíza da 1ª Vara da Infância e Juventude de Cuiabá, sob a alegação da falta de estrutura física e de pessoal, de maus-tratos, agravados pelas crises de abstinência sofridas pelos internos, bem ainda pela realização de fugas e rebeliões. Ainda nesse período, os gestores e agentes orientadores do Centro Socioeducativo de Cuiabá/POMERI receberam carta de demissão, com expedição do mandado de prisões. Diante dessa realidade foram muitas idas e vindas ao POMERI, levando-me a redirecionar a pesquisa para outra parte. Daí dediquei-me aos capítulos do Referencial Teórico e da Contextualização Sócio-Histórico e Cultural do Centro Socioeducativo do Pomeri. Somente quando a poeira abaixou, retomei contato com os novos gestores da unidade. Novamente, tive que expor a finalidade da pesquisa e solicitar autorização para realizar as entrevistas com os adolescentes. No final de 2012, consegui empreender as entrevistas com os adolescentes que cumprem medida socioeducativa no POMERI. Com entusiasmo, os adolescentes demonstraram interesse pela pesquisa. Em janeiro de 2013, entrei em contato com a assistente social do CREAS – Região Norte – Morada do Ouro, em Cuiabá/MT, que disponibilizou nomes e telefones de adolescentes egressos do sistema socioeducativo, que cumprem medida socioeducativa em meio aberto. Semanalmente, estes adolescentes se apresentam no CREAS, que tem por finalidade prover atenção socioassistencial e acompanhamento a adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, determinadas judicialmente. Entusiasmada, liguei para dez adolescentes. Apenas três aceitaram ser entrevistados, sendo marcadas as entrevistas no horário vespertino, no CREAS – Morada do Ouro. Conversamos um pouco sobre a pesquisa e sobre meu interesse por ouvir suas opiniões sobre a escola, os professores e o sistema socioeducativo. A seguir, apresento os atores sociais envolvidos na pesquisa. 3.4 Atores sociais 97 Os atores participantes desta pesquisa são adolescentes e jovens da Escola Estadual Meninos do Futuro, localizada no Centro Socioeducativo de Cuiabá, no Complexo Pomeri, na Unidade de Internação Masculina, Cuiabá/MT. Os alunos estão sob guarda judicial e em situação de vulnerabilidade social. Cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade, conforme prevê o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA Lei n.8.069, de 13 de junho de 1990, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado de Mato Grosso/SEJUDH). Também participaram egressos do sistema socioeducativo, ex-alunos da Escola Estadual Meninos do Futuro, que cumprem medida em meio aberto. Acolhidos nos CREAS são encaminhados e acompanhados no cumprimento das medidas. O atendimento é realizado em consonância com o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo — SINASE. Quanto às entrevistas realizadas com os egressos é de suma importância verificar as (in)congruências presentes nos textos orais e escritos, e como elas estão materializadas nos textos dos alunos da escola inserida no contexto socioeducativo. Os adolescentes e jovens que cumprem medida socioeducativa, em geral são atores sociais desprovidos de sua cidadania, do acesso aos direitos sociais e às necessidades básicas. A história de vida de cada um é marcada por exclusão e marginalização. Conhecer esses adolescentes e jovens foi o primeiro passo para a construção de uma relação de confiança, fundamental para o diálogo que se estabeleceu com esta pesquisadora. A escolha dos atores foi realizada de acordo com o interesse de cada um em participar da pesquisa, bem como do termo de autorização e de estar cumprindo medida socioeducativa de privação de liberdade e meio aberto no momento da entrevista. A escolha pelos adolescentes e jovens que cumprem este tipo de medida se deu em razão da excepcionalidade nas condições de encaminhamento à educação, pois a medida privativa de liberdade tem como uma de suas condições a privação do convívio social. Já a medida meio aberto permite o convívio social. Dessa forma, foram analisadas duas entrevistas com adolescentes da medida privativa de liberdade e uma com o egresso, apresentadas no quadro 3. Os adolescentes entrevistados estão na faixa etária de 15 a 17 anos, todos meninos. No que se refere à escolaridade, apenas um se encontra no ensino médio, 98 e dois no ensino fundamental, entre a 3ª fase do II Ciclo e 3ª fase do III Ciclo14. Quadro 3 - Atores Sociais NOME SITUAÇÃO IDADE SEXO ESCOLARIDADE MATRICULA Sócrates Privado Masculino Ensino Fundamental de 15 anos liberdade Platão Privado Egresso Estadual Meninos do Futuro de 15 anos Masculino Ensino Fundamental liberdade Aristóteles Escola Escola Estadual Meninos do Futuro 17 anos Masculino Ensino Médio Escola Profa Augusta Estadual Dione Silva Souza Quanto ao ato infracional e ao tempo de cumprimento da medida socioeducativa, não teve relevância, por isso não foi destacado neste estudo. Vale ressaltar que os nomes são fictícios, mantido o anonimato dos adolescentes e jovens que participaram da pesquisa. A seguir, apresento cada um dos atores sociais, participantes desta pesquisa15, registrando terem eles recebido nomes dos grandes pensadores da Grécia Antiga, os chamados filósofos socráticos16, para que sua identidade fosse preservada: Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates: Tem 15 anos de idade, sexo masculino, residente no bairro Três Barras, cursando o estágio intermediário, na Escola Estadual Meninos do Futuro. 14 A Organização por Ciclos de Formação Humana é a Política Educacional para o Ensino Fundamental proposta pela Secretaria de Estado de Educação para atender aos alunos das escolas públicas estaduais. Esta forma de organização do ensino fundamental, com nove anos de duração, está regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, n. 9394/96 de, com adequações para o Estado de Mato Grosso pela Resolução 262/002/CEE/MT. 15 As informações acima foram retiradas das entrevistas, da ficha individual fornecida pela escola e o Plano Individual de Atendimento (PIA) fornecido pela equipe técnica do Centro Socioeducativo de Cuiabá/MT 16 No período clássico da Grécia Antiga, entre os anos de 470 e 332 A.C. surgiram os grandes filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles. Pode-se dizer que Sócrates é o pai desses pensadores, chamados de Socráticos, pois foi seu principal professor e mentor. Sócrates se dedicou ao estudo da verdade, que era identificada como moral. Sócrates forçava as pessoas a reconhecerem que ignoravam o que pensavam saber. Uma das suas mais importantes conclusões: “Só sei que nada sei”. Na filosofia socrática o “conhece-te a ti mesmo” se tornou uma espécie de referência na busca não só do autoconhecimento, mas do conhecimento do mundo, da verdade. Para o pensador grego, conhecer se é o ponto de partida para uma vida equilibrada e, por consequência, mais autêntica e feliz. 99 Cumpre medida socioeducativa de privação de liberdade desde março de 2012, em virtude de sequência de pequenos furtos e roubo. É reincidente, ficou quarenta e cinco dias em 2010 e cumpriu medida socioeducativa por seis meses em 2011. Nunca usou drogas ilícitas, fez uso de cigarros e bebidas alcoólicas. Estava trabalhando em um mercado próximo à sua casa, tendo iniciado atividades laborais aos 14 anos. Já esteve empregado como pacoteiro e ajudante de pedreiro. Participou do curso de garçom oferecido pelo Setor de Educação Profissional do Centro Socioeducativo de Cuiabá/POMERI. Frequenta a oficina de música do Programa Mais Educação, na Escola Estadual Meninos do Futuro, assegurando gostar muito da escola, dos professores. Segundo ele, são muitos atenciosos. Aprecia muito as atividades que a escola oferece, a exemplo de festas, gincanas e jogos. Sócrates enfatiza que essas atividades o ajudam a superar a dor de estar privado e, ao mesmo tempo de adquirir conhecimento. Ressaltou que, entre as coisas de que mais gosta na vida sobressai assistir filmes de ação, futebol, funk e sertanejo universitário. Mora com a tia, avó e dois irmãos. Pontua histórico de conflitos entre os pais, grifando que o adolescente e dois irmãos ficam sob a guarda de uma tia. Atualmente os pais são separados, ainda que mantinham contato. Ambos são usuários de drogas e estão desempregados. Expressa expectativas para o futuro, notadamente continuar os estudos, arrumar um trabalho e deixar de praticar atos infracionais. Platão: Tem 15 anos de idade, sexo masculino, residente no bairro Jardim Vitória. Cursa o estágio intermediário, na Escola Estadual Meninos do Futuro, cumprindo medida socioeducativa de privação de liberdade desde setembro de 2012. Em virtude de seu envolvimento com tráfico de drogas, ficou também quarenta e cinco dias provisoriamente, em agosto de 2012. Justifica que reincidiu em razão de influência de um tio, que lhe prometeu uma moto, referindo-se a si mesmo como “cabeça fraca”. Frequenta a oficina de música do Programa Mais Educação, na Escola Estadual Meninos do Futuro. Reporta-se à escola como a melhor coisa do POMERI, graças aos professores que são agradáveis, interessados e, principalmente, que tratam a ele como gente. Gosta de cantar, tocar congas (instrumento de percussão), nadar, pagode, funk e rap. Nunca trabalhou. Estava constantemente na rua usando drogas ilícitas, tendo começado aos 13 anos, maconha e pasta base. Pretende ser submetido a tratamento. Mora com os pais e tem três irmãs, todas bem mais velhas do que ele, uma vez que é o temporão da 100 família. De suas três irmãs, uma não vive na mesma casa. Casada, mas mora vizinha. Os pais retornaram aos estudos, frequentam a Educação de Jovens e Adultos (EJA), ensino fundamental, no Ceja Cesário Neto, período noturno. O pai é vigia de uma escola estadual e pintor profissional. A mãe cuida da casa e é revendedora da Avon, Hermes e Jequiti. Os pais e as irmãs participam constantemente de cultos evangélicos. Expressa expectativas para o futuro, ambicionando constituir uma família: filhos, mulher; casa e profissão. Aristóteles: Tem 17 anos de idade, é do sexo masculino, residente no bairro Morada da Serra (CPA IV). Cursa o ensino médio, na Escola Estadual Profa Dione Augusta Silva Souza, no período noturno. Apresenta-se no Creas Morada do Ouro toda sexta-feira, no período da manhã. Cumpriu medida socioeducativa de privação de liberdade, por duas vezes: a primeira, em 2011; a segunda em 2012, todas as infrações foram em virtude de assalto à mão armada, dizendo-se muito arrependido. No tempo em que esteve privado de liberdade, gostou de estudar na Escola Estadual Meninos do Futuro, principalmente dos professores que sempre tinha uma atividade nova e interessante para trabalhar com os alunos. Assegura serem atenciosos, deixavam os alunos expressar suas opiniões. Constantemente, a escola oferecia festas e reuniões com a participação da família. Ressaltou que as oficinas e os projetos foram de grande importância para sua aprendizagem. Já consumiu droga ilícita, apenas maconha, e fez uso abusivo de álcool, mas parou. Atualmente trabalha na oficina mecânica do cunhado, como auxiliar de mecânica, tendo iniciado suas atividades laborais aos 14 anos. Já esteve empregado como pacoteiro de supermercado e tapeceiro de autos. Não está frequentando curso profissionalizante, mas já frequentou curso de auxiliar administrativo e de garçom no Centro Socioeducativo de Cuiabá/POMERI. Mora com a mãe, com o padrasto e uma irmã. A irmã mais velha é casada e mora no bairro próximo. O padrasto e mãe são obreiros de uma igreja evangélica. Todos os membros da família estão trabalhando. O padrasto é marceneiro e a mãe cabeleireira. Já a irmã, caixa de um supermercado. Gosta da namorada, de ir aos cultos, de ler a Bíblia. Aprecia futebol, carros, UFC e música gospel. Expressa expectativas para o futuro: ter uma oficina mecânica, casa e família. Na próxima seção, discorro sobre os procedimentos adotados para coleta de dados. 101 3.5 Procedimentos para geração de dados Alguns estudiosos (BOGDAN; TAYLOR, 1975; LÜDKE; ANDRÉ, 1986; MINAYO, 2008; MOREIRA, 2002) recomendam a utilização de vários instrumentos que possibilitem o levantamento de dados que auxiliem na compreensão de vários aspectos do tema em estudo, bem como que tragam elementos importantes para análise e interpretação dos significados atribuídos pelos sujeitos investigados. Na observação participante, o pesquisador poderá fazer a aplicação oral de um questionário, terá acesso a uma série de dados — documentos e atividades cotidianas, inclusive confidenciais —, podendo solicitar a cooperação e interação dos sujeitos até chegar à analise dos dados. Cabe ao pesquisador atender o controle das diversas informações por parte dos sujeitos, podendo ser publicado ou não. Segundo Bogdan e Taylor (1975), a observação participante é definida como uma investigação caracterizada por interações sociais intensas, havia entre o investigador e os sujeitos. Durante esse procedimento os dados são recolhidos de forma sistematizada. A observação participante foi um dos instrumentos utilizados nesta pesquisa, ocorrendo entre junho e dezembro de 2012, na escola. A frequência média de visitas foi de três vezes por semana. As observações foram registradas por meio de notas de campo. Durante o período em que estive em campo, fiz uma pesquisa documental recorrendo às redações de adolescentes, ao Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola e da unidade socioeducativa, regimento interno, normativas, portarias, leis (ECA e SINASE) e projetos escolares e socioeducativo, autorizada pelos diretores da escola e da unidade socioeducativa. Esse procedimento teve, como objetivo, levantar as informações relevantes dos alunos: idade, escolaridade, situação socioeconômica, acorrentadas outros dados que fossem relevantes no que toca ao contexto educacional. Após esse primeiro contato, procurei a direção das unidade socioeducativa e escolar, a fim de me ajudar a selecionar os participantes da pesquisa. Para tanto, contei com a colaboração da coordenação pedagógica da escola e da gerência da Unidade de Internação Masculina. Após a seleção dos atores sociais, solicitei uma 102 autorização aos adolescentes, para os quais foram apresentados os esclarecimentos gerais e colhidas as assinaturas nos respectivos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. Solicitei, igualmente, uma autorização da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC/MT) e da Superintendência do Sistema Socioeducativo (SEJUDH/MT). Feita a seleção dos atores sociais, empreendi entrevistas informais, que foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Busquei captar as representações dos atores sobre a escola, professores, gestores e sobre o sistema socioeducativo, pois estes são temas vivenciados pelos adolescentes e jovens que cumprem medida socioeducativa, temas que não poderiam deixar de ser abordados na presente pesquisa. Para garantir o total sigilo dos atores sociais, as entrevista foram realizadas individualmente. Ao todo foram gravadas oito entrevistas, de duração de 20 (vinte) minutos cada. Além das entrevistas, foram coletada produções escritas dos alunos envolvidos na pesquisa. As redações foram realizadas na escola, no ano de 2011. Ao todo foram setenta e cinco redações. Vale assinalar que alguns documentos da escola foram selecionados, tais como o ECA, SINASE, ata de fundação, regulamentação e funcionamento do Sistema Socioeducativo de Mato Grosso, portarias e documentos institucionais da escola, a exemplo do PPP e da Sala do Educador. Ressalta-se, porém, que a pesquisa documental serviu apenas como dados complementares de alguns trechos da análise. Discutirei, na próxima seção, os procedimentos para análise de dados. 3.6 Procedimentos para análise de dados Os dados desta pesquisa foram obtidos por meio das produções escritas e das entrevistas dos alunos da Escola Estadual Meninos do Futuro que atuam no Centro Socioeducativo de Cuiabá/POMERI. Para analisá-los, foram utilizados os procedimentos propostos pelo arcabouço teórico-metodológico da Análise Crítica do Discurso (ACD) (Fairclough 1989, 2001, 2003) e Representação de Atores Sociais (Van Leuween 1997, 2008). A ACD se baseia numa abordagem de discurso em que o contexto é a perspectiva fundamental, onde o sujeito é visto como agente e paciente da 103 construção dos processos discursivos. Sejam assim, a prática linguística é vista como fundamental para a compreensão dos processos sociais, buscando sempre, na ação do discurso, formas de mudança ideológica e de processos de reprodução. Para Fairclough (2001), a inclusão da linguagem em contextos sociais, denominado de método analítico, conceitua e interpreta os seres humanos pela socialização, subjetividades e o uso linguístico como expressão de uma produção concretizada em contextos socioculturais, conduzidos por formas ideológicas e desigualdades sociais. Ramalho (2008, p.136) acrescenta que “a proposta teórico‐metodológica da ADC oferece ferramentas analíticas para o pesquisador mapear conexões entre aspectos sociais semióticos e não semióticos, tendo em vista dois objetivos principais”. Esses objetivos, conforme a autora, reportam-se à investigação de “mecanismos causais discursivos e seus efeitos potencialmente ideológicos” e à reflexão “sobre possíveis maneiras de superar relações assimétricas de poder parcialmente sustentadas por sentidos de textos”. Para desvelar representações de atores sociais em determinados contextos, Fairclough (2003) propõe um diálogo com a teoria de representação dos atores sociais de Van Leeuwen (1997; 2008), pois compreende que, na medida em que tais representações ajudam a fortalecer relações de dominação no interior de determinada prática, indiscutivelmente ideológicas, podem ser (des)construídas. A proposta teórico-metodológica de van Leeuwen (1997) classifica a representação dos atores sociais como um composto de elementos linguísticos que se articulam, podendo operar para incluir ou excluir atores sociais (indivíduos e/ou grupos). Os diversos modos pelos quais os atores sociais são representados podem estar relacionados com as escolhas linguísticas que os usuários fazem para representar suas experiências no mundo. Destarte, o autor dispõe de duas categorias fundamentais para essa representação, chamadas de exclusão e inclusão. A representação por exclusão ocorre quando há a supressão ou apagamento do ator social. A supressão se dá quando não há referência aos atores sociais focadas ao longo do texto. Já o encobrimento ocorre quando o participante é posto em segundo plano. Neste caso, a exclusão não é total, pois os atores sociais excluídos podem não ser mencionados em relação a determinada ação, mas são mencionados em outras partes do texto, podendo ser recuperados. 104 Essa forma de representação resulta de elipses ocorridas em orações infinitivas e coordenadas. Segundo Van Leeuwen (1997), é possível excluir atores sociais com a utilização de alguns recursos léxico-gramaticais: nominalização, adjetivação, elipse, apagamento do agente da passiva e do beneficiário. Já na representação por inclusão, os atores sociais estão materializados linguisticamente no texto e podem assumir diferentes papéis. Van Leeuwen (1997) salienta que “não é necessário que haja congruência entre os papéis que os atores sociais desempenham, de fato, em práticas sociais e os papéis gramaticais que lhes são atribuídos” (VAN LEEUWEN, 1997, p. 186). Portanto, há a perspectiva de o ator social não ser o participante-agente na oração, podendo exercer outra função conforme a estrutura linguística em apreço. Neste estudo, procurei agrupar as redações, as transcrições das entrevistas e as notas de campo, de modo que fosse possível fazer uma releitura do material compreendendo as relações que havia entre os dados de diferentes, fontes. Selecionei, para a análise, três produções escritas e três entrevistas dos alunos. Busquei fazer um levantamento dos aspectos linguísticos de relevância e verificar as diversas formas de representação dos atores sociais. A seleção me auxiliou a decompor em unidades léxicas e/ou temáticas, codificando-as em categorias, tais como: (1) Relevância da escola; (2) Aproximação com os professores; (3) Aprendizagem significativa A seguir, vou entreabrir as etapas da geração do Corpus constitutivo da pesquisa. 3.7 O Corpus O corpus constitutivo desta pesquisa foi gerado em duas etapas. A primeira encerra as produções escritas dos alunos da Escola Estadual Meninos do Futuro, dados gerados no período do GTI, com adolescentes em situação de vulnerabilidade social, sob guarda judicial, cumprindo medida socioeducativa de privação de liberdade, no POMERI. Entretanto, havia ainda urgência de ampliação do corpus para compará-los. Assim, empreendi uma segunda etapa de geração de dados por meio de entrevistas com os alunos, que estão privados de liberdade e egressos da 105 Escola Estadual Meninos do Futuro. Neste caso, a seleção foi direcionada apenas a dois grupos sociais: os privados de liberdade e o egresso. Finalidade foi uma análise discursiva e sociossemântica sobre atores sociais representados no gênero redação escolares e entrevistas, especialmente no que diz respeito ao agenciamento e como eles são categorizados, com base na representação de atores sociais de van Leeuwen (1997). Os textos apresentados no próximo capítulo foram selecionados para a análise das representações que incluem e excluem os atores sociais. A redação “A minha escola” e “Entrevistas” pertencem a gêneros textuais diferentes e desfilam varias maneiras de representar os atores sociais, de acordo com os fins desejados. Os discursos foram organizados, sem edição de suas falas, ou seja, optou-se pela transcrição de suas narrativas, sem cortes nem correções gramaticais. Apresentarei, nos próximos passos, os aspectos éticos que se interpõe em meio à pesquisa qualitativa. 3.8 Aspectos éticos Para Silva (2012), Mendes (2012) e Nakamura (2012), os aspectos éticos permeiam a pesquisa qualitativa desde a escolha do objeto de estudo, as delimitações metodológicas, as análises dos resultados até o compromisso de uma devolutiva das informações obtidas. Pressupõem a valorização de uma relação interpessoal em que interesses, valores e visão de mundo se põem como possibilidade ou não de uma construção do conhecimento. No intento de garantir a ética desta pesquisa, foi solicitada autorização à Secretária de Estado de Educação do Estado de Mato Grosso (SEDUC), à Superintendência do Sistema Socioeducativo (SEJUDH-MT), igualmente ao Juizado da 2ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Cuiabá-MT. A pesquisa foi apresentada e divulgada para os gestores, professores, e para os potenciais participantes, como o preenchimento de termo de consentimento livre e esclarecido, deixando clara a todos a garantia do sigilo e anonimato. As entrevistas foram realizadas nos períodos matutino e vespertino, respeitando os horários e locais agendados previamente com os participantes, pontuando que as gravações foram feitas em um aparelho de gravação sonora, divididas em dois momentos. O primeiro foi realizado com os adolescentes que 106 cumprem medida socioeducativa, na unidade escolar. Já o segundo foi realizado com os egressos do sistema socioeducativo, no Centro de Referência Especializada de Assistência Social (Creas). Fiz uma explanação inicial a todos os participantes a respeito dos objetivos da pesquisa, da questão do sigilo, do anonimato e da ética na pesquisa. De igual modo solicitei a todos o preenchimento do termo de consentimento livre esclarecido. No momento das entrevistas, inexistiu contratempo, e todos os adolescentes foram bastante solícitos ao responder às perguntas. O tempo médio de cada entrevista foi de 20 minutos. A seguir, apresento o capítulo de análise dos dados. CAPÍTULO 4 ANÁLISE DOS DADOS EMPÍRICOS DE CUNHO ETNOGRÁFICO O conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria explicativa; o sujeito observador-pesquisador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindolhes um significado. O objeto não é um dado inerte e neutro; está possuído de significados e relações que sujeitos concretos criam em suas ações. (Chizzotti, 1995, p.79). Neste capítulo, apresento a análise dos dados da pesquisa, com base nas produções escritas e entrevistas orais realizadas com os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade. Foram desveladas marcas linguísticas, as quais anunciam diversas formas de representação dos atores sociais, sob a luz do arcabouço teórico-metodológico proposto por Fairclough (1989, 2001, 2003) e van Leeuwen (1997, 2003). A análise da materialidade linguística possibilita uma melhor compreensão acerca as representações dos atores sociais e suas implicações acerca da escola e dos professores. Possibilita também compreender o cotidiano onde vivem esses jovens e adolescentes, sob o ponto de vista histórico, político, social e ideológico. 4.1 Produções escritas e entrevistas A partir da análise das produções escritas e entrevistas, algumas categorias emergiram, tais como: Relevância da Escola; Aproximação com os Professores e 107 Aprendizagem Significativa. Começo transcrevendo o que constituem meu objeto de pesquisa: 108 109 A seguir, analisarei cada uma dessas categorias. 110 4.1.1 Relevância da escola As produções escritas dos alunos revelam o quanto a escola é importante para eles. No trecho da redação apresentada a seguir, Sócrates expressa suas representações acerca da unidade escolar que frequenta. A minha escola aqui é tudo, consegui superar minhas dificuldades, aprendi muitas coisas com os professores que pegam no meu pé, porque querem ensinar o melhor para mim. Acredito, eu se tivesse na rua não iria estar interessado para estudar como estou aqui. (Sócrates, 15 anos, em 20/01/2011) Ao falar sobre a escola, Sócrates evidencia sua importância no contexto de privação de liberdade. Assim, na frase “a minha escola aqui é tudo” ocorre a exclusão por supressão do Centro Socioeducativo de Cuiabá - Pomeri, pois não há marcas na representação, ele exclui tanto os atores sociais diretores, gerentes, agentes orientadores e técnicos, quanto às atividades desempenhadas por eles. No caso da inclusão, observa-se a relevância dos papéis atribuídos à escola, os quais podem ser ativados ou passivados. Temos a ativação quando os atores sociais são representados como ativos em relação a determinada atividade, portanto, ao se referir à escola como “minha escola é tudo”, demonstra, em suas palavras, que a escola participa ativamente de sua vida no contexto de privação de liberdade. Dessa forma, ocorre a inclusão por ativação nas palavras de Sócrates. A ativação “ocorre quando os actores sociais são representados como forças activas e dinâmicas numa actividade” (VAN LEEUWEN, 1997, p. 187), ou seja, os participantes participam ativamente do processo em questão. Observemos a frase que o item léxico-gramatical “minha” refere-se à escola (escola de quem fala). A palavra “minha” indica posse, atribui o sentido de pertencimento e concorda com a coisa possuída – no caso a “escola”, observa-se a possessivação-ativação por meio do uso de pronome possessivo, conforme sugere Van Leeuwen (1997, 2008), concordando com a pessoa que fala, ao utilizar o pronome pessoal “eu”, exercendo a função de sujeito protagonista do processo escolar. Desse modo, o uso do pronome possessivo “minha” acompanha o substantivo “escola” e, por isso, é pronome possessivo adjetivo, é chamado assim 111 por se comportar semelhantemente a um adjetivo, acompanhando o substantivo, referindo-se e concordando com ele em gênero e número. Ainda podemos verificar, na frase, a utilização do pronome indefinido “tudo”, que assume o lugar do ator social ou da quantidade aproximada dos atores sociais da frase. Considera na sua totalidade que naquele contexto vivenciado a escola é o que há de melhor, ou seja, aquilo que é essencial para sua vida. Sócrates, ao enunciar: “acredito, eu se tivesse na rua não iria estar interessado para estudar como estou aqui”, o uso do advérbio de lugar “aqui’ significa escola, atuante e significativa no contexto de privação de liberdade. Verifica-se que os atores sociais: diretores, gerentes, agentes orientadores e técnicos do Pomeri não estão presentes na oração, são excluídos do texto por supressão, não há referência a esses atores em qualquer parte do texto. Integrada à frase, a palavra “rua” significa para Sócrates a “sociedade” e/ou a “escola da comunidade” remete à ideia de fracasso, por conta da exclusão do ambiente pedagógico e pelas suas condições sociais. Sócrates inclui apenas a escola “aqui” no contexto de privação de liberdade, como único espaço de liberdade enquanto possibilidade objetiva, apesar das dificuldades postas pelo ambiente hostil e repressivo do sistema socioeducativo. Na entrevista, Sócrates também tem a oportunidade de fazer essa mesma reflexão acerca da escola. Para ele a unidade escolar é de suma importância. Ele diz: Acho que aqui a escola é a única coisa boa, o resto não vou nem dizer, é só tristeza, é só a escola é que vai me ajudar a ter um futuro melhor lá fora.(SÓCRATES, entrevista, em 18/11/2012). Nesse trecho da entrevista, Sócrates diz: “acho que aqui a escola é a única coisa boa”. Para ele a escola é apontada como o único e o mais importante elemento do contexto de privação de liberdade. Ao dizer “é só a escola é que vai me ajudar a ter um futuro melhor”, Sócrates atribui à escola um valor subjetivo e inalienável, pois reconhece que o acesso a ela o torna o principal favorecido. Tendo por base as palavras ditas por Sócrates que constituem as frases apresentadas, foi possível analisar a representação dos atores sociais envolvidos em sua fala. Com essa estrutura léxico-gramatical, é realizada a representação de dois atores sociais. Um deles está representado por inclusão e, portanto, explicitado: 112 a escola apontada como exclusiva. Já o outro ator social está representado por exclusão, uma vez que não se encontra presente: o Pomeri. Nesse fragmento “aqui”, o advérbio acrescenta a ideia de lugar, portanto, o ator social envolvido na fala de Sócrates não é explicitado no enunciado. Podemos dizer, assim, que ocorre a exclusão por supressão, pois não há referências aos atores sociais diretores, gerentes, agentes orientadores e técnicos do Pomeri e nem atividades desempenhadas por eles. “Algumas exclusões não deixam marcas na representação, excluindo quer atores sociais quer suas atividades” (VAN LEEUWEN, 1997: 180). A palavra “única” demonstra exclusividade, qualidade e singularidade, pois promove algum tipo de mudança. Há apenas um participante ativo nessa frase: “a única coisa boa”, atribuído à escola. Encaixada no participante há outra oração – “é só a escola que vai me ajudar” –, referindo-se a ela como instrumento que alicerça e projeta um ideal em relação ao futuro. O ator social, nesse caso, a inclusão dos atores sociais se dá por ativação e passivação. A ativação ocorre porque a “escola” é representada de forma ativa dentro do discurso. Já a passivação ocorre porque os atores sociais estão submetidos às atividades, ou receptores dela, nesse sentido, Sócrates é o sujeito receptor ao dizer: “só a escola que vai me ajudar”, sendo assim, ocorre a passivação por sujeição. A sujeição pode ser realizada por participação, em que o ator social passivado é o próprio Sócrates. Platão também traz representações positivas acerca da escola. No trecho ilustrado a seguir, ele escreveu: “A minha escola, gosto muito de estudar aqui, porque quando eu vou à escola eu me sinto melhor”. (Platão, 15 anos, 20/01/2011) Ao falar sobre a escola, Platão traz à tona a imagem agradável e prazerosa de estudar no contexto socioeducativo, a escola parece assumir um significado subjetivo para o aluno, pode estar relacionado à ideia de liberdade, conquista e à sensação de bem-estar proporcionada por ela. Platão, ao enunciar “a minha escola”, nos remete à ideia de que escola no contexto de privação de liberdade é espaço fundamental e exclusivo para que possa fazer valer seu direito à cidadania. Nesse caso, ocorre a inclusão por possessivação, devido ao uso do pronome possessivo “minha” que ativa o ator social: escola. Platão 113 sente-se à vontade ao enfatizar que a escola é sua —“minha escola” demonstra que a escola no Pomeri é significativa e se diferencia de outros espaços, lugar onde ele se reconhece parte integrante do processo educativo. A escola, ainda que localizada em um espaço repressor e de segregação, pode proporcionar momentos de liberdade e a esperança de transformação da realidade primitiva do universo socioeducativo. Podemos entender, conforme Fairclough (1992, 2008), que todos os discursos são historicamente situados e, por isso, devem ser compreendidos em seu contexto, sendo este crucial para as análises, uma vez que estas incluem explicitamente componentes sociais, psicológicos, políticos e ideológicos. É nesse sentido que Platão ressalta “gosto muito de estudar aqui”, ocorrendo a inclusão por ativação, pois os papéis gramaticais dos participantes — escola e Platão — estão claramente destacados através dos verbos “gosto” e “estudar”. Aponta para a importância da instituição escolar no Pomeri, espaço onde ele gosta de estar, que lhe proporciona conhecimentos, momentos de liberdade e grande expectativa de vida, objetivo, sonho e motivação maior para suportar a medida socioeducativa privativa de liberdade. Então, Platão mostra que a escola no Pomeri guarda especificidades que lhe dão prazer. Na seguinte frase dita por Platão: “porque, quando eu vou à escola, eu me sinto melhor”, mais uma vez ele desenvolve o papel de protagonista ao ressaltar a frase “quando vou”. Essa escolha léxico-gramatical representa a inclusão do jovem no processo escolar. Ao frequentar as aulas, estabelece vínculo de participação, ou seja, o caráter participativo, e seus sentimentos e pensamentos são respeitados. Assim, a “escola” recebe destaque no papel de ator transformativo realizado pelo grupo verbal “me sinto melhor”. Segundo a categorização de van Leeuwen (1997), “escola” está incluída como ator social e, assim, é representada de forma ativa. Na entrevista, Platão fala acerca da escola. Ele traz as seguintes considerações: Pra mim a escola é de boa, ela ajuda a gente a não ficar pensando besteira, a gente sente melhor, a gurizada diverte nas aulas, os professores conversa bastante com a gente, dá conselho, toca música gospel, aí a gente fica de boa, quando bate uma ideia também os professores ouvem a gente.(Platão, entrevista em 18/12/2012) 114 A resposta de Platão em relação à escola ao expressar “pra mim a escola é de boa”, transmite a ideia de espaço de sossego, liberdade, autonomia, diálogo, equilíbrio e regras brandas. Na expressão “pra mim”, Platão tece opinião sobre a escola e representa força ativa e dinâmica ao afirmar que “a escola é de boa”. A ”escola”, explicitamente incluída por ativação, também representa força ativa e dinâmica ao desenvolver o seu papel educativo no Pomeri: “é de boa”. Ao afirmar “ela ajuda a gente a não ficar pensando besteira”, Platão classifica a escola como opção de distrair a mente e ocupar seu tempo com coisas úteis. “Ela ajuda a gente” traduz a ideia de que a escola preenche o tempo ocioso, desvelando a falta de atividades em que os adolescentes e jovens privados de liberdade vivem. Sendo assim, “não ficar pensando besteira” mostra-se como forma de resistência às pressões que o sistema socioeducativo exerce sobre os adolescentes e jovens privados de liberdade que, ao invés de ajudá-los a se reintegrarem socialmente, acaba muitas vezes impulsionando-os a reincidirem. Para compreender a realidade social da análise do excerto acima, me reporto a Fairclough que aborda a representação dos eventos sociais realizando uma distinção entre os diferentes níveis de abstração e de concretização nas representações. Ele toma a representação como recontextualização – ao representar um evento social, este é incorporado ao contexto de outro evento social – trazendo à tona a discussão do universal e do particular (FAIRCLOUGH, 2003, p. 138). Aristóteles também expressa representações acerca da escola. Ele escreveu: Quando fala de escola, tem que falar dos professores. Na Escola Estadual Meninos do Futuro tem vários profissionais capazes de passar para mim algo muito importante que um homem tem que ter. O caráter, educação, respeito, conhecimento e preciso das matérias. (Aristóteles, 17 anos, 20/01/2011) No fragmento, “quando fala de escola, tem que falar dos professores”, ocorre a categoria de inclusão por ativação e passivação . A passivação acontece na frase quando o ator social é representado como aquele que se submete à atividade ou é afetado por ela. Nesse caso, “quando fala de escola” a passivação se realiza por meio da participação, pois o ator social “escola” é o centro da fala de Aristóteles. Outros atores sociais explicitamente representados de modo ativo na frase do jovem 115 são os professores: “tem que falar dos professores”, pois a concepção de ‘escola’ para Aristóteles se restringe à valorização dos professores no processo educativo. Aristóteles, ao ressaltar que “na Escola Estadual Meninos do Futuro tem vários profissionais capazes de passar para mim algo muito importante que um homem tem que ter”, traduz que os atores sociais são representados por nomeação e categorização . O que diferencia a nomeação da categorização é o fato de a primeira representar os participantes pela sua identidade individual, única, e a segunda representar os participantes pelas funções e identidades que eles compartilham com outros participantes. A nomeação, segundo van Leeuwen (1997), é geralmente reconhecida pelos substantivos próprios, usados de maneira formal ou informal. No início da frase: “Na Escola Estadual Meninos do Futuro” , o ator social é representado por nomeação. Neste caso, de acordo com van Leeuwen (1997), ocorre a nomeação tipicamente de maneira semiformal (nome próprio e apelido). Dando continuidade à análise, na frase “tem vários profissionais capazes de passar para mim algo muito importante que um homem tem que ter”, verifica-se primeiramente a ocorrência da categorização por funcionalização, “profissionais” devido ao uso de um substantivo que denota profissão. A funcionalização acontece quando os atores sociais são identificados em termos pelas atividades que realizam, ou seja, da função que desempenham ou do cargo que exercem em determinada atividade. Observa-se que os itens lexicais “capazes” e “homem” são usados para identificar algo ou alguém, portanto registra-se aqui a categorização por identificação. Na identificação o participante não é representado pelo que ele faz, mas pelo que ele é. Na classificação, os atores sociais podem ser identificados por gênero, origem geográfica, riqueza, etnicidade, orientação sexual, entre outras categorias históricas e culturalmente variáveis, pois quando classificamos algo ou alguém, podemos representá-lo. A designação “capazes” representa os profissionais da escola (professores, coordenadores, gestores etc.), eles estão na posição temática, funcionando como ponto de partida para a mensagem, orientando argumentativamente a leitura. Ao representá-la de forma classificatória, sua identidade passa a ser definida e determinada. Já a palavra “homem” representa uma classe social beneficiária com os ensinamentos mediados pelos profissionais 116 da escola. Aristóteles demonstra mais uma vez em suas palavras que os ensinamentos acontecem simultaneamente com a compreensão e a valorização dos profissionais envolvidos no processo educativo, no espaço de privação de liberdade. Nesse sentido, nos remete a entender que no âmago da educação escolar está o entrelaçamento entre o professor, a educação e a vida. Na entrevista, Aristóteles, que agora é egresso do sistema socioeducativo, fala sobre a escola. Ele traz as seguintes considerações: A Escola Meninos do Futuro é melhor que a escola de fora, os professores me tratavam com respeito e educação, tipo ouvia a minha opinião, e as aulas eram diferentes, tinha sempre um projeto, atividade diferente para apresentar, pra falar a verdade os professores de lá me deram muita ajuda quando eu estava trancado. (Aristóteles, entrevista em 07/01/2013) Ao enunciar “a Escola Meninos do Futuro é melhor que a escola de fora”, observa-se que este excerto passa uma carga ideológica implícita: o aluno aponta a importância da escola para os privados de liberdade, guardando especificidades que a diferenciam de outras escolas quanto à aquisição de conhecimentos e preparo para a vida em sociedade. Remete-nos a entender que a escola fora do espaço privativo de liberdade já não consegue responder à demanda das urgências que se faz necessária no momento presente, especialmente para os egressos do sistema socioeducativo. Neste sentido, é possível afirmar que o discurso é uma prática social que veicula ideologias, constitui e é constituída pelos sujeitos. Assim, a ADC reconhece a dialética entre o discurso e as práticas sociais (CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999), ela investiga como as ideologias são produzidas e reproduzidas pelos atores sociais nos discursos. Os conceitos de ideologia de Fairclough (2003) são entendidos como representações de aspectos do mundo que podem contribuir para o estabelecimento, a manutenção ou a mudança de poder nas relações sociais. Ao declarar “a Escola Meninos do Futuro”, verifica-se, assim, que a representação do ator social ocorre por nomeação, é representada, principalmente, em termos de sua identidade única, de forma semi-informal (nome próprio). Na sequência a frase é completada pelo seguinte argumento: “é melhor que a escola de fora”; ao dizer “é melhor”, o aluno inclui por ativação a escola no sistema socioeducativo, deixa explícito, portanto, o caráter participativo que a escola 117 desenvolve no seu processo educativo, respeitando a forma de agir e pensar do socioeducando, buscando atingir suas expectativas de vida em sociedade. O paradoxo que se observa está relacionada ao uso do “que”, usado para comparar as duas escolas, a de dentro do contexto socioeducativo, analisada anteriormente, e a de fora. Portanto, ocorre a exclusão por encobrimento dos atores sociais (professores, gestores e técnicos) da escola fora do contexto socioeducativo, “a escola de fora”. Em consonância com van Leeuwen (1997), a exclusão por encobrimento ou colocação em segundo plano não é total, podendo ser parcialmente representada, pois os atores sociais excluídos podem não ser mencionados em relação a uma determinada atividade, mas são mencionados em outras partes do texto, podendo ser recuperados, dando a possibilidade de o leitor inferir que eles estão sendo incluídos em algum ponto do texto. Ou seja, os atores sociais estão pouco visíveis, porém seu papel é secundário. Pode-se dizer, assim, que a exclusão por encobrimento do ator social (escola) enfatiza a ideia de esvaziamento da função educativa, tornando-se ineficaz, já que o educando têm atendidas as suas necessidades imediatas. 4.1.2 Aproximação com os professores Em sua maioria, as produções escritas, além de revelarem a importância da escola, relacionam a afetividade como forma de aproximação que possibilita a construção do conhecimento na sala de aula. Sócrates expressa no trecho da redação a seguir. “[...] aprendi muitas coisas com os professores que pegam no meu pé”. (SÓCRATES,15 anos, em 20/01/2014) Percebe-se que Sócrates ressignifica a relação entre professor e aluno quando afirma: “aprendi muitas coisas com os professores que pegam no meu pé”, criando interdiscursividade entre os professores que estabelecem limites e regras, que seriam, estes sim, bons professores. Atribui a boa formação ao professor que se faz respeitar, mantém a disciplina do grupo, atitude considerada determinante para o sucesso do aprendizado, ressaltado no excerto. 118 As escolhas léxico-gramaticais “aprendi”, “muitas coisas” e “professores que pegam no meu pé” demonstram que na relação professor-aluno, assim compreendida, os limites puramente da sala de aula são ultrapassados e isso provoca nos elementos envolvidos formas distintas de aceitação do “eu” e do “outro” que, inegavelmente, atingirá a vida dos mesmos na sociedade. O uso do verbo “aprendi” demonstra que Sócrates apropria-se de conhecimentos necessários acerca dos aspectos subjetivos presentes na relação professor-aluno, que modulam o sucesso do processo de ensino-aprendizagem. Ao dizer “muitas coisas”, valoriza o impacto qualitativo desse processo. Já na frase “os professores que pegam no meu pé”, o professor se mostra na práxis pedagógica, é ele quem regula o tempo, o espaço e os papéis desta relação. Observa-se, na fala de Sócrates, que não é uma relação autoritária e sim dialógica, pautada em atingir as necessidades intelectuais e afetivas dos alunos. Neste caso ocorre a inclusão por ativação dos atores sociais “professores”, pois estão representados de forma ativa em seu texto. Nas imagens atuantes do enunciado de Sócrates está sempre presente a figura do professor: “[...] mas agradeço muito aos professores, que trazem muitos projetos e cursos.” (SÓCRATES,15 anos, em 20/01/20) Sócrates, ao dizer: “mas hoje agradeço muito aos professores, que trazem muitos projetos e cursos”, demonstra gratidão pelo professor, argumentação articulada pelo marcador oposicional ‘mas’, o qual, por sua vez, direciona o seu discurso para uma conclusão da ideia veiculada, ao contexto de privação de liberdade, deixando evidências de que as possibilidades de sucesso, da autonomia da aprendizagem, são provenientes da ação pedagógica dos professores da Escola Estadual Meninos do Futuro. No texto o ator social “professor” é representado pela funcionalização, pelo uso de um substantivo que denota profissão. Conforme Bhaskhar (1998), ao nível da estrutura interna o educador crítico está sempre engajado em projetos sociais e de responsabilidade solidária, levando em consideração as emoções, os valores e os sentimentos dos alunos, através de um ato de vontade ou desejo, um sentimento que toca nas emoções. A figura do professor é idealizada como orientador e estimulador de todos os processos que levam os alunos a construírem seus conceitos, valores, atitudes e 119 habilidades que lhes permitam crescer como pessoas, deixando de ser um mero transmissor de conhecimento, ao dizer: “[...] Os estudos, aprendi com os professores que vem sempre em primeiro lugar, ao lado das normas que devemos respeitar.”(SÓCRATES,15 anos, em 20/01/20) Este recorte, “Os estudos, aprendi com os professores que vêm sempre em primeiro lugar, ao lado das normas que devemos respeitar”, revela o aluno apropriando-se de um discurso pedagógico, destaca a força da educação como um dos mais importantes fenômenos para a transformação das condições de vida. Ao se levar em consideração o lugar de onde o ator social enuncia e as regras de formação às quais esses discursos obedecem, pode-se identificar a formação discursiva que se imbrica no enunciado de Sócrates: o pedagógico. O aluno reitera os discursos dos professores, revelando a crença na educação como a força motriz que o impulsiona a ter esperança na emancipação e na transformação social. Sócrates, ao dizer “aprendi com os professores”, atribui-se um papel passivo, ao utilizar o verbo no pretérito perfeito do indicativo “aprendi”. Como assinala van Leeuwen (1996, p. 187), “a ativação ocorre quando os atores sociais são representados como forças ativas e dinâmicas numa atividade, e a passivação quando são representados como ‘submetendo-se’ à atividade, ou como sendo ‘receptores dela’”. O ator social ‘aluno’ assume a condição de afetado. Assim, ele se representa como receptor de tal atividade, que é realizada “ao lado das normas que devemos respeitar”. Percebe-se, aqui, que há concordância entre professores e alunos para o bom andamento das aulas e o relacionamento interpessoal, passando a ideia de algo positivo, benéfico e necessário para a vida em coletividade. Nesse sentido, Bhaskar (1998; 2002) vislumbra uma ‘crítica explanatória’, edificada com base no desvelamento dos problemas sociais, originadas das práticas sociais, com objetivo buscar solução e superação. Sócrates revela necessidade desse tipo, postura harmoniosa entre professor e aluno. Nessa mesma direção, Sócrates revelou em sua entrevista aspectos interessantes sobre a aproximação com os professores. Vejamos o que ele diz: Aqui na verdade os professores têm muita mais paciência para ensinar a gente, eles são legais, ficam contentes quando agente aprende. O professor daqui é melhor, dá até vontade de assistir aula. (Sócrates,15 anos, entrevista em 18/12/201) 120 Os enunciados de Sócrates revelam que no interior da sala de aula da E. E. Meninos do Futuro, a paciência é a premissa fundamental para que o professor crie um clima e laços propícios para o desenvolvimento pedagógico de suas atividades. Ao dizer, por exemplo: “aqui na verdade os professores têm muita paciência para ensinar agente”, ele reconhece que apesar de todos os entraves do contexto de privação de liberdade que se apresenta, cada um deles é superado pela harmonia e consenso, protagonizado pela paciência do professor. Observa-se na fala de Sócrates que a atitude pacienciosa é exercida de forma ativa pelos professores, ocorrendo a representação de atores sociais por ativação. É interessante destacar a frase: “Eles são legais, ficam contentes quando agente aprende”. Percebe-se, aqui, que o uso do pronome na 3ª pessoa do plural “eles”, atribui sem exceção a todos os professores a qualidade de “legais”, o que se traduz em amorosos, gentis e solidários. Neste caso ocorre a impersonalização por abstração dos atores sociais. Ao mencionar “ficam contentes quando agente aprende”, percebe nas atitudes dos professores aspectos de afetividade e valorização do conhecimento do aluno adquirido ao longo da vida. Os enunciados de Sócrates revelam atitudes de afetividade, comprometimento e valorização dos professores para com os alunos. Percebe-se ‘engajamento’ dos professores junto aos reais problemas da vida no Pomeri, sempre buscando soluções práticas para superá-los. Ele reconhece boa vontade e dedicação dos docentes que atuam na unidade escolar socioeducativa. Fairclough (2001: 289) assegura que ao sermos capazes de identificar a natureza da prática social, seremos capazes de explicar os seus efeitos sobre a prática social. Platão, ao se referir aos professores em sua redação, se expressou: “[...] eu converso com os professores, e aprendo mais, quando estou com dúvida de alguma coisa, o professor me ajuda.” (PLATÃO,15 anos, 20/01/2011) É interessante destacar a ênfase que Platão dá à relação afetiva em sala de aula, como forma de influência na relação professor-aluno. Ao dizer: “Eu converso com os professores e aprendo mais”, Platão reforça que esta proximidade é por meio da conversa/diálogo entre professor e aluno colaborando no sucesso do processo da escolarização, ocorrendo assimilação por coletivização dos atores que dão ideia de coletividade dos atores sociais. De acordo com Bhaskar (1998, p. 462), 121 a emancipação não pode ser alcançada apenas pela mudança da consciência; ao contrário, ela deve ocorrer na prática. Fica explícito na frase “aprendo mais” que a aprendizagem acontece simultaneamente por meio do diálogo, compreensão e valorização do adolescente no processo da aprendizagem, pois ocorre o entrelaçamento entre a educação e a vida. Se observarmos a realidade social, não vemos nada mais do que ações e reações, com seus e efeitos e causas (BHASKAR, 1998). O verbo no presente do indicativo “aprendo” corresponde a sua aquisição do conhecimento, ao ato de ficar sabendo e ao desenvolvimento de capacidades, o uso do advérbio de intensidade “mais” reforça o sentido de que aproximação com os professores por meio do diálogo e da afetividade que colabora para o sucesso da aprendizagem. Platão ressalta na sua fala: “quando estou com dúvida de alguma coisa, o professor me ajuda”, destacando que o professor mantém na sala de aula a valorização da dimensão afetiva no relacionamento com o aluno, inserida nas formas dialógicas de interação. O ator social “professor” aparece mais uma vez de forma ativa na sua fala, demonstrando de forma clara que aquele que ensina tem atitudes solidárias e altruístas. Platão, em sua entrevista, destacou que a atenção e o diálogo entre os professores e os alunos são fundamentais para o desenvolvimento humano. Eles dão atenção pra gente, estão sempre dando conselho para a gurizada mudar de vida, pra gente quando sair daqui, procurar estudar, trabalhar e largar a vida do crime. (PLATÃO, entrevista em 18/12/2012) Platão, ao enunciar “eles dão atenção pra gente”, relaciona o pronome pessoal na 3ª pessoa do plural “eles’, para demarcar a pessoa do discurso, no caso os professores da E.E. Meninos do Futuro. Tais professores não são vistos como meros transmissores de conhecimentos mas como mediadores, capazes de articular as experiências dos alunos com o mundo. O uso do substantivo “gente” estabelece valor inclusivo ao grupo de alunos, que são levados a refletir sobre suas atitudes. Observa-se, explicitamente, que os atores sociais “professores” e “alunos” são inclusos na fala de Platão, ocorrendo a representação dos atores sociais por diferenciação. Platão também evidencia a atenção, a aproximação e o diálogo entre professores e alunos no enunciado: “estão sempre dando conselho para a gurizada 122 mudar de vida, pra gente, quando sair daqui, procurar estudar, trabalhar, largar a vida do crime”. O termo “gurizada” é utilizado geralmente para definir o grupo de amigos, ocorrendo a representação de atores sociais por coletivização, dando a ideia de coletividade. Platão também deixa claro que os professores da escola E. E. Meninos do Futuro exercem o papel de mediadores das relações interpessoais, e, por extensão, a aspiração por uma maior qualidade de convívio social. Bhaskar (1998) aponta que a emancipação do sujeito se apoia na possibilidade dessa integração, que objetiva a formação do sujeito como ator social com condições de transmitir e perceber significado em suas ações. Platão usa expressões afirmativas: “mudar de vida”, “procurar estudar”, “trabalhar e largar a vida do crime”, para reforçar aproximação entre professor e aluno, a indiferença deixa de existir por meio de estabelecimento de vínculos humanos de consideração e afeto. As atitudes dos professores denotam que uma das características da ACD é identificar possibilidades de superação dos obstáculos. Não basta ter consciência de sua existência, é preciso lutar para vencê-los e atuar na transformação social (FAIRCLOUGH, 1992), identificando potenciais de mudança na realidade que se apresenta e buscando suas lacunas e contradições (FAIRCLOUGH, 2001). Aristóteles destaca em seu texto a importância de ser tratado com amor e atenção pelos professores: [...] Todos os professores, eu me dou bem, pois percebo que eles fazem o que fazem bem feito e por amor. [...] O relacionamento deles são bons com os adolescentes. [...] eles dão uma grande atenção para nós, parabéns professores da Escola Meninos do Futuro. (ARISTÓTELES, 17 anos, 20/01/2011) Observa-se, nos enunciados acima, que Aristóteles apresenta informações sobre o seu relacionamento com os professores. O adolescente afirma que a relação professor-aluno é pautada pela reciprocidade, compromisso e disposição do educador em doar-se emocionalmente. É interessante destacar a ênfase que ele dá para a questão da aproximação com os professores, respaldada na efetividade e no amor para com ele e os colegas. Ao dizer, por exemplo: “Todos os professores, eu me dou bem, pois percebo que eles fazem o que fazem bem feito e por amor”, Aristóteles usa a expressão “eu me dou bem” para expressar o seu vinculo afetivo com os professores. Ele reconhece o 123 engajamento dos professores ao mencionar: “fazem o que fazem bem feito e por amor” atribuindo amor e afeto à ação pedagógica dos professores. No fragmento: “o relacionamento deles são bons com os adolescentes”, Aristóteles destaca o sucesso da relação afetiva entre professores “eles” e alunos “nós”. Ao dizer: “eles dão uma grande atenção para nós”, destaca a atenção concentrada dos professores aos alunos, demonstrando aproximação e respeito. Ocorre a representação de atores sociais por coletivização. Finalmente demonstra gratidão ao expressar: “parabéns professores da Escola Meninos do Futuro”, reconhecendo o compromisso dos professores. Observa-se que os fragmentos acima analisados apresentam a inclusão dos atores sociais professores, alunos e escola. Esses atores sociais são representados por ativação. Segundo van Leeuwen (1997, p. 187), a ativação “ocorre quando os atores sociais são representados como forças ativas e dinâmicas numa atividade”, ou seja, os participantes participam ativamente do processo em questão. Em sua entrevista Aristóteles descreve o estabelecimento de vínculos de consideração e afeto na relação com os professores da Escola Estadual Meninos do Futuro: Os professores da escola de lá falavam a mesma língua da gente, tratavam a gente com educação e respeito, a gente podia dar opinião que eles aceitavam, tinham muita paciência... é isso aí, eram de boa com a gente. (ARISTÓTELES, entrevista em 07/01/2013) Percebe-se, aqui, a importância da boa convivência entre o professor e o aluno, conduzida pela humildade e diálogo em constante interação com os aspectos cognitivos e afetivos. Ao dizer: “os professores de lá falavam a mesma língua da gente”, Aristóteles ressalta que a interação entre professor-aluno da E.E. Meninos do Futuro ultrapassa, desse modo, a mera condição de ensinar. Observa-se a inclusão dos atores sociais “alunos”, “professores” e “escola” por ativação. Ao utilizar o advérbio de lugar “lá”, prefere não mencionar o nome Pomeri, ocorrendo a exclusão por supressão desse ator social. A expressão “tratavam a gente com educação e respeito” é uma demonstração clara de que os professores da escola tinham o respeito como base na relação humana e a sala de aula se tornou um espaço de favorecimento dessa virtude de sentimento. Aristóteles, ao dizer, por exemplo: “a gente podia dar opinião 124 que eles aceitavam, tinham muita paciência”, destaca que os professores respeitavam seu ponto de vista, pensamentos e suas experiências, que traziam lições de vida aos professores e aos colegas. Observa-se a ausência de pronomes na 1ª pessoa, Aristóteles se refere a ele e aos outros jovens da escola, quando emprega a expressão pronominal indefinida “a gente”, que surge com frequência na sua fala. Observa-se a ocorrência de representação de atores sociais por indeterminação. É interessante ressaltar a ênfase que ele dá à “paciência” dos professores, como atributo quase que obrigatório para os professores que atuam no contexto de privação de liberdade. Dessa forma, ao falar: “eram de boa com a gente”, reconheceu as boas relações manifestadas por meio de diálogo, troca, paciência, compreensão e tolerância. Para Fairclough (2001), os sujeitos são posicionados ideologicamente, mas são também capazes de agir criativamente no sentido de realizar suas próprias conexões entre as diversas práticas e ideologias a que são expostos e de reestruturar as práticas e as estruturas posicionadoras. 4.1.3 Aprendizagem significativa Ainda nas produções escritas dos alunos é possível vislumbrar a aprendizagem significativa, algo significante, pleno de sentido, experiencial, para os socioeducandos. “Tudo que fiz estou bastante contente com o que aprendi sobre os estudos e vou sair digno sem dever nada a sociedade não como um menor infrator e sim como Sócrates. (SÓCRATES, 15 anos, em 20/01/2011) Assim, ao enunciar “tudo que fiz estou bastante contente com o que aprendi sobre os estudos e vou sair digno sem dever nada a sociedade não como um menor infrator e sim como Sócrates” evidencia a articulação com as seguintes falas: estudos/educação e dignidade. Ressalta-se que os estudos parece assumirem um significado próprio para ele, relacionado à ideia de liberdade, felicidade e dignidade. E deixa claro que a essência da escola está no cerne da relação professoaluno e ensino-aprendizagem, pautada em uma relação dialógica e esperançosa capaz de promover transformações como forma de intervenção na sociedade. Desse modo, Sócrates se representa no texto de forma ativa, ocorrendo a representação 125 por nomeação, revelando sua identidade única. Com o uso da expressão “não como menor infrator”, lhe é atribuído um papel passivo, ocorre a categoria de passivação por sujeição, pois torna-se sujeito da passividade. Mas ao dizer: “sim como Sócrates” marca a necessidade de mostrar mudança de atitude perante a sociedade, conforme Bhaskar (1998, p. 410), ao nível de estrutura interna, empoderando-se da autonomia e da emancipação social, observação em que ocorre a representação de atores sociais por especificação, por individualização. Para Sócrates, a “sociedade” representa a coletividade, nesse caso ocorre a coletivização para tratar os atores sociais. Sócrates apresenta-se ao mundo, ou seja, mostra o seu ethos (a imagem de si), de um cidadão que arcou com suas responsabilidades e está pronto para a vida social. Nota-se que o emprego da ativação no lugar da passivação, no discurso do aluno, ocorre pela necessidade de ele se representar discursivamente como sujeito social ativo “digno” em um processo de transformação, desenvolvimento e progresso na “sociedade”. No seu texto, ele faz essa relação com a escola, os professores e a aprendizagem. Reitera-se, ainda, o ideal de aprendizagem ao dizer: “estou bastante contente com o que aprendi sobre os estudos”. Ao dizer “estou bastante contente”, Sócrates expressa sua gratidão quanto ao que aprendeu na escola e destaca a importância de estudar (aprender). Ideologicamente se inspira e imprime a ideia da aprendizagem significativa, que se inscreve numa formação discursiva de esperança, mudança e autotransformação. A aprendizagem significativa parece ser uma prática social presente no cotidiano de professores e alunos, ao afirmar: “aprendi sobre os estudos”, desfrutando de liberdade incondicional nos momentos de aprendizagem e valorização dos estudos. Ao se referir sobre aprendizagem significativa, ele se expressou: Aqui escola tem um ensino diferente, o jeito dos professores ensinarem é outro. Sempre tem música, poesia e um jogo na aula, também sempre tem apresentações de trabalhos, teatro e dança para os alunos fazerem. (Sócrates,15 anos, entrevista em 18/12/2012) Sócrates estabelece, neste contexto, uma comparação entre ensino da comunidade e ensino da escola no Pomeri. Ao enunciar: “aqui a escola”, o ator social representado “escola” é incluído de forma ativa em sua fala. Sócrates evidencia que a escola oferece um “ensino diferente”, reconhece que os conteúdos 126 abordados são trabalhados nas situações da vida prática do aluno ou de algo que lhe cause um conjunto de sensações e/ou percepções, como modos particulares de representar parte do mundo (FAIRCLOUGH, 2003 p. 3-4). Observa-se que os atores sociais “alunos” são representados por coletivização, pois dão a ideia de coletividade. Sócrates ressalta que “o jeito dos professores ensinarem é diferente”, traduz a ideia de professores que atuam como mediadores entre os alunos, os conhecimentos que estes detêm e o mundo, levando-os a elaborar conceitos, valores, atitudes e habilidades que lhes permitam crescer como pessoas. O uso do substantivo “jeito” demonstra forma particular de agir, ocorre a representação dos atores sociais por personalização, por possuírem significados que incluem características humanas. A análise da representação dos atores sociais “professores”, no enunciado de Sócrates, permitiu a observação da categoria de inclusão por ativação dos atores sociais. De acordo com Sócrates, as aulas são recheadas de “música”, “poesia”, “jogos”, “apresentações de trabalhos”, “teatro” e “dança”. Isto reforça a proposta acerca da aprendizagem significativa, torna-se, então, um argumento plausível acerca da utilização da interdisciplinaridade em sala de aula como recurso metodológico de apoio ao processo de aprendizagem. Para Bhaskar (1998) o educador crítico consideraria as emoções, os valores, os sentimentos dos alunos. Platão externou sua opinião a respeito da aprendizagem: “A gente ouve música gospel na sala e é mais de boa. A gurizada fica mais quieto e assiste a aula”. (PLATÃO, 15 anos, 20/01/2011) É relevante destacar nos enunciados de Platão que os modos do professor ensinar estão conectados com o repertório do aluno, provocando no jovem uma aprendizagem significativa. Ao dizer: “Agente ouve música gospel na sala e é mais de boa”, quando o jovem se refere a ele mesmo (eu) e aos colegas, utiliza incorretamente o substantivo comum “agente” ao invés da forma correta “a gente”, locução pronominal equivalente ao pronome pessoal reto nós, ocorrendo a representação dos atores sociais por coletivização. Pode-se afirmar que Platão, ao expressar “ouve música gospel na sala e é mais de boa”, revela também o significado representacional de uma realidade conectada com seus sentimentos, crenças e espiritualidade. Platão mostra a importância da estratégia 127 pedagógica/positiva utilizada pelo e/ou pelos professores, a música do gênero “gospel”, visando buscar o desenvolvimento da sensibilidade e a integração do ser por meio da afetividade. A expressão “mais de boa” complementa o sentido da frase revelando marcas de afeto/segurança nos momentos das aulas, quando as tensões se mostram aliviadas, o que justifica sua existência e seu papel no processo educativo dos adolescentes e jovens privados de liberdade. No enunciado “a gurizada fica mais quieto e assiste a aula”, ocorre a coletivização dos atores sociais. Platão deixa transparecer que a troca de experiências, respeito e afeto com o professor e com os outros alunos leva-os a um convívio que não é movido pelo ódio, vingança ou rejeição. Essa aproximação lhe oferece a possibilidade de aprender outra postura e, quiçá, um conteúdo significativo ou uma habilidade que se constitua em forma de emancipação. Em relação à categoria “aprendizagem significativa”, Platão em sua entrevista faz as seguintes observações: “Aqui na Escola Meninos do Futuro a gente tem muitos ensinamentos, muitas atividades diferenciadas como: computação, aulas de música, de vídeo, teatro, jogos e muitas outras coisas legais.” (PLATÃO, entrevista em 18/12/2012) Fica explícito na fala de Platão, ao dizer, por exemplo, “aqui na Escola Meninos do Futuro a gente tem muitos ensinamentos”, ao incluir “Escola Meninos do Futuro”, ocorre a representação do ator social por nomeação, ainda revela que mesmo sendo localizada em um ambiente repressor e hostil, a escola se pauta pela produção de conhecimento, de estabelecimento de vínculos afetivos, de participação e aproximação por meio da aprendizagem significativa. Observa-se que Platão faz o uso da expressão indefinida “a gente”, para se representar (eu) e representar os colegas, ou seja, “nós”, também reflete o significado representacional da sua realidade de exclusão social, internalizada pelo jovem e representada de forma indefinida em sua fala. Platão expõe as atividades desenvolvidas na escola “muitas atividades diferenciadas como: computação, aulas de música, de vídeo, teatro e jogos e muitas outras coisas legais”, que o conduz a novos saberes estabelecendo relações entre aquilo que conhece e as novas experiências. Na fala do jovem sobre “muitas outras coisas legais”, é possível detectar que os alunos aprendem bem o que lhes é significativo, numa atmosfera de aula que lhe parece segura, instigante e 128 interessante, proporcionada pelas atividades diversificadas oferecidas pelo planejamento pedagógico da escola. Aristóteles revelou aspectos interessantes sobre a aprendizagem: Me esforço bastante para aprender ao que é passado aqui pois sei que as intenções são as melhores e sei que necessito do aprendizado e a educação tem que vir em primeiro lugar. [..] Os trabalhos são diferenciados para conosco. (ARISTÓTELES, 17 anos, 20/01/2011) Embora esteja em um espaço repressivo, Aristóteles ao dizer: “me esforço bastante para aprender ao que é passado aqui” demonstra vontade de aprender, dedicação, esforço e cobrança a si mesmo. Quando o jovem se refere a ele mesmo, utiliza o pronome “me”, dessa forma ocorre a representação do ator social por beneficiação. Trata-se de uma forma de o jovem se evidenciar no evento discursivo, cuja identidade é fortalecida, de modo efetivo, internalizada pelos valores, crenças e desejos. Ao dizer: “ao que é passado aqui”, há uma demonstração de afeto pela escola, que é expresso pela presença do verbo “passado”, representa conteúdos desenvolvidos em sala de aula, e ainda reforçado pela circunstância de localização “aqui” (lugar – escola), que representa a escola no contexto socioeducativo (Pomeri). Nesse caso ocorre a inclusão do ator social “escola” por ativação e exclusão por supressão do ator social Pomeri. Ao falar de forma resumida “pois sei que as intenções são as melhores”, refere-se às boas práticas do professor que sustenta na sala de aula a valorização da dimensão social e afetiva no relacionamento com os alunos, uma vez que a riqueza da relação pedagógica baseia-se, independente do contexto em que a escola esteja inserida, nas formas dialógicas de interação. Aristóteles, ao enunciar “sei que necessito do aprendizado”, reforça uma avaliação de afeto/positiva e consensual sobre a importância da aprendizagem escolar. Ele reconhece que “a educação tem que vir em primeiro lugar”, para que possa fazer valer seu direito à cidadania, expectativas que os internos demonstram em relação ao acesso ao conhecimento e melhoria das condições de vida, quando em liberdade. Observa-se, ainda, no fragmento em análise “os trabalhos são diferenciados para conosco”, que o jovem reconhece que as ações pedagógicas da escola são respaldadas por práticas mais democráticas, cidadãs e emancipadoras com base em propostas pedagógicas significativas para os adolescentes que cumprem 129 medidas socioeducativas. Para Bhaskar (1998, p. 462) a emancipação não pode ser alcançada apenas pela mudança da consciência; ao contrário, ela deve ocorrer na prática. Aristóteles, mesmo estudando em uma escola da comunidade, faz algumas considerações sobre a aprendizagem significativa da Escola Estadual Meninos do Futuro: Os ensinamentos da diferentes. Lá eu participava pintura. As atividades eram tarefas eram feitas só na 07/01/2013) Escola Meninos do Futuro eram de várias atividades, tipo percussão e bem legais, não tinham provas e as sala. (ARISTÓTELES, entrevista em Aristóteles, ao dizer “os ensinamentos da Escola Meninos do Futuro eram diferentes”, revela que escola buscou alternativas significativas de trabalho para superar as dificuldades encontradas no Centro Socioeducativo. O verbo “ensinamentos” e o adjetivo “diferentes” funcionam como resposta à pergunta: qual a diferença entre a Escola Estadual Meninos do Futuro e a escola “aqui de fora”? Trata-se de uma resposta dada sobre o processo de ensino-aprendizagem da escola, avaliando de forma positiva a proposta pedagógica específica para escola inserida no sistema socioeducativo. Na fala de Aristóteles “lá eu participava de várias atividades, tipo percussão e pintura”, o advérbio “lá” designa naquele lugar, um lugar atualmente distante dele, mas que lhe deixou marcas que revelam seus sentimentos de afeto, atenção e respeito em relação à escola. O jovem reconhece que participava ativamente de outras atividades pedagógicas além das aulas: “Eu participava de várias atividades”, aqui ocorre a passivação por beneficiação se referindo a ele mesmo como o beneficiado, ao usar o pronome pessoal na 1ª pessoa do singular: eu. Observa-se que Aristóteles evidencia as atividades de que mais gostava: “percussão e pintura”, demonstrando que esse tipo de aprendizagem lhe causou um conjunto de sensações e/ou percepções, algo significante e pleno na aquisição de novos conhecimentos, no caso a arte. No enunciado “as atividades eram bem legais”, pelo atributo “legais” o jovem faz uma avaliação positiva e afetivo-significativa sobre as atividades (oficinas e projetos) desenvolvidas na escola. Neste caso há a ocorrência da representação de atores sociais por impersonalização por abstração e objetivação. Trata-se de uma avaliação que representa experimentar novas práticas e novos conhecimentos como 130 forma de resistência ao processo de perdas a que o sistema socioeducativo submete o jovem. Ao dizer “não tinham provas”, Aristóteles revela o medo que sente da prova, deixa transparecer o apreço negativo que esta representa. Trata-se de um instrumento avaliativo que contribui para a escola reproduzir um discurso dominante e excludente. Em “as tarefas eram feitas só na sala”, revela que a escola se submete às normas do Pomeri, aos jovens internos não é permitido levar materiais pedagógicos (lápis, cadernos e livros) às aulas. Nesse caso, Aristóteles, sem entender o engendramento do sistema socioeducativo, faz uma avaliação positiva dessa norma. Fairclough caracteriza hegemonia como “domínio exercido pelo poder de um grupo sobre os demais, baseado mais no consenso do que no uso da força” (FAIRCLOUGH, 2001 apud RESENDE & RAMALHO, 2006). Os fragmentos analisados neste capítulo contribuem para a demonstração de que a escola dentro do Sistema Socioeducativo tem cumprido seu papel de proporcionar conhecimento e afetividade. Observa-se nas falas dos alunos da E.E. Meninos do Futuro que a escola é um lugar aprazível, capaz de contribuir para a vida dos adolescentes e jovens privados de liberdade e da sociedade em geral, por meio da aprendizagem significativa e participativa e da convivência baseada na valorização e no desenvolvimento do outro e de si mesmo. Contudo, a escola, nesse contexto, pode-se tornar uma oportunidade de inclusão. É importante que sua estrutura e ações pedagógicas garantam uma educação que busque a emancipação e a transformação social. A seguir, com base nos textos analisados, apresento a sistematização das categorias de van Leeuwen. 4.1.4 Sistematização Construída sob a luz do Arcabouço Teórico-Metodológico da Teoria da Representação dos Atores Sociais Quanto à representação de atores sociais, podemos verificar também semelhanças e diferenças nas produções escritas e entrevistas dos alunos e egressos da Escola Estadual Meninos do Futuro. Primeiramente, analiso as categorias mais amplas propostas por van Leeuwen: a exclusão e a inclusão. No quadro 2, apresento as ocorrências e porcentagens dos atores sociais incluídos. No quadro 3, as categorias sociossemânticas de representação de atores sociais. 131 O quadro abaixo sintetiza o percentual da representação das categorias de exclusão e inclusão nos enunciados dos alunos Quadro 4: Categorias de inclusão e exclusão Representação de Atores Produções Escritas Entrevistas Sociais Categorias Ocorrências Porcentagem Ocorrências Porcentagem Exclusão 3 11,54% 3 15% Inclusão 23 88,46% 17 85% Total 26 100% 20 100% O quadro seguinte mostra o percentual de inclusão dos atores sociais nos enunciados dos alunos. Quadro 5: Atores sociais incluídos Atores sociais Produções escritas incluídos Entrevistas Escola Professores Alunos Ocorrências 14 28 12 Porcentagem 25,93% 51,85% 22,22% Ocorrências 13 15 13 Porcentagem 31,70% 36,60% 31,70% Total 54 100% 41 100% O quadro a seguir apresenta as ocorrências e porcentagens das categorias usadas na representação dos atores sociais nos enunciados dos alunos. Quadro 6: Formas de representação Categorias Produções escritas Ocorrências Porcentagens Ativação 8 34,79% Ativação por 2 8,69% possessivação Nomeação 2 8,69% Passivação 2 8,69% Categorização por 1 4,35% identificação Categorização por 1 4,35% funcionalização Entrevistas Ocorrências 6 _ 2 _ _ _ Porcentagem 35,291% _ 11,764% _ _ _ 132 Coletivização 3 13,04% 2 11,764% 5,883% Passivação sujeição por 1 4,35% 1 Especificação individualização por 1 4,35% _ por 1 1 4,35% 4,35% 1 1 5,883 5,883% _ _ _ _ 1 1 5,883% 5,883% Impersonalização por abstração _ _ 1 5,883% Impersonalização por objetivação _ _ 1 5,883% Total 23 100% 17 100% Indeterminação Passivação beneficiação Personalização Diferenciação _ Ao se analisar as duas maiores categorias propostas por van Leeuwen (inclusão e exclusão), observa-se que a necessidade de inclusão dos atores sociais (escola, professores e alunos) é bastante acentuada. A exclusão chega a suprimir o papel dos atores sociais, agentes orientadores, gerentes, diretores, técnicos e gestores do sistema socioeducativo. Na verdade, os resultados da análise nos indicaram alguns caminhos para pensarmos em melhorias e investimentos na educação no Pomeri, que devem ser fundamentadas em ações educativas, emancipadoras e humanizadoras, como condição para o desenvolvimento integral deste cidadão em condições de ser, pensar, conviver e produzir de maneira crítica, responsável e participativa na sociedade. Finalizando este capítulo, retomo os objetivos e as questões de pesquisa, apresentados a seguir: Objetivo geral Compreender as representações de adolescentes e jovens da Escola Estadual Meninos do Futuro, acerca da escola, professores e aprendizagem dependendo da maneira como essas representações estão materializadas nos textos escritos e orais. Objetivos específicos Identificar e analisar as representações dos alunos acerca da escola, 133 dos professores e da aprendizagem, aqui, nas produções escritas e nas entrevistas; Analisar as categorias relevância da escola, aproximação com os professores e aprendizagem significativa materializadas nas produções escritas e entrevistas dos alunos; Identificar e analisar se há, ou não, (in)congruências nos textos escritos e orais dos alunos. .Questões de pesquisa. 1) Quais são as representações dos alunos acerca da escola, dos professores e da aprendizagem? 2) De que maneira essas representações estão materializadas nos textos? 3) Existem ou não (in)congruências presentes nas redações e entrevistas dos alunos? A seguir, apresento as considerações finais. 134 CONSIDERAÇÕES FINAIS Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Paulo Freire Longe de apresentar menções que possam conduzir a algum tipo de julgamento, este estudo apresenta algumas reflexões que podem contribuir, sob a ótica da teoria das representações de atores sociais, para a construção de uma análise e de um posicionamento mais crítico perante o processo educacional de adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social que cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade, em uma unidade socioeducativa de Cuiabá, o Pomeri. Iniciei a minha jornada como pesquisadora procurando ouvir as "vozes" dos alunos da Escola Estadual Meninos do Futuro, responsável pela escolarização de adolescentes e jovens que cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade no Pomeri. Considerando os objetivos elencados, acredita-se que a pesquisa atendeu à perspectiva da pesquisadora, haja vista os excertos analisados. Espera-se que o foco desta pesquisa se torne alvo de análise e discussão de nossa mantenedora e de todos os envolvidos com a educação no sistema socioeducativo. Ao mesmo tempo, é bom evidenciar que o presente estudo não pode ser entendido como uma pesquisa concluída, pela sua natureza, é própria da incompletude. Este é o entendimento: não há uma finalização, já que os discursos particulares dos adolescentes e jovens representam um lugar de produção e de identificação do sujeito a partir da sua constituição histórica, social e ideológica. Parte-se do pressuposto de que esses sujeitos, em seus enunciados, revelam categoricamente nas suas produções escritas e entrevistas representações linguístico-discursivas sobre a relevância da escola, a aproximação com os professores e a aprendizagem significativa. Considera-se, aqui, que a escola tem cumprido seu papel de proporcionar conhecimento. Contudo, vem sendo lesada pela falta de políticas públicas educacionais e sociais destinadas a este público. Foram identificadas ações efetivas dos professores, geralmente em forma de diálogos e aconselhamentos, valendo-se da proximidade com os adolescentes que a relação 135 professor-aluno proporciona. Sendo assim, fica evidente a efetividade da aprendizagem significativa, mediante a proposta pedagógica da escola e o desafio do professor em adotar a postura de mediador entre o aluno e o conhecimento. Para tanto, a atuação do professor se respaldou em considerar que o aluno é o sujeito do conhecimento e não mero receptor de informações. Por isso, todo o esforço do professor foi evidenciado nos enunciados dos alunos. Objetivou-se, então, a partir dos enunciados dos alunos, entender a relação entre a escola, os professores e a aprendizagem. Para isso buscou-se compreender as representações de adolescentes e jovens da Escola Meninos do Futuro, dependendo da maneira como essas representações estão materializadas nos textos orais e escritos. Os pressupostos teóricos que sustentaram esta pesquisa ofereceram ferramentas crítico-discursivas para a realização da análise. O diálogo teóricometodológico que a ACD mantém com o RC e a Representação de Atores Sociais trouxeram contribuições significativas para a concretização desta pesquisa. A Análise Crítica do Discurso (ADC) permitiu que os dados fossem analisados como partes de eventos sociais e que a linguagem fosse vista como forma de prática social, constitutiva dos sujeitos e relações sociais, contribuindo para a sua reprodução e mudança (FAIRCLOUGH, 2001 p. 90). A filosofia do Realismo Crítico (RC) (BHASKAR, 1998, 2002) trouxe um forte viés emancipatório, foi base de sustentação para a compreensão da inter-relação dialética entre sociedade, pessoas e realidade social. Nessa perspectiva, van Leeuwen (1997; 2008) esboçou um inventário sócio-discursivo dos modos pelos quais os atores sociais puderam ser representados, estabelecendo a relevância sociológica e a crítica de algumas categorias linguísticas. Todavia, parece importante salientar que durante o estudo me deparei com a dificuldade de utilizar a ferramenta de análise da Gramática Sistêmica Funcional, proposta por Halliday (1994), pois o curto espaço de tempo impediu que eu me dedicasse a essa abordagem. Outro fato relevante é que a minha formação acadêmica de bacharel e licenciada em História também contribuiu para esta dificuldade. Há de se ressaltar que as disciplinas ofertadas no mestrado não trataram de focalizar esta abordagem. Ficará para outra oportunidade. Nesse sentido, a investigação das representações de atores sociais de adolescentes e jovens da Escola Meninos do Futuro, por meio de suas falas, 136 promoveu reflexões sobre a influência e a importância da escola na vida desses atores sociais. Refletir sobre esse contexto é a possibilidade de a escola pensar nesses coletivos populares, compreendê-los, pensar suas histórias, a luta pela constituição de uma identidade e, assim, reconhecê-los enquanto sujeitos de direitos e de desejos. Assim, a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que o processo educacional deve ter a finalidade de formação para a cidadania, inclusive para os privados de liberdade que, acima de tudo, são sujeitos de direitos, além disso, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e, por fim, prioridade do Estado. Se a educação é um direito fundamental, se o adolescente se encontra sob guarda judicial, tutelados pelo Estado e se ele deve ter condições de acesso à educação, então, que tipo de educação está sendo ofertada para esses sujeitos? Qual o sentido da escola para esses alunos? Em decorrência dessas indagações e inquietações, resolvi estudar mais profundamente a educação no sistema socioeducativo em regime de privação de liberdade, seus desdobramentos e pontos de vista (objetivos e subjetivos) que se relacionam e constituem o cotidiano escolar dos adolescentes em cumprimento da referida medida. Não seriam, então, a educação e os seus educadores uma possibilidade de libertação interior dos adolescentes e jovens privados de liberdade? Como diz Freire (1995), “[...] a melhor afirmação para definir o alcance da prática educativa em face dos limites a que se submete é a seguinte: não podendo tudo, a prática educativa pode alguma coisa” (p. 96). E ao se pensar na educação do homem privado de liberdade, não se pode deixar de considerar que o homem é inacabado, incompleto, que se constitui ao longo de sua existência e que tem a vocação de ser mais, o poder de fazer e refazer, criar e recriar (FREIRE, 1983). Desse modo, o que se conhece sobre a educação no Pomeri é um cenário de impasses e dilemas crônicos. Há uma realidade da qual não se pode fugir, mas é preciso buscar caminhos possíveis para a reorientação dos valores e perspectivas de inserção social dos adolescentes e jovens do Sistema Socioeducativo e das condições objetivas do seu entorno, para que se dê efetividade a sua emancipação e transformação social. Portanto, é preciso desmistificar alguns mitos sobre os riscos de se lidar com os adolescentes e jovens que cumprem medidas socioeducativas. Por trás dessas ideias estão o ceticismo e a postura hegemônica de gestores, que 137 se constituem em “donos da verdade”, desqualificando quaisquer propostas de mudanças. Destarte, quaisquer que sejam os papéis possíveis desempenhados para a escola — ocupar a mente, preencher o tempo ocioso, sair das celas, favorecimento jurídico, encontrar os colegas, jogar bola, aprender a ler, a escrever e a fazer contas —, ela é vista pelos alunos como algo aprazível e positivo dentro do sistema socioeducativo. É considerado pelos jovens como espaço de experiências, interação, respeito mútuo, trocas e cooperação, o que contribui para que o tempo de cumprimento da medida socioeducativa possa ser vivido de maneira humanizada. A interação com o professor e com os outros alunos leva-os ao convívio respaldado em afetividade, diálogo e respeito. Nesse sentido, a escola torna-se um espaço onde as tensões se mostram aliviadas, o que justifica sua existência e seu papel na inserção social dos adolescentes e jovens do sistema socioeducativo. Consequentemente, a escola passa a oferecer aos alunos a possibilidade de resgatar ou aprender outra forma de se relacionar e contribuir para a desconstrução da identidade de infrator. Diante disso, ocorre uma troca intensa de experiências por meio de uma interação dialógica contínua. Ao longo deste processo, o adolescente vai gradativamente descentrando-se do “eu” e construindo um significado para o “nós”, a partir dos pressupostos ético-pedagógicos que estão postos: respeito, igualdade, tolerância, justiça e paz. É interessante ressaltar que durante o estudo percebi que os alunos exercitam outro modo de ser ao se relacionar afetivamente com o professor. Na medida em que a escola compartilha e interage, eles passam a fazer parte dela. Esse pertencimento abre possibilidades e espaços perenes de aprendizagem que se constituem em formas de emancipação. É nesse espaço que o professor coloca suas intenções de modificar atitudes, capacidades e ideias — é, portanto, um local de possível manifestação do comportamento transformador. O conhecimento é trazido pelo afetivo, o aluno aprende bem o que lhe interessa, num ambiente que lhe parece seguro, com um professor que sabe criar afinidades. A escola, nesse contexto, pode tornar-se uma oportunidade de inclusão. Nela, o papel da educação é mais amplo, pois permite a liberdade e a esperança de transformação da realidade desumana do Pomeri. A partir dessa medida, a educação ali deverá se preocupar com a promoção humana. Pensar a educação 138 escolar no Pomeri significa, nesse sentido, refletir sobre sua contribuição para a vida dos adolescentes e jovens privados de liberdade e da sociedade em geral, por meio da aprendizagem significativa e da relação baseada na valorização e no desenvolvimento do outro e de si mesmo. Significa, ainda, pensar uma educação escolar capaz de fazer do jovem “[...] informado e participante do mundo em que vive, adquirindo consciência crítica que favorece a capacidade de questionar e problematizar o mundo, condição necessária para a prática social transformadora” (MELLO, 1987, p. 90). Embora esteja em um espaço repressivo e de isolamento, cujas muralhas são a materialização da separação entre a comunidade livre e os adolescentes e jovens privados de liberdade, servindo como barreiras para impedir as fugas, mas também como símbolo da rejeição das sociedades, os alunos, em suas falas, apontaram a importância da escola, espaço onde podem aproveitar o tempo para adquirir conhecimentos e onde se reúnem e podem fazer novas amizades, convivendo com outras pessoas, o que favorece o companheirismo. Na representação dessas “vozes”, a escola é apontada como um lugar onde eles gostam de estar, um compromisso em prol da libertação e uma possibilidade de mudança de vida. Há referências à educação escolar como possibilidade de galgar posições sociais diferentes das que ocupavam antes de cumprirem a medida socioeducativa no Pomeri. Os adolescentes demonstram, durante as produções escritas e entrevistas, uma perspectiva crítica e positiva em relação à escola, aos professores e ao processo de ensino-aprendizagem por meio da aprendizagem significativa, ressaltando que sua organização contribui para a sua humanização e inserção social. Assim, diante dos resultados alcançados, pode-se inferir que os adolescentes gostam da escola, se sentem acolhidos, na condição de sujeitos participantes da reflexão do mundo e da sua própria história, assumindo a responsabilidade dos seus atos e as mudanças que fizerem acontecer. A escola foi apontada pelo aluno como local de comunicação, de interações pessoais, onde ele pode-se mostrar sem máscaras, afigura-se, portanto, como oportunidade de socialização, na medida em que lhe oferece outras possibilidades referenciais de construção da sua identidade e de resgate da cidadania perdida. Contudo, o contato com os adolescentes e jovens que cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade no Pomeri é chocante e a proximidade 139 dessa realidade é triste, confusa, complexa e causa indagações e angústias que a sociedade, o poder público e o Judiciário preferem não vivenciar devidamente. Portanto, o trabalho da educação escolar somente será viável quando esses atores abandonarem a crença que depositam em estatísticas contraditórias, apologia a rigorosas punições e permitirem que o trabalho pedagógico se faça em sua completude. Diante das considerações expostas, o presente estudo pode ser compreendido como um esforço em produzir um trabalho acadêmico que não esteja aprisionado à erudição, mas que possa dar voz a vozes silenciadas. Não tive a intenção de encerrar uma discussão, mas de dialogar sobre atores sociais dotados de sentimentos, desejos, valores, crenças, medos e angústias. Espero ter conseguido instigar o início de outras tantas discussões, sendo, ainda, um desejo meu de que esse diálogo não fique restrito ao público acadêmico. Almeja-se contar com a participação daqueles que compõem a sociedade, que se interessam pelo assunto e estejam comprometidos com um futuro melhor para a sociedade. Cora Coralina (1984, p.141) em um de seus poemas nos diz: “Tempo virá. Uma vacina preventiva de erros e de violência se fará. As prisões se transformarão em escolas e oficinas... imunizados contra o crime, cidadãos de um novo mundo, contarão às crianças do futuro estórias absurdas de prisões, celas, altos muros de um tempo superado". 140 REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ___________. Educação e Emancipação. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. ALVES, G. Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório – O novo metabolismo social do trabalho e precarização do homem que trabalha. São Paulo, 2010. ANDRÉ, M. E. A. de. Etnografia da prática escolar. 12. ed. Campinas, SP: Papirus, 1995. ___________. Formação e prática docente. In: ANDRÉ (org.). O papel da pesquisa na formação e na prática dos professores. Campinas, SP: Papirus, 2004, p. 55-67. ARROYO, M. G. Indagações sobre Currículo: Direitos e o Currículo. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2007, 52p. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3. ed. 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Meninos do Futuro ESTÁGIO: intermediário DATA: 18/11/2012 LOCAL: Centro Socioeducativo de Cuiabá / POMERI Pesquisadora: Boa tarde. Tudo bem com você? Sócrates: Tudo bem... Até agora. Pesquisadora: Então, Sócrates, vamos começar? Sócrates: Vamos... Ué. Pesquisadora: Há quanto tempo você cumpre medida socioeducativa no POMERI? Sócrates: Tem oito meses... Só tristeza. Pesquisadora: Conte-me um pouco sobre a sua trajetória de vida antes de você ter que cumprir medida socioeducativa. Sócrates: Eu estudava no CPA IV, no Panarotto, trabalha no Supermercado do Prata lá no CPA IV, aí conheci uma gurizada no Três Barras, aí comecei a assaltar, pegar celular, pegar moto, entrava na casa das pessoas junto com a gurizada com arma, apavorava geral... Já fiquei no Provisório uns dias, já fiquei na Ala Velha uns seis meses o ano passado. Pesquisadora: Conte-me como é a sua rotina diária no POMERI. Sócrates: A gente acorda, vai pra escola, às vezes não tem aula... Aí a gente fica na tranca, à tarde tem bola na quadra, tem piscina, as técnicas às vezes manda chamar a gente e também eu vou na aula de música, lá eu toco pandeiro. 151 Pesquisadora: Conte-me um pouco sobre sua família. Sócrates: Eu moro com minha velha, que é minha avó, minha tia e dois irmãos... Só. Pesquisadora: Antes de você ter que cumprir medida socioeducativa você estava estudando? Sócrates: Sim, lá no Panarotto. Pesquisadora: Atualmente você está frequentado as aulas? Sócrates: Vou sim. Pesquisadora: O que você mais gosta na Escola Estadual Meninos do Futuro? Sócrates: Tudo de bom, tipo projetos que os professores trazem, os professores ensinam bem... É isso: os professores, gosto deles. Pesquisadora: O que você menos gosta na Escola Estadual Meninos do Futuro? Sócrates: Ah... Não tem. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com os professores? Sócrates: Aqui na verdade os professores têm muito mais paciência para ensinar a gente, eles são legais, ficam contentes quando a gente aprende. O professor daqui é melhor, dá até vontade de assistir aula. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com os coordenadores? Sócrates: Gosto de todas elas. Gosto mais da Carla, ela é legal, atende a gente... Tá sempre indo lá na ala pra perguntar da gente. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com o(a) diretor(a) da escola? Sócrates: Normal, não falo muito com ele. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com os demais profissionais da escola (técnicos, apoio, merendeira)? 152 Sócrates: Tudo normal, as tias são gente boa... Leva lanche na mão, se a gente pede elas dão mais. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com os colegas? Sócrates: Aqui é lei da selva, uns são de boa, outros não dá pra ficar junto. Aqui eles separam os que embaçam (rixa). Pesquisadora: Em sua opinião, a Escola Estadual Meninos do Futuro colabora com a sua aprendizagem? Sócrates: Aqui escola tem um ensino diferente, o jeito dos professores ensinarem é outro. Sempre tem música, poesia e um jogo na aula, também sempre tem apresentações de trabalhos, teatro e dança para os alunos fazerem. Pesquisadora: A Escola Estadual Meninos do Futuro contribuirá para sua reinserção social? Sócrates: Claro que sim. Acho que aqui a escola é a única coisa boa, o resto não vou nem dizer, é só tristeza, é só a escola é que vai me ajudar a ter um futuro melhor lá fora. Pesquisadora: O que precisa mudar na Escola Estadual Meninos do Futuro, para que você pudesse obter sucesso nos estudos? Sócrates: Ter mais aulas, mais festas... Sei lá. Pesquisadora: E quanto ao POMERI, você faria mudanças nos procedimentos adotados com os adolescentes que cometeram atos infracionais? Quais? Sócrates: Tudo aqui é um verdadeiro inferno, só salva a escola e os professores. Tudo deveria mudar os agentes orientadores, só bate terror, o diretor também não tá nem aí pra nós. Pesquisador: Agradeço pela paciência e colaboração. Sócrates: Já acabou? Valeu. 153 NOME: Platão IDADE: 15 anos ESCOLA: E. E. Meninos do Futuro ESTÁGIO: intermediário DATA: 18/11/2012 LOCAL: Centro Socioeducativo de Cuiabá/POMERI Pesquisadora: Bom dia. Platão: Bom dia. Pesquisadora: Tudo bem com você? Platão: Mais ou menos, tô com um pouco de sono. Pesquisadora: Quer continuar? Platão: Pode continuar. Pesquisadora: Então, vamos para a primeira pergunta, ok? Platão: Ok. Pesquisadora: Há quanto tempo você cumpre medida socioeducativa no POMERI? Platão: Dois meses, mas fiquei um tempo lá provisório, acho que foi em agosto. Pesquisadora: Conte-me um pouco sobre a sua trajetória de vida antes de você ter que cumprir medida socioeducativa. Platão: Pra falar a verdade eu ficava mais na rua do que em casa, estava no crime embarquei no tráfico junto com meu tio que me prometeu uma moto zerada, aí os homens me enquadraram, caí aqui. Tudo por causa da pedra (crack, pasta-base) ... É, professora, ela deixa a gente de “cabeça fraca”. Pesquisadora: Conte-me como é a sua rotina diária no POMERI. 154 Platão: Aqui não tem muita coisa pra fazer, a gente acorda, vai pra escola, vai pra quadra, à tarde vou para a aula de música e às vezes natação, tem dia que a gente fica só na tranca batendo bigorna. Pesquisadora: Conte-me um pouco sobre sua família. Platão: Moro com meu pai e minha mãe, tenho três irmãs, lá em casa só tem eu de filho homem, uma irmã é casada e mora na casa ao lado, ela vem sempre com minha mãe aqui. Pesquisadora: Antes de você ter que cumprir medida socioeducativa você estava estudando? Platão: Não, parei. Pesquisadora: Atualmente você está frequentado as aulas? Platão: Sim. Pesquisadora: O que você mais gosta na Escola Estadual Meninos do Futuro? Platão: Aqui na Escola Meninos do Futuro a gente tem muitos ensinamentos, muita atividades diferenciadas como: computação, aulas de música, de vídeo, teatro, jogos e muitas outras coisas legais. Pesquisadora: O que você menos gosta na Escola Estadual Meninos do Futuro? Platão: Não tenho nada pra falar. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com os professores? Platão: Eles dão atenção pra gente, estão sempre dando conselho para a gurizada mudar de vida, pra gente, quando sair daqui, procurar estudar, trabalhar e largar a vida do crime. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com os coordenadores? Platão: Também elas são gente boa, tá sempre dando atenção e conselho. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com o(a) diretor(a) da escola? Platão: De boa. 155 Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com os demais profissionais da escola (técnicos, apoio, merendeira)? Platão: De boa também. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com os colegas? Platão: Tem gente boa e tem gente ruim... Lá no bloco a gente se dá bem. Pesquisadora: Em sua opinião, a Escola Estadual Meninos do Futuro colabora com a sua aprendizagem? Platão: Pra mim a escola é de boa, ela ajuda a gente a não ficar pensando besteira, a gente sente melhor, a gurizada divertem nas aulas, os professores conversa bastante com a gente, dá conselho, toca música gospel, aí a gente fica de boa, quando bate uma ideia também os professores ouvem a gente. Pesquisadora: A Escola Estadual Meninos do Futuro contribuirá para sua reinserção social? Platão: Sim. Aqui eu voltei a estudar, aprendi muitas coisas, quando eu sair daqui vou continuar estudando. Pesquisadora: O que precisa mudar na Escola Estadual Meninos do Futuro, para que você pudesse obter sucesso nos estudos? Platão: Acho que nada por enquanto. Pesquisadora: E quanto ao POMERI, você faria mudanças nos procedimentos adotados com os adolescentes que cometeram atos infracionais? Quais? Platão: Mudança geral. Pesquisador: Chegamos ao fim da entrevista, agradeço pela colaboração e paciência. Platão: Se precisar é só chamar. 156 NOME: Aristóteles IDADE: 17 anos ESCOLA: E. E. Profa. Dione Augusta Silva Souza 1º Ano do Ensino Médio DATA: 07/01/2013 LOCAL: CREAS Norte / Morada do Ouro Pesquisadora: Boa tarde. Aristóteles: Boa tarde. Pesquisadora: Como vai você? Aristóteles: Vou indo bem e você? Pesquisadora: Estou bem. Podemos começar a entrevista? Aristóteles: Vamos nessa... Pode começar. Pesquisadora: Quanto tempo você cumpriu medida socioeducativa no POMERI? Aristóteles: A primeira vez fiquei seis meses e a segunda fiquei oito meses. Pesquisadora: Conte-me um pouco sobre a sua trajetória de vida antes de você ter que cumprir medida socioeducativa. Aristóteles: Eu me envolvi com uma turma dos manos... Aí comecei a fazer altos assaltos “15”... Sabe, né, à mão armada. Estava estudando na Escola André Avelino, eu não dava importância para os estudos. Hoje eu vejo que perdi dois anos da minha vida fora. Nessa época minha mina terminou comigo... Fiquei mal pra caramba, foi louco. Às vezes ajudava meu cunhado na oficina, era só um bico pra não ficar sem dinheiro. Pesquisadora: Como você socioeducativa no POMERI? se sentiu quando estava cumprindo medida 157 Aristóteles: No início eu fiquei assustado... Sentindo-me mal, bateu a real depois de alguns dias porque estava perdendo namorada e liberdade. A minha família estava sofrendo... Senti muita vergonha do meu padrasto e da minha mãe por ter saído no programa ‘Cadeia Neles’ e no jornal ‘A Gazeta’... Minha irmã viu na internet, ela também ficou com vergonha dos vizinhos. Depois eu fiquei bem, fiz amizade e frequentava a escola e os projetos. Pesquisadora: Conte-me um pouco sobre sua família. Aristóteles: Vivo com minha mãe, meu padrasto e tenho duas irmãs, mas só uma mora junto com a gente, a outra é casada e mora no bairro Dr. Fábio. Lá em casa somos todos evangélicos da Igreja da Internacional da Graça, minha mãe e meu padrasto são obreiros, tão sempre fazendo a obra de Deus. Agora eu voltei para a igreja, estava desviado no mundo só fazendo besteira. Pesquisadora: Atualmente você está frequentado a escola? Qual? Platão: Sim. E. E. Dione Augusta Silva Souza. Pesquisadora: Você frequentava a escola no POMERI? Platão: Sim. Pesquisadora: O que você mais gostava na Escola Estadual Meninos do Futuro? Aristóteles: A Escola Meninos do Futuro é melhor que a escola de fora, os professores me tratavam com respeito e educação, tipo ouvia a minha opinião, e as aulas eram diferentes, tinha sempre um projeto, atividade diferente para apresentar, pra falar a verdade os professores de lá me deram muita ajuda quando eu estava trancado. Pesquisadora: O que você menos gosta na Escola Estadual Meninos do Futuro? Aristóteles: Quando não tinha aula. Pesquisadora: Como era o seu relacionamento com os professores da E.E. Meninos do Futuro? 158 Aristóteles: Os professores da escola de lá falavam a mesma língua da gente, tratavam a gente com educação e respeito, a gente podia dar opinião que eles aceitavam, tinham muita paciência... É isso aí, eram de boa com a gente. Pesquisadora: Como é o seu relacionamento com os coordenadores da E.E. Meninos do Futuro? Aristóteles: Era de boa... Sempre me respeitou. Pesquisadora: Como era o seu relacionamento com o(a) diretor(a) da E.E. Meninos do Futuro? Aristóteles: Também de boa. Pesquisadora: Como era o seu relacionamento com os demais profissionais da E.E. Meninos do Futuro (técnicos, apoio, merendeira)? Aristóteles: Também de boa. Pesquisadora: Como era o seu relacionamento com os colegas? Aristóteles: Lá havia muita treta... Por isso eu já cheguei impondo respeito, todos eles me respeitava. Pesquisadora: Em sua opinião, a Escola Estadual Meninos do Futuro colaborou com a sua aprendizagem? Aristóteles: Com certeza. Os ensinamentos da Escola Meninos do Futuro eram diferentes. Lá eu participava de várias atividades, tipo percussão e pintura. As atividades eram bem legais, não tinha prova e as tarefas eram feitas só na sala. Pesquisadora: A Escola Estadual Meninos do Futuro contribuiu para sua reinserção social? Aristóteles: Acredito que sim. Voltei para a escola e a trabalhar; já vou até casar. Pesquisadora: O que precisa mudar na Escola Estadual Meninos do Futuro, para que os alunos pudessem obter sucesso nos estudos? Aristóteles: Não sei... Acho que ter mais aulas, às vezes lá ficava uma semana sem aula... Também os agentes mandava parar as aulas. 159 Pesquisadora: E quanto ao POMERI, você faria mudanças nos procedimentos adotados com os adolescentes que cometeram atos infracionais? Quais? Aristóteles: Lá é muito sujo, o pessoal é embaçado, por qualquer motivo a gente era punido. Acho que tinha que mudar os agentes. Pesquisador: Agora que você terminou de cumprir a medida socioeducativa, quais são os seus planos para o futuro? Aristóteles: Quero terminar os estudos, quero ter uma oficina mecânica e quero uma casinha para eu morar com a minha família. Pesquisador: Chegamos ao fim da entrevista. Muito obrigada! Aristóteles: Eu que agradeço... Deus te abençoe. 160 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM – MESTRADO TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO PARA ENTREVISTA Eu_______________________________________________,RG,_______________autorizo a pesquisadora Kátia Aparecida da Silva Nunes Miranda, mestranda em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), cuja pesquisa é denominada “ Adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social: um estudo crítico das representações de atores sociais”, sob orientação da professora Dra Solange Maria de Barros, a utilizar as informações obtidas na entrevista, obedecendo aos critérios da ética de pesquisa, onde está assegurado o total anonimato. Declaro-me ciente e concordo com acima exposto. _______________________________________ Assinatura do Participante/RG _____/______/______ Data