Finito e Infinito Ricardo Kubrusly Criação Há muitos e muitos anos, no desconhecido dos primeiros sustos, nada havia. Nada além de uma linda mulher-pássaro, sentada num sofá azul que, observando o nascer dos movimentos, nos conta agora essa história. Antes do Big-Bang é claro, e além da última freqüência renitente, descrente da matéria da energia, sem transcendência, ela sorri enigmática suas verdades matemáticas. Finito é claro, ela me conta, esse universo hoje, filho da explosão primordial, que ora vigora entre os mais doutos modeladores do que realmente existe, do que resiste às desistências diversas da mente humana. Ou infinito, ela acrescenta, como já fora e é, ao longo das discussões santas e diabólicas da ciência que desiste nas múltiplas existências que não resistem, nas equações diversas que insiste em elaborar a mesma mente humana. Mas deve haver, insisto, uma verdade sobre esta questão, uma única verdade capaz de determinar para sempre tamanho e duração dos infinitos. Ela torna a sorrir, afaga meus cabelos cansados e sussurra: ou não? Razão Há muitos e muitos anos, quando os animais ainda falavam com voz humana, antes dos deuses, homens, bicicletas, descansava, pendurado em uma árvore frondosa de um solitário verde entre desertos, um jovem macaco, feliz pelo encontro que acabara de ter com sua macaca interrogativa e pela presença abundante de frutas de todas as cores que o saciavam pleno de ócio e curiosidades. Ali, no alto da árvore protetora, não havia, predadores ou medo, e sem razões prementes de ataque ou fome ou fuga, pôs-se a observar a natureza que, sob sua cabeça pendida, jazia como uma fotografia em movimento. Agora, ali, desgovernado, era e não era parte do tudo que em sua volta, lentamente, movia o ciclo da vida. Nesse instante, talvez o primeiro instante, por desatenção ou desequilíbrio ele cai: como um corpo morto, cai. O susto é grande, principalmente agora que presenciara tantas mudanças na natureza que nunca se dera conta. Lá está ele, jogado a um chão que se transforma, e em sua volta, nascimentos, mortes, brincadeiras, mortes e mortes se equilibrando no vai e vem dos acontecimentos. Levanta-se, já não é o mesmo, a morte impregnou seu pensamento, está de pé, seu rabo ainda balança a árvore perdida, ajeita os óculos, procura abrigo e se pergunta: o que fazer com isso? A angústia de se saber finito é a diferença. Como lidar com essa morte corporificada, que agora existe e resiste em plena vida? Como driblar a inexorabilidade do seu destino recém descoberto? Como existir, apenas como passagem? Como lidar com o que se acaba, quando o que se acaba somos nós? E se perguntava enquanto atônito olhava as estrelas. E eram tantas... E ali, lá, ainda não havia a linda mulher azul e pássara a lhe sorrir as possibilidades. Completamente só e um pensamento: morrer, morrer então agora, por ver-se morto a qualquer hora ou inventar, definitivamente, o infinito. Invenção do homem em sua hora, do medo, da angústia de um Adão-Eva-Serpente estarrecido, o infinito é o pai do pensamento. A mãe, a morte. Não há acordo, há que driblá-la para enfim inventar pacientemente uma outra vida para além da morte. É a lógica que se estabelece vencedora, e se necessário deuses, deuses! ... E religiões e espíritos alados e trevas e luz, e mãos impressas nas paredes das cavernas, e arte e cosmos, real, simbólico e imaginário entrelaçados, alma e tempo, tempo, eternidade e movimento. A carne ressuscitada e a ciência se enamoram. É a busca da transcendência que marca o homem que pergunta e o que responde, o que ordena o caos e o que compreende os mistérios do universo. Não há acordo, há que explicar o tudo e o nada, há que inventar os olhos e o destino e dividir a matéria e torturá-la até que ela confesse seus números. Sem opções, o homem é a parte e o todo. Cria um universo exterior a seus próprios pensamentos para poder ordená-lo, e mentes em volta de si para poder compreendê-lo. Hoje somos os deuses que adorávamos, às portas do paraíso, à véspera do entendimento absoluto temos a eternidade em nossas mãos. Está imóvel, parece uma pequena bola de vidro brilhante que nos ofusca. Fixamos bem o olhar em busca de uma melhor compreensão, e lá está ela, por trás dos reflexos e do brilho, a mulher-pássaro, ainda sentada no mesmo e velho sofá azul, sorrindo suas verdades matemáticas. O Tamanho do Infinito Infinitos são os números que conto e os pontos em uma porção de espaço que imagino, mas são diferentes, em tamanho e quantidade. A história da matemática é a história do homem organizando e classificando os infinitos. Muito se aprendeu nessa caminhada: que há tantos números inteiros quanto números pares ou, mesmo, múltiplos de 37; que a quantidade de pontos geométricos em uma porção ínfima de espaço é a mesma do que em todos os universos concebíveis, mesmo que infinitos e com múltiplas dimensões. Aprendemos também, que este infinito é de fato bem maior do que os dos números...Muito ainda se vai aprender. A matemática, com seus infinitos organizados é essencialmente inútil e bela, como um quadro na parede ou um quinteto de Schumann, é a lógica a serviço do puro maravilhamento humano, e é essa inutilidade lógica que a faz tão decisiva na aventura humana. O que difere a matemática dos outros conhecimentos da inteligência é que, se por um lado ela se baseia em uma lógica bivalente assemelhando-se a uma ciência clássica e distanciando-se das filosofias e das artes, por outro ela se auto-observa e não modela a natureza nem busca explicações para um universo exterior a mente, como fazem as ciências, distanciando-se assim destas para se aproximar daquelas. Esta independência dá a matemática um duplo papel: o de consciência das inteligências e o de inteligência da consciência. Suas principais questões são sempre as geradas por sua eterna auto-observação. É na primeira pessoa, como nas artes e na filosofia, que se estabelece a criação matemática, mas, seu processo criativo se dá por meio de uma organização lógica axiomática onde as verdades são conseqüências diretas das possibilidades arbitrárias dos seus postulados e da sua estrutura científica. Tão distante e tão perto das outras maneiras do pensamento, a matemática nos surpreende a cada reflexão. Por que é que ela dá tão certo, acompanhando as ciências da natureza com suas fórmulas seus algoritmos, seu raciocínio? Como ela é capaz de entender o infinito, tão além da intuição do homem? Que universos criou pra si, ao conceber-se, que a possibilita ter um olhar para o infinito que navega, com igual desenvoltura, da dinâmica das transcendências ao imobilismo científico das eternidades? Finito ou infinito, nos perguntamos admirados diante do universo? Qual universo o verdadeiro, diante de infinitas possibilidades que fabrico, nos responde paciente a matemática. Contínuos? Descontínuos? Limitados? Ilimitados? Ordenados? Orientados ou não orientados? Imaginários, multidimensionais, complexos? Atemporais? Estáticos? Do Isso ao osso, as perguntas nunca se esgotam. De onde virão tantas verdades-possibilidades, se não do homem, sua hora e sua busca do infinito? Ricardo Kubrusly é poeta e matemático. Professor do Instituto de Matemática da UFRJ é autor de Acordanoite (poesia) e Nó de Luz (contos), entre outros. Algumas de suas digressões matemáticofilosóficas podem ser vistas em: www.dmm.im.ufrj.br/~risk.