Relato de Caso Relato de Um Caso de Insuficiência Renal Aguda em Malária Causada Por Plasmodium Vivax RESUMO Historicamente no Amazonas a insuficiência renal aguda (IRA) por malária ocorria exclusivamente na Malária Falciparum; entretanto, recentemente têm sido reportados casos de IRA por Malária Vivax. Descrevemos um caso de paciente de 51 anos admitida com história de febre há três semanas e IRA, permanecendo em hemodiálise por duas semanas. No 5º dia de internação foi diagnosticada Malária por Plasmodium Vivax, tratada com cloroquina e primaquina, com negativação da parasitemia e recuperação da função renal. No 17º dia de internação foi realizada biópsia renal que evidenciou necrose tubular aguda. Concluímos que Malária Vivax é uma causa emergente de IRA no Amazonas. (J Bras Nefrol 2005;27(2):93-96) Rolando Vermehren 1 Antonio Duarte Cardoso 1 Wilson Bulbol 1 Marcelo Franco 2 Kalil Coelho 1 Fabrício Lorenzi 1 Vyrna Nunes 1 Julia Gonçalves 1 Descritores: Insuficiência renal aguda. Malária Vivax. ABSTRACT Case report: Aceute Renal Failure in Malaria caused by Plasmodium Vivax Acute renal failure to malaria in Amazonas historically occurs as a complication of malaria falciparum. However, recently have been reported some cases with Malaria Vivax. In this paper, we describe a case: a 51-year-old patient with a 3week fever and acute renal failure that was treated by hemodialysis during 2 weeks. On the 5 th day at the hospital it was diagnosed malaria by Plasmodium Vivax and treated with chloroquine and primaquine, obtaining cure. On the 17th day, renal biopsy showed acute tubular necrosis. Renal function was totally recovered. Actually, we believe that Malaria Vivax is an emergent cause of acute renal failure in Amazonas. (J Bras Nefrol 2005;27(2):93-96) 1 Hospital Universitário Getúlio Vargas da Universidade Federal do Amazonas; 2 Departamento de Patologia do Hospital São Paulo UNIFESP/EPM. Keywords: Acute renal failure. Malaria Vivax. INTRODUÇÃO A malária permanece sendo um dos maiores problemas de saúde pública no mundo. No Brasil, a doença ocorre de forma endêmica na região Amazônica, sendo responsável por mais de 99% das malárias que ocorrem no Brasil16. A alteração renal na malária mais conhecida e relatada é a IRA por Plasmodium falciparum que acomete 1,6 a 3,9% dos pacientes internados.17 Além da IRA, a Malária Falciparum provoca também outros comprometimentos sistêmicos graves, principalmente cerebrais, hematológicos e hepáticos, com elevada mortalidade. Recentemente têm sido reportados casos de insuficiência renal aguda associada ao Plasmodium Vivax1-4. O presente trabalho relata um caso de Insuficiência Renal Aguda por Plasmodium Vivax. Recebido em 16/08/2004 Aprovado em 23/05/2005 Insuficiência Renal Aguda em Malária Vivax 94 DESCRIÇÃO DO CASO Paciente M.F.R do sexo feminino, 51 anos, natural e procedente de Manacapuru, Amazonas, admitida com história de febre há 3 semanas associada a fraqueza muscular, cefaléia, náuseas, vômitos e anúria. Procurou auxílio médico no posto de saúde, sendo encaminhada para Manaus ao Serviço de Nefrologia do Hospital Universitário Getúlio Vargas para investigação diagnóstica. Nega antecedentes patológicos ou uso de medicações crônicas. Fez uso apenas de paracetamol 500mg S/N. Ao exame físico em regular estado geral, orientada, eupineica, acianótica, desidratada +/4+, descorada ++/4+, anictérica, temperatura axilar de 39oC, PA de 160 x 90mmHg, orofaringe normal, ritmo cardíaco regular em dois tempos, bulhas normofonéticas, sem sopros, ausculta pulmonar com murmúrio vesicular presente, sem ruídos adventícios, abdômen plano, ruídos hidroaéreos presentes, flácido, indolor, sem visceromegalias, edema discreto dos membros inferiores, pulsos palpáveis e simétricos. Exames laboratoriais: Hb: 7,8g/dl; Ht 25,0%; leucócitos: 3700mm3 (59% de neutrófilos, 0% de bastões, 26% de linfócitos, 2% de eosinófilos, 12% de monócitos); plaquetas: 256.000mm3; reticulócitos: 1,9%; uréia: 331mg/dl; creatinina 7,6mg/dl; TGO: 31UI/L; TGP: 10UI/L; DHL: 592UI/ml; CPK: 35UI/L; bilirrubina total: 1,7mg/dl; bilirrubina direta: 1,01mg/dl; bilirrubina indireta: 0,7mg/dl; TAP: 100%; colesterol total: 232mg/dL; cálcio: 9,1mg/dl; fósforo: 4,1mg/dl; potássio: 4,7mE/l; sódio: 124mEq/l; FAN não reativo; Anti-DNA dupla hélice: não reativo; C3 103,9mg/dl; C4 30,5mg/dl; Coombs direto: negativo; Coombs indireto: negativo; Anti-HIV: negativo; Anti-HCV: negativo; HbsAg: negativo; albumina: 3,1g/dl; ASLO: não reativo; exame de urina pH: 6,0; Figura 1. densidade: 1010; hemoglobina: negativa; leucócitos: 10 por campo; eritrócitos ausentes; proteinúria de 24 horas: 0,5g. Raios-X de tórax: parênquima pulmonar sem alterações. USG Renal: rins tópicos, direito= 11,2cm, esquerdo= 11,8cm, relação córtico-medular preservada, discreto aumento da ecogenicidade do parênquima bilateralmente. A paciente realizou 6 sessões de hemodiálise por duas semanas. No 5º dia de internação foi diagnosticada malária por Plasmodium Vivax através de gota espessa 2+ (2 a 20 parasitas por campo à MO 100X), sendo tratada com cloroquina (300mg no 1º dia e 225mg por mais 2 dias) e primaquina (30mg/dia por 7 dias) com negativação da parasitemia e recuperação da função renal. No 9º dia da internação a paciente apresentou diurese, no 17º dia foi realizada biópsia renal percutânea, que evidenciou necrose tubular aguda (figuras 1 e 2) e no 20º dia teve alta hospitalar com creatinina de 1,0mg/dl. DISCUSSÃO Ahmad e cols.7 reportaram 39 casos de crianças com Malária Vivax, onde foi medido o clearance de creatinina endógena (CCE) antes do tratamento da malária, treze crianças (30%) apresentaram CCE< 65ml/min, todas as crianças recuperaram a função renal após o tratamento. Prakash e cols.1 publicaram 577 casos de IRA de diferentes etiologias, nos quais 93 pacientes (16%) a IRA foi causada por malária e destes, 13 (13,9%) por Malária Vivax. Os pacientes com IRA devido à Malária Vivax corresponderam a 2,2% (13/577) do total de casos da IRA. A apresentação clínica dos pacientes com IRA por Plasmo - Figura 2. J Bras Nefrol Volume XXVII - nº 2 - Junho de 2005 dium Vivax foi: febre, encefalopatia, hipotensão, icterícia e hemólise intravascular em 100%, 57,9%, 42%,36% e 42% dos casos respectivamente. A causa da Insuficiência Renal foi de origem isquêmica e vários fatores estavam associados, como parasitemia maciça (57,9%), hipotensão (31,5%), hiperbilirrubinemia (36,8%), hemólise intravascular (42%), CIVD (21%), depleção de volume (42%), sepsis (26,3%). As manifestações renais foram: oligoanúria (47,3%), complicações urêmicas (63%), hiponatremia (15,8%), hipercalemia (10,5%), anormalidades do sedimento urinário (26,3%) e proteinúria < 1g/dia 15,8%. Todas as anormalidades urinárias resolveram completamente com o tratamento da malária em 3 a 4 semanas. Necessitaram de diálise 68,4% dos casos e faleceram 15,7% dos pacientes. No Amazonas, em um período de 10 anos (1977 a 1986) foram internados no Instituto de Medicina Tropical de Manaus 3.074 pacientes com malária por Plasmodium falciparum e, destes, 121 (3,9%) desenvolveram insuficiência renal aguda, não sendo registrado nenhum caso de IRA por Malária Vivax 6, entretanto, nos últimos anos nos deparamos com um número crescente de casos de Malária Vivax de apresentação grave com IRA. Em nosso meio Bulbol e col.5 relataram 10 casos de IRA em malária causada por Plasmodium Vivax, onde icterícia esteve presente em seis pacientes, oligúria em sete, sendo que todos os setes necessitaram de diálise e um paciente foi a óbito. No presente caso, a causa da IRA anúrica deve-se provavelmente ao Plasmodium Vivax, que nos últimos anos teve uma nítida mudança no seu perfil, apresentando uma maior virulência, fato preocupante, já que no ano de 2003 foram notificados 64.856 casos de Malária Vivax no município de Manaus. O início tardio do tratamento, associado a uma maior patogenicidade do Plasmodium Vivax, hemólise, hiperbilirrubinemia e hipovolemia provavelmente contribuíram na gênese da IRA nesta paciente. Não podemos implicar como etiologia da IRA as drogas antimaláricas, pois a paciente não fazia uso. Os mecanismos de lesão renal na malária são múltiplos. Hemácias parasitadas tendem a se aderir ao endotélio capilar, resultando em microembolização capilar desencadeando um distúrbio na microcirculação dos órgãos internos, coagulação intravascular disseminada8, transbordamento capilar 9, e aumento da viscosidade sangüínea, contribuindo para isquemia renal e IRA10-12, associado ainda a hemólise, hiperbilirrubinemia, hipovolemia e ativação endotelial com a liberação de várias citoquinas vasoativas com diminuição da resistência vascular sistêmica, redução do fluxo sangüíneo renal e isquemia renal12. Rabdomiólise causando IRA tem sido relatado associado à Malária Vivax em pacientes com deficiência da myoadenylato deaminase13. Anátomo-patologicamen- 95 te apresenta-se com necrose tubular, com cilindros de hemoglobina no interior dos túbulos renais14. Conclui-se que a Malária Vivax, conhecida também como febre terçã benigna, que se associava a infecções benignas, parece não ser tão benigna assim, podendo apresentar-se com formas graves de infecção, sendo uma causa emergente de IRA no Amazonas. REFERÊNCIAS 1. Prakash J, Singh AK, Kumar NS, Saxena RK. Acute renal failure in Plasmodium Vivax malaria. Japi 2003;51. 2. Mehta KS, Halankar AR, Makwana PD, Torane PP, Satija PS, Shah VB. Severe acute renal failure in malaria. J Postgrad Med 2001;47:24-6. 3. Naqui R, Ahmad J, Akhtar F, Naqui A, Adib RZV. Outcome in severe acute renal failure associated with malaria. Nephrol Dial Transplant 2003;18:1820-3. 4. Perren A, Beretta F, Schubarth P. Ards in Plasmodium Vivax Malária. 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Endereço para correspondência: Rolando Vermehren Av. Castelo Branco, 1709 69065-011 Manaus, AM Fone: (92) 663-5651.