U Utopia Antonio David Cattani 1. Utopia significa desejo de alteridade, convite à transformação que constrói o novo, a busca da emancipação social, a conquista da liberdade. Utopia não se resume a um conceito ou quadro teórico, mas a uma constelação de sentidos e projetos. A verdadeira utopia constitui-se na visão crítica do presente e de seus limites e na proposta para transformá-lo positivamente. 2. Etimologicamente, utopia é um neologismo criado pelo estadista e filósofo inglês Thomas Morus (1477-1535) para intitular sua obra maior publicada na Holanda, em 1516. O termo foi forjado a partir de duas palavras gregas (ou, do advérbio de negação, e topos, lugar). Utopia seria um “não-lugar”, um lugar que não existe ou, simplesmente, um lugar imaginário. Em sua obra, Morus refere-se a um lugar ideal que abriga uma sociedade igualitária, justa e feliz, ou seja, um “bom lugar”. Essa acepção positiva do termo vigorou durante dois séculos, afirmando a possibilidade de aperfeiçoamento do ser humano e de suas realizações. A partir de meados do século XVII, o vocábulo adquiriu um sentido depreciativo, que permaneceu até o século XXI. Segundo o dicionário Michaelis, utopia “é o que está fora da realidade, que nunca foi realizado no passado e nem poderá vir a sê-lo no futuro. Plano ou sonho irrealizável”. Nesse sentido, o termo é usado correntemente para se desacreditarem e condenarem projetos de superação da realidade. Recentemente, registra-se sua utilização em um sentido libertário, como crítica do presente e consciência antecipatória de um futuro outro. O presente verbete será desenvolvido tomando-se utopia no sentido de exploração de virtualidades, de revolta e ruptura e, sobretudo, de superação dos limites sociais e econômicos impostos. 3. O termo utopia encontra seu lugar também enquanto gênero literário. A obra de T. Morus retomou a preocupação da filosofia grega clássica quanto aos modelos de Estado ideal, preocupação essa notadamente aprofundada em A República de Platão. Morus inaugurou o ciclo moderno de textos de ficção, entre os quais se destacam A cidade do Sol (1602), de T. Campanella, e A Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon. Essas obras têm como característica principal colocar a possibilidade de organização diferenciada do poder político e das relações sociais num momento em que o Absolutismo monárquico vigorava inconteste e em que as relações sociais permaneciam rigidamente estratificadas. Com a expansão do capitalismo ocorrida ao final do século XVIII e ao longo do século XIX, registrou-se uma segunda leva U de textos propondo modelos fechados de sociedades planificadas e harmônicas. Em face da violência e anarquia do crescimento capitalista, especialmente na França, Itália, Inglaterra e Alemanha, diversos autores propuseram versões romanceadas ou obsessivamente técnicas de cidades utópicas nas quais a paz e o equilíbrio societário permitiriam surgir uma nova espécie de indivíduos. O pensamento utópico apresentava-se, claramente, como denúncia das injustiças, privilégios e múltiplas faces do poder. Em 1838, Wilhelm Weitling (18081871), considerado o fundador do comunismo alemão, lançou, com grande repercussão, o manifesto da Liga dos Justos, intitulado A humanidade como ela é e como deveria ser, seguido, em 1842, de Garantias de harmonia e liberdade. O autor inaugurou, assim, as reflexões que fomentavam experiências concretas. Weitling fundou mais tarde, nos Estados Unidos, a colônia autogestionária Comúnia. Outro autor que exerceu grande influência sobre as experimentações sociais alternativas foi Charles Fourier (17711837). Em O novo mundo industrial e societário (1829), Fourier aliava uma concepção cosmogônica a determinações precisas sobre a construção da sociedade ideal. Harmonia seria uma cidade modelo de progresso industrial, versão terrestre do paraíso, onde as pulsões e paixões humanas estariam ordenadas racional e prazerosamente. Harmonia seria materializada nos falanstérios (de falange, formação de combate ou grupo estreitamente unido, composto por l.800 membros). Fourier detalhou as condições da produção material (cooperativas de produção e consumo) e da vida cultural, social e amorosa, a arquitetura e o urbanismo dos falanstérios, que deveriam ser construídos em espaços virgens, longe das mazelas urbanas já provocadas pelo capitalismo emergente. Mais para o final do século XIX, foram publicadas centenas de obras que podem ser classificadas como literatura de antecipação. Destacam-se, notadamente, os textos dos ingleses William Morris (18341896), autor de News from Nowhere, e Edward Bellamy (1850-1898), autor de Looking Backward 2000-1887. Trata-se de exercícios de imaginação buscando perscrutar possibilidades técnicas, tecnológicas e societárias positivas para a humanidade. Após a Primeira Guerra Mundial, a utopia como gênero literário específico extinguiu-se, sendo substituída por obras de ficção científica, romances de futurologia ou propostas visionárias, os quais em nada se aproximavam da complexidade e profundez registradas nos textos dos dois séculos precedentes. Nas obras clássicas da literatura utópica, a referência a situa­ ções imaginárias, a condições irreais e a processos visionários era acompanhada pelo debate sobre a justiça, o bem comum e o sentido e destino da vida em sociedade. Compartilhavam a crítica à civilização, aos valores e às práticas dominantes, desafiando o leitor a pensar diferente e a desejar diferente. O valor dessas obras reside em não se limitarem à dimensão literária, remetendo à história das idéias e aos exercícios intelectuais que recusam a resignação. Seus limites encontram-se em seu espírito por vezes panfletário, doutrinário ou mesmo totalitário; as formulações são, de modo geral, desvinculadas dos movimentos sociais concretos, estes sim, impulsionadores de reais transformações. 329 U 330 4. É possível relacionar-se razão utópica e correntes de pensamento que impulsionaram múltiplas transformações práticas e teóricas as quais fizeram avançar a civilização. O elo entre, de um lado, a razão utópica e, de outro, o espírito iluminista e a filosofia da práxis pode ser estabelecido na medida em que essas correntes compartilham os seguintes princípios: o ser humano pode (condicional) ser livre e desenvolver toda espécie de atividade criativa e auto-criativa; pode (novamente condicional) vir a ter consciência de si e da sociedade; essa consciência pode vir a ser ampliada mediante a ação prática-crítica, superando, dessa forma, a alienação e opressão, a permanência e a pseudoimutabilidade das coisas e das relações. O processo civilizador é entendido como o progresso da liberdade e da consciência dessa liberdade. A liberdade e a autonomia (conforme o sentido kantiano, não de agir conforme a lei, mas de definir a própria lei) não se limitam às esferas individual ou da subjetividade, mas remetem, sempre, ao coletivo, à emancipação social ampla que garante o bem comum e a vida em sociedade. Para estabelecer melhor a conexão entre razão utópica e o pensamento não-conformista, progressista e libertário, é preciso fazer-se um paralelo entre as antiutopias, distopias e as utopias de ruptura, de superação e de criação. O inverso da utopia manifesta-se de múltiplas formas. Na literatura, ela se apresenta como distopia, a exemplo das obras 1984, de Georges Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Na filosofia, autores como Schopenhauer, Nietzsche e Cioran escreveram obras antiutópicas. Na análise histórica, a antiutopia revela-se em Oswald Spengler e, na análise política, exprime-se na teoria das elites, conforme se verifica em Vilfredo Pareto e Gaetano Mosca. Em sua dimensão mais profunda, aquela que alia dominação ideológica a senso comum, a antiutopia expressa-se na compreensão do mundo e da vida de acordo com perspectivas fatalistas e resignadas. O entendimento de que a essência humana e as realizações sociais são imutáveis (o eterno retorno a uma ordem eterna), de que a vida política resume-se à sucessão dos poderosos e de que as hierarquias sociais e as injustiças daí resultantes são naturais, portanto, necessárias, pode ser classificado como a forma mais nefasta do pensamento antiutópico. Permanência, imutabilidade, repetição e impotência designam percepções sobre a realidade que legitimam a dominação, que configuram a “servidão voluntária”. O liberalismo, mais precisamente em sua versão econômica recente, é um exemplo complexo dessa visão de curto prazo e de curtíssimo alcance: a vida fragmentada e medíocre é o horizonte possível da realização humana. O fetichismo da mercadoria e a sacralização do mercado auto-regulável definem a rotina narcísea do consumo e do individualismo abúlico. Conjugados ao pensamento pós-moderno, liberalismo e neoliberalismo propõem que a situação do século XXI esteja definitiva e que não haja mais transcendência. A realidade é naturalizada e apresentada como horizonte intransponível para indivíduos e instituições. Ela pode ser contemplada, fruída, mas não mudada. O espírito das luzes, a Aufklaerung, a sociabilidade associativa inspirada em Babeuf, o socialismo utópico, o anarquismo e a filosofia da práxis estão na contracorrente das antiutopias. O desafio U iluminista sapere aude (ouse conhecer) desdobra-se, imediatamente, em ouse imaginar o diferente, ouse mudar, ouse criar. As categorias do entendimento (dialética, práxis, contradição, contingência, consciência, ação) e os processos (poder, conflito, luta de classes, movimentos sociais, criação histórica) não são meramente contemplativos. A razão utópica está associada à ação, ao questionamento do fato e do dado. A compreensão não é suficiente; é necessária a realização do desejo. O resultado dos movimentos libertários e autonomistas tem sentidos específicos. Todo movimento da ação crítica/ação prática é animado por valores verdadeiramente civilizadores: pacifismo, cosmopolitismo que preserva as identidades locais (ou seja, a sociedade das nações) e, sobretudo, a sociedade democrática, igualitária, justa e fraterna. A referência ao processo civilizador é necessária para se distinguirem os autênticos avanços sociais e humanos de mudanças inespecíficas. “Civilização é um ato de justiça”, afirmava o revolucionário e constituinte Mirabeau durante a Revolução Francesa. Civilizado é o “cidadão do mundo”. A derivação de civilis “expressa o processo social de criação, de afirmação humana superior ao destino e ao tempo cíclico. Civilização é a negação da violência, das tutelas paternalistas ou messiânicas, dos paternalismos aristocráticos ou caudilhescos, dos racismos, dos preconceitos e dos privilégios que compõem o submundo dos particularismos excludentes. Civilização é: a) a universalização dos procedimentos e de certos direitos, sem que isso signifique nivelamento ou imposição tirânica; b) o alargamento substancial da política através da participação consciente e o consequente aumento de responsabilidades; c) a sociedade internacional que associa cosmopolitismo e identidades e culturas locais; d) a possibilidade de realização, de emancipação individual sem que isso signifique o comportamento auto-suficiente e predatório. Enfim, civilização é o respeito ao outro, o respeito fraterno à sua liberdade e diferença” (Cattani, 1991, p. 20, 21). Ficam, assim, excluídos os processos erroneamente identificados como utópicos, como o faz Armand Mattelart (2002) em História da utopia planetária. As tecno-utopias, as expansões imperiais, as revoluções gerenciais do tipo fordista-taylorista e a sociedade informacional promovem mudanças, mas não constituem, necessariamente, avanços civilizadores. Destes ficam, sobretudo, excluídos os projetos e processos de mudança de cunho totalitário, dogmático e elitista, bem como o liberalismo regressivo. A verdadeira utopia, antecipação criativa que conjuga “a corrente fria do conhecimento científico com a corrente quente da esperança” (Bloch, 1972), não alimenta concepções nem projetos reformistas, paliativos e anestésicos para os mecanismos reprodutores da desigualdade e da injustiça. A utopia civilizadora não se resigna a olhar a realidade social. Ao propor que o mundo seja novamente fundado, rompe com as teorias do direito natural (incluindo-se o direito à apropriação privada da produção social), transformando-se em processo de conquista do lugar e do tempo. 5. Pode-se afirmar haver uma lenta e parcial concretização da utopia, da liberdade criadora do gênero humano, embora não se trate de processo inexorável. O avanço 331 U 332 da civilização jamais foi linear, sendo marcado por estagnações e, por vezes, tristes recuos. O verdadeiro progresso não constitui um processo pacífico, pois ele é assinalado pela dinâmica social definida pela dialética dos conflitos e do poder. Civilização, tal como conceituada anteriormente, não se apresenta como imanência, mas como possibilidade ou virtualidade. Entre os exemplos localizados de aspiração utópica, podem-se citar a utopia missioneira dos 30 povos das Missões (Kern, 1994), a Comuna de Paris de 1871, as comunidades libertárias que proliferaram no século XIX, nos Estados Unidos e na Europa Continental, experiências pontuais ocorridas na América Latina (no Paraná, Brasil, a Colônia Cecília, entre 1888 e 1889), os efêmeros falanstérios inspirados na obra de Fourier, os sovietes russos (1905-1917), os conselhos operários de Turin (1919-1920), as formas da auto-organização proletária durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e os primeiros tempos dos kibutz em Israel. Mais recentemente, ocorreram experiências sociais que reavivaram o espírito cooperativista do pioneiro Robert Owen. Em todos esses casos, é mais apropriado falarse em aspirações utópicas, pois, mesmo que alguns exemplos tenham sobrevivido por décadas, trata-se de materializações parciais e vulneráveis, política e geograficamente circunscritas. Essa avaliação em nada desmerece o que foi realizado, inclusive porque, em vários casos, tratou-se de um fracasso imposto do exterior mediante violência inaudita, a exemplo da Comuna de Paris e da autogestão espanhola. Pode-se falar mais propriamente de concretização da utopia em uma esfera mais genérica e não menos importante. A liberdade criadora que visa à emancipação social vem se manifestando na luta contra os dogmatismos, messianismos e determinismos estruturais, contra a subserviência e a violência, enfim, contra o domínio das minorias reacionárias ou tutelares. Entre as mais importantes realizações incorporadas à vida social que, no seu início, eram consideradas utópicas, destaca-se a luta contra o trabalho escravo e o emprego legal da tortura. Movimentos sociais ao longo de décadas conquistaram a redução dos privilégios hereditários, o sufrágio universal e uma gama ampliada de direitos humanos associados a uma ética universalizadora. O movimento operário conquistou, para milhões de trabalhadores, direitos que deram consistência à versão inclusiva do Welfare State. Mais recentemente, o combate ao racismo e ao trabalho infantil e as reivindicações pelo direito à infância, à educação e ao lazer, bem como pela liberdade de opção sexual e em defesa de minorias, entre outras, foram impondo um novo padrão de tolerância e liberdade. Enfim, a democracia representativa também foi uma conquista importante, sobretudo na medida em que ela se extravasa em democracia participativa. Todos esses casos constituem avanços rumo à superação da dominação elitista e dos privilégios detidos por minorias. Nas últimas duas décadas do século XX e no início do século XXI, registraram-se recuos significativos nesse embate. Concretamente, aumentou a concentração de renda e a manipulação da opinião pública pela mídia; o individualismo egoísta e predatório tenta relegar a socialização libertária ao esquecimento. Não obstante, esse refluxo é seguramente provisório, porquanto a razão utópica é atemporal e U o sonho de liberdade é permanente. Dois exemplos mais expressivos apontam para a recuperação do “princípio esperança”: a realização dos fóruns sociais mundiais em Porto Alegre, a partir de 2001, e as numerosas manifestações da economia solidária analisadas nesta obra. A superfície imediata dos fatos revela um mundo opressivo, que promove os ladinos e arrasta os demais para um caminho marcado pela apatia, subserviência e conformismo alienado. Sob essa face, permanece a vontade de superação, o desejo de viver em uma sociedade planetária cosmopolita e criativa, na qual liberdade e fraternidade sejam princípios maiores de construção da civilização. Permanentemente, ressurgem o espírito libertário e formas novas de mobilização social, demonstrando que um outro mundo é possível... Bibliografia Bloch, E. (1972), Le principe espérance, Paris: Gallimard. Cattani, A. D. (1991), A ação coletiva dos trabalhadores, Porto Alegre: S. M. Cultura; Palmarinca. ___. (2002), Autonomia. In: ____. (Org.), Dicionário crítico sobre trabalho e tecnologia, Porto Alegre; Petrópolis: Editora da Universidade; Vozes. Kern, A. (1994), Utopias e missões jesuíticas, Porto Alegre: Editora da Universidade. Mattelart, A. (2002), História da utopia planetária, Porto Alegre: Sulina. Riot-Sarcey, M.; Bouchet, T.; Picon, A. (Dir.) (2002), Dictionnaire des utopies, Paris: Larousse. Sousa, J. T. (1999), Reinvenções da utopia, São Paulo: Hacker Editores. 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