[Recensão a] WATTEL, Odile - As Religiões Grega e Romana Publicado por: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/28138 Accessed : 18-Jun-2017 22:05:16 A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. 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MARGARIDA MIRANDA WATTEL, Odile: As Religiões Grega e Romana (Trad. J. Espadeiro Martins), Colecção Saber, nº 244, Publicações Europa‑América, Mem Martins, 2003, 143 páginas, ilustrado. Aos numerosos contributos para a divulgação da Antiguidade Clássica, ini‑ ciados há muitos anos com a publicação do livro de Léon Bloch intitulado As Lutas Sociais na Roma Antiga, juntou recentemente a Colecção Saber um volume sobre o tema sempre fascinante e inesgotável da religião na Grécia e em Roma. Como todas as obras inseridas nesta colecção, trata‑se de um livro de reduzidas dimensões, no qual a autora procura oferecer uma síntese coerente das religiões grega e romana, tarefa difícil de conduzir a bom termo em cerca de uma centena e meia de páginas, mesmo para os melhores especialistas da matéria. A intenção pedagógica de Odile Wattel é evidente, quer na forma como a temática está orga‑ nizada, quer no sua exposição, o que reflecte as necessidades do público especí‑ fico para o qual a obra foi redigida em França, maioritariamente constituído por alunos universitários e candidatos ao professorado no Ensino Secundário. A apresentação é agradável, embora as ilustrações não possam considerar‑ ‑se de boa qualidade, circunstância que começa a tornar‑se vulgar, mesmo em publicações com outras pretensões e preço. A capa mostra dois pormenores de pinturas de tema clássico, à esquerda a Coroação de Homero, de Jean‑Dominique Ingres, e à direita, Primavera, do menos conhecido Lawrence Alma Tadema. O título original indica qual a ideia que a autora considera fundamental neste estudo, pois alude às religiões gregas e romanas, considerando um pluralismo que se perdeu na tradução portuguesa do título. Este aspecto é importante e vamos encontrá‑lo permanentemente subjacente na análise que se desenvolve ao longo da obra, pois se exclui o princípio de que houve uma religião grega e uma religião romana, mas sim várias. Esta hipótese de trabalho, defensável a partir de determinada perspectiva, parece‑me muito difícil de explicar numa obra desta dimensão, podendo levar a conclusões demasiado simplistas de alguma coisa tão complexa como é o fenómeno religioso em culturas não monoteístas. Pela mesma Humanitas 58 (2006) Recensões 571 razão, considerar que tudo se pode compreender admitindo um sistema dualista composto por cultos gregos e religiões romanas, que em determinada altura pas‑ sam a integrar parte daqueles, não facilita o caminho para o entendimento do problema, pois sugere, ainda que involuntariamente, que em Roma o culto é secundário. Vejamos como a autora organizou a obra. Após a Introdução (p.7‑9), segue‑ ‑se o capítulo sobre A religião na Grécia Antiga (p.11‑63), subdividido em Mito e religião (p.11‑18), Cronologia (p.22), A religião homérica (p.24‑33), A religião grega na Época Clássica (p.34‑45), Os cultos pan‑helénicos (p.46‑57) e A religião helenística (séculos III‑II) (p.58‑63). Segue‑se o capítulo sobre as religiões romanas (p.65‑131), subdividido em A religião romana (p.65‑72), Cronologia (p.73‑75), A religião arcaica (séculos VIII‑V) (p.77‑82), A religião no tempo da República (p.83‑91), A religião no Alto Império (séculos I‑II) (p.92‑103), As religiões do Império nos séculos II‑III (p.104‑112), O fim da religião romana nos séculos IV‑V (p.113‑118), As habitações dos deuses (p.119‑ 131). Como se vê, estamos perante uma ordenação muito clássica do ponto de vista cronológico, mas que, perante os enunciados defendidos por Odile Wattel, não deixa de resultar um tanto ou quanto prejudicada por contradições. O volume conta ainda com um útil Glossário (p.133‑140), terminando com uma Bibliografia (p.141‑143), onde não faltam os clássicos esperados numa obra deste tipo, mas que denota uma maior actualização no que se refere à religião grega. Ao longo dos capítulos encontram‑se pequenos questionários que ajudam o leitor a seleccionar os aspectos mais relevantes, ou assim considerados pela autora, da matéria que lhes é oferecida no texto. Algumas observações sobre as ilustrações. Na planta do santuário de Delfos (p.48), quase resumida ao templo de Apolo, faltam legendas explicativas; na planta de Roma com a localização dos santuários (p.76), a escala torna muito difícil a leitura, sobretudo na zona central da cidade; no mapa da expansão das religiões greco‑orientais no Império Romano (p.112), parece deduzir‑se que o culto gaditano de Hércules‑Melcarte resultou de um fenómeno difusionista de época imperial, o que não corresponde à realidade1; a planta do templo de Saturno, em Dougga, surge trocada pela do Capitólio, em Roma (p.122, 131); finalmente, creio que não teria sido difícil encontrar uma planta mais adequada do templo de Castor e Pólux, em Roma (p.120). Não quero deixar de comentar alguns aspectos da obra que, por se destinar a um público vasto, não especializado, podem suscitar algumas dúvidas ou con‑ fusões entre os leitores, tanto mais que a autora afirma, mais do que propõe, determinados postulados, nomeadamente o da distinção liminar entre cultos gregos e religiões romanas (p.7). Parece, desde logo, muito difícil aceitar a exis‑ ________________ A. García y Bellido, Hercules Gaditanus, “Archivo Español de Arqueo‑ logía”, XXXVI, 1963, p.70‑153; M. Oria Segura, Hércules en Hispania: Una aproximación, Barcelona, 1996. 1 Humanitas 58 (2006) Recensões 572 tência de um culto que não se dirija a uma entidade superior, subentendida, independentemente do sistema de valores que lhe possa estar associado, sejam eles morais ou simplesmente políticos, no sentido grego do termo. O facto da religião grega, no seu conjunto, não ser uma religião revelada, não impede a existência de uma essência espiritual que se manifesta exuberantemente ou de forma mais contida, através do culto. Outra afirmação de carácter geral a propósito das religiões grega e romana parece‑me altamente controversa. Escreveu Odile Wattel: Uma única certeza: o sistema religioso nada tinha a ver com a nossa forma de pensar, na medida em que a salva‑ ção individual era um conceito alheio ao mundo greco‑romano (p.7). Ora, se é verdade que a nossa maneira de pensar (deve subentender‑se ocidental, judaico‑cristã) é diferente, também não é possível ignorar o fervor que os cultos mistéricos des‑ pertaram no mundo greco‑romano. Com efeito, estes cultos eram muito numero‑ sos e largamente centrados numa ideia que, sem incluir conceitos estritos de salvação pessoal, valorizando a bem‑aventurança, não lhe era totalmente alheia. É certo que se pode argumentar não serem característicos das religiões clássicas, centradas no legalismo, mas se assim fizermos estaremos a restringir o acto reli‑ gioso ao âmbito do formalismo oficial e da religião da comunidade, expressa através do ritual. O misticismo reflecte‑se largamente como uma forma de relação emocional com a divindade através de numerosos testemunhos, sobretudo literários, esca‑ pando‑nos, infelizmente, muito do que terá realmente existido, em particular no âmbito dos cultos arcaicos greco‑romanos, que sobreviveram a nível popular, em grande parte em ambientes rurais, à margem das manifestações urbanizadas, com as quais numerosos cultos místicos de alguma forma se relacionaram. Todavia, basta considerar alguns exemplos de misticismo pessoal para que a estranha ideia de uma religião sem fé caia pela base. Recordamos apenas a impressionante ora‑ ção de Hipólito a Ártemis contida na tragédia de Eurípides com o mesmo nome2, um avassalador testemunho do que P. Boyancé considerou como a essência do misticismo pessoal, baseado na estreita relação entre a crença, a oração e a ajuda divina3. O que se adivinha para além da efectiva dificuldade em conhecer alguma coisa sobre o misticismo greco‑romano, recriado sobre poucos dados concretos e muita fantasia4, é o conflito interminável entre religião oficial, pública, colectiva, ordenada, e prática religiosa individual, ditada por uma sensibilidade diferente e ________________ Eurípides, Hipólito., 73‑74, 82‑86. P. Boyancé, La Religion de Virgile, Paris, 1963, p.25. 4 Os Mistérios de Elêusis constituem um bom exemplo das dificuldades que se levantam aos investigadores: M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I, Cultura Grega, Lisboa, 1993, p.306‑314. 2 3 Humanitas 58 (2006) Recensões 573 mais preocupada com o eu do que com o nós, sem que tal fenómeno tenha alguma coisa a ver com o absurdo individualismo que se instalou na sociedade pós‑ moderna. É verdade que, em Roma, entre os bem‑aventurados destinados à felicidade no Além se encontravam, muito significativamente, os que se distinguiam pela devoção ao bem comum5, quase poderíamos dizer, à Respublica. Mas não estamos aqui, uma vez mais, no campo habitual da religião legalista, tal como era vista pela óptica dos poetas e escritores? Não creio que, aceitando a existência de fenómenos místicos nas religiões greco‑romanas, naturalmente mal conhecidos mas reais, a afirmação de Odile Wattel sobre a condenação de Sócrates, que a autora atribui exactamente ao facto do filósofo defender uma religião pessoal, fundamentada em um contacto directo entre os homens e os deuses (p.20), possa ser considerada seriamente. O processo de Sócrates resume‑se, se me é lícito exprimir nestes termos, a um caso típico de razão de Estado, quando uma democracia em decadência acelerada e à espera de um qualquer ditador, que já pressente, pro‑ cura nas falhas de observância ao formalismo oficial e naqueles que as fomentam, ainda que apenas aparentemente, as vítimas expiatórias. No fundo, assim terá acontecido também, ainda que num cenário político algo diferente, com os cris‑ tãos condenados em Roma depois do famigerado incêndio de 64, que Nero con‑ siderou ideais como exemplos de impiedade a castigar6, uma vez que a sua atitude em relação ao politeísmo romano os marginalizava na religio. Não é minha intenção analisar aqui de forma exaustiva problemas de tão grande complexidade como são aqueles de que se revestem os fenómenos religio‑ sos, sejam eles interpretados de forma colectiva ou individual, os quais exigem profunda especialização e largos conhecimentos que me faltam, pelo que me limitarei a focar alguns aspectos da obra de Odile Wattel que, por uma ou outra razão, mereçam comentário, sem esquecer os limites da mesma, decorrentes dos seus objectivos, que já referi. Vejamos então alguns desses pontos, começando pela afirmação da origem cretense de Zeus, feita sem hesitações: Zeus, “deus do céu”, sem dúvida de origem cretense (p.25). Ora esta afirmação merecia, pelo menos, uma explicação, uma vez que contraria opiniões bem fundamentadas que consi‑ deram para a divindade suprema do panteão grego uma segura origem micé‑ nica7. Talvez menos discutível, mas também a merecer alguma cautela se considerada como generalização, é a ideia de que, na religião dita homérica, o culto dos defuntos não era indispensável, depois da cerimónia fúnebre (p.31). ________________ M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, II, Cultura Romana, Lisboa, 1990, p.285‑289. 6 Suetónio, Nero, XVI; Tácito, Ann., XV, 44. 7 M. H. Rocha Pereira, I, p.107‑111, 333. 5 Humanitas 58 (2006) Recensões 574 Já no capítulo da religião grega da época clássica, a autora invoca opiniões de R. Martin e H. Metzger que não podem ser consideradas recentes, pois se trata de uma publicação neste momento com trinta anos, segundo as quais a relação entre Diónisos e o vinho e a vinha constituiria apenas uma das epicleses desta discutida divindade, cujo poder, segundo os referidos autores, se estenderia lar‑ gamente ao mundo vegetal (p.38). Creio que este aspecto exigia um pouco mais de atenção, uma vez que se trata de uma questão não meramente religiosa, reflectindo um conjunto de valores a considerar como um dos pilares da cultura grega8, nem sempre fácil de interpretar à luz de uma certa visão da mentalidade grega. Passando por cima de outros aspectos, aliás importantes, como guerra e religião e cultos pan‑helénicos, retomo a análise a propósito do que a autora escreve sobre a religião helenística. Muitas vezes considerado um período final da cultura grega, quando não de decadência, a verdade é que, por múltiplas razões, o período helenístico, com as suas fecundas sínteses e arrojadas experiências, deve ser colocado no lugar de destaque que lhe compete. Odile Wattel não esquece as grandes alterações ideológicas que marcam o mundo grego e os seus anexos políticos ou culturais. Por isso, mais do que atribuir aos problemas políti‑ cos das cidades (p.58‑59), no sentido moderno do termo, creio que o triunfo de novas ideias religiosas e de novas divindades se deve, antes de mais, à evolução cultural e política do mundo grego, em grande parte devido ao influxo monár‑ quico e oriental que a condiciona. Se foi possível a Demóstenes propor aos ate‑ nienses erigir uma estátua ao rei Alexandre, o deus invencível alguma coisa sofrera radical alteração numa cultura que maioritariamente desconfiara dos reis e esta‑ belecera uma nítida separação entre o plano humano e o divino. Creio que a ideia proposta pela autora corresponde a uma visão excessivamente moderna, deveria dizer anacrónica, do fenómeno religioso, obrigando a cautelosa reflexão. A abordagem da religião romana (ou das religiões?) acusa alguma rudeza: Os Romanos não alimentavam qualquer sentimento religioso para com os deuses, apenas uma piedade interesseira (p.66). É certo que podemos interpretar esta afirmação, quase uma diatribe, à luz da mentalidade contratual romana, a célebre fides, atra‑ vés da qual se procurava garantir a pax deorum e, consequentemente, apaziguar toda uma série de numina, inicialmente muito obscuros. Ainda assim, não pode‑ mos esquecer a longa duração da civilização romana e as enormes transformações que a foram moldando ao longo dos séculos. Romanos, sim, mas quando, onde e como? Por outro lado, parece‑me muito difícil conciliar a ideia expressa acima com a seguinte citação: Contrariamente às ideias recebidas, a arqueologia revelou que os Romanos eram extremamente crentes (p.79). ________________ 8 M. H. Rocha Pereira, I, p.317‑320. Humanitas 58 (2006) Recensões 575 Odile Wattel chama a atenção para o papel dos Etruscos no desenvolvi‑ mento da religião romana, inclusive como difusores da influência grega. É hoje ideia aceite que esta foi anterior à cronologia que se lhe atribuía e, na Roma arcaica, talvez tão importante como a exercida pelos Etruscos. Por isso mesmo, parece‑me mais difícil de explicar o hiato que a autora situa entre os inícios do século V a.C. e o século III a.C. (p.69), sobretudo se relacionarmos o fim da monarquia etrusca em Roma com as derrotas sofridas pelos Etruscos na Campâ‑ nia face às forças da Magna Grécia. Ainda a propósito deste mesmo cenário da presença etrusca em Roma ocorre uma afirmação que pode provocar confusão no leitor menos informado: As escavações arqueológicas revelaram que, no século VI, sob a ocupação etrusca, os Romanos eram tão receptivos às influências religiosas provindas da Grécia como às que provinham de Cartago (p.79). Na verdade, a autora não refere nenhum caso concreto de influência cartaginesa, muito difícil de absorver por uma cultura religiosa que, nesta época, estava profundamente ligada à ideologia indo‑europeia, mesmo que as ideias clássicas de G. Dumézil sofram um processo de revisão que obriga a mitigar algumas das teses deste ilustre investigador. A introdução do culto de Vénus Ericina, divindade greco‑púnica oriunda da Sicília, cujo primeiro templo foi construído em Roma, fora do pomerium, por altura da Segunda Guerra Púnica, ilustra as prolongadas reticências romanas à introdução de divindades exteriores ao círculo indo‑europeu tradicional9. A expansão da República ao longo dos litorais mediterrâneos, em particular no Oriente, criou as condições para subverter por completo os valores pelos quais, com as concessões conjunturais consideradas inevitáveis, se regera a socie‑ dade romana, confirmando‑se os receios tão claramente expressos por Catão‑o‑ Antigo. Em relação à religião, como a autora bem sublinha (p.87‑90), foram enormes as transformações, largamente facilitadas pelas visões políticas dos dife‑ rentes homens providenciais que, de alguma forma, dirigem os destinos da República imperial nos séculos II e I a.C., inspirando‑se nas realidades do mundo helenístico e aproveitando as circunstâncias do momento. Até aqui a obra ocupa‑ se da religião de uma cidade, a partir daqui debruça‑se sobre as crenças de um mundo. Por isso, talvez tivesse sido preferível Odile Wattel ter limitado a sua análise à religião tradicional romana, tornando o texto mais homogéneo e esclare‑ cedor. A autora trata seguidamente de sintetizar a evolução da religião na época imperial (p.92‑115), começando pelas circunstâncias que levaram ao desenvolvi‑ mento gradual do culto imperial, uma alternativa segura à tentativa de restaura‑ ção da religião tradicional intentada por Augusto, e terminando com uma descrição, forçosamente rápida, do panorama religioso dos séculos II e III, com particular atenção para os sincretismos romano‑indígenas e para o avassalador ________________ 9 R. Schilling, Rites, Cultes et Dieux de Rome, Paris, 1979, p.137‑141. Humanitas 58 (2006) Recensões 576 fenómeno da expansão dos cultos greco‑orientais, sem esquecer a influência das devoções pessoais dos imperadores na evolução geral do fenómeno religioso. Estranho a ausência de qualquer referência à obra de P. Zanker quando a autora se refere à propaganda político‑religiosa de Augusto10 , mesmo reconhecendo a dificuldade, ou talvez por isso mesmo, de oferecer uma restrita selecção biblio‑ gráfica. As atitudes religiosas de Adriano são referidas de forma a não iludir as ambiguidades desta figura (p.100‑101), um déspota à sua maneira, cujas atitudes não deixam, por vezes, de evocar algumas facetas de Nero. Reencontramos na obra a velha ideia de que o Panteão, reconstruído por Adriano, era um templo dedicado a todos os deuses, o que não é seguro, e o mesmo se pode dizer da cro‑ nologia de construção dos principais elementos da Villa Hadriana 11. Vejamos outros aspectos. As novas interpretações que, no panteão galo‑ romano, Odile Wattel atribui a divindades como Mercúrio, Marte ou Apolo (p.104), não o são, pois as identificamos na religião romana arcaica e nas suas sobrevivências rurais. Também me parece exagerado considerar como excepção, característica de uma certa resistência céltica, gaulesa e bretã, a vitalidade demonstrada pelas divindades indígenas sob domínio romano. Não se conhecem, por exemplo, no território português, dezenas e dezenas de divindades pré‑ romanas através de testemunhos epigráficos, em especial do século II, mesmo sem necessidade de aludir ao extraordinário santuário de Endovélico12, em S. Miguel da Mota, Terena? Um apontamento que me parece muito importante consiste na chamada de atenção da autora para o facto, fundamental e por vezes um tanto olvidado, de que os cultos orientais foram transmitidos a Roma, na maioria dos casos, através de versões helenizadas (p.106‑112). Em dada altura, citando R. Turcan, a autora compara a rica ornamentação de certas divindades femininas de origem oriental, na Península Ibérica, no caso em apreço, Ísis, com as Virgens espanholas (p.108‑109), mas esquece as Damas ibéricas, como as muito conhecidas de Elche e de Baeza, excelentes exemplos de que a extraordinária parure destas divindades femininas não clássicas se filia em conceitos estéticos anteriores à presença romana. A ambiguidade da situação religiosa que se abre com Constantino é tam‑ bém tratada pela autora, que consagra algumas páginas ao fim da religião romana e ao triunfo do Cristianismo (p.113‑118), problema que não se resume a uma simples questão religiosa, uma vez que introduz definitivamente conceitos ________________ P. Zanker, The Power of Images in the Age of Augustus, Ann Arbor, 1990. B. Adembri, Hadrian´s Villa, Roma, 2000, p.35‑36, 91‑93. 12 J. C. Ribeiro, Endovellicus, “Religiões da Lusitânia. Loquuntur Saxa”, Lisboa, 2002, p.79‑90; A. Guerra et alii, Notícia, “Conimbriga” , LXI, 2002, p.295‑ ‑297. 10 11 Humanitas 58 (2006) Recensões 577 ideológicos divergentes da mentalidade que caracterizara o mundo clássico e as suas duas grandes culturas. Odile Wattel sublinha alguns dos momentos decisi‑ vos deste arrastado processo, que se situa no limiar da Antiguidade Tardia, na qual representa um elemento fundamental. O Império Cristão é ainda o Império dos Césares, ou este já não passa, depois da transferência da capital para Cons‑ tantinopla, de uma prestigiosa etiqueta para realidades novas, cujos valores sociais e ideológicos se afastam irreversivelmente da Cultura Clássica, rene‑ gando‑a definitivamente, em 391, com o édito de Teodósio? A obra termina com uma breve referência à arquitectura dos templos roma‑ nos, através de pequenos comentários a um grupo restrito de edifícios (p.119‑ 131). Aqui e ali notam‑se alguns pequenos lapsos, entre os quais destacarei os seguintes: o templo de Portunus, situado no Forum Boarium, em Roma, não per‑ tence ao tipo in antis, pois se trata de um edifício pseudoperíptero, aliás notavel‑ mente conservado; o templo de Castor e Pólux, no Forum Romanum, é um templo períptero; as ruínas do templo de Vénus e Roma, em Roma, construído por Adriano (em parte segundo planos de Apolodoro de Damasco?) correspondem à grande reconstrução de Maxêncio, nos primeiros anos do século IV; os templos circulares podem realmente remontar a um modelo inspirado nas cabanas cir‑ culares, todavia anteriores às origens de Roma; o Panteão não representa uma solução inédita na arquitectura religiosa romana, pois a associação de uma fachada de tipo tradicional a uma cella circular já existe, por exemplo, num dos templos republicanos do conjunto do Largo Argentina, em Roma; o templo de Ísis, em Pompeios, é um edifício prostilo, tetrástilo. Como disse inicialmente, o problema deste obra, sem dúvida útil, sobretudo num país onde a bibliografia especializada sobre a temática religiosa do mundo greco‑romano é ainda escassa, é o de pretender abarcar num espaço limitado um assunto de enorme complexidade e que abrange um não menos vasto horizonte cronológico. Mas as exigências daquilo que um dia se designou como alta divulga‑ ção, obrigavam, num ou noutro aspecto, a maior atenção por parte da autora, o que teria permitido eliminar algumas contradições, resultantes da utilização de fontes diversas, que podem, como é evidente, divergir cientificamente, mas que devem ser harmonizadas pelo comentário, sobretudo numa síntese deste tipo. Seja como for, esta pequena obra coloca à disposição de um número avultado de leitores uma problemática que muitos deles apenas encontrariam nalgumas pou‑ cas linhas dos manuais do Ensino Secundário, contribuindo para manter vivo o interesse e a curiosidade pela Cultura Clássica, que não pode sustentar‑se priori‑ tariamente sobre as mirabolantes aventuras de algum Astérix13. ________________ G. B. Jones, Concluding remarks, “Dialogues in Roman Imperialism”, Portsmouth (RI), 1997, p.198. 13 Humanitas 58 (2006) Recensões 578 Livros como o de Odile Wattel contribuem, seguramente, para salvaguar‑ dar, numa época de desvairados multiculturalismos e de um obcecado e nebuloso economicismo, um legado que não é apenas passado, mas sim garantia de futuro, pois nele se encontram as raízes mais vigorosas da Europa e do Ocidente. Uma última observação, já não sobre a obra, mas acerca da raridade de títulos portu‑ gueses nas colecções que ocasionalmente publicam temas de história e de cultura clássicas. Existem entre nós nomes perfeitamente aptos para elaborar trabalhos deste tipo, com a vantagem de poderem produzir um texto mais adequado às nossas necessidades e realidades. O universo de leitores previsível é o mesmo, quer se trate de traduções ou de originais. Quais são, então, os factores impediti‑ vos? A obra de Odile Wattel reflecte uma preocupação que merece ser subli‑ nhada, uma vez que se procura facultar um conjunto de informações facilmente acessíveis aos candidatos ao CAPES, mas que se revelam igualmente úteis para um público mais geral, seja de estudantes, seja de amadores interessados na Antiguidade Clássica. Acredito que em Portugal há um vasto campo para publi‑ cações deste tipo, que constituem valiosos instrumentos de trabalho para os que desejam iniciar‑se no estudo do mundo clássico, sem que estas edições procurem, como é evidente, substituir‑se aos grandes tratados especializados. Terão os leitores notado que, ao longo desta recensão, deixo várias interro‑ gações. Sinal dos tempos, onde não faltam dúvidas que, a muitos, suscitam a procura de respostas, as quais não se conseguem sem formular perguntas. É certo que nos falta a Pítia de Delfos ou a Sibila de Cumas, mas permanece a inspiração do legado clássico, se lhe formos sensíveis, se o compreendermos, se o vivermos, para além das vicissitudes da história ou das histórias. Por isso mesmo quero terminar lembrando o que escreveu Ferreira de Castro14 , perguntando: Tudo é quimérico, fantasmagórico. A realidade foge‑nos a todo o instante. Chega, até aqui, o apito dos comboios, nas estações de Atenas; chega o uivar dum cão, ao longe, na noite; mas nada disso dá realidade à Acrópole sob o luar. Que estado de alma estranho domina estes vultos, que ninguém fala e todos andam lentamente? Que força singular obriga estes estrangei‑ ros, muitos deles superficiais, que visitaram a Grécia apenas porque têm dinheiro e para dizer aos amigos que fizeram a viagem, a ficarem pertinazmente silenciosos, indolentes, abstractos, nestas noites de luar na Acrópole? VASCO GIL MANTAS ________________ 14 Ferreira de Castro, A Volta ao Mundo, I, Lisboa, s/d, (6ª ed.), p.106‑107. Humanitas 58 (2006)