[Recensão a] WATTEL, Odile - As Religiões Grega e Romana

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[Recensão a] WATTEL, Odile - As Religiões Grega e Romana
Publicado por:
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos
Clássicos
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URI:http://hdl.handle.net/10316.2/28138
Accessed :
18-Jun-2017 22:05:16
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digitalis.uc.pt
Vol. LVIII
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS
570
Recensões
fontes
portuguesas
e
neolatinas,
nos
dar
uma
sólida
visão
de
conjunto
da
produção
trágica
em
Portugal
no
período
áureo
da
nossa
literatura.
Trata‑se,
portanto,
de
uma
obra
essencial,
altamente
recomendável
para
todos
quantos
se
interessam
pela
produção
humanística
em
Portugal,
de
modo
especial
a
história
do
teatro
português.
MARGARIDA
MIRANDA
WATTEL,
Odile:
As
Religiões
Grega
e
Romana
(Trad.
J.
Espadeiro
Martins),
Colecção
Saber,
nº
244,
Publicações
Europa‑América,
Mem
Martins,
2003,
143
páginas,
ilustrado.
Aos
numerosos
contributos
para
a
divulgação
da
Antiguidade
Clássica,
ini‑
ciados
há
muitos
anos
com
a
publicação
do
livro
de
Léon
Bloch
intitulado
As
Lutas
Sociais
na
Roma
Antiga,
juntou
recentemente
a
Colecção
Saber
um
volume
sobre
o
tema
sempre
fascinante
e
inesgotável
da
religião
na
Grécia
e
em
Roma.
Como
todas
as
obras
inseridas
nesta
colecção,
trata‑se
de
um
livro
de
reduzidas
dimensões,
no
qual
a
autora
procura
oferecer
uma
síntese
coerente
das
religiões
grega
e
romana,
tarefa
difícil
de
conduzir
a
bom
termo
em
cerca
de
uma
centena
e
meia
de
páginas,
mesmo
para
os
melhores
especialistas
da
matéria.
A
intenção
pedagógica
de
Odile
Wattel
é
evidente,
quer
na
forma
como
a
temática
está
orga‑
nizada,
quer
no
sua
exposição,
o
que
reflecte
as
necessidades
do
público
especí‑
fico
para
o
qual
a
obra
foi
redigida
em
França,
maioritariamente
constituído
por
alunos
universitários
e
candidatos
ao
professorado
no
Ensino
Secundário.
A
apresentação
é
agradável,
embora
as
ilustrações
não
possam
considerar‑
‑se
de
boa
qualidade,
circunstância
que
começa
a
tornar‑se
vulgar,
mesmo
em
publicações
com
outras
pretensões
e
preço.
A
capa
mostra
dois
pormenores
de
pinturas
de
tema
clássico,
à
esquerda
a
Coroação
de
Homero,
de
Jean‑Dominique
Ingres,
e
à
direita,
Primavera,
do
menos
conhecido
Lawrence
Alma
Tadema.
O
título
original
indica
qual
a
ideia
que
a
autora
considera
fundamental
neste
estudo,
pois
alude
às
religiões
gregas
e
romanas,
considerando
um
pluralismo
que
se
perdeu
na
tradução
portuguesa
do
título.
Este
aspecto
é
importante
e
vamos
encontrá‑lo
permanentemente
subjacente
na
análise
que
se
desenvolve
ao
longo
da
obra,
pois
se
exclui
o
princípio
de
que
houve
uma
religião
grega
e
uma
religião
romana,
mas
sim
várias.
Esta
hipótese
de
trabalho,
defensável
a
partir
de
determinada
perspectiva,
parece‑me
muito
difícil
de
explicar
numa
obra
desta
dimensão,
podendo
levar
a
conclusões
demasiado
simplistas
de
alguma
coisa
tão
complexa
como
é
o
fenómeno
religioso
em
culturas
não
monoteístas.
Pela
mesma
Humanitas 58 (2006)
Recensões
571
razão,
considerar
que
tudo
se
pode
compreender
admitindo
um
sistema
dualista
composto
por
cultos
gregos
e
religiões
romanas,
que
em
determinada
altura
pas‑
sam
a
integrar
parte
daqueles,
não
facilita
o
caminho
para
o
entendimento
do
problema,
pois
sugere,
ainda
que
involuntariamente,
que
em
Roma
o
culto
é
secundário.
Vejamos
como
a
autora
organizou
a
obra.
Após
a
Introdução
(p.7‑9),
segue‑
‑se
o
capítulo
sobre
A
religião
na
Grécia
Antiga
(p.11‑63),
subdividido
em
Mito
e
religião
(p.11‑18),
Cronologia
(p.22),
A
religião
homérica
(p.24‑33),
A
religião
grega
na
Época
Clássica
(p.34‑45),
Os
cultos
pan‑helénicos
(p.46‑57)
e
A
religião
helenística
(séculos
III‑II)
(p.58‑63).
Segue‑se
o
capítulo
sobre
as
religiões
romanas
(p.65‑131),
subdividido
em
A
religião
romana
(p.65‑72),
Cronologia
(p.73‑75),
A
religião
arcaica
(séculos
VIII‑V)
(p.77‑82),
A
religião
no
tempo
da
República
(p.83‑91),
A
religião
no
Alto
Império
(séculos
I‑II)
(p.92‑103),
As
religiões
do
Império
nos
séculos
II‑III
(p.104‑112),
O
fim
da
religião
romana
nos
séculos
IV‑V
(p.113‑118),
As
habitações
dos
deuses
(p.119‑
131).
Como
se
vê,
estamos
perante
uma
ordenação
muito
clássica
do
ponto
de
vista
cronológico,
mas
que,
perante
os
enunciados
defendidos
por
Odile
Wattel,
não
deixa
de
resultar
um
tanto
ou
quanto
prejudicada
por
contradições.
O
volume
conta
ainda
com
um
útil
Glossário
(p.133‑140),
terminando
com
uma
Bibliografia
(p.141‑143),
onde
não
faltam
os
clássicos
esperados
numa
obra
deste
tipo,
mas
que
denota
uma
maior
actualização
no
que
se
refere
à
religião
grega.
Ao
longo
dos
capítulos
encontram‑se
pequenos
questionários
que
ajudam
o
leitor
a
seleccionar
os
aspectos
mais
relevantes,
ou
assim
considerados
pela
autora,
da
matéria
que
lhes
é
oferecida
no
texto.
Algumas
observações
sobre
as
ilustrações.
Na
planta
do
santuário
de
Delfos
(p.48),
quase
resumida
ao
templo
de
Apolo,
faltam
legendas
explicativas;
na
planta
de
Roma
com
a
localização
dos
santuários
(p.76),
a
escala
torna
muito
difícil
a
leitura,
sobretudo
na
zona
central
da
cidade;
no
mapa
da
expansão
das
religiões
greco‑orientais
no
Império
Romano
(p.112),
parece
deduzir‑se
que
o
culto
gaditano
de
Hércules‑Melcarte
resultou
de
um
fenómeno
difusionista
de
época
imperial,
o
que
não
corresponde
à
realidade1;
a
planta
do
templo
de
Saturno,
em
Dougga,
surge
trocada
pela
do
Capitólio,
em
Roma
(p.122,
131);
finalmente,
creio
que
não
teria
sido
difícil
encontrar
uma
planta
mais
adequada
do
templo
de
Castor
e
Pólux,
em
Roma
(p.120).
Não
quero
deixar
de
comentar
alguns
aspectos
da
obra
que,
por
se
destinar
a
um
público
vasto,
não
especializado,
podem
suscitar
algumas
dúvidas
ou
con‑
fusões
entre
os
leitores,
tanto
mais
que
a
autora
afirma,
mais
do
que
propõe,
determinados
postulados,
nomeadamente
o
da
distinção
liminar
entre
cultos
gregos
e
religiões
romanas
(p.7).
Parece,
desde
logo,
muito
difícil
aceitar
a
exis‑
________________
A.
García
y
Bellido,
Hercules
Gaditanus,
“Archivo
Español
de
Arqueo‑
logía”,
XXXVI,
1963,
p.70‑153;
M.
Oria
Segura,
Hércules
en
Hispania:
Una
aproximación,
Barcelona,
1996.
1
Humanitas 58 (2006)
Recensões
572
tência
de
um
culto
que
não
se
dirija
a
uma
entidade
superior,
subentendida,
independentemente
do
sistema
de
valores
que
lhe
possa
estar
associado,
sejam
eles
morais
ou
simplesmente
políticos,
no
sentido
grego
do
termo.
O
facto
da
religião
grega,
no
seu
conjunto,
não
ser
uma
religião
revelada,
não
impede
a
existência
de
uma
essência
espiritual
que
se
manifesta
exuberantemente
ou
de
forma
mais
contida,
através
do
culto.
Outra
afirmação
de
carácter
geral
a
propósito
das
religiões
grega
e
romana
parece‑me
altamente
controversa.
Escreveu
Odile
Wattel:
Uma
única
certeza:
o
sistema
religioso
nada
tinha
a
ver
com
a
nossa
forma
de
pensar,
na
medida
em
que
a
salva‑
ção
individual
era
um
conceito
alheio
ao
mundo
greco‑romano
(p.7).
Ora,
se
é
verdade
que
a
nossa
maneira
de
pensar
(deve
subentender‑se
ocidental,
judaico‑cristã)
é
diferente,
também
não
é
possível
ignorar
o
fervor
que
os
cultos
mistéricos
des‑
pertaram
no
mundo
greco‑romano.
Com
efeito,
estes
cultos
eram
muito
numero‑
sos
e
largamente
centrados
numa
ideia
que,
sem
incluir
conceitos
estritos
de
salvação
pessoal,
valorizando
a
bem‑aventurança,
não
lhe
era
totalmente
alheia.
É
certo
que
se
pode
argumentar
não
serem
característicos
das
religiões
clássicas,
centradas
no
legalismo,
mas
se
assim
fizermos
estaremos
a
restringir
o
acto
reli‑
gioso
ao
âmbito
do
formalismo
oficial
e
da
religião
da
comunidade,
expressa
através
do
ritual.
O
misticismo
reflecte‑se
largamente
como
uma
forma
de
relação
emocional
com
a
divindade
através
de
numerosos
testemunhos,
sobretudo
literários,
esca‑
pando‑nos,
infelizmente,
muito
do
que
terá
realmente
existido,
em
particular
no
âmbito
dos
cultos
arcaicos
greco‑romanos,
que
sobreviveram
a
nível
popular,
em
grande
parte
em
ambientes
rurais,
à
margem
das
manifestações
urbanizadas,
com
as
quais
numerosos
cultos
místicos
de
alguma
forma
se
relacionaram.
Todavia,
basta
considerar
alguns
exemplos
de
misticismo
pessoal
para
que
a
estranha
ideia
de
uma
religião
sem
fé
caia
pela
base.
Recordamos
apenas
a
impressionante
ora‑
ção
de
Hipólito
a
Ártemis
contida
na
tragédia
de
Eurípides
com
o
mesmo
nome2,
um
avassalador
testemunho
do
que
P.
Boyancé
considerou
como
a
essência
do
misticismo
pessoal,
baseado
na
estreita
relação
entre
a
crença,
a
oração
e
a
ajuda
divina3.
O
que
se
adivinha
para
além
da
efectiva
dificuldade
em
conhecer
alguma
coisa
sobre
o
misticismo
greco‑romano,
recriado
sobre
poucos
dados
concretos
e
muita
fantasia4,
é
o
conflito
interminável
entre
religião
oficial,
pública,
colectiva,
ordenada,
e
prática
religiosa
individual,
ditada
por
uma
sensibilidade
diferente
e
________________
Eurípides,
Hipólito.,
73‑74,
82‑86.
P.
Boyancé,
La
Religion
de
Virgile,
Paris,
1963,
p.25.
4
Os
Mistérios
de
Elêusis
constituem
um
bom
exemplo
das
dificuldades
que
se
levantam
aos
investigadores:
M.
H.
Rocha
Pereira,
Estudos
de
História
da
Cultura
Clássica,
I,
Cultura
Grega,
Lisboa,
1993,
p.306‑314.
2
3
Humanitas 58 (2006)
Recensões
573
mais
preocupada
com
o
eu
do
que
com
o
nós,
sem
que
tal
fenómeno
tenha
alguma
coisa
a
ver
com
o
absurdo
individualismo
que
se
instalou
na
sociedade
pós‑
moderna.
É
verdade
que,
em
Roma,
entre
os
bem‑aventurados
destinados
à
felicidade
no
Além
se
encontravam,
muito
significativamente,
os
que
se
distinguiam
pela
devoção
ao
bem
comum5,
quase
poderíamos
dizer,
à
Respublica.
Mas
não
estamos
aqui,
uma
vez
mais,
no
campo
habitual
da
religião
legalista,
tal
como
era
vista
pela
óptica
dos
poetas
e
escritores?
Não
creio
que,
aceitando
a
existência
de
fenómenos
místicos
nas
religiões
greco‑romanas,
naturalmente
mal
conhecidos
mas
reais,
a
afirmação
de
Odile
Wattel
sobre
a
condenação
de
Sócrates,
que
a
autora
atribui
exactamente
ao
facto
do
filósofo
defender
uma
religião
pessoal,
fundamentada
em
um
contacto
directo
entre
os
homens
e
os
deuses
(p.20),
possa
ser
considerada
seriamente.
O
processo
de
Sócrates
resume‑se,
se
me
é
lícito
exprimir
nestes
termos,
a
um
caso
típico
de
razão
de
Estado,
quando
uma
democracia
em
decadência
acelerada
e
à
espera
de
um
qualquer
ditador,
que
já
pressente,
pro‑
cura
nas
falhas
de
observância
ao
formalismo
oficial
e
naqueles
que
as
fomentam,
ainda
que
apenas
aparentemente,
as
vítimas
expiatórias.
No
fundo,
assim
terá
acontecido
também,
ainda
que
num
cenário
político
algo
diferente,
com
os
cris‑
tãos
condenados
em
Roma
depois
do
famigerado
incêndio
de
64,
que
Nero
con‑
siderou
ideais
como
exemplos
de
impiedade
a
castigar6,
uma
vez
que
a
sua
atitude
em
relação
ao
politeísmo
romano
os
marginalizava
na
religio.
Não
é
minha
intenção
analisar
aqui
de
forma
exaustiva
problemas
de
tão
grande
complexidade
como
são
aqueles
de
que
se
revestem
os
fenómenos
religio‑
sos,
sejam
eles
interpretados
de
forma
colectiva
ou
individual,
os
quais
exigem
profunda
especialização
e
largos
conhecimentos
que
me
faltam,
pelo
que
me
limitarei
a
focar
alguns
aspectos
da
obra
de
Odile
Wattel
que,
por
uma
ou
outra
razão,
mereçam
comentário,
sem
esquecer
os
limites
da
mesma,
decorrentes
dos
seus
objectivos,
que
já
referi.
Vejamos
então
alguns
desses
pontos,
começando
pela
afirmação
da
origem
cretense
de
Zeus,
feita
sem
hesitações:
Zeus,
“deus
do
céu”,
sem
dúvida
de
origem
cretense
(p.25).
Ora
esta
afirmação
merecia,
pelo
menos,
uma
explicação,
uma
vez
que
contraria
opiniões
bem
fundamentadas
que
consi‑
deram
para
a
divindade
suprema
do
panteão
grego
uma
segura
origem
micé‑
nica7.
Talvez
menos
discutível,
mas
também
a
merecer
alguma
cautela
se
considerada
como
generalização,
é
a
ideia
de
que,
na
religião
dita
homérica,
o
culto
dos
defuntos
não
era
indispensável,
depois
da
cerimónia
fúnebre
(p.31).
________________
M.
H.
Rocha
Pereira,
Estudos
de
História
da
Cultura
Clássica,
II,
Cultura
Romana,
Lisboa,
1990,
p.285‑289.
6
Suetónio,
Nero,
XVI;
Tácito,
Ann.,
XV,
44.
7
M.
H.
Rocha
Pereira,
I,
p.107‑111,
333.
5
Humanitas 58 (2006)
Recensões
574
Já
no
capítulo
da
religião
grega
da
época
clássica,
a
autora
invoca
opiniões
de
R.
Martin
e
H.
Metzger
que
não
podem
ser
consideradas
recentes,
pois
se
trata
de
uma
publicação
neste
momento
com
trinta
anos,
segundo
as
quais
a
relação
entre
Diónisos
e
o
vinho
e
a
vinha
constituiria
apenas
uma
das
epicleses
desta
discutida
divindade,
cujo
poder,
segundo
os
referidos
autores,
se
estenderia
lar‑
gamente
ao
mundo
vegetal
(p.38).
Creio
que
este
aspecto
exigia
um
pouco
mais
de
atenção,
uma
vez
que
se
trata
de
uma
questão
não
meramente
religiosa,
reflectindo
um
conjunto
de
valores
a
considerar
como
um
dos
pilares
da
cultura
grega8,
nem
sempre
fácil
de
interpretar
à
luz
de
uma
certa
visão
da
mentalidade
grega.
Passando
por
cima
de
outros
aspectos,
aliás
importantes,
como
guerra
e
religião
e
cultos
pan‑helénicos,
retomo
a
análise
a
propósito
do
que
a
autora
escreve
sobre
a
religião
helenística.
Muitas
vezes
considerado
um
período
final
da
cultura
grega,
quando
não
de
decadência,
a
verdade
é
que,
por
múltiplas
razões,
o
período
helenístico,
com
as
suas
fecundas
sínteses
e
arrojadas
experiências,
deve
ser
colocado
no
lugar
de
destaque
que
lhe
compete.
Odile
Wattel
não
esquece
as
grandes
alterações
ideológicas
que
marcam
o
mundo
grego
e
os
seus
anexos
políticos
ou
culturais.
Por
isso,
mais
do
que
atribuir
aos
problemas
políti‑
cos
das
cidades
(p.58‑59),
no
sentido
moderno
do
termo,
creio
que
o
triunfo
de
novas
ideias
religiosas
e
de
novas
divindades
se
deve,
antes
de
mais,
à
evolução
cultural
e
política
do
mundo
grego,
em
grande
parte
devido
ao
influxo
monár‑
quico
e
oriental
que
a
condiciona.
Se
foi
possível
a
Demóstenes
propor
aos
ate‑
nienses
erigir
uma
estátua
ao
rei
Alexandre,
o
deus
invencível
alguma
coisa
sofrera
radical
alteração
numa
cultura
que
maioritariamente
desconfiara
dos
reis
e
esta‑
belecera
uma
nítida
separação
entre
o
plano
humano
e
o
divino.
Creio
que
a
ideia
proposta
pela
autora
corresponde
a
uma
visão
excessivamente
moderna,
deveria
dizer
anacrónica,
do
fenómeno
religioso,
obrigando
a
cautelosa
reflexão.
A
abordagem
da
religião
romana
(ou
das
religiões?)
acusa
alguma
rudeza:
Os
Romanos
não
alimentavam
qualquer
sentimento
religioso
para
com
os
deuses,
apenas
uma
piedade
interesseira
(p.66).
É
certo
que
podemos
interpretar
esta
afirmação,
quase
uma
diatribe,
à
luz
da
mentalidade
contratual
romana,
a
célebre
fides,
atra‑
vés
da
qual
se
procurava
garantir
a
pax
deorum
e,
consequentemente,
apaziguar
toda
uma
série
de
numina,
inicialmente
muito
obscuros.
Ainda
assim,
não
pode‑
mos
esquecer
a
longa
duração
da
civilização
romana
e
as
enormes
transformações
que
a
foram
moldando
ao
longo
dos
séculos.
Romanos,
sim,
mas
quando,
onde
e
como?
Por
outro
lado,
parece‑me
muito
difícil
conciliar
a
ideia
expressa
acima
com
a
seguinte
citação:
Contrariamente
às
ideias
recebidas,
a
arqueologia
revelou
que
os
Romanos
eram
extremamente
crentes
(p.79).
________________
8
M.
H.
Rocha
Pereira,
I,
p.317‑320.
Humanitas 58 (2006)
Recensões
575
Odile
Wattel
chama
a
atenção
para
o
papel
dos
Etruscos
no
desenvolvi‑
mento
da
religião
romana,
inclusive
como
difusores
da
influência
grega.
É
hoje
ideia
aceite
que
esta
foi
anterior
à
cronologia
que
se
lhe
atribuía
e,
na
Roma
arcaica,
talvez
tão
importante
como
a
exercida
pelos
Etruscos.
Por
isso
mesmo,
parece‑me
mais
difícil
de
explicar
o
hiato
que
a
autora
situa
entre
os
inícios
do
século
V
a.C.
e
o
século
III
a.C.
(p.69),
sobretudo
se
relacionarmos
o
fim
da
monarquia
etrusca
em
Roma
com
as
derrotas
sofridas
pelos
Etruscos
na
Campâ‑
nia
face
às
forças
da
Magna
Grécia.
Ainda
a
propósito
deste
mesmo
cenário
da
presença
etrusca
em
Roma
ocorre
uma
afirmação
que
pode
provocar
confusão
no
leitor
menos
informado:
As
escavações
arqueológicas
revelaram
que,
no
século
VI,
sob
a
ocupação
etrusca,
os
Romanos
eram
tão
receptivos
às
influências
religiosas
provindas
da
Grécia
como
às
que
provinham
de
Cartago
(p.79).
Na
verdade,
a
autora
não
refere
nenhum
caso
concreto
de
influência
cartaginesa,
muito
difícil
de
absorver
por
uma
cultura
religiosa
que,
nesta
época,
estava
profundamente
ligada
à
ideologia
indo‑europeia,
mesmo
que
as
ideias
clássicas
de
G.
Dumézil
sofram
um
processo
de
revisão
que
obriga
a
mitigar
algumas
das
teses
deste
ilustre
investigador.
A
introdução
do
culto
de
Vénus
Ericina,
divindade
greco‑púnica
oriunda
da
Sicília,
cujo
primeiro
templo
foi
construído
em
Roma,
fora
do
pomerium,
por
altura
da
Segunda
Guerra
Púnica,
ilustra
as
prolongadas
reticências
romanas
à
introdução
de
divindades
exteriores
ao
círculo
indo‑europeu
tradicional9.
A
expansão
da
República
ao
longo
dos
litorais
mediterrâneos,
em
particular
no
Oriente,
criou
as
condições
para
subverter
por
completo
os
valores
pelos
quais,
com
as
concessões
conjunturais
consideradas
inevitáveis,
se
regera
a
socie‑
dade
romana,
confirmando‑se
os
receios
tão
claramente
expressos
por
Catão‑o‑
Antigo.
Em
relação
à
religião,
como
a
autora
bem
sublinha
(p.87‑90),
foram
enormes
as
transformações,
largamente
facilitadas
pelas
visões
políticas
dos
dife‑
rentes
homens
providenciais
que,
de
alguma
forma,
dirigem
os
destinos
da
República
imperial
nos
séculos
II
e
I
a.C.,
inspirando‑se
nas
realidades
do
mundo
helenístico
e
aproveitando
as
circunstâncias
do
momento.
Até
aqui
a
obra
ocupa‑
se
da
religião
de
uma
cidade,
a
partir
daqui
debruça‑se
sobre
as
crenças
de
um
mundo.
Por
isso,
talvez
tivesse
sido
preferível
Odile
Wattel
ter
limitado
a
sua
análise
à
religião
tradicional
romana,
tornando
o
texto
mais
homogéneo
e
esclare‑
cedor.
A
autora
trata
seguidamente
de
sintetizar
a
evolução
da
religião
na
época
imperial
(p.92‑115),
começando
pelas
circunstâncias
que
levaram
ao
desenvolvi‑
mento
gradual
do
culto
imperial,
uma
alternativa
segura
à
tentativa
de
restaura‑
ção
da
religião
tradicional
intentada
por
Augusto,
e
terminando
com
uma
descrição,
forçosamente
rápida,
do
panorama
religioso
dos
séculos
II
e
III,
com
particular
atenção
para
os
sincretismos
romano‑indígenas
e
para
o
avassalador
________________
9
R.
Schilling,
Rites,
Cultes
et
Dieux
de
Rome,
Paris,
1979,
p.137‑141.
Humanitas 58 (2006)
Recensões
576
fenómeno
da
expansão
dos
cultos
greco‑orientais,
sem
esquecer
a
influência
das
devoções
pessoais
dos
imperadores
na
evolução
geral
do
fenómeno
religioso.
Estranho
a
ausência
de
qualquer
referência
à
obra
de
P.
Zanker
quando
a
autora
se
refere
à
propaganda
político‑religiosa
de
Augusto10 ,
mesmo
reconhecendo
a
dificuldade,
ou
talvez
por
isso
mesmo,
de
oferecer
uma
restrita
selecção
biblio‑
gráfica.
As
atitudes
religiosas
de
Adriano
são
referidas
de
forma
a
não
iludir
as
ambiguidades
desta
figura
(p.100‑101),
um
déspota
à
sua
maneira,
cujas
atitudes
não
deixam,
por
vezes,
de
evocar
algumas
facetas
de
Nero.
Reencontramos
na
obra
a
velha
ideia
de
que
o
Panteão,
reconstruído
por
Adriano,
era
um
templo
dedicado
a
todos
os
deuses,
o
que
não
é
seguro,
e
o
mesmo
se
pode
dizer
da
cro‑
nologia
de
construção
dos
principais
elementos
da
Villa
Hadriana
11.
Vejamos
outros
aspectos.
As
novas
interpretações
que,
no
panteão
galo‑
romano,
Odile
Wattel
atribui
a
divindades
como
Mercúrio,
Marte
ou
Apolo
(p.104),
não
o
são,
pois
as
identificamos
na
religião
romana
arcaica
e
nas
suas
sobrevivências
rurais.
Também
me
parece
exagerado
considerar
como
excepção,
característica
de
uma
certa
resistência
céltica,
gaulesa
e
bretã,
a
vitalidade
demonstrada
pelas
divindades
indígenas
sob
domínio
romano.
Não
se
conhecem,
por
exemplo,
no
território
português,
dezenas
e
dezenas
de
divindades
pré‑
romanas
através
de
testemunhos
epigráficos,
em
especial
do
século
II,
mesmo
sem
necessidade
de
aludir
ao
extraordinário
santuário
de
Endovélico12,
em
S.
Miguel
da
Mota,
Terena?
Um
apontamento
que
me
parece
muito
importante
consiste
na
chamada
de
atenção
da
autora
para
o
facto,
fundamental
e
por
vezes
um
tanto
olvidado,
de
que
os
cultos
orientais
foram
transmitidos
a
Roma,
na
maioria
dos
casos,
através
de
versões
helenizadas
(p.106‑112).
Em
dada
altura,
citando
R.
Turcan,
a
autora
compara
a
rica
ornamentação
de
certas
divindades
femininas
de
origem
oriental,
na
Península
Ibérica,
no
caso
em
apreço,
Ísis,
com
as
Virgens
espanholas
(p.108‑109),
mas
esquece
as
Damas
ibéricas,
como
as
muito
conhecidas
de
Elche
e
de
Baeza,
excelentes
exemplos
de
que
a
extraordinária
parure
destas
divindades
femininas
não
clássicas
se
filia
em
conceitos
estéticos
anteriores
à
presença
romana.
A
ambiguidade
da
situação
religiosa
que
se
abre
com
Constantino
é
tam‑
bém
tratada
pela
autora,
que
consagra
algumas
páginas
ao
fim
da
religião
romana
e
ao
triunfo
do
Cristianismo
(p.113‑118),
problema
que
não
se
resume
a
uma
simples
questão
religiosa,
uma
vez
que
introduz
definitivamente
conceitos
________________
P.
Zanker,
The
Power
of
Images
in
the
Age
of
Augustus,
Ann
Arbor,
1990.
B.
Adembri,
Hadrian´s
Villa,
Roma,
2000,
p.35‑36,
91‑93.
12
J.
C.
Ribeiro,
Endovellicus,
“Religiões
da
Lusitânia.
Loquuntur
Saxa”,
Lisboa,
2002,
p.79‑90;
A.
Guerra
et
alii,
Notícia,
“Conimbriga”
,
LXI,
2002,
p.295‑
‑297.
10
11
Humanitas 58 (2006)
Recensões
577
ideológicos
divergentes
da
mentalidade
que
caracterizara
o
mundo
clássico
e
as
suas
duas
grandes
culturas.
Odile
Wattel
sublinha
alguns
dos
momentos
decisi‑
vos
deste
arrastado
processo,
que
se
situa
no
limiar
da
Antiguidade
Tardia,
na
qual
representa
um
elemento
fundamental.
O
Império
Cristão
é
ainda
o
Império
dos
Césares,
ou
este
já
não
passa,
depois
da
transferência
da
capital
para
Cons‑
tantinopla,
de
uma
prestigiosa
etiqueta
para
realidades
novas,
cujos
valores
sociais
e
ideológicos
se
afastam
irreversivelmente
da
Cultura
Clássica,
rene‑
gando‑a
definitivamente,
em
391,
com
o
édito
de
Teodósio?
A
obra
termina
com
uma
breve
referência
à
arquitectura
dos
templos
roma‑
nos,
através
de
pequenos
comentários
a
um
grupo
restrito
de
edifícios
(p.119‑
131).
Aqui
e
ali
notam‑se
alguns
pequenos
lapsos,
entre
os
quais
destacarei
os
seguintes:
o
templo
de
Portunus,
situado
no
Forum
Boarium,
em
Roma,
não
per‑
tence
ao
tipo
in
antis,
pois
se
trata
de
um
edifício
pseudoperíptero,
aliás
notavel‑
mente
conservado;
o
templo
de
Castor
e
Pólux,
no
Forum
Romanum,
é
um
templo
períptero;
as
ruínas
do
templo
de
Vénus
e
Roma,
em
Roma,
construído
por
Adriano
(em
parte
segundo
planos
de
Apolodoro
de
Damasco?)
correspondem
à
grande
reconstrução
de
Maxêncio,
nos
primeiros
anos
do
século
IV;
os
templos
circulares
podem
realmente
remontar
a
um
modelo
inspirado
nas
cabanas
cir‑
culares,
todavia
anteriores
às
origens
de
Roma;
o
Panteão
não
representa
uma
solução
inédita
na
arquitectura
religiosa
romana,
pois
a
associação
de
uma
fachada
de
tipo
tradicional
a
uma
cella
circular
já
existe,
por
exemplo,
num
dos
templos
republicanos
do
conjunto
do
Largo
Argentina,
em
Roma;
o
templo
de
Ísis,
em
Pompeios,
é
um
edifício
prostilo,
tetrástilo.
Como
disse
inicialmente,
o
problema
deste
obra,
sem
dúvida
útil,
sobretudo
num
país
onde
a
bibliografia
especializada
sobre
a
temática
religiosa
do
mundo
greco‑romano
é
ainda
escassa,
é
o
de
pretender
abarcar
num
espaço
limitado
um
assunto
de
enorme
complexidade
e
que
abrange
um
não
menos
vasto
horizonte
cronológico.
Mas
as
exigências
daquilo
que
um
dia
se
designou
como
alta
divulga‑
ção,
obrigavam,
num
ou
noutro
aspecto,
a
maior
atenção
por
parte
da
autora,
o
que
teria
permitido
eliminar
algumas
contradições,
resultantes
da
utilização
de
fontes
diversas,
que
podem,
como
é
evidente,
divergir
cientificamente,
mas
que
devem
ser
harmonizadas
pelo
comentário,
sobretudo
numa
síntese
deste
tipo.
Seja
como
for,
esta
pequena
obra
coloca
à
disposição
de
um
número
avultado
de
leitores
uma
problemática
que
muitos
deles
apenas
encontrariam
nalgumas
pou‑
cas
linhas
dos
manuais
do
Ensino
Secundário,
contribuindo
para
manter
vivo
o
interesse
e
a
curiosidade
pela
Cultura
Clássica,
que
não
pode
sustentar‑se
priori‑
tariamente
sobre
as
mirabolantes
aventuras
de
algum
Astérix13.
________________
G.
B.
Jones,
Concluding
remarks,
“Dialogues
in
Roman
Imperialism”,
Portsmouth
(RI),
1997,
p.198.
13
Humanitas 58 (2006)
Recensões
578
Livros
como
o
de
Odile
Wattel
contribuem,
seguramente,
para
salvaguar‑
dar,
numa
época
de
desvairados
multiculturalismos
e
de
um
obcecado
e
nebuloso
economicismo,
um
legado
que
não
é
apenas
passado,
mas
sim
garantia
de
futuro,
pois
nele
se
encontram
as
raízes
mais
vigorosas
da
Europa
e
do
Ocidente.
Uma
última
observação,
já
não
sobre
a
obra,
mas
acerca
da
raridade
de
títulos
portu‑
gueses
nas
colecções
que
ocasionalmente
publicam
temas
de
história
e
de
cultura
clássicas.
Existem
entre
nós
nomes
perfeitamente
aptos
para
elaborar
trabalhos
deste
tipo,
com
a
vantagem
de
poderem
produzir
um
texto
mais
adequado
às
nossas
necessidades
e
realidades.
O
universo
de
leitores
previsível
é
o
mesmo,
quer
se
trate
de
traduções
ou
de
originais.
Quais
são,
então,
os
factores
impediti‑
vos?
A
obra
de
Odile
Wattel
reflecte
uma
preocupação
que
merece
ser
subli‑
nhada,
uma
vez
que
se
procura
facultar
um
conjunto
de
informações
facilmente
acessíveis
aos
candidatos
ao
CAPES,
mas
que
se
revelam
igualmente
úteis
para
um
público
mais
geral,
seja
de
estudantes,
seja
de
amadores
interessados
na
Antiguidade
Clássica.
Acredito
que
em
Portugal
há
um
vasto
campo
para
publi‑
cações
deste
tipo,
que
constituem
valiosos
instrumentos
de
trabalho
para
os
que
desejam
iniciar‑se
no
estudo
do
mundo
clássico,
sem
que
estas
edições
procurem,
como
é
evidente,
substituir‑se
aos
grandes
tratados
especializados.
Terão
os
leitores
notado
que,
ao
longo
desta
recensão,
deixo
várias
interro‑
gações.
Sinal
dos
tempos,
onde
não
faltam
dúvidas
que,
a
muitos,
suscitam
a
procura
de
respostas,
as
quais
não
se
conseguem
sem
formular
perguntas.
É
certo
que
nos
falta
a
Pítia
de
Delfos
ou
a
Sibila
de
Cumas,
mas
permanece
a
inspiração
do
legado
clássico,
se
lhe
formos
sensíveis,
se
o
compreendermos,
se
o
vivermos,
para
além
das
vicissitudes
da
história
ou
das
histórias.
Por
isso
mesmo
quero
terminar
lembrando
o
que
escreveu
Ferreira
de
Castro14 ,
perguntando:
Tudo
é
quimérico,
fantasmagórico.
A
realidade
foge‑nos
a
todo
o
instante.
Chega,
até
aqui,
o
apito
dos
comboios,
nas
estações
de
Atenas;
chega
o
uivar
dum
cão,
ao
longe,
na
noite;
mas
nada
disso
dá
realidade
à
Acrópole
sob
o
luar.
Que
estado
de
alma
estranho
domina
estes
vultos,
que
ninguém
fala
e
todos
andam
lentamente?
Que
força
singular
obriga
estes
estrangei‑
ros,
muitos
deles
superficiais,
que
visitaram
a
Grécia
apenas
porque
têm
dinheiro
e
para
dizer
aos
amigos
que
fizeram
a
viagem,
a
ficarem
pertinazmente
silenciosos,
indolentes,
abstractos,
nestas
noites
de
luar
na
Acrópole?
VASCO
GIL
MANTAS
________________
14
Ferreira
de
Castro,
A
Volta
ao
Mundo,
I,
Lisboa,
s/d,
(6ª
ed.),
p.106‑107.
Humanitas 58 (2006)
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