O TRABALHO COM QUADRINHOS EM SALA DE AULA: AS CONTRIBUIÇÕES DA ALFABETIZAÇÃO VISUAL PARA A PRÁTICA DOCENTE NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL Mariana Vaitiekunas PIZARRO, Instituto Federal do Paraná (IFPR – campus Londrina/PR) Carolina Vaitiekunas PIZARRO, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – campus Bauru/SP) Eixo Temático: 03-Formação do professor alfabetizador [email protected] 1. Introdução Pode-se dizer que não se sabe ao certo quando e como as histórias em quadrinhos passaram a ser admitidas como um importante material para o processo educativo, porém a relação entre “hq” e Educação sempre existiu. Levando-se em conta a própria historicidade dos quadrinhos, admitida com o início nas pinturas rupestres (ANSELMO, 1975), reconhecemos que já havia ali um registro que caracterizava uma primitiva comunicação e porque não dizer o ensino e o aprendizado, a partir das mensagens que se pretendia transmitir. A prova de que se aprende com as pinturas rupestres e muitos outros registros visuais está no fato de que a cada nova descoberta, aprendemos cada vez mais sobre a vida primitiva e, consequentemente, sobre a vida contemporânea. Posteriormente, com o advento da imprensa, muitos jornais continuaram utilizando a imagem aliada à escrita como forma de se tornar inteligíveis por todos, uma vez que ser letrado, durante muito tempo, foi privilégio de poucos. Desta maneira, quando surgiram, as histórias em quadrinhos eram muito apreciadas por todo o tipo de público, justamente por serem compreendidas por todos e não exigirem pré-requisitos para serem lidas, o que as tornava uma literatura extremamente popular, democrática e acessível, uma linguagem universal por ser uma linguagem da imagem, espontaneamente apercebida e facilmente decifrada, “não sendo travada nem por raças nem por civilizações diferentes”[...] (MARNY apud ANSELMO, 1975, p.37). Portanto, pelo fato de “falar diversas línguas” e promover uma compreensão universal graças a relação dialética existente entre imagem e texto, as histórias em quadrinhos evoluem e logo se transformam em uma linguagem inovadora e autônoma dos jornais e desde então revistas específicas para esse segmento passam a ser produzidas. Com suas histórias fantásticas, seu faz de conta acessível a todos, seus personagens heróicos, divertidos, assustadores, e críticos foi inevitável que alcançassem um novo grupo: as crianças. As crianças apreciam os quadrinhos por diversos motivos como evidencia Abrahão (1972): 6373 A simples série de quadrinhos, despojada de textos, não deixa de constituir uma fonte de atrativos, para a imaginação ávida da criança. Por sua vez, a mera apresentação da história, apartada das figuras, guarda sempre certa sugestão à curiosidade infantil. Incontestavelmente, porém, a associação do texto e da ilustração, conjugando duas formas sugestivas de expressão, revela-se de especial importância para a compreensão dos pequenos leitores. (ABRAHÃO In: MOYA, 1972, p. 141) Nota-se, pelos argumentos expostos até o presente momento, que o trabalho com quadrinhos tem muito a contribuir no período de alfabetização, podendo favorecer os processos de aquisição da leitura e da escrita de forma lúdica e democrática, já que permitem a leitura e compreensão da mensagem por alunos que estejam em diferentes níveis de alfabetização e ritmos de aprendizagem. Soares (2009) destaca a importância da presença de diversos gêneros textuais na escola que podem contribuir para a alfabetização e o letramento desde a Educação Infantil, e as histórias em quadrinhos também são recomendadas para o avanço na leitura: Outros gêneros de textos também devem ser objeto de leitura do adulto para as crianças: textos informativos (que podem ser lidos em busca de conhecimentos que as crianças revelem não ter, mas desejam adquirir), textos injuntivos (que orientam a prática de jogos e os comportamentos), textos publicitários, textos jornalísticos, histórias em quadrinhos, etc. Ou seja, na educação infantil, a criança pode e deve ser introduzida a diferentes gêneros, diferentes portadores de textos. Além disso, pode-se levá-la a identificar o objetivo de cada gênero, o leitor a que se destina, o modo específico de ler cada gênero. (SOARES, 2009, p.1) No período de alfabetização, quando a leitura é realizada muitas vezes pelo professor ou se caracteriza por ser uma leitura coletiva e compartilhada com os alunos, é necessário também realizar a apreciação e análise do portador do texto, favorecendo o desenvolvimento de estratégias de leitura e apoiando-se também na leitura de imagens para este fim: Naturalmente, para que a leitura oral de histórias atinja esses objetivos, não basta que a história seja lida. É necessário que o objeto portador da história seja analisado com as crianças e sejam desenvolvidas estratégias de leitura, tais como: que a leitura seja precedida de perguntas de previsão a partir do título e das ilustrações; que seja propositadamente interrompida, em pontos pré-escolhidos, por perguntas de compreensão e de inferência; que seja acompanhada, ao término, por confronto com as previsões inicialmente feitas, por meio da avaliação de fatos, personagens, seus comportamentos e suas atitudes. (SOARES, 2009, p.1) Reconhecendo a necessidade de analisar não apenas textos e palavras mas também imagens ao longo do processo de alfabetização e letramento, este trabalho tem como objetivo compartilhar uma experiência com o uso de quadrinhos em sala de aula considerando as possíveis contribuições da alfabetização visual para a prática e 6374 formação de professores alfabetizadores. Pretendemos destacar as diferentes potencialidades que a linguagem dos quadrinhos pode oferecer para além das atividades por vezes difundidas que geralmente envolvem apenas a leitura das histórias como uma atividade de recreação e deleite. Acreditamos que conhecer as contribuições dos quadrinhos e ampliar as possibilidades de seu uso pode impactar positivamente na maneira como os professores utilizam os quadrinhos com seus alunos, ampliando o repertório docente e diminuindo a possibilidade de compreensões equivocadas, principalmente por alunos que ainda se encontram em fase de alfabetização. 2. Os quadrinhos como instrumentos de alfabetização visual para a prática pedagógica Na contemporaneidade muitos são os estímulos visuais que cercam os indivíduos. Seja em ambiente real ou virtual, a comunicação por vezes se dá em um primeiro momento pela linguagem visual para que posteriormente se faça a leitura verbal detalhada daquela peça ou produto. Embora inseridos nesse cenário, muitos docentes - e por consequência seus alunos são vítimas das posturas pedagógicas vigentes nas quais a linguagem verbal adquire maior importância frente à visual a qual, por vezes, é delegada à condição de atividade para o ensino de artes, artesanato e recreação. Tal realidade é destacada por Dondis: O alfabetismo verbal pode ser alcançado num nível muito simples de realização e compreensão de mensagens escritas. Podemos caracterizála como um instrumento [...] Aceitamos a ideia de que o alfabetismo verbal é operativo em muitos níveis, desde as mensagens mais simples até as formas artísticas cada vez mais complexas. Em parte devido à separação na esfera do visual, entre arte e ofício, e em parte devido às limitações de talento para o desenho, grande parte da comunicação visual foi deixada ao sabor da intuição e do acaso. Como não se fez nenhuma tentativa de analisa-la ou defini-la em termos de estrutura do modo visual, nenhum método de aplicação pode ser obtido. Na verdade, essa é uma esfera em que o sistema educacional se move com lentidão monolítica, persistindo ainda uma ênfase no modo verbal, que exclui o restante da sensibilidade humana, e pouco ou nada se preocupando com o caráter esmagadoramente visual da experiência de aprendizagem [...] (DONDIS, 2007, p.16-17). Ao referir-se ao caráter esmagadoramente visual da experiência de aprendizagem a autora enfatiza o alcance característico das imagens: o impacto quase instantâneo de seu significado, e reflete “ver é uma experiência direta, e a utilização de dados visuais para transmitir informação representa a máxima aproximação que podemos obter com relação à verdadeira natureza da realidade” (DONDIS, 2007, p.6-7). Assim, para Dondis é de extrema importância que se desenvolva um “alfabetismo visual”, ou seja, o hábito de 6375 se estudar a linguagem visual tanto quanto a verbal para que se possa tirar melhor proveito de todas as potencialidades que essa linguagem pode oferecer. Silva (1983) também reconhece os desafios que a prática docente e a escola como um todo ainda precisam superar, no sentido de favorecer a leitura e o processo de alfabetização e letramento como ação crítica: A escola é um organismo de máxima importância para a formação do leitor, princialmente porque trabalha com o registro verbal escrito da cultura. Entretanto, devido às circunstâncias concretas para a efetivação do ensino, a educação escolarizada fracassa em sua responsabilidade de formar leitores. Além do próprio desprestígio social do saber, patenteado mais visivelmente pelos constantes cortes de verbas para a educação e pelo desrespeito ao trabalho dos educadores, a leitura escolar na maioria das vezes é encaminhada de forma acrítica e ilegítima. (SILVA, 1983, p. 60) Na composição de linguagens narrativas específicas, como é o caso das Histórias em Quadrinhos, elementos como o ponto, a linha, a forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a escala, a dimensão e o movimento são amplamente explorados e de diversas maneiras, constituindo um rico material de apoio para o exercício de se “alfabetizar visualmente”. Nas Hqs, imagem e palavra apresentam o mesmo peso e se complementam constituindo uma linguagem acessível até mesmo para a parcela de público que, por ventura, não domina totalmente a leitura verbal. Para Will Eisner: As histórias em quadrinhos comunicam numa “linguagem” que se vale da experiência visual comum ao criador e ao público. Pode-se esperar dos leitores modernos uma compreensão fácil da mistura imagem-palavra e da tradicional decodificação de texto. A história em quadrinhos pode ser chamada “leitura” num sentido mais amplo que o comumente aplicado ao termo (EISNER , 1989, p.7). Ao abordar as estratégias de leitura, Solé (1998) também reforça alguns elementos essenciais para que a leitura ocorra durante o período de alfabetização e letramento quando destaca que ler é compreender e compreender, necessariamente, implica na construção de significados, uma vez que é: Um processo que envolve ativamente o leitor, à medida que a compreensão que realiza não deriva da recitação do conteúdo em questão. Por isso, é imprescindível o leitor encontrar sentido no fato de efetuar o esforço cognitivo que pressupõe a leitura, e para isso tem de conhecer o que vai ler e para que fará isso: também deve dispor de recursos […] que permitam abordar a tarefa com garantias de êxito, exige também que ele se sinta motivado e que seu interesse seja mantido ao longo da leitura. Quando essas condições se encontram presentes em um grau, e se o texto o permitir, podemos afirmar que também em algum grau, o leitor poderá compreendê-lo. (SOLÉ, 1998, p. 44) Ao referir-se às ações do leitor como conhecer o que vai ler e para que fará isso, dispor recursos que permitam realizar a leitura com garantias de êxito além de se sentir 6376 motivado e ter interesse ao longo da leitura, Solé parece apontar características muito valorizadas nas práticas de alfabetização e letramento como: apreciar textos lidos pelo professor ou em parceria com a ajuda dos colegas, ler sem saber ler como um exercício individual de conhecimento do portador, das letras e da formação de palavras, manipulação do material e desenvolvimento de um esforço de decodificação. Ao obervarmos essas características, podemos notar as contibuições que os quadrinhos podem oferecer especialmente neste período inicial de alfabetização, bem como ao longo de todos os anos iniciais do ensino fundamental aonde as crianças, ao longo desse período, aprimoram e refinam sua autonomia leitora e escritora. Retomando a postura de Eisner referente à facilidade de apreensão do conteúdo verbal/visual das Hqs corroboram o potencial de seu uso em ambiente escolar, inclusive para a ampliação do repertório não somente verbal, mas também visual dos leitores/alunos. Vergueiro (2004) também destaca a eficiência do ensino através de imagens, além da linguagem escrita somente, afirmando que imagem e palavra juntas criam um novo nível de comunicação: Palavras e imagens, juntos, ensinam de forma mais eficiente – a interligação do texto com a imagem, existente nas histórias em quadrinhos, amplia a compreensão de conceitos de uma forma que qualquer um dos códigos isoladamente, teria dificuldades para atingir. Na medida em que esta interligação texto/imagem ocorre nos quadrinhos com uma dinâmica própria e complementar, representa muito mais do que o simples acréscimo de uma linguagem à outra – como acontece, por exemplo, nos livros ilustrados – mas a criação de um novo nível de comunicação, que amplia a possibilidade de compreensão do conteúdo programático por parte dos alunos. (VERGUEIRO, 2004, p.22) Tomar conhecimento das possibilidades de interpretação das Histórias em Quadrinhos e ampliar seu uso em sala de aula para além de somente a leitura verbal pode, portanto, favorecer a elaboração e a prática por parte dos docentes de exercícios de “alfabetização visual”. Em ambiente escolar, quando realizada em conjunto pelo professor e seus alunos, a análise exploratória dos elementos constituintes da linguagem das Hqs, tais como a composição dos balões e seus significados, as onomatopeias empregadas, as expressões faciais dos personagens, a representação de ambientes e vestimentas, a colorização, a relação luz e sombra gerando a tridimensionalidade da forma, entre outros aspectos, podem contribuir para esse “refinamento” do olhar na busca por enxergar de maneira mais aprofundada e crítica as imagens e seus significados. 3. Metodologia Entre as diversas metodologias existentes para a realização de pesquisas em Educação, a pesquisa qualitativa têm se tornado a opção de inúmeros pesquisadores que veem em suas características uma forma adequada e coerente de coletar e trabalhar seus dados 6377 que envolvam o ambiente de sala de aula. Acredita-se que a pesquisa qualitativa apresenta características que se adequam melhor às propostas presentes nesta pesquisa. Para elucidar melhor a conveniência do uso dessa metodologia de pesquisa como base para os estudos, acreditamos ser relevante apontar, segundo Bogdan e Biklen, as cinco características preponderantes para que uma investigação seja considerada qualitativa: i – Na investigação qualitativa a fonte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal; ii – A investigação qualitativa é descritiva; iii – Os investigadores qualitativos interessamse mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos; iv – Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva; v – O significado é de importância vital na abordagem qualitativa (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 47-50) Acredita-se que o estudo ora apresentado possui o caráter sugerido por Bogdan e Biklen (1994) contemplando essas cinco características que fazem parte dos estudos de caráter qualitativo. O desenvolvimento da pesquisa e a coleta de dados foram realizados em uma classe do quinto ano do ensino fundamental em uma escola situada no interior do estado de São Paulo. A coleta de dados realizada nesta pesquisa envolveu registros em vídeo e escritos de 28 alunos de alunos que participaram ativamente das atividades propostas pela professora/pesquisadora durante as aulas de Ciências. Contudo, foi necessário estabelecer alguns critérios na seleção dos dados, de modo a tornar as análises consistentes e coerentes: dos 28 alunos autorizados a participarem da pesquisa, 8 alunos faltaram ao menos um dos cinco dias de coleta. Partindo então deste novo número (total de 20 alunos), foi estabelecido outro critério que acredita-se ser relevante para que a análise fosse mais específica: dos 20 alunos, 6 deles deixaram ao menos uma resposta ou mais em branco, o que resultou em um total de 14 alunos com dados, na íntegra, disponíveis para a análise. Assim, com um total de 14 alunos presentes nos quatro dias de coleta e com todas as atividades preenchidas e/ou realizadas, deu-se a separação desses alunos em grupos de afinidade de resultados. A partir desses grupos, foi selecionada uma amostra de seis alunos que se mostraram sensíveis às práticas realizadas, representando de forma coerente os demais colegas. 4. Análise dos Dados: a leitura de palavras e imagens na história em quadrinhos “Chico Bento em: Arroz, feijão e ovo frito” A professora/pesquisadora deu início à aula, partindo de um assunto que surgiu na aula anterior, também com uma história em quadrinhos, – a morte de animais por luxo versus a necessidade da alimentação – esclarecendo aos alunos que conhecer melhor os seres 6378 vivos implica também em estudar quais são as funções que eles exercem e de que forma se sustentam. A partir desse diálogo inicial, a professora apresentou-lhes (com uma cópia para cada aluno realizar a leitura compartilhada) a história em quadrinhos “Chico Bento em Arroz, feijão e ovo frito” (SOUSA, 1993) que possui um enredo capaz de fomentar diversas reflexões tais como: as diferenças de alimentação no campo e na cidade, os hábitos alimentares de quem vive nesses espaços, a importância de valorizar aquilo que se come e conhecer as funções exercidas pelos seres vivos – produtor/consumidor/ decompositor –, sendo esta última a reflexão – funções dos seres vivos – a escolhida pela professora para discutir com os alunos. A docente solicitou então, como primeira atividade, que os alunos realizassem a leitura silenciosa da história em quadrinhos de modo a proporcionar um contato inicial com o enredo escrito da história e suas imagens. Em seguida, a professora abriu espaço para perguntas e dúvidas encontradas na leitura individual realizada, mas como não houve dúvidas, partiu-se então para a distribuição da TAHQ ou Tabela de análise das Histórias em Quadrinhos – Tabela 1 – criada pela própria professora/pesquisadora a qual novamente fez a leitura das questões e abriu espaço para perguntas. Tabela 1 – TAHQ – Tabela de Análise da História em Quadrinhos TAHQ - TABELA DE ANÁLISE DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS (AULA 2) Nome: _________________________________________________________ Série:_______________________________ Data: _______________________ Nome da HQ: Chico Bento em Arroz, Feijão e Ovo Frito Local no qual se passa a história Personagens (em ordem de importância) Partes mais importantes da HQ Quais alimentos aparecem na HQ? Qual é a principal mensagem da HQ? Fonte: PIZARRO, 2009 Os alunos demonstraram os seguintes resultados nas respostas a essa tabela: quatro dos seis alunos analisados apresentaram dificuldades em respondê-la. Esse número se dá especificamente por conta da última questão (“Qual é a principal mensagem da hq?”), pois percebe-se já pela TAHQ, que os alunos não apresentam dificuldades em destacar o local onde se passa a história, os personagens e as partes mais importantes. Contudo, a questão que envolve uma generalização acerca da mensagem da HQ, os alunos ainda se equivocaram. Os alunos A1, A3, A4, A5 apresentaram as seguintes respostas à essa indagação: A1: “Ele quis dizer que nem sempre não tem as coisas”; A3: “Que ele não gosta de arroz, feijão e ovo frito”; A4: “Deus nos preparou o que nós necessitamos” e A5: “Arroz, feijão e ovo frito”. Já os alunos A2 e A6, conseguiram detectar a principal mensagem da história: A2: ”Ele quis nos dizer que nem sempre a pessoa pode ter o que 6379 quiser”; A6: “Que devemos comer o que temos porque tem muita gente passando fome no mundo”. Observando as principais discussões que poderiam ser fomentadas pelo enredo da história, podemos notar que a discussão sobre os hábitos alimentares poderia ser tomada como mensagem mais importante da HQ. Contudo, a valorização que o personagem Chico Bento deu à sua comida simples da roça, foi o que mais chamou a atenção desses alunos. Nesse sentido, importa destacar que o ponto de vista do aluno é “atravessado” por questões de seu meio social, questões estas que exercem uma determinada influência. Dessa forma, uma das razões pelas quais essa interpretação pode ter ocorrido se deve à dura realidade vivida pelos alunos participantes desta pesquisa, que moram e estudam em um dos bairros mais pobres e violentos da cidade. No dia a dia deles, a valorização das coisas mais simples é nítida, pois tudo se consegue com muito esforço – ou até mesmo com a ajuda de outros. Após o preenchimento da TAHQ, a professora realizou a leitura da história com todos os alunos e colocou em discussão, novamente, a mensagem principal da história. Quando a professora/pesquisadora realiza essa intervenção e através do diálogo, leva os alunos a refletirem sobre as possíveis mensagens da história, e apresenta aos alunos as diversas possibilidades de compreensão da história, principalmente através da leitura das imagens, como é possível observar no conteúdo apresentado na Tabela 2, aonde “P” indica a fala da professora e “Todos” indica a fala dos alunos uma vez que o diálogo e a leitura compartilhada foram feitas de modo coletivo: Tabela 2: Resultado da leitura coletiva da História em quadrinhos “Chico Bento em Arroz, feijão e ovo frito” (SOUSA, 1993) Resultado da leitura coletiva da História em quadrinhos “Chico Bento em Arroz, feijão e ovo frito” Respostas dos alunos (amostra) Perguntas da professora P: Antes do Chico Bento ir pra cidade, aonde ele vai? P: Na casa de vários amigos tentar encontrar alguma comida diferente. Ele encontra? P: Daí quando ele chega em casa a mãe dele tem uma novidade. Qual é? P: O tio dele veio buscar ele para levar aonde? P: E lá na cidade, o que é que ele faz? P: Detona de comer... comida saudável? P: Não... ele detona de comer as famosas “porcarias” que o pessoal chama, né? Aí ele come, come , come e daí o que é que tem de café da manhã na cidade? P: O que é que tem almoço? P: O que é que tem de janta? P: O que é começa a acontecer com ele? P: Ele passa mal! Ninguém consegue comer sempre essas comidas rápidas chamadas de “fast food” ou industrializadas e se sentir bem. Daí ele vai arrumar as coisas pra ir pra onde? 6380 Todos: Na casa dos amigos... Todos: Não! Todos: O tio dele... o tio dele... o tio. Todos: Na cidade! Todos: Come muito... come um monte de coisa... come pizza. Todos: Não! Todos: Hamburger. Todos: Pizza! Todos: Cachorro-quente! Todos: Ele enjoa... ele começa a enjoar... ele passa mal. Todos: Pra casa dele! P: Pra voltar pra casa. E quando ele chega em casa a mãe dele fala que tem só o que? P: E ele fica contente ou triste? P: Por que? P: Olha aí ó, de noite antes de dormir ele tomava refrigerante. Vocês acham que isso é um hábito alimentar correto? P: Não, né? Então quando ele volta pra casa ele fica contente, né, de voltar a comer a comida dele que é uma comida saudável ou não? P: Perto do que ele comia na cidade, é! Embora dentro do prato de arroz, feijão e ovo frito tenha bastante coisa pesada. E quais são aos alimentos que aparecem na história em quadrinhos? Todos: Arroz, feijão e ovo frito! Todos: Contente! Todos: Porque ele vai comer comida saudável... por que ele não queria mais a comida da cidade... Todos: Não! Todos: É! Todos: Arroz... feijão... ovo frito... pizza... hamburger... cachorro quente... refrigerante... milkshake... algodão doce... pipoca... P: Muito bem! E para entender qual é a mensagem da HQ, é preciso ler ela. Fonte: PIZARRO, 2009 A atividade proposta em seguida pela professora/pesquisadora consistiu em solicitar aos alunos que listassem e relacionassem as comidas que apareciam na história em quadrinhos nos dois ambientes do campo e da cidade e em seguida, comparassem e classificassem de acordo com suas origens: vegetal e animal. Essa proposta teve como foco oferecer aos alunos a chance de “ler” a história por outras características presentes e não apenas pelas palavras a balões. A primeira atividade foi realizada pelos alunos sem maiores dificuldades, graças à liberdade que a leitura das imagens oferece, inclusive para aqueles alunos que não estão plenamente alfabetizados. Já na atividade seguinte, na qual eles deveriam comparar quais ingredientes dessas comidas teriam origem vegetal ou animal alguns alunos encontraram dificuldades, mesmo contando com orientações prévias da professora/pesquisadora que forneceu exemplos de comparação e classificação. Os alunos compararam e relacionaram oralmente as informações fornecidas pela professora, que esteve a todo o momento, convidando os alunos a participarem dessas reflexões. Toda essa fundamentação estabelecida oralmente foi de grande importância para a atividade seguinte, na qual os alunos deveriam colocar em prática esses procedimentos, classificando o seu prato favorito. Foi solicitado então aos alunos que escrevessem o nome de seus pratos favoritos, os ingredientes que compõem esse prato e qual a origem desses ingredientes: se a origem foi em produtor, consumidor ou decompositor. Nenhum dos seis alunos encontrou dificuldades na classificação desses alimentos como mostra a Tabela 3. Tabela 3: Respostas dos alunos à atividade de comparação e classificação de ingredientes de acordo com a origem em produtores, consumidores e decompositores, após a mediação docente. Aluno Nome do meu prato favorito Ingredientes Produtores 6381 Consumidores Decompositores A1 Arroz, feijão, tirinhas de frango Arroz, bife e salada Massa de trigo, frango, arroz e feijão Arroz, alface, tomate, repolho, cebola, pepino, carne A3 Coxinha de presunto A4 A5 Pão frito Lanche A6 Lasanha Massa de trigos, massa de batata, presunto Pão, manteiga Pão Pão com tomate, Tomate, alface, queijo, e alface hambúrguer Presunto, queijo, Trigo, molho, farinha de tomate, trigo, salsa salsa PIZARRO, 2009 A2 Arroz e feijão Frango Arroz, alface, tomate, repolho, cebola, pepino Trigo, batata Carne Presunto Manteiga Queijo e hamburguer Presunto, queijo Logo após essa atividade, a professora propôs aos alunos uma tentativa de realizar a mesma classificação dos alimentos, porém com pratos que eles não conheciam: pratos caipiras, com ingredientes previamente apresentados. A proposta desta atividade tinha o intuito de elevar o grau de dificuldade no uso dos procedimentos de comparação, descrição e classificação. Dessa maneira, os seis alunos em questão que na ocasião, realizavam essas atividades em grupo, apresentaram os seguintes resultados apresentados na Tabela 4: Tabela 4: Respostas dos alunos à atividade de comparação e classificação de ingredientes dos pratos caipiras de acordo com a origem em produtores, consumidores e decompositores. Aluno Prato De onde vêm? É produtor, consumidor ou decompositor? A1 Arroz carreteiro: Arroz Do arroz Produtor Linguiça de porco Do porco Consumidor Toucinho de porco Do porco Consumidor Carne seca (boi) Do boi Consumidor Óleo Da soja Produtor A2 Arroz carreteiro: Arroz Do arroz Produtor Linguiça de porco Do porco Consumidor Toucinho de porco Do porco Consumidor Carne seca (boi) Do boi Consumidor Óleo Da soja Produtor A3 Arroz carreteiro: Arroz Do pé de arroz Produtor Linguiça de porco Do porco Consumidor Toucinho de porco Do porco Consumidor Carne seca (boi) Do boi Consumidor Óleo Da soja Produtor A4 Feijão tropeiro: Farinha de mandioca Do trigo Produtor Toucinho de porco Do porco Consumidor Feijão Do pé de feijão Produtor Ovo Da galinha Consumidor Cebola Do pé de cebola Produtor A5 Feijão tropeiro: Farinha de mandioca Do trigo Produtor Toucinho de porco Do porco Consumidor 6382 A6 Feijão Ovo Cebola Arroz com frango: Arroz Galinha caipira Cebola Milho Óleo Do pé de feijão Da galinha Do pé de cebola Arrozeiro Do animal Pé de cebola Milharal Soja Fonte: PIZARRO (2009) Produtor Consumidor Produtor Produtor Consumidor Produtor Produtor Produtor Procedimentos como o registro de suas reflexões, análise dos balões, onomatopeias e imagens durante a leitura individual e coletiva, o estabelecimento de relações entre ambientes rural e urbano e suas características de hábitos alimentares, comparação (oral e escrita) de suas respostas com as dos demais colegas objetivando a revisão de suas próprias posturas, descrição das características das funções de produtores, consumidores e decompositores e a classificação dos alimentos de acordo com sua origem, permitiram que os estudos a partir da história em quadrinhos fossem gradualmente aprofundados, aliado à mediação da professora. Foi notória também nesta aula uma melhora relevante nas respostas dos alunos às atividades, quando essas foram realizadas após a mediação docente, o que nos leva novamente a destacar o impacto da mediação docente para o estabelecimento de funções didáticas à HQ no ensino. 5. Conclusões Presentes nos livros didáticos, nos materiais de apoio, nas campanhas de conscientização e nos principais métodos de seleção e avaliação do país – concursos públicos, vestibulares, avaliações de ciclo nas redes estaduais de ensino, entre outros –, o estreitamento de relações entre os quadrinhos e a sala de aula, trazendo os interesses dos alunos para dentro desse espaço, se tornou um importante objeto de pesquisa no campo educacional. O desafio diário de educadores e gestores em educação é tornar a escola um espaço cada vez mais agradável e atraente para o aluno, especialmente para aqueles que muito pouca chance tem, de contar com uma realidade que os faça sentir-se motivados. Tornar as aulas mais atraentes, envolver os professores com a realidade dos alunos e formá-los para o hábito de aprimorar suas próprias práticas, têm sido um desafio para quem está na sala de aula e no meio escolar, diariamente. Especificamente em relação à história ora apresentada como uma proposta de ação pode-se verificar o quão importante foi a realização de uma leitura completa da história envolvendo linguagem verbal e visual e dando a ambas o mesmo peso para a compreensão da história e o desenvolvimento das atividades. Todas as atividades propostas e elaboradas pela professora/pesquisadora estavam diretamente ligadas à compreensão da história pela leitura de balões e também de imagens. Muito embora o foco principal das atividades não tenha sido apenas a leitura de imagens, todas as ações 6383 dos alunos estiveram vinculadas a esse procedimento. Elaborar e desenvolver atividades a partir das HQs pode ir muito além das atividades atualmente desenvolvidas, sendo possível ao próprio docente desenvolver seus métodos e instrumentos de ação – como foi o caso da criação da Tabela de Análise das Histórias em Quadrinhos (TAHQ). Por parte dos docentes, adotar a postura de conhecer mais sobre a linguagem das HQs, de suas potencialidades verbais e visuais, além de olhar para o recurso de maneira crítica pode auxiliar sua prática diária, bem como seu alinhamento às expectativas dos alunos na atualidade. Nesse sentido, acredita-se ser pertinente destacar a importância do estímulo às pesquisas que tenham por objetivo aprimorar práticas de ensino e de avaliação de aprendizagens derivadas da utilização de quadrinhos em diversas áreas da Educação, que contam com diversos enredos de histórias em quadrinhos que podem contribuir de maneira lúdica e eficiente para o desenvolvimento de conteúdos estimados relevantes para o processo de alfabetização neste ciclo da Educação Básica. Referências ABRAHÃO, A. Pedagogia e Quadrinhos. In: MOYA, A. Shazam! 2ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972 ANSELMO, Z. A. História em Quadrinhos. Petrópolis: Vozes, 1975 DONDIS, D. A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BOGDAN, R; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação – uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994. EISNER, W. Quadrinhos e Arte Seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1989 MARNY, J. Sociologia das Histórias aos Quadrinhos. In: ANSELMO, Z. A. História em Quadrinhos. Petrópolis: Vozes, 1975 PIZARRO, M. V. Histórias em quadrinhos e o ensino de Ciências nas séries iniciais: estabelecendo relações para o ensino de conteúdos curriculares procedimentais, 2009, 188f. Dissertação (Mestre em Educação para a Ciência) - UNESP, Faculdade de Ciências, Bauru, 2009. SILVA, E. T. da. Leitura & realidade brasileira. Mercado Aberto, 1983. SOARES, M. Alfabetização e letramento na Educação Infantil. Revista Pátio Educação Infantil, ano VII, n. 20, Oralidade, alfabetização e letramento, jul/out, 2009. Disponível em: http://falandodospequenos.blogspot.com.br/2010/04/alfabetizacao-e-letramento-naeducacao.html Acesso em 20 jan 2016. SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998. SOUSA, M. Chico Bento em Arroz, Feijão e Ovo Frito. Chico Bento. São Paulo: Editora Globo. nº167.p. 27-33. junho. 1993. VERGUEIRO, W. et al. Como usar história em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004 6384