Ética fenomenológica: do reconhecimento mútuo à alteridade em Paul Ricoeur Éthique phénoménologique: de la reconnaissance mutuelle de l’altérité dans Paul Ricoeur Resumo Este estudo tem por objetivo empreender a ética fenomenológica a partir da constituição do reconhecimento mútuo da alteridade edificada pelo pensador francês Paul Ricoeur. O filósofo aspira superar a luta de reconhecimento proposta pelo pensamento filosófico. Isso significa exceder um sistema consolidado e propor um novo modo de pensar. A tese central consiste no esquecimento da dissimetria, ou seja, o cerimonial da troca de dons que antecede a dissimetria originária. Ela se concretiza na relação social, no reconhecimento mútuo de um para com o outro e dá-se na doação que precisamente denota gratidão. Para que exista a relação ética de reconhecimento na sociedade é fundamental resgatar o sentido do dom, da gratidão. Para evidenciar essa proposição, o estudo, além de conter a introdução, estará dividido em dois momentos. No primeiro, verificar-se-á como Ricoeur demonstra, a partir da fenomenologia, a impossibilidade de reconhecimento. Primeiro porque Husserl prioriza o ego, enquanto Levinas valoriza o alter; desse modo, a dissimetria não é superada por nenhum dos pensadores. No segundo momento, de maneira interligada ao primeiro, examinar-se-á a extraordinária proposição de Ricoeur sobre a troca de dons e como ele constitui a ética fenomenológica, a paz para o mundo contemporâneo. Aqui ocorre a substituição da ideia de luta pela ideia de dom. Palavras-chave fenomenologia; ética; reconhecimento; luta; alteridade e dom. Résumé Cette étude vise à entreprendre l’éthique phénoménologique de la Constitution de la reconnaissance mutuelle de l’altérité, édifiée par le penseur français Paul Ricoeur. Le philosophe aspire à surmonter la lutte pour la reconnaissance, proposée par la pensée philosophique, ce que signifie surmonter un système consolidé et proposer une nouvelle façon de penser. La thèse centrale est l’oubli de l’asymétrie, c’est-àdire, l’échange cérémoniel de cadeaux avant est originaire et précède la dissymétrie. Cet échange met l’accent sur les relations sociales et sur la reconnaissance mutuelle de l’autre et se déroule dans le don qui appelle précisément la gratitude. Les relations éthiques de reconnaissance dans la société sont essentielles pour sauver le sens du don, la gratitude. Pour démontrer cette proposition, l’étude, sera étayée en deux phases, outre l’introduction. La première partie indique que Ricœur montre l’impossibilité de la phénoménologie de la reconnaissance, étant donné que Husserl prend l’ego pour point de départ, tandis que Levinas, pour sa part, met l’accent sur autrui ; ainsi, la dissymétrie n’est pas surmontée ni par Husserl, ni par Levinas. La deuxième partie de cette étude examinera la proposition extraordinaire de Ricoeur sur l’échange de cadeaux, et comment elle constitue la phénoménologie, ainsi que l’éthique de la paix dans le monde contemporain. Ricœur finit par remplacer l’idée de lutte par l’idée de don. Mots clés phénoménologie, éthique, reconnaissance, combat, altérité et don. Silvestre Grzibowski Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) [email protected] Introdução O empreendimento de Ricoeur nas obras o Percurso do reconhecimento (RICOEUR, 2006) e A luta por reconhecimento e a economia do dom (RICOEUR, 2010) é trazer para o debate a questão do reconhecimento, buscando superar a ideia de luta e a assimetria, como entende a filosofia, e apresentar pressupostos naturais à reciprocidade e ao reconhecimento mútuo a partir da economia do dom. A troca de dons (presentes) consiste no respeito mútuo de um para com o outro (RICOEUR, 2006, p. 164). Os problemas que giram em torno do reconhecimento são a luta e a dissimetria. De acordo com sua teoria, esse é o obstáculo a ser desbaratado. Como ele mesmo afirma, se permanecermos somente no horizonte de luta por reconhecimento, criaremos uma demanda insaciável, porque a luta produzirá uma sociedade marcada pela guerra, violência e conflitos sociais. Desse modo, a infelicidade alojar-se-á na vida dos sujeitos e a paz se distanciará. Por isso, o plano de Paul Ricoeur é fazer um estudo sobre este tema e apresentar novas perspectivas, que são probabilidades para a ética fenomenológica. No entanto, é importante frisar neste momento de nosso estudo que em nenhum momento Ricoeur abandona a dissimetria originária, aliás, ela é fundamental para a constituição da intersubjetividade ética entre sujeitos diferentes. Essa é uma tese fundamental defendida já em Soi-même comme un autre1 (RICOEUR, 1996) e aparece ainda, de modo consistente, em Percurso do reconhecimento (Parcus de la reconnaissance) (RICOEUR, 2006). Sustenta ainda que o ser de si é relação. No encontro com a alteridade, o outro provoca uma descentralização, uma saída de si, sem a perda de si mesmo. Por isso, Ricoeur afirma que os sujeitos trocam dons, mas não lugares. “A admissão da dissimetria ameaçada de esquecimento vem recordar, em primeiro lugar, o caráter insubstituível de cada um dos parceiros da troca; um não é o outro; trocam-se dons, mas não lugares” (RICOEUR, 1 Sobre este tema, conferir o estudo de Douek Safdie (2011, p. 42-49), sobretudo no item a “Hermenêutica do si”. 110 2006, p. 272). Ou seja, a diferença, a dissimetria originária, não é exclusivamente mantida, mas é essencial para a ética do respeito de um para com o outro. Porém, esta relação torna-se comprometida quando há um privilégio do ego ou do outro. Na obra sobre o reconhecimento, Ricoeur faz um verdadeiro percurso2 de luta pelo reconhecimento de si mesmo pelos outros; assim, discorre sobre diversos pensadores e filosofias e chega a Hegel. Ao pensador de Iena concede um lugar todo especial, porque Hegel, em contraposição a Hobbes, substitui o medo da morte violenta e a luta pela sobrevivência. No pensamento político de Hobbes, as pessoas “unem-se” e lutam pela autopreservação da vida, ou seja, unem-se porque temem por sua própria sobrevivência. Em contrapartida, para Hegel, a luta pelo reconhecimento é pelo outro para o outro, existe um reconhecimento do outro, embora para Hegel o outro ainda seja consciência-de-si. Hobbes caracteriza o estado de natureza a partir do medo da morte e, por isso, a necessidade de as pessoas viverem próximas e “unirem-se” entre si e ambicionarem o reconhecimento; assim, lutam entre si, travam batalhas. Esse pensamento contribuiu ao debate por trazer um teor político sobre o reconhecimento (SALDANHA, 2009), por isso é dado um destaque todo especial ao pensador de Iena, que o introduziu na história da filosofia ocidental. “O conceito de reconhecimento entrou na filosofia essencialmente pelo filósofo alemão Hegel, quase no início de sua obra filosófica de Iena, entre 1802 e 1806” (RICOEUR, Percurso, porque o pensador, além de apresentar um estudo sobre o significado, mostra onde a palavra reconhecimento apareceu na história da filosofia, como ele mesmo expressa no prefácio da obra. “Conceder à série de ocorrências conhecidas da palavra ‘reconhecimento’ a coerência de uma polissemia regrada, digna de oferecer a réplica à do plano lexical […], em primeiro lugar, a promoção do reconhecimento-identificação, em segundo lugar a transição que conduz da identificação de algo em geral ao reconhecimento por si mesmas de entidades especificadas pela ipseidade e, por fim, do reconhecimento de si mesmo ao reconhecimento mútuo, até a última equação entre reconhecimento e gratidão” (RICOEUR, 2006, p. 10). 2 Impulso, Piracicaba • 24(59), 109-119, jan.-abr. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p109-119 2010, p. 291).3 No entanto, da constatação, Ricoeur quer mais, e pergunta-se se não teríamos de encontrar em nossa experiência cotidiana a experiência de sermos reconhecidos, de sermos efetivamente reconhecidos, uma mudança a que é precisamente a troca do dom. É, então, isso uma tentativa que desconheço o sucesso, mas da qual estou certo que é fecunda, para completar e, ao final, corrigir a ideia violenta de luta pela ideia não violenta do dom (RICOEUR, 2010, p. 292). Não há dúvida de que Ricoeur busca contrapor a teoria de luta pela ideia de dom, ou seja, quer mostrar outro modo de reconhecimento, ou outro modo de construir relações éticas e, consequentemente, edificar a serenidade. Desse modo, ele acalora o debate sobre a luta de reconhecimento e deseja incansavelmente contrapor-se a essa teoria, substituindo-a pelo reconhecimento mútuo a partir das formas não violentas, não conflituosas, pois, segundo ele, o conflito foi a Não apresentarei aqui um estudo pormenorizado da obra de Paul Ricoeur sobre o reconhecimento porque não é meu objetivo e porque já existem outros estudos sobre este aspecto. Entre outros cito: CORÁ, Elsio José; NASCIMENTO, Claudio Reicher do. Reconhecimento em Paul Ricoeur: da identificação ao reconhecimento mútuo. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, n. 2, v, 45, p. 407423, 2011. Como de Jean Greisch “Les combats pour la, reconnaissance ne sont jamais gagnés d´avance, mais ils nous entraînent sur des champs de bataille toujours nouveaux. Malgré La fascination que Ricoeur éprouve face aux grands textes de la Realphilosophie, qui on le mérite d´inscrire définitivement le théme de la reconnaissance au creux de la philosophie politque, Il marque as réserve face à la conception hégélienne de l´Esprit, qui fait que la manière dont l´Esprit se trouve dans son autre reste fondamentalement une relation de soi à soi-même” (GREISCH, 2006, p. 164). “No Hegel de Iena, o reconhecimento surge com as relações de direito. O direito é reconhecimento recíproco. A relação com Hobbes é aqui muito complicada: Hegel vê a determinação do direito em Hobbes como proveniente de fora do indivíduo […]. É em uma filosofia do mesmo que o reconhecimento surge. Trata-se, para Hegel, observa Taminiaux, de seguir no próprio conteúdo um movimento de encaminhamento rumo ao direito do reconhecimento” (RICOEUR, 2006, p. 196). 3 herança hegeliana. “É por esta razão que reabro a questão do dom em um momento que se pode dizer inesperado de minha análise, e estou consciente do hiato que crio em meu próprio discurso ao passar da ideia de luta à ideia de dom” (RICOEUR, 2010, p. 297). A pretensão de suplantar a ideia de luta pela ideia de dom consistirá, em nosso modo de ver, em extrapolar especialmente a dissimetria e luta para propor uma relação pautada no reconhecimento mútuo com respeito à alteridade. Segundo Ricoeur, essa relação antecede a proposição da fenomenologia, que reduz ou subordina o outro ao ego e/ou ego ao outro. O ponto fundamental, para Ricoeur, é que ele não aceita como ponto de partida a assimetria nas relações interpessoais e sociais e, consequentemente, a posição conflituosa no reconhecimento do outro (ROSSATTO, 2006, p. 164). O filósofo buscará edificar o pensamento sobre o reconhecimento de um para com o outro, que não esteja centrado nem no ego nem no outro, mas na simultaneidade entre ambos, sobretudo na troca de dons na qual os indivíduos respeitem-se e reconheçam-se uns aos outros. Conforme indiquei, a dificuldade é encontrada na “fenomenologia, ao derivar a reciprocidade da dissimetria presumidamente originária da relação do eu com outrem” (ROSSATO, 2006, p. 168). Ela persiste tanto na fenomenologia da percepção apresentada por Husserl como na de Levinas, que teve como seu ponto de partida o outro, ou o totalmente outro, presente em carne e osso (rosto) diante do sujeito responsável e não tematizado (representado). Qual é, precisamente, a dificuldade encontrada na fenomenologia, e como buscar uma solução para o reconhecimento mútuo e o respeito à alteridade? A discussão sobre o fenômeno, exatamente sobre o outro, e toda a inesgotável discussão, é arriscada e complicada. No entanto, Ricoeur atreve-se a fazer um giro paradoxal e proporciona uma leitura formidável sobre o tema. Isso não exclui a complexidade e a dificuldade encontrada por ele e pelos leitores. Isso prova que o pensador francês, além de ser um grande filósofo, era também um exímio comentador, pois elevava temas bem específicos, às vezes desprezados, e trazia-os Impulso, Piracicaba • 24(59), 109-119, jan.-abr. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p109-119 111 para o debate acadêmico. Um desses tópicos era a questão da alteridade e toda a contenda sobre a constituição do outro; além disso, dava um valor especial aos pensadores que problematizavam essa temática porque a questão do outro foi praticamente ignorada na história da filosofia ocidental e, por conseguinte, poucos pensadores ousaram debater o tema abertamente. Como dar vez ao outro enquanto outro e à manifestação da alteridade absoluta? Assim se justifica a escolha de dois grandes pensadores, Husserl e Levinas, porque foram dois grandes fenomenólogos que discutiram corajosamente a questão do outro na filosofia. Husserl e a questão da dissimetria Husserl apresenta fenomenologicamente a questão do outro, do estranho, para o pensamento filosófico, especificamente na Quinta meditação cartesiana”4 (HUSSERL, 2004). Como Paul Ricoeur afirma, a questão do outro é a pedra de toque da fenomenologia transcendental (2009, p. 215). O grande problema é que os críticos de Husserl5 perceberam que o outro e toda a sua existência passam a existir a partir da animação intencional do eu. Portanto, a existência do outro não passa de uma constituição transcendental do ego. Paul Ricoeur reconhece as tentativas de trazer para o debate filosófico a questão do outro, precisamente a husserliana, pois ela foi a mais audaciosa, primeiro, porque parte do ego e, posteriormente, a constituição da comunidade do ego a partir da constituição do alter ego.6 Assim, a filosofia tem a passagem obrigatória pelo ego.7 Ou seja, Husserl reconhece a existência do outro, mas a grande Logicamente, este é apenas um dos temas dentre outros existentes. 5 São muitos. Cito apenas alguns, como Ricoeur, Emmanuel Levinas, Michel Henry, Maurice MerleauPonty, Edith Stein. 6 Todos os vocábulos grifados servem para destacar a derivação e assim são encontrados nas obras de Husserl e dos outros fenomenólogos citados. 7 “A fenomenologia assume, desde o ponto de partida, todas as dificuldades de uma egologia, para a qual só eu sou eu” (RICOEUR, 2009, p. 187; grifo do autor). 4 112 questão é que ele nasce na própria consciência ou segundo ego, se é que podemos chamar assim, pois, para Husserl, o outro não está aí, sem mais dado propriamente ele mesmo, senão que está constituído como alter ego; onde o ego aludido como parte por esta expressão (alter ego) sou eu mesmo no meu próprio. O outro remete, por seu mesmo, e, não é propriamente reflexo; é um análogo de mim mesmo. (HUSSERL, 2004, p. 154. Grifos do autor). Nota-se a dificuldade que Husserl teve para sair da egologia, porém isso não exclui as tentativas e possibilidades realizadas. Ricoeur, ao fazer uma exegese das tratativas dos escritos husserlianos, averigua a constituição da alteridade em Husserl e destaca como ele a funda. Veja: A alteridade de outrem, como toda outra alteridade, se constitui em (in) mim e a partir (aus) de mim; mas é precisamente como o outro que o estranho é constituído como ego para si mesmo, isto é, como um sujeito de experiência a mesmo título que eu, sujeito capaz de perceber a mim mesmo como pertencendo ao mundo de sua experiência. (RICOEUR, 2006, p. 169. Grifos do autor). O outro não passa a ter sua própria existência e, se a tem, ele é constituído em mim e a partir de mim, portanto passa a existir a partir da minha própria constituição. O outro é outro ego, e não outro como alteridade. Para existir, o outro depende totalmente do ego, o outro como análogo. O grande problema encontrado por Ricoeur, Michel Henry e Levinas é que Husserl tornou essa missão difícil ao levar a redução do ego ao ponto da esfera do próprio.8 Conferir presença ao outro significa “transgredir a minha esfera própria de existência, para fazer 8 “Se lo propio es en verdad lo propio de mí, del ego, sólo la naturaleza del ego puede decir y definir lo que le es propio. Lo propio en calidad de lo propio del ego” (HENRY, 2009, p. 188). Impulso, Piracicaba • 24(59), 109-119, jan.-abr. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p109-119 surgir, nos limites do meu vivido, um acréscimo de presença, incompatível com a inclusão de todo o sentido em meu vivido” (RICOEUR, 2009, p. 311). Por isso, Husserl, ao explorar a tese sobre o outro, e na tentativa de defender a alteridade mantém até o final a preocupação “descritiva de respeitar a alteridade do outro e a preocupação dogmática de fundar o outro na esfera primordial de pertença encontram o seu ponto de equilíbrio na ideia de uma apreensão analogizante do outro. (2009, p. 311). Permanece a questão em relação ao outro, porque o outro, além de ser outro, é semelhante. Husserl desenvolve esta teoria por meio do conceito de equiparação, ou emparelhamento (Paarung); assim, demonstra que a esfera do próprio efetua a apresentação de tudo que é “presentificado” pelo outro por meio de seu corpo; isso é um indicativo de que suas vivências pertencem-lhe e não se confundem com as vivências do ego. Essa mesma carne minha oferece-se ao análogo primeiro de uma carne outra, cuja experiência imediata, intuitiva, permanecerá para mim para sempre inacessível; desse ponto de vista, ela é a verdade insuperável da dissimetria originária no plano perceptivo e intuitivo. (RICOEUR, 2006, p. 169). O que importa para Ricoeur é que esta apreensão analogizante faz sentido por transposição pré-intelectual, que faz da relação do eu com o estranho uma relação puramente de profusão. E desta nasce um triplo reforço: o primeiro seria de “aparentamento” (Paarung)9 de dois, pares; o segundo, na concordância de ideias, gestos, expressões, e, 9 “Com efeito, não há sentido radical senão uma única realidade primordial, eu, que, no entanto, se transgride a si mesma em um outro, mediante uma espécie de multiplicação por similitude que Husserl denomina ‘emparelhamento’ (Paarung). O corpo do outro está ali, ele mesmo, ‘presentificado’ o vivido do outro que não está lá, ele mesmo, sob pena de se confundir com o meu. Assim, o outro não é um momento de minha vida, embora o desenrolar de sua vida seja indicado por seu corpo cuja ‘apresentação’ se produz em minha esfera própria de pertença” (RICOEUR, 2009, p. 312). por último, o que Paul Ricoeur chama de imaginação: o outro está ali no local onde eu poderia estar se eu me deslocasse (2006, p. 169). Conclui que ela possui o mérito de preservar o enigma da alteridade, porém o outrem não permanece como desconhecido porque, se fosse assim, eu nem poderia falar sobre ele. O outro é totalmente conhecido e compreendido. Sendo assim, o outro não é alteridade porque não conserva o traço de ser um outro, diferente de mim, mas um alter ego, que pode ser compreendido e descrito por mim. Diante disso, o outro não passa de uma extensão do próprio ego. Brilhantemente, sobre a aparição do outro e a relação do eu com o outro, Ricoeur diz: “apenas eu apareço, sou “apresentado”; o outro, presumido, análogo, permanece ‘apercebido’ (2006, p. 170)”. Outrem é o resultado de uma reflexão do ego, assim, Husserl não supera a dissimetria, e a relação de um para com outrem permanece irresolúvel. A grande questão levantada por Ricoeur, porém, torna-se mais alarmante, sobretudo porque ele aborda a teoria do reconhecimento. O reconhecimento, tal como foi proposto, torna-se evidentemente comprometido, porque, segundo o autor, trata-se, na verdade, de uma constituição de segundo grau: é preciso que outro seja meu análogo para que a experiência do eu entre em composição com a experiência de outrem com base na reciprocidade, embora essas constituições em cadeia extraiam seus sentidos da experiência originária de eu mesmo como ego. (RICOEUR, 2006, p. 170). A experiência com outrem não passará de um idealismo puro, afinal, o outro não terá liberdade suficiente para ser aquilo que ele realmente é; será apenas uma parificação. O eu tem certa liberdade para determinar sua vida presente e futura, mas esta liberdade erige-se sobre um fundamento da não liberdade. “Se encontra em si mesmo ‘posto na existência’, e se encontra atado na sua atividade de duas maneiras: pelo que está dado de antemão e pelas leis que regulam sua própria atividade” (STEIN, 2005, p. 36). É que na fenomenologia, Impulso, Piracicaba • 24(59), 109-119, jan.-abr. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p109-119 113 especificamente na fenomenologia husserliana, “há apenas um ego, multiplicado associativamente” (RICOEUR, 2006, p. 170), transformando-se em múltiplos egos. que nada irredutível limitaria já ao pensamento e onde, portanto, ao não estar limitado, o pensamento seria livre. A filosofia equivaleria assim a conquista do ser pelo homem, através da história (LEVINAS, 1994a p. 164. Tradução nossa).10 Levinas e a alteridade Se, por um lado, Husserl elevou o ego e o próprio em suas descrições, Levinas radicalizou a alteridade, privilegiando o outro nas relações. No entanto, ao propor seu projeto filosófico, dirigiu críticas duríssimas à tradição ocidental; em primeiro lugar, por ter reduzido o outro ao mesmo; a identidade do mesmo está vinculada a uma ontologia da totalidade. “A filosofia ocidental tem sido demasiada uma ontologia: uma redução do outro ao mesmo” (LEVINAS, 2006, p. 67. Tradução nossa). E ainda, um segundo aspecto, segundo Ricoeur, destaca que Levinas, apesar de ser um fenomenólogo, observa que na fenomenologia, especificamente no tema da representação, há um idealismo que reduz a relação do outro na consciência, na representação. “Representar-se em alguma coisa é assimilá-la a si, incluí-la em si, portanto, negar sua alteridade. A transferência, que é a contribuição essencial da Quinta Meditação Cartesiana, não escapa a esse reino da representação” (RICOEUR, 1996, p. 373. Tradução nossa). Sobre o primeiro aspecto, para Levinas, o discurso filosófico do Ocidente reivindica a amplitude de uma perspectiva global, ou seja, seu discurso quer abarcar todas as ciências, inclusive a teologia, que aceita a vassalagem (1995, p. 94. Tradução nossa). Ele constata que, na história da filosofia ocidental, o esquema preferido da relação metafísica tem sido a teoria. Levinas insiste demasiadamente em seus escritos que esta filosofia, como ontologia fundamental, tem mantido a característica essencial à teoria e não tem respeitado a alteridade, o outro, a subjetividade; ao contrário, tem anulado, aniquilado e, consequentemente, reduzido o outro ao mesmo. Deste modo, a filosofia ocidental privilegia o conhecimento inteligível. O conhecimento seria um momento de liberdade, um domínio sobre o conhecido, e assim, consequentemente, a relativização da alteridade deste. A teoria significa também inteligência – logos do ser –, ou seja, um modo tal de abordar o ser conhecido que na sua alteridade com respeito ao ser cognoscente se desvanece. O processo do conhecimento se confunde nesta etapa com a liberdade do ser cognoscente, não encontrando nada que, outro que não ele, possa limitá-lo. (LEVINAS, 2006, p. 12. Tradução nossa). Pois a teoria, ou segundo esta orientação teórica, “como logos do ser que ao compreender o ser o engloba no mesmo, é ontologia” (PEÑALVER, 2001 p. 62. Tradução nossa). Exatamente por este motivo, a ontologia coloca em questão o primado do ser, que a lógica da filosofia ocidental abarca como uma espécie de evidência, que fora dela não existe outra coisa; tudo está submetido a esta lógica, a lógica do ser, o que Levinas chamará de império (a ditadura) do ser. Para finalizar, a filosofia como ontologia é a filosofia do mesmo, da mesmice. Sobre o segundo aspecto – os estudos de Levinas sobre Husserl –, deve-se caracterizar o pensamento e o método que nos conduzem ou nos levam com maior precisão ao objetivo. Por isso, a fenomenologia husserliana, na especulação de nosso autor, revelou o posto fundamental que a consciência assume na filosofia moderna. Neste sentido, a afirma A tese de Levinas defende que, entre a autonomia e a heteronomia, a filosofia ocidental preferiu escolher a autonomia, que é a redução do outro ao mesmo. No entanto, sua proposta será a de defender a heteronomia que, segundo ele, se ocuparia do absolutamente outro, da transcendência. 10 A filosofia dedicar-se-ia a reduzir ao Mesmo tudo o que se opõe a ela como outro. Encaminhar-se-ia até uma auto-nomia, até uma etapa em 114 Impulso, Piracicaba • 24(59), 109-119, jan.-abr. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p109-119 ção de intencionalidade como dinamismo do próprio ser espiritual almejaria a afirmação do movimento intencional propriamente não teórico enquanto concernente à atividade psíquica em sua globalidade, portanto, bastaria sublinhar a intencionalidade como atividade não inscrita, mas apenas intelectiva. No pensamento de Husserl, ao contrário, a representação11 do objeto ocupa um posto primário. Deste modo, a representação assume um posto primário na fenomenologia de Husserl; agora nos ocuparemos dela para descrevê-la a partir de Levinas. A fenomenologia parte da tentativa de superar o naturalismo do século XIX, para concentrar-se sobre o vivido. Deste modo, vem caracterizada por Husserl como um ato de colocar ou possuir o objeto por meio da atividade constitutiva da consciência. Deste ponto de vista, escreve Levinas: Voltamos a encontrar aqui a primeira inspiração da fenomenologia que consiste em liberar a noção de existência da estreiteza do objeto natural, em remitir esta noção ao sentido do pensamento que pensa o objeto na evidência. (1994b. p. 36. Tradução nossa). E ainda segue dizendo que o pensamento transformou-se em técnica, por isso exerço meu pensamento sobre certos objetos no lugar de ter toda a claridade necessária em minha vida espiritual, neste sentido, me encontro como um ser entre outros seres. Desta forma, Levinas dirá que a redução fenomenológica é uma violência contra o ser humano. Aliás, esta é uma das características evidentes em seu pensamento: acusar abruptamente a filosofia ocidental de praticar a violência contra o outro extinguindo a alteridade. E esta redução faz isso: Sigo a tese de Francisco Herrero Hernandez de que a representação é um dos temas mais importantes tratados por Husserl. “Puedo anticipar que la conclusión a la que Levinas llega en su estudio es que la representación ha sido considerada permanentemente por Husserl, de una o de otra forma, como fundamento de todos los actos” (HERRERO HERNANDEZ, 2005, p. 224. Tradução nossa). 11 A redução fenomenológica é uma violência que faz o homem –ser entre outros seres – para voltar a encontrar-se no pensamento puro. Para voltar a encontrar-se nesta pureza não lhe bastará refletir sobre si mesmo, pois a reflexão como tal não suspende seu compromisso com o mundo, não restabelece o mundo em seu papel do ponto de identificação de uma multiplicidade de intenções. […] A redução fenomenológica, é, pois, uma operação mediante a qual o espírito suspende a validade da tese natural da existência para estudar seu sentido no pensamento que a constituiu e que, ele mesmo, já não é uma parte do mundo, mas, sim, prévio ao mundo. Ao voltar assim sobre as evidências, reencontro tanto a origem e o alcance de todo meu saber como o verdadeiro sentido da minha presença no mundo. (2004, p. 36-37. Tradução nossa). Sem dúvida nenhuma, esta é uma das grandes críticas que nosso autor fará à filosofia ocidental, pois ele a chama de filosofia da violência. E não é por menos que dedica um estudo brilhante sobre “La ruine de la represéntation” (1994b, p. 125-135). Isso porque, na representação, o representado é reduzido ao sentido, os entes a noemas, ou seja, os diferentes são reduzidos, igualados, ou acumulados. Na representação, os seres são sustentados como substâncias sem a necessidade de considerar as condições dos seres em si mesmos, em sua originalidade e unicidade. As condições são-lhes dadas pelo sentido, como se na presença e na presença do sentido eles começassem. Enfim, “estar presente na forma de representação é estar presente como posse, como um domesticado e à disposição, condensado e atrelado nos mecanismos do conhecimento” (SUSIN, 1984,p. 84). Portanto, quando este mundo é constituído pelo pensamento, pela razão, as intenções husserlianas teriam que mostrar-se mediante um “colocado entre parênteses”, procedimento provisório que posteriormente permitiria reunir com certeza a realidade, uma atitude definitiva. “A redução Impulso, Piracicaba • 24(59), 109-119, jan.-abr. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p109-119 115 aqui é uma revolução interior, antes de uma busca de certezas, uma maneira para o espírito de existir conforme sua vocação e, em suma, de ser livre a respeito do mundo” (SUSIN, 1984, p. 39). Isso nos dá a entender que a contemplação teórica é uma afirmação de consciência absolutamente livre. Em outras palavras, a consciência não é relativa a nada. Neste caso, o projeto levinasiano é ir além do primado da representação, porque o outro não pode ser representado, não conhecido. o Outro é um rosto. E Ricoeur confirma esta tese, quando diz que no aparecer do rosto do outro, que, a cada vez, pela primeira vez interdita o mal que o eu poderia lhe infligir, afirma: É, pois, sob o regime de pensamento não gnosiológico que o outro se confirma. Esse regime é fundamentalmente o da ética. Quando o rosto do outro se ergue diante de mim, acima de mim, não é um aparecer que eu possa incluir no recinto de minhas representações […]; certamente, o outro aparece, seu rosto o faz aparecer, mas o rosto não é um espetáculo, é uma voz. Esta voz me diz; ‘tu não matarás’. Cada rosto é um Sinai que proíbe o assassinato. (RICOEUR, 1996, p. 373-374. Grifos do autor. Tradução nossa). Portanto, Levinas criticará a ontologia pela redução do outro ao mesmo, e a fenomenologia pela representação, que propõe o outro como representação. Levinas afirmará sua tese do primado do outro sobre o mesmo, a responsabilidade não decidida nem assumida pelo sujeito ético para com o outro, que obedece ao comando do outro. Sou simplesmente me voici, eis-me aqui, pronto e sempre disponível para responsabilizar-me pelo outro que me acusa e de quem sou refém. É importante apresentarmos uma pequena conclusão sobre a dissimetria compreendida por Paul Ricoeur para assim dar prosseguimento à segunda parte. “A minha tese aqui, é a descoberta deste esquecimento da dissimetria originária que é benéfica para o reconhecimento mútuo sob o aspecto mutual” (RICOEUR, 2006, p. 272). Nosso autor não está preocupado em defender o sujeito ético 116 e sua ação para com o outro, mas deve ser compreendido a partir da preposição “entre”, especificamente entre ambos. As relações éticas antecedem a dissimetria e dão-se entre sujeitos que não refletem suas condições e seus atos, apenas trocam os dons em um gesto de pura gratidão. Economia do dom – gratidão Chama atenção a descrição realizada por Ricoeur sobre a economia do dom. Existe uma clara intenção de evidenciar a relação ética “entre” sujeitos.12 Ele coloca a questão da alteridade13 no mesmo patamar da identidade, ou seja, paralelamente “a esse percurso da identidade ocorre o da alteridade […]. A alteridade encontra seu ápice na mutualidade” (RICOEUR, 2006, p. 262). Em meu modo de ver, é aqui que Ricoeur consolida a ética fenomenológica quando descreve sobre a economia do dom – mutualidade e reconhecimento mútuo à alteridade. Esta perpassa por uma reciprocidade/mutualidade não mercantil pontuada pelo “sem-preço” e, assim sendo, afirma como deve ser a sociedade, marcada a partir do respeito mútuo. Por isso, propõe uma sociedade alternativa ao invés de uma sociedade mercantil e, nas entrelinhas de seus textos, minuciosamente aponta para a impossibilidade de superar o conflito em uma coletividade que exacerba o capital, o lucro, a exploração, seja ela qual for.14 Enfatiza ainda que o reconhecimento ultrapassa as Essa preposição marca a relação entre dois sujeitos. Embora Ricoeur já mencionasse a importância da alteridade para seu pensamento em outras oportunidades, destaco aqui o perdão como reconhecimento de si e da alteridade. “Eu te peço perdão. – Eu te perdoo. Esses dois atos de discurso fazem o que dizem: o dano é efetivamente confessado, ele é efetivamente perdoado” (RICOEUR, 2007, p. 484). 14 “É justamente sob esse ponto que Ricoeur vai expor uma das questões mais pertinentes do debate contemporâneo no âmbito sociopolítico que é o vínculo ‘estranho’ entre produção de riqueza e a produção de desigualdades” (CORÁ; NASCIMENTO, 2011, p. 419). Os autores discutem de uma forma exuberante nestas páginas a disparidade entre a produção de riquezas e a promoção de desigualdades, parece que a lógica de produzir mais não gera mais igualdade, ao contrário, mais pobreza e menos reconhecimento. 12 13 Impulso, Piracicaba • 24(59), 109-119, jan.-abr. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p109-119 questões pessoais e de consciência individual. Em uma coletividade não mercantil, a economia da desigualdade não será mais a protagonista da história, mas terá como ator principal a troca cerimonial de dons. “A luta pelo reconhecimento, que precede em meu texto o reconhecimento em ação na troca cerimonial dos dons, coloca no centro do quadro a alteridade-confrontação” (RICOEUR, 2006, p. 263). A princípio, o leitor poderá ajuizar que está sendo forçado a pensar que o ato do cerimonial de dons é demasiadamente utópico.15 É utópico, sim, no entanto, o que Ricoeur deseja é repensar nosso pensar/agir ético, especialmente quando cita Hénaff: “Trata-se de pensar uma relação de troca que não é de modo algum de tipo mercantil” (HÉNAFF, 2002 p. 134. Tradução nossa). Assim, Ricoeur afirma em sua teoria o que vínhamos descrevendo, ou seja, a troca de dons supera uma sociedade que valoriza o lucro. Mas não é só isso; enfaticamente, ele aponta para a possibilidade de uma nova ética, porque indiretamente articula que a ética tradicional padece, pois não consegue superar mais nem os conflitos nem a luta. É neste ponto que a questão do sem-preço se cruza com a do dom, vinda de um horizonte totalmente diferente, ou de uma etnologia das sociedades arcaicas. É no tema do reconhecimento simbólico que as duas problemáticas se juntam. (RICOEUR, 2006, p. 248). O que é o reconhecimento simbólico? Para avançarmos sobre este tema, perguntamo-nos juntamente com o pensador: Ainda existem bens não mercantis? E constatamos, espantosamente, que é o espírito do dom que suscita uma ruptura no interior da categoria dos bens, como um vasto sistema de distribuição, como a segurança, funções de autoridade, cargos e honras, com o “sem-preço” tornando-se o sinal de reconhecimento dos bens não mercantis (RICOEUR, 2006, p. 250). Percebe-se que o dom provoca um pensar e um agir ético distinto, que rompe com as categorias econômicas estabelecidas. O dom quebra as estruturas que gover Sobre esse tema veja o estudo de Marcelo (2011). 15 nam o mundo. A ética não está mais pautada na luta, mas na troca espontânea dos dons. Posteriormente, devemos fazer uma análise que privilegie, em sua dimensão conceitual, ou nas intenções que persistem, entre troca de dons e troca mercantil (RICOEUR, 2006, p. 250-251). No entanto, em meu modo de ver, a seguinte pergunta foi crucial e provocou um novo modo de pensar e agir na ética fenomenológica: Por que dar algo, alguma coisa ao outro espontaneamente sem esperar nada em troca? Primeiro, porque o dom não exige, por assim dizer, uma restituição; isso anularia sua característica essencial. E, para fundamentar esta teoria, Ricoeur recorre à ágape bíblica para enfatizar o dom sem expectativa de retorno, ou seja, a essência fundamental da ágape é o desinteresse total. Por isso, ele coloca a gratidão no centro do esquema dar-receber-retribuir. “A gratidão alivia o peso da obrigação de retribuir e a orienta rumo a uma generosidade igual à que suscitou o dom inicial” (2006, p. 255). Segundo, a gratidão é um ato impensado, espontâneo, natural e totalmente desinteressado, e jamais coloca o sujeito em um estado de obrigação, de dever. Ao contrário, o dever quebra a prática espontânea de dar-receber-retribuir. De um lado, esta teoria evidencia a superação da moral kantiana, a moral do dever pelo dever. Por outro lado, existe uma semelhança muito grande com o pensamento de Emmanuel Levinas, que também propõe uma filosofia ética da responsabilidade a partir do desinteresse total. A relação na qual Levinas crê e que arquiteta deve partir do desinteresse “désintéressement”. Esta seria a primeira condição vital para entrar em uma relação ética da responsabilidade, pois o ser imperou na filosofia ocidental. Por conseguinte, o “désintéressement” que substitui “l’intéressement”. O ser, o esse (essência) é interesse (LEVINAS, 2006 p. 45.). Levinas inverte radicalmente o eu da ação. Faz uma passagem do eu, “égo-logie”, ao outro, “alter-logie”. A isso chama de “despossuir”, deposição ou destituição do eu egoísta. Tenta sair do eu dominador, do eu quero, posso, do eu violento, para a inversão ou a alternativa determinada pelo mandato do outro (GRZIBOWSKI, 2012, p.109). Impulso, Piracicaba • 24(59), 109-119, jan.-abr. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p109-119 117 A gratidão que propõe Ricoeur tem, como marca fundamental, o desinteresse que é igual à gratificação do dom de um para com o outro. O reconhecimento mútuo passa pela ágape, gratidão e desinteresse, ou vice-versa. Prova disso é que, sob o ato irrefletido da gratidão, os valores dos presentes são incomensuráveis em termos de custos mercantis. Para Ricoeur, a gratidão é a marca do sem-preço sobre a troca de dons, o que caracteriza a troca de dons de dar sem intenção, e o retribuir sem compromisso, ou o dever de restituir é a gratidão. Pura espontaneidade. O tempo segue também o sinal da ágape, ou seja, não existe tempo estipulado para o retorno, é indiferente. Arriscaria dizer que é um tempo escatológico, embora Ricoeur não faça nenhuma referência a isso, mas, a meu ver, sugere. Além disso, a troca de dons tem algumas características essenciais e foge dos padrões convencionais e mercantis da sociedade. Ricoeur privilegia excepcionalmente a troca que chamará cerimonial do dom; isto evidencia que a troca de dons tem toda uma simbologia e é exatamente isso que valoriza. A linguagem simbólica distingue-se da linguagem cotidiana, da convencional. “A cerimônia da troca não é feita na cotidianidade ordinária das trocas comerciais, bem conhecidas dessas populações, sob a forma da troca ou mesmo de compra e venda, tomando alguma coisa como moeda” (RICOEUR, 2010, p. 297). Sublinhamos outro detalhe importante que nosso autor destaca de uma forma ex- traordinária: “o funcionamento do dom em realidade não está na coisa dada, mas na relação doador-recebedor, a saber, há um reconhecimento tácito simbolicamente figurado pelo dom” (RICOEUR, 2010, p. 298). Essa ideia contrapõe-se à sociedade mercantil, que valoriza demasiadamente o produto, o objeto, a coisa dada, e seu valor está mensurado pelo agente racional que calcula e estipula um preço e é comercializado. Ignora todo o cálculo, apresenta-se pura e absolutamente generosa (SALDANHA, 2009). Nosso autor valoriza o gesto; o ato de dar e o dado são incomensuráveis neste aceno em que se dá o reconhecimento mútuo e o respeito à alteridade. E essa ideia de reconhecimento proposta, a meu ver, contrapõe-se ao pensamento filosófico ocidental; além disso, declara que a ideia de reconhecimento tem novas possibilidades de ser vista e vivenciada. Para finalizar, o projeto filosófico do cerimonial da troca de dons é uma grande novidade para a filosofia, sobretudo para a ética fenomenológica, que exige um novo modo de pensar e de fazer filosofia no mundo contemporâneo. O pensamento de Ricoeur contribui de modo extraordinário para a edificação dos estados de paz. Assim, deixemo-lo falar: “A minha sugestão é que, nos modos contemporâneos e quotidianos da troca cerimonial de presentes, tenhamos um modelo de uma prática de reconhecimento, de reconhecimento não violento” (RICOEUR, 2010, 299).16 Referências BORSATO, B. L’altérità come Etica. Una lettura di Emmanuel Levinas. Bologna: EDB, 1995. CORÁ, J. E.; NASCIMENTO, C. R. do Reconhecimento em Paul Ricoeur: da identificação ao reconhecimento mútuo. Revista de Ciências Humanas, v. 45, n. 2, p. 407-423, 2011. DOUEK SAFDIE, S. Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas. São Paulo: Loyola, 2011. DUTRA ROSSATTO, N. Alteridade, reconhecimento e cultura: o problema do outro no enfoque fenomenológico. In: TREVISAN, A. L.; TOMAZETTI, E. M. (Orgs.). Cultura e alteridade. Ijuí: Unijuí, 2006. ________. Mutualidade e reciprocidade: a perspectiva ricoeuriana frente à luta pelo reconhecimento. Revista de Filosofia e Teologia Contemplação, n. 2, 2011. GREISCH, J. Vers quelle reconnaissance? 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Diploma de Suficiência Investigadora em Filosofia pela Pontifícia Universidade de Salamanca (2006), doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade de Salamanca - Espanha (2009). É professor adjunto na Universidade Federal de Santa Maria, departamento de filosofia. Recebido: 13/11/2013 Aprovado: 11/02/2014 Impulso, Piracicaba • 24(59), 109-119, jan.-abr. 2014 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p109-119 119