Filosofia Clínica: um novo paradigma

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Filosofia Clínica: um novo paradigma1
Monica Aiub
Filósofa Clínica
Mestranda em Filosofia – UFSCAR
[email protected]
Ao escrever sobre Filosofia Clínica para a revista Paradigmas não poderia furtar-me ao
convite a uma reflexão acerca de paradigmas. É comum nos discursos dos filósofos clínicos
apresentar nossa atividade como um novo paradigma, uma mudança de paradigma, o que
significa exatamente isso? Iniciemos com o termo paradigma.
Rastreando a origem do termo encontramos o grego παραδειγµα, usado por Platão como
modelo, vindo do mundo dos seres eternos e usado, nesse mesmo sentido, na ciência
normal, como um referencial que deve ser necessariamente adquirido pelo iniciante a tal
ciência. Aristóteles utiliza o termo como sinônimo de exemplo, ou seja, uma generalização
indutiva. Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), emprega a
palavra paradigma em diferentes sentidos. Das múltiplas definições de paradigma
apontadas por Kuhn (1962) encontramos a idéia de realizações científicas reconhecidas que
se tornam modelos, tradição, noções familiares, padrão, o que fornece instrumentos
capazes de resolver problemas, um modo de ver...
Questionado por Masterman (1979) acerca desses diferentes sentidos, explicita a idéia de
matriz disciplinar, contendo generalizações simbólicas, modelos partilhados e valores
partilhados:
Tendo isolado um grupo de especialistas individuais, eu perguntaria em seguida o
que foi que seus membros partilharam e que lhes permitiu solucionar enigmas e
lhes explicou a relativa unanimidade na escolha de problemas e na avaliação de
soluções de problemas. Uma das respostas que meu livro sugere para essa pergunta
é “um paradigma” ou “um conjunto de paradigmas”. (Este é o sentido sociológico
do termo da Srta. Masterman.) Eu preferiria agora empregar outra expressão, talvez
“matriz disciplinar”: “disciplinar” por ser comum aos que praticam uma disciplina
e “matriz” por consistir em elementos ordenados que requerem especificação
individual.” (1979, p. 335)
Assim sendo, elimina da descrição do processo de maturação de uma ciência as distinções
entre pré-paradigmático e pós-paradigmático, afirmando que todas as comunidades
científicas sempre possuíram paradigmas. Sem, contudo, abandonar a idéia de um processo
de maturação de uma especialidade científica.
Desta forma, o que Kuhn propõe como mudança de paradigma equivaleria a uma mudança
de instrumentos para selecionar e resolver problemas, uma mudança de modelos, uma
mudança nas noções familiares, um diferente modo de ver e assim por diante. Isso não
representa a inexistência de um modelo, ou a negação de todo e qualquer modelo, mas o
questionamento da validade do modelo vigente, e a proposta de um novo modelo com
outras possibilidades de instrumentos.
1
Artigo publicado na revista Paradigmas do CEFS – Centro de Estudos Filosóficos de Santos
A Filosofia Clínica tem sua origem no final do século XX, momento de crise de paradigmas
culturais, sociais, políticos, existenciais. Após a crise da razão, questiona-se a crise da
filosofia: qual o seu papel no mundo contemporâneo? Rastreando novamente, agora em
busca do papel da filosofia em todos os tempos, reencontramos as origens e nelas o
diferente olhar que inaugura esse modo de ver o mundo: a filosofia pré-socrática,
substituindo, paulatinamente, o paradigma mito pela curiosidade e constante busca de
respostas oriundas da natureza e da racionalidade. Esse novo modo de ver o mundo leva
também a um novo modo de resolver problemas.
Com o surgimento da escola hipocrática, que deu origem à medicina, o que era resolvido
por rituais e bruxarias passa a ser pesquisado e tratado. Na mesma linha, assim como a
medicina deveria cuidar do corpo, a filosofia encarregar-se-ia do cuidado da alma: “O
esforço físico é alimento para os membros e para os músculos, o sono o é para as
entranhas. Pensar é para o Homem o passeio da alma.” (Hipócrates, Das Epidemias, 5,5).
Jaeger, na Paidéia, aproxima os métodos hipocrático e socrático-platônico, mostrando as
constantes influências entre filosofia e medicina na Antiguidade. O cuidado da alma, o
benefício do humano, a vida, sempre foram objetivos da filosofia. No modelo filosófico, o
constante questionamento acerca de outras formas de ver o mundo, além da vigente.
Mas o paradigma da modernidade, que secciona corpo e mente, humano e natureza,
natureza e sociedade, criando um modo de ver o mundo compartimentado, transforma esses
objetivos, e coloca em cheque o papel da filosofia. A ciência é o instrumental para resolver
problemas, a filosofia redefine seu papel.
As ciências encarregadas de tratar o humano, seja corpórea ou mentalmente, seccionam o
homem-máquina pós-cartesiano, partes, partes de partes, partes de partes de partes... tão
dividido, perde seu sentido, deixa de ser foco. O que é focalizado é a doença, seja física ou
mental – e ambas são distintas, com causas e tratamentos diferentes.
Com foco na doença, com um humano seccionado, retirado de seu contexto natural e social,
isolado como corpos necessitam ser isolados para serem compreendidos, o paradigma do
tratamento das chamadas doenças mentais é o isolamento (Foucault, 1994, 1998).
Retomada, com Pinel e seus seguidores, a idéia de uma inter-relação entre corpo e mente, e
uma grande confusão sobre como tratar as doenças mentais, cujas causas eram ignoradas, o
chamado tratamento moral é colocado em prática, trazendo verdadeiras formas de tortura
para o tratamento psiquiátrico (Foucault, 2000).
Constatada a sua necessidade, a filosofia reassume, no século XX, seu papel cotidiano de
questionar paradigmas e buscar outras formas de ver o mundo. O estudo acadêmico da
filosofia mostra que não é preciso ser platônico ou aristotélico, kantiano ou hegeliano,
heideggeriano ou wittgensteiniano. Que não é preciso derrubar o modelo anterior para
propor o próximo, mas que é necessária uma constante conversa entre as diferentes escolas
filosóficas e uma constante avaliação das posições assumidas, é preciso abertura e
reciprocidade, é preciso diálogo.
Nesse contexto, com essa postura de constante diálogo, de abertura e reciprocidade,
inspirada em experiências de filosofia prática (aconselhamento filosófico em sua maioria:
Achenbach,; 1989, Sautet, 1999; Marinoff, 2001), surge a Filosofia Clínica, proposta por
Lúcio Packter (1997), como um novo paradigma por: ser um novo instrumental para
selecionar e resolver problemas, não se pautar nos paradigmas que conceituam normalidade
e patologia, propor diferentes formas de ver o mundo e permitir a conversação entre elas,
entre outros valores.
O que partilham como modelos, valores, formas de ver o mundo e de resolver problemas os
filósofos clínicos?
Poderia iniciar dizendo que nosso modelo é um anti-modelo, por ter como característica
fundamental a plasticidade, a flexibilidade. Pode ser, talvez, depende, são respostas muito
comuns, porque partimos do princípio que o ser humano é singular, único, plástico, em
constante movimento, construindo-se a cada instante. Isso não nos impossibilita o
conhecimento, mas a ilusão de um conhecimento absoluto, necessitando, a cada instante,
acompanhar a movimentação dos modos de ser do partilhante. Mas prefiro começar pelo
partilhante, o foco central de nossa atividade. O que é isso? Melhor perguntar: quem é esse?
Há momentos na vida em que não conseguimos organizar nossas idéias, não temos
distanciamento suficiente para compreender nossos problemas, não conseguimos pensar,
avaliar, decidir. Questões existenciais que geram sofrimentos, angústias, medos
incontroláveis. Momentos difíceis, onde viver parece uma eterna luta, em que o outro é
nosso inferno, não é capaz de compreensão, sua presença é significada como cobrança e sua
ausência como rejeição ou indiferença. Relacionamentos difíceis no trabalho, emoções
conturbadas, problemas com a família, com a casa, com as contas, com a sobrevivência,
com o espelho. Situações difíceis, onde os caminhos escapam, onde reina a confusão.
Sentimos necessidade de ajuda para organizar as idéias, mas os amigos parecem mais
confusos e perdidos que nós. Aqueles com os quais convivemos parecem não ter ouvidos
ou ter soluções excelentes para eles, mas péssimas para nós.
Em situações como essas e outras precisamos de ajuda. Como seria encontrar um amigo
disposto a ouvir, que não nos interrompesse para mostrar que suas feridas são maiores que
as nossas, que nosso sofrimento é nada diante da desgraça do mundo. Um amigo capaz de
acolher e ouvir, sem de imediato dizer que estamos errados, que a vida não é assim, que
sonhamos demais, que pensamos demais, que escolhemos demais, que trabalhamos demais,
que somos demasiadamente tortos, rudes, loucos, insanos, insensatos, insensíveis; que faltanos vontade, razão, sensibilidade, exatidão, loucura também; que estamos errados, que
somos mesquinhos, que o caminho certo é outro...
Pessoas em situações como essas têm procurado ajuda nos consultórios de Filosofia
Clínica. Ajuda-ao-outro: essa é a tarefa da atividade intitulada Filosofia Clínica. Entre as
atividades de ajuda-ao-outro, a Filosofia Clínica destaca-se por não trabalhar com teorias
prévias, tipologias ou conceitos de normalidade. O homem é a medida de todas as coisas, e
como medida, aquele que procura ajuda é quem determina de que maneira poderá ser
auxiliado. Pensar junto com o outro é o mote do filósofo clínico, norteado pelo respeito a
seus modos de ser, a suas escolhas.
O que busca ajuda é chamado partilhante porque é aquele que partilha, que toma parte em,
que participa ativamente de todo o processo clínico, compartilhando sua vida e suas
questões com o filósofo clínico. Por sua vez, o filósofo clínico acolherá o partilhante e suas
questões e partilhará com ele o conhecimento produzido pela filosofia, auxiliando-o a
refletir sobre suas questões e dificuldades, a levantar e estudar possibilidades, a definir,
construir e percorrer caminhos. Não se trata de teorizar sobre o sofrimento alheio, mas de
auxiliar o outro a lidar com suas questões, diante das circunstâncias e possibilidades
existentes.
A idéia de colocar a reflexão filosófica a serviço da atividade de ajuda-ao-outro não é
novidade. Desde os primeiros momentos, a filosofia cumpre o papel de refletir sobre as
questões cotidianas, de pensar a vida, a existência e a natureza para aperfeiçoá-las e gerar
benefícios à humanidade. Desde os primórdios, cumpre o papel de cuidar da alma (Platão,
2002), buscando, a partir da reflexão, o equilíbrio interno entre ser, pensar e agir; o
desenvolvimento da virtude da alma e a conseqüente saúde integral – alma, corpo,
sociedade e natureza.
Respeito à singularidade, ao modo de ser, agir e pensar do partilhante é a característica
essencial desse trabalho, que surge para atender as necessidades existenciais criadas e
desenvolvidas pelo ser humano no decorrer de sua história. Diante das crises
contemporâneas, da insuficiência de respostas, das carências humanas e existenciais cada
vez mais presentes e significativas, a Filosofia Clínica coloca-se como um novo paradigma,
tentando conciliar a tarefa do filosofar com a possibilidade de ajuda-ao-outro, construindo
uma terapêutica centrada na singularidade, no respeito ao universo e ao modo de ser de
cada partilhante. O filósofo clínico é um profissional apto a pensar junto com a pessoa,
sem interferir em suas decisões, auxiliando-a a refletir sobre si mesma e sobre o mundo que
a rodeia, sobre opções e possibilidades para lidar com as questões cotidianas, respeitando
seus valores, sentimentos, necessidades e escolhas.
Não se trata de um mero aconselhamento pautado em referenciais filosóficos, colocando
em risco a vida das pessoas. Há uma série de procedimentos clínicos, estruturados de modo
a permitir a identificação de sinais e sintomas que indiquem a necessidade de um trabalho
interdisplinar, pois a filosofia clínica admite os limites e as especificidades de cada área do
conhecimento e, por isso, o filósofo clínico não se habilita a trabalhar todo e qualquer
problema. Há problemas de ordem orgânica, química, que precisam ser tratados com
medicamentos. Há situações em que o instrumental da Filosofia Clínica não possui
elementos adequados para o trabalho. Conferidas essas possibilidades, o filósofo clínico
encaminha – mesmo que por precaução, para mera exclusão de possibilidades, ou ainda
para um trabalho interdisciplinar – o partilhante para um profissional competente naquela
área de atuação.
Quem é esse outro que procura o auxílio do filósofo clínico? A princípio não há como
saber. Em que é possível ajudá-lo? O que ele busca? O que lhe aflige? Diante das inúmeras
possibilidades de resposta, não há como responder previamente a nenhuma questão. O
primeiro passo é tomar parte, partilhar as questões, o universo, os modos de ser, estar,
pensar e agir do partilhante. O ponto de partida é o sei que nada sei, de tudo quanto sei
socrático. Como o filósofo clínico nada sabe sobre aquele que o procura, sua postura diante
do outro é de busca desse conhecer e, para tal, deve permitir o mostrar-se do partilhante.
Como cada partilhante é um universo a ser conhecido, o filósofo clínico acolhe esse
universo com a escuta atenta, suspendendo seus juízos prévios, suas próprias concepções de
mundo, seu próprio universo, para aproximar-se ao máximo do universo do partilhante,
assumindo a postura do amigo que acolhe, ouve, mas não julga, não interpreta ou avalia,
apenas contextualiza, tentando compreender a gênese da situação, o que se passa e como
auxiliá-lo em suas necessidades.
Gadamer (1997) mostra-nos que para compreender um texto é preciso deixar que ele diga
alguma coisa por si, posicionar-se de maneira receptiva a sua alteridade, o que não
significa neutralidade ou auto-anulamento. A abertura para o outro não supõe uma
dissolução de si mesmo, um deixar-se absorver, mas um conhecimento daquilo que se é, de
suas próprias opiniões prévias e preconceitos. Quanto maior a consciência de seus
referenciais, maior a possibilidade de estabelecer a alteridade, de enxergar o outro tal qual
se apresenta, sem se permitir ser guiado por pré-juízos, mas sem ser absorvido pelo outro.
Para possibilitar essa abertura para o outro na clínica, durante o processo de formação, o
filósofo clínico submete-se a um procedimento denominado Clínica Didática ou PréEstágio. Esse procedimento consiste em passar por todo o processo clínico como um
partilhante, ou seja, submeter-se à clínica, com o objetivo múltiplo de conhecer seus
referenciais, suas concepções prévias, seus pré-juízos, de conhecer a si mesmo a partir do
instrumental filosófico-clínico e, principalmente, de vivenciar esse instrumental, para
avaliar, a partir da própria vivência, as possibilidades e resultados de todo o processo. Esse
procedimento é também denominado Pré-Estágio por ser requisito prévio para iniciar os
estágios – atendimentos supervisionados, também necessários à formação. Após o processo
de formação, a manutenção da clínica é uma necessidade, não apenas como atualização da
consciência desses referenciais, mas como profilaxia para o profissional.
A princípio, a postura do filósofo clínico é de escuta atenta. Ouvir interferindo o mínimo
possível, acolhendo, acompanhando atentamente. Não se trata da postura neutra de um
cientista que observa uma experiência provocada e controlada externamente. A simples
presença é uma interferência, o encaminhamento dos procedimentos, mais ainda. Há
interação, encontro desses universos como conjuntos que estabelecem interseções. Há
atenção e cuidado que se fazem explícitos no decorrer dos trabalhos.
Mas não é só isso. Há um instrumental específico que permite um conhecimento das
questões, do universo, do modo de ser, estar, pensar e agir, das necessidades do partilhante.
Esse instrumental da Filosofia Clínica divide-se em três eixos centrais: Exames Categoriais,
Estrutura de Pensamento e Submodos. Esses eixos, assim como outros aspectos da
Filosofia Clínica, serão abordados em outros textos, dando continuidade à exposição dessa
mudança de paradigma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Cf. artigo Praxis, philosophische por Odo Marquadt in Historisches Wörterbuch der
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1998.
_____. O nascimento da clínica. São Paulo: Forense, 1994.
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Petrópolis: Vozes, 1997.
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