FILOSOFIA ANALÍTICA E FILOSOFIA CLÍNICA: ONDE ELAS SE ENCONTRAM?1 Mariluze Ferreira de Andrade e Silva Departamento de Filosofia e Métodos – UFSJ Laboratório de Lógica e Epistemologia – UFSJ A Linguagem como Objeto de estudo da Filosofia Os filósofos analíticos pensam, em comum acordo, que o objeto da filosofia é a linguagem e não a realidade não lingüística. Entretanto, eles divergem quanto ao uso da linguagem. Para os Positivistas lógicos, o objeto da filosofia é a linguagem formalizada e axiomatizada para uso da ciência. Para os filósofos lingüísticos, a filosofia deve se preocupar com toda e qualquer linguagem, seja qual for a atividade intelectual. Nesse caso, é objeto de estudo dos filósofos lingüísticos o estudo da linguagem política, artística, religiosa, matemática, econômica, poética, do senso comum e as demais, não deixando nenhuma forma de expressão lingüística excluída do seu objeto de estudo. É, portanto, pela via do objeto de estudo que se estabelece uma diferença fundamental entre os filósofos analíticos que se inclinam para o Positivismo lógico e os que se inclinam para a Filosofia lingüística. O Método estabelece uma diferença, para os filósofos analíticos, entre a lingüística, que estuda a linguagem como um fato natural e a Filosofia analítica, que a estuda a partir da sua estrutura lógica. Há uma proposição analisada por Bertrand Russell, usada pelos filósofos analíticos que ilustra a compreensão da diferença entre lingüística e filosofia lingüística ou analítica. Seja a proposição2 “O atual rei da França é calvo” Para o lingüista, trata-se apenas de uma afirmação trivial. Do ponto de vista da análise sintática a proposição está correta. Do ponto de vista da gramática, não há 1 Artigo publicado na Revista Filosofia, Ciência & Vida, Caderno Especial Filosofia Analítica. O termo “proposição”, aqui nesse contexto, será usado como sinônimo de “sentença”, “pensamento” e “enunciado”, entretanto esclarecemos que, para alguns lógicos, há uma diferença estabelecida entre esses quatro termos. Sentença seria a expressão gráfica ou audível do pensamento. Se eu penso mas não expresso o meu pensamento, não tenho uma sentença. Desse modo, uma sentença carreia sempre um pensamento. A proposição é entendida como pensamento. Se eu tenho um pensamento expresso em uma sentença, logo tenho uma proposição. O enunciado é o que o pensamento (proposição) expressa na sentença. Há vários tipos de enunciados, mas não é o caso falarmos sobre eles aqui nesse contexto. 2 2 erros ortográficos. Essa proposição, portanto, para um gramático e para um lingüista não se constitui como um problema. Ela possui gramaticalidade e é uma proposição inteligível. Para o filósofo analítico, entretanto, ela apresenta um problema. A primeira pergunta que um filósofo analítico fará, a partir do próprio enunciado da proposição, é se ela é verdadeira ou falsa. Essa pergunta já introduz um critério de analiticidade. Aí está um problema colocado. Primeiro, descarto o valor “Verdadeiro” partindo do pressuposto que a França atualmente não tem rei. Segundo, se eu respondo, sem mais explicações, que a proposição é falsa, induzo ao erro de que a França tem atualmente um rei, mas ele não é calvo. Pelo princípio do terceiro valor excluído da lógica, uma proposição ou é verdadeira ou é falsa, por exclusão. Ela não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Nesse caso diríamos que o enunciado não é nem verdadeiro nem falso. Desse modo, a análise apenas lingüística não é suficiente para me dizer algo mais profundo sobre esse enunciado. Só através da análise lógica poderei resolver esse problema gerado pela linguagem. O problema está em pensarmos que a proposição é simples, quando na verdade ela é composta. Para o gramático ou para o lingüista trata-se de um enunciado simples porque ele só analisa a relação sujeito–predicado (S é P) evidente na estrutura superficial da proposição, mas para o filósofo analítico trata-se de uma proposição composta porque ele vai além da estrutura superficial. Para o filósofo analítico há, nessa proposição, um primeiro enunciado que é o existencial sinalizando para o fato de a França ter atualmente um rei. Alguém atualmente é o rei de França Duas categorias estão evidentes nesse enunciado existencial: a categoria tempo (atualmente) e a categoria lugar (França). Há um segundo enunciado O rei de França é calvo Esse enunciado está condicionado ao primeiro: O resultado da análise dos enunciados simples gera o enunciado composto seguinte: Se alguém é atualmente rei de França, então esse alguém é calvo. 3 Esse segundo enunciado apóia-se na categoria circunstância. Uma vez submetido o enunciado ao rigor da análise, podemos dizer que o primeiro enunciado -- Se alguém é atualmente rei da França -é falso porque a França não tem atualmente um rei, mas o segundo – então esse alguém é calvo -é verdadeiro porque está condicionado ao primeiro. Trata-se de uma categoria circunstancial. Pelas regras da Lógica de procedimentos de decisão para enunciados Verdadeiros e Falsos, vale dizer, pelas regras do cálculo sentencial/proposicional, um enunciado é falso quando o seu antecedente for verdadeiro e seu conseqüente falso. No caso da proposição em questão, o antecedente é falso e o conseqüente é verdadeiro, logo a proposição é verdadeira. Demonstrando: [ ] [ Se alguém é atualmente rei de França , então esse alguém é calvo. P F → V ] Q V A resposta (V/F) depende do conhecimento sobre a atual situação política da França e do conhecimento sobre a atual aparência física do rei da França. O que se tem conhecimento é que, até o início de 1950, a Filosofia analítica tinha como movimento principal o Positivismo lógico. Em 1951, Quine publicou o livro “Dois dogmas do Empirismo” e a partir daí o movimento do Positivismo lógico enfraqueceu dando origem a outros movimentos em direção à Filosofia analítica. A tarefa da filosofia analítica é a de transcrever com mais clareza os enunciados que se encontram “embaraçantes”. Traduzir frases por outras sinônimas para explicitar a complexidade real dos conceitos empregados, reconstruir formas verbais que manifestem a lógica do pensamento. A análise filosófica possibilita evidenciar a estrutura verdadeira dos fatos ou dos pensamentos expressos. Cabe aqui uma palavra sobre a Filosofia da Linguagem entendida como um setor da filosofia analítica. À medida que as teorias de Austin e Searle ganharam força na Filosofia analítica, contaminaram os trabalhos dos lingüistas, tornando difícil fazer 4 uma distinção entre Filosofia analítica e Filosofia da linguagem. O que se faz hoje em Filosofia da linguagem continua ligado à teoria de Austin sobre a “performatividade” de alguns verbos quando se trata de atos ilocucionários. Onde a Filosofia analítica e a Filosofia clínica se encontram Lucio Packter reuniu vários métodos filosóficos e os adaptou à clínica filosófica. A vertente da Filosofia analítica que foi acolhida por Packter foi a lingüística. Esses métodos estão relacionados a uma lista de tópicos e submodos 3 elencados por ele para aplicação à historicidade do Partilhante 4, conforme a Estrutura de Pensamento de cada um. Entre esses métodos, encontram-se aqueles voltados para a análise da linguagem: Filosofia analítica, Filosofia da Linguagem, Fenomenologia da linguagem. Dentre esses, destacamos aqui, o Método da Filosofia analítica e a sua importância para a Filosofia clínica. Da mesma maneira que a Filosofia analítica, o objeto de investigação da Filosofia clínica é fundamentalmente a linguagem 5. Essa investigação se faz através da historicidade do Partilhante. Mas há muitos métodos que tratam a linguagem, cada um voltado para obter resultados específicos aos seus objetivos. A Fenomenologia da linguagem, por exemplo, está preocupada em mostrar a linguagem como objeto descritível, vale dizer, como fenômeno. Enquanto fenômeno ela revela o subsistente da historicidade, por si e a partir de si mesmo. Pela linguagem, o relato da história de vida transforma os dados subsistentes (as essências) em existentes (em existência). O subsistente é o repositório privado da existência. É nele que estão as formas de vida do Partilhante. A linguagem torna pública a subsistência, na forma de existência, isto é, o que era essência passa a ser existência. A forma da existência é idêntica à forma da subsistência porque o ser aparece conforme a sua subsistência. Uma coisa não pode aparecer, isto é, existir com a forma de homem se a sua essência ou subsistência é de uma árvore. O que aparece na linguagem tem a forma do que subsiste nessa linguagem. O que se conclui disso é que a essência do trabalho da Filosofia clínica se concretiza a partir da análise da linguagem porque na linguagem, 3 Procedimentos clínicos subordinados à Estrutura de Pensamento, à forma de ser do partilhante. Pessoa que procura o atendimento em um consultório de filosofia clínica. 5 Cf. SILVA. Mariluze Ferreira de Andrade e Silva. Filosofia para Filósofos clínicos/ Métodos Fenomenologia da Linguagem/ Analítica da Linguagem. São João del-Rei/MG 2007. 4 5 enquanto fenômeno, aparece a estrutura subsistente do Partilhante em todos os segmentos da sua existência ou em todas as suas formas de vida pública e privada (política, religiosa, econômico-social, crenças etc.). É a linguagem que possibilita caminhar da existência para a essência ou subsistência. A Filosofia da linguagem que caminha junto com a filosofia analítica, está preocupada em investigar problemas que emergem da linguagem. Por exemplo, Austin se preocupou com os atos da fala. Para ele, as palavras descrevem ou informam estados mentais, porém não apenas isso. Elas também realizam outras funções cujos significados lhe recaem conforme as circunstâncias. Se uma pessoa profere a palavra “quero” em circunstâncias de pedido de casamento, ela não está descrevendo suas atitudes ou sentimentos ou emoções, porém utilizando uma linguagem que faz parte do processo de casar-se com alguém. A resposta “quero” é, portanto, uma forma de casar-se. Wittgenstein6 enxergou que o problema filosófico da linguagem estava no seu uso e tentou solucionar esse problema criando a teoria dos jogos de linguagem. Avrum Stroll7 comenta que o aforismo de Wittgenstgein “As palavras só têm sentido dentro do fluxo da vida” nos põe a caminho da compreensão de que “esse fluxo da vida é de onde os elementos do discurso adquirem seus significados e suas razões ou propósitos. De forma alternativa também denomina essas atividades comuns como ‘jogos de linguagem’”. Frege enxergou um problema filosófico nas sentenças subordinadas. Ele analisou as sentenças da linguagem natural e chegou à conclusão que nem todas as sentenças introduzidas por conectivos de subordinação são, de fato, subordinadas. Elas são, em sua maioria, logicamente coordenadas. Considerando, como exemplo, a sentença “Embora chova, vou ao cinema”, analisando sua estrutura superficial, como nos ensina a gramática, “Embora chova” trata-se de uma sentença subordinada concessiva; entretanto, levando em consideração a análise lógica proposta por Frege, trata-se de uma sentença coordenada e não subordinada. O que está na raiz da sentença, que é o seu pensamento são duas sentenças simples: “Chove” e “vou ao cinema”. Esses problemas e outros, enxergados pelos filósofos da linguagem que, na sua maioria também são lógicos, exigem uma análise mais profunda, daí o emprego do método analítico da linguagem para clarificar essas 6 Cf. SILVA, Mariluze ferreira de Andrade e Silva. As contribuições de Wittgenstein à Filosofia clínica. São João del-Rei/MG, 2006. 7 STROLL, Avrum. La filosofia Analítica del siglo XX. Madri, 2002. p.133. 6 questões que são questões filosóficas. Nessa análise o que conta é a realidade lingüística. O Filósofo clínico é, antes de tudo, um filósofo analítico da realidade lingüística do Partilhante. É através da análise da linguagem expressa na sua historicidade que o Filósofo clínico chega à compreensão das suas questões existenciais. O Filósofo clínico usa o mesmo procedimento do Filósofo analítico: detecta o problema através da linguagem e submete a linguagem a uma análise rigorosa para clarificar os conceitos. É nesse ponto que a Filosofia analítica se encontra com a Filosofia clínica divergindo, apenas na apresentação e/ou aplicação dos seus resultados: aquela detecta o problema da linguagem, submete-o a uma análise filosófica rigorosa e apresenta os resultados à comunidade científicofilosófica. O Filósofo clínico detecta o problema existencial do Partilhante através da sua linguagem, submete-a a uma análise com a colaboração do próprio Partilhante, aplicando procedimentos criados pela Filosofia clínica, e caminha na direção de obter resultados terapêuticos. No elenco dos tópicos e submodos apresentados por Packter para uso da Filosofia clínica, encontramos alguns que tratam especificamente de problemas da linguagem: Termos universal; particular e singular; Termos unívocos e equívocos; Discurso completo e incompleto; Estrutura de raciocínio; Significado; Expressividade; Tradução. Mas o tratamento dado à linguagem de um Partilhante não se resume, apenas, à presença desses na historicidade. A linguagem enquanto fenômeno (fenomenologia da linguagem) também é submetida a uma análise. É importante que o Partilhante clarifique e torne mais compreensível para o Filósofo clínico o uso dos seus termos. Para isso a Filosofia clínica dispõe do “enraizamento” que, além de funcionar como um procedimento epistemológico, funciona também como um procedimento analítico da linguagem. Desse modo, tanto a Fenomenologia da linguagem, a que revela o objeto lingüístico, como a Filosofia da linguagem, a que revela o problema da linguagem, são, na prática filosófica, vale dizer, na Filosofia clínica, submetidas ao crivo da Filosofia analítica. É importante lembrar que a parte da Filosofia analítica inserida no Método da Filosofia clínica não foi, portanto, a do Positivismo lógico, porque, como vimos acima, ele se restringe a analisar com rigor apenas a linguagem da ciência. Da Filosofia analítica, foi a Filosofia lingüística que Packter achou conveniente ao Método da Filosofia clínica porque ela analise toda e qualquer linguagem expressa 7 na historicidade do Partilhante. A realidade lingüística de um Partilhante alcança várias formas de vida: forma de vida política, religiosa, econômica, social e outras. Tendo isso em vista, o instrumento mais eficaz para análise da linguagem, clarificador dos conceitos e significados presentes na linguagem do Partilhante é a Filosofia analítica lingüística. A Historicidade, de modo geral, apresenta-se carregada de várias formas de vida, portanto de várias linguagens que revelam o mundo existencial do Partilhante e a análise dessas linguagens é importante para que o Filósofo clínico compreenda esses mundos. A análise da linguagem, no domínio da Filosofia clínica, desempenha a mesma atividade da análise no domínio da Filosofia lingüística, vale dizer, ela clarifica os conceitos e problemas filosóficos evidenciados na Historicidade do partilhante, liberta o pensamento das armadilhas da linguagem para que ele possa se desenvolver de forma mais clara; traduz frases por outras sinônimas para explicitar a complexidade real dos conceitos empregados, reconstrói formas verbais que manifestam a lógica do pensamento e possibilita evidenciar a estrutura verdadeira dos eventos ou dos pensamentos expressos. Para o Filósofo clínico é importante “O que (o Partilhante) quer dizer?” e “Como (o Partilhante) conhece?”. A partir dessas duas questões, abrem-se novas investigações conceituais em direção aos fundamentos. Quanto à Filosofia da linguagem entendida como um setor da filosofia analítica, ela é importante para a Filosofia clínica à medida que trata dos aspectos semânticos e sintáticos da linguagem, de forma pragmática. Além disso, a Filosofia da Linguagem possibilita ao Filósofo clínico perceber os elementos sócio-culturais que se relacionam com o Partilhante, a partir do uso que ele faz da linguagem no ato da comunicação. É nosso entendimento que, entre os problemas da linguagem levantados e discutidos pelos filósofos da linguagem, tanto a “performatividade” como a “referência” encontradas na teoria dos atos ilocucionários do Austin, autor tratado acima, colaboram para a compreensão da linguagem expressa na Historicidade do partilhante. A “performatividade” porque trata da forma como o Partilhante usa os verbos e a “referência” porque mostra como o Partilhante designa ou se refere a algum objeto do mundo exterior. Os resultados das discussões desses problemas lingüísticos transformam-se em ferramentas que auxiliam o Filósofo clinico compreender analiticamente o mundo existencial do Patilhante, através de suas linguagens. 8 Referência Bibliográfica básica MORA, José Ferrater. A Filosofia analítica: mudança de sentido em Filosofia. Porto: RÉS – Editora, s/d. PACKTER, Lucio. Cadernos de Filosofia clínica. Porto Alegre. Instituto Packter. Leituras recomendadas HANNA, Robert. Kant e os Fundamentos da Filosofia Analítica. São Leopoldo. RS. Editora Unisinos. 2001. SILVA. Mariluze Ferreira de Andrade e Silva. Filosofia para Filósofos clínicos/ Métodos Fenomenologia da Linguagem/ Analítica da Linguagem. São João del-Rei/MG 2007. ________________ As contribuições de Wittgenstein à Filosofia clínica. São João delRei/MG, 2006. STROLL, Avrum. La filosofia Analítica del siglo XX. Madri, 2002. WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Vozes: Petrópolis, 1996.