1 LIMITES DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NO ATENDIMENTO ÀS FAMÍLIAS EM TEMPOS DE CAPITAL FETICHE Isis Silva Roza1 Jussara de Cássia Soares Lopes2 RESUMO O artigo a seguir apresenta como objetivo realizar uma contraposição entre os avanços trazidos pela política de assistência social, que tem como centralidade a família, ao contexto adverso que a limita na efetivação das propostas trazidas em seu âmbito. Para tanto, discutiremos as configurações da política social no contexto de crise capitalista e contrarreforma do Estado no Brasil, para então refletir sobre seus rebatimentos na atualidade, em especial na família, que vem sendo priorizada na sua intervenção. Palavras-chave: Política Social, Neoliberalismo, Centralidade Sociofamiliar, Democracia. 1 Assistente Social e Mestra em Serviço Social pela UFJF; Professora Assistente do Curso de Serviço Social da UFOP. 2 Assistente Social pela Unimontes e Mestra em Serviço Social pela PUC-Rio; Professora Auxiliar do curso de Serviço Social da UFOP. 2 1. INTRODUÇÃO É de fundamental importância para este trabalho entender como a Assistência Social materializa-se no âmbito familiar, observando, ainda, quais as transformações ocorridas no cenário nacional após a implementação da Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004. No Brasil, a alta concentração de renda em mãos de poucos propicia uma desigualdade social acrescida de uma pobreza que atinge uma grande parcela da população, o que exige do Estado a efetivação de políticas públicas a fim de conter a marginalização e subalternização desse contingente populacional. Portanto, o intuito desse trabalho foi fazer uma análise da possibilidade do exercício da cidadania através das políticas sociais existentes em nosso país, detidamente, a Política Nacional de Assistência Social. Assim, questiona-se como a população, nos dias atuais, se reconhece frente às mudanças políticas e econômicas através dessas. Consideram-se como sujeitos políticos portadores de direitos ou apenas como recebedores de um “favor” beneficiado pelo poder público? 2. Política Social e Neoliberalismo no Brasil: breves considerações Estamos inseridos em um contexto de regressão de direitos, supervalorização do consumidor em detrimento do cidadão, intervenção mínima do Estado no campo social e transferência dessas responsabilidades à sociedade civil. No Brasil, foi a partir da década de 1990 que assistimos a essas transformações que tem radicalizado a questão social3 com o aumento das desigualdades socioeconômicas e da pobreza. Para Netto (2001), a conjunção “globalização” mais “neoliberalismo” veio para demonstrar que o capital não tem nenhum “compromisso social”, pois seu esforço para romper com qualquer regulação política, extra-mercado, tem sido coroado com êxito. Behring (2006, p. 12-13) esclarece que a fórmula neoliberal pode ser resumida em algumas proposições básicas: 3 De acordo com Iamamoto (2001, p.16) “a questão social diz respeito ao conjunto das desigualdades sociais engedradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – trabalho – das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos”. 3 1) Um Estado forte para romper o poder dos sindicatos e controlar a moeda; 2) um Estado parco para os gastos sociais e regulamentações econômicas; 3) a busca da estabilidade monetária como meta suprema; 4) uma forte disciplina orçamentária, diga-se, contenção dos gastos sociais e restauração de uma taxa natural de desemprego; 5) uma reforma fiscal, diminuindo os impostos sobre os rendimentos mais altos; e 6) o desmonte dos direitos sociais, implicando na quebra da vinculação entre política social e esses direitos, que compunha o pacto político do período anterior. Desse modo, Iamamoto (2001) reflete que se vive a sociedade de mercado, sendo que o mercado é tido como eixo regulador da vida social, invadindo suas mais diferentes esferas: Forja-se assim uma mentalidade utilitária, que reforça o individualismo, onde cada um é chamado a “se virar” no mercado. Ao lado da naturalização da sociedade (...) ativam-se os apelos morais à solidariedade, na contraface da crescente degradação das condições de vida das grandes maiorias. Esse cenário, de nítido teor conservador, atinge as formas culturais, a subjetividade, a sociabilidade, as identidades coletivas, erodindo projetos e utopias. Estimula um clima de incertezas e desesperanças. A debilitação das redes de sociabilidade e sua subordinação às leis mercantis estimulam atitudes e condutas centradas no indivíduo isolado, em que cada um “é livre” para assumir os riscos, as opções e responsabilidades por seus atos em uma sociedade de desiguais (Iamamoto, 2001, p. 21). É nesse contexto que nos urge refletir sobre a política social, partindo do pressuposto de que esta nasce e se desenvolve no âmbito da sociedade capitalista. Democracia, cidadania, equidade, justiça social, enfim, são conceitos que não conseguimos observar no cotidiano de todas as pessoas no Brasil. Uma grande parcela da população brasileira não exercita seu papel de cidadão, pois não lhe é respaldada essa possibilidade. Surge um consenso passivo, que segundo Coutinho (1999), se dá quando a população não participa ativamente das decisões políticas, sociais, econômicas, culturais que permeiam nossa sociedade. Sendo assim, o que se assiste no Brasil é uma transformação vinda “pelo alto”, pois ocorreu através das classes dominantes econômica e politicamente, excluindo as classes populares, utilizando os aparelhos repressivos e coercitivos do Estado. Coutinho (1999) observa que, desde a Independência política ao golpe de 1964, bem como a Proclamação da República e a Revolução de 1930, não teve, no Brasil, a participação maciça dos movimentos populares, sendo que tais ações políticas foram realizadas de uma forma elitista e antipopular. Em outras palavras, a sociedade civil não teve o poder por um bom tempo de direcionar, no nosso país, as camadas populares, ficando à margem das decisões do Estado. Assim, vemos como as políticas foram pensadas, elaboradas e 4 implementadas de forma descontínua e fragmentada para as classes subalternas, mas sem as classes subalternas. Coutinho (1999) analisa, a partir daí, que todos os processos de transformação ocorridos na história do Brasil não resultaram de movimentos de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população, “mas, se processaram sempre através de uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores economicamente dominantes, configuração que se expressa sob a figura política de reformas 'pelo alto'” (Coutinho, 1999, p.127). Uma conciliação pelo alto que não esconde jamais, segundo o autor, “a intenção explícita de manter marginalizadas ou reprimidas [...] as classes e camadas sociais 'de baixo'” (Idem, 127). Essas práticas, à medida que são mantidas e reproduzidas, contribuem para retardar a realização de direitos e a construção de uma cultura política baseada no direito, na ética, na cidadania, nas relações democráticas horizontais e na participação popular. Há, ao mesmo tempo, a conquista legal de direitos e a luta por efetivá-los, tanto em nível de sociedade, quanto no interior do próprio Estado. Segundo Oliveira (1999, p.58-59): A formação da sociedade brasileira (...) é um processo complexo de violência, proibição da fala, mais modernamente privatização do público, interpretado por alguns como a categoria de patrimonialismo, revolução pelo alto e incompatibilidade radical entre dominação burguesa e democracia; em resumo, de anulação da política, do dissenso, do desentendimento (...). Portanto, infere-se, a partir dos enunciados acima, que em nosso cenário nacional as políticas são impostas, são verticais, uma vez que as decisões são feitas de cima para baixo, com pouca ou quase nula participação da sociedade civil, mesmo quando essas buscam alterar o quadro político em que vivemos. As conquistas estão muito aquém do resultado que se espera. Em consonância a essas ideias, Faleiros (2004) nos esclarece que as políticas sociais relacionam-se com as exigências do capital, para se valorizar e reproduzir a força de trabalho e com as lutas sociais, bem como com as crises do capitalismo. Tanto Faleiros (2004) quanto Behring (2006) circunscrevem a política social no âmbito da correlação de forças inerente ao sistema capitalista, configurando-se como um terreno importante da luta de classes, numa relação complexa inscrita entre concessões e conquistas. Pastorini (2007, p 90) acrescenta ainda que as políticas sociais “(...) devem ser pensadas como uma relação entre classes, como uma mediação entre a sociedade civil e o Estado, que reflete sua dupla característica de coerção e consenso, de concessão e ‘conquista’.” 5 Se pensarmos na atual conjuntura de neoliberalismo e capitalismo tardio, as propostas neoliberais no âmbito da política social são reducionistas, e esvaziam e descaracterizam os mecanismos institucionalizados de proteção social. “São propostas fundadas numa visão de política social apenas para complementar o que não se conseguiu via mercado, família ou comunidade” (Yazbek, 2001, p. 37). Complementa essa reflexão Behring (2006, p. 22) ao afirmar que: Para a política social, este conjunto de tendências e contratendências que constituem o capitalismo tardio, traz consequências importantes. O desemprego estrutural acena para o aumento de programas sociais. Paradoxalmente, a crise das estratégias keynesianas e as demandas do capital em torno do superlucro apontam para a diminuição dos gastos sociais. Assim, podemos inferir que estamos inseridos em um campo tensionado e que os desafios postos nesse contexto são muitos. Mas se, como nos indica Pastorini (2007), os avanços no espaço da cidadania e da democracia (mesmo que parciais), quer dizer, nos direitos civis, políticos e sociais, não podem ser entendidos nem como um resultado natural, nem como uma concessão dos setores dominantes, mas sim como resultado fundamentalmente de longas lutas sociais, é possível ainda vislumbrar a ampliação da democracia como forma de superação dessa lógica do capital, como já indicava Gramsci. É nesse contexto que pretendemos refletir sobre a Política Nacional de Assistência Social, de 2004, e sua centralidade na família. Quais desafios se apresentam nesse contexto a uma abordagem inclusiva e emancipatória? 3. Família e Assistência Social Ao buscarmos compreender a família, é notório o entendimento de que esta é a principal instituição que o ser humano tem acesso, é nela que o sujeito inicia seu processo educativo, tem contato com os primeiros valores e princípios morais, por isso, a expectativa é de que ela prepare seus membros para a convivência em sociedade. Ela constitui-se num canal de iniciação e aprendizado dos afetos e das relações sociais, aparecendo como espaço privilegiado das relações mais íntimas e tornando-se essencial para a construção da identidade pessoal. Assim sendo, é possível afirmar que a família é a primeira fonte de 6 influências que age sobre o indivíduo. Para Mielnik (1988), a família age sobre a criança como fonte de imitação, de exemplo, de aculturação, de colonização e de socialização. Em conformidade com essa ideia, Souza (1999) acrescenta que a família é o local privilegiado para o exercício da noção de cidadania, e tem um papel decisivo na educação formal e informal. Nesse sentido, Ferrari & Kaloustian (1998)4, apud Serapioni (2003, p. 246), afirmam que “a família brasileira, em meio a discussões sobre a sua desagregação ou enfraquecimento, está presente e permanece enquanto espaço privilegiado de socialização, de prática de tolerância e de lugar inicial para o exercício da cidadania”. Ressalta-se que a família não é o único canal pelo qual se pode tratar a questão da socialização, mas é, sem dúvida, um âmbito privilegiado, uma vez que este tende a ser o primeiro grupo responsável pela tarefa socializadora. A família constitui uma das mediações entre o homem a e sociedade. (Vitale, 2004) Sendo assim, é possível inferir que a família pode prover não somente o cuidado físico, mas também ensina às crianças a interpretação dos familiares da realidade social e é de dentro da família que a personalidade da criança se desenvolve, especialmente nos anos iniciais da vida. Entretanto, é importante refletirmos que as questões apontadas referem-se ao que se espera da família, mas, não necessariamente que as famílias apresentem condições objetivas e subjetivas de exercerem o papel que a sociedade a designa. Diante de tal realidade, o Estado propõe políticas públicas, em especial, no âmbito da assistência social, que tenham como foco a família. Carvalho (2005) atesta que a família está no centro das políticas de proteção social. Os serviços coletivos implementados pelas políticas sociais estão combinando diversas modalidades de atendimento ancorados na família e na comunidade, com destaque para serviços e programas assistenciais. Mioto (2006) destaca que a incorporação da família nas políticas públicas se faz de forma bastante tensionada entre propostas distintas, vinculadas a projetos também distintos em termos de proteção social e societário. Nessa lógica, Teixeira (2009) identifica duas grandes tendências nesse processo de incorporação: uma, denominada “familista” e, outra, “protetiva”. A primeira, a “familista”, é identificada com o projeto neoliberal que preconiza a centralidade da família, apostando na sua capacidade de cuidado e proteção, 4 Ferrari M. & Kaloustian S.M. 1998. Família brasileira, a base de tudo. Unicef-Cortez, Brasília-São Paulo. 7 enquanto canal natural de proteção social, junto com o mercado e organizações da sociedade civil. A intervenção do Estado se daria somente quando falhassem esses canais naturais. A segunda, a tendência “protetiva”, em contraposição, afirma que a capacidade de cuidados e proteção da família está diretamente relacionada à proteção que lhe é garantida através das políticas públicas, como instância a ser cuidada e protegida. O que percebemos é que a política social brasileira possui elementos de ambas as tendências, e por isso reforçamos o caráter dual e contraditório da matricialidade sociofamiliar no seio da política de assistência social, que pode tanto reproduzir estereótipos quanto se configurar numa possibilidade de melhoria da qualidade de vida da população, ainda que com limites reais e objetivos, como veremos no próximo ponto. 4. Assistência social e família: desafios em tempos de capital fetiche No entanto, há de se considerar a ousadia da política de assistência social brasileira, problematizando os limites desta política, que ganha força no Brasil em um contexto adverso para as famílias pobres superarem a dependência da assistência social. A Política Nacional de Assistência Social – PNAS /2004 (p.41) traz a centralidade da família e a afirma enquanto “espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias, provedora de cuidados aos seus membros, mas que precisa também ser cuidada e protegida”. Nota-se, através desta afirmação, que o entendimento sobre família apresentado pela política segue o mesmo direcionamento apontado no início do artigo. Traz, ainda, um importante avanço, no sentido de compreender a necessidade de proteção a esta instituição. A partir deste entendimento, em vários momentos, a PNAS (2004) aborda a centralidade da família no âmbito da assistência social, pensando, inclusive na concepção e implementação dos programas, projetos, serviços e benefícios. O público usuário é constituído por cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidades e riscos sociais, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em 8 termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social. (p.33) Merece, aqui, outra ponderação, ainda que não seja o foco deste artigo. Para delimitar o público da assistência social, a política traz conceitos que apresentam um esvaziamento teórico e político, como risco e vulnerabilidade social: (...) incorpora conceitos sociais-liberalistas, os quais visam à (re)naturalização da questão social, despolitizando-a, para blindá-la de qualquer reflexão que permitia o tensionamento de suas causas fundantes: a expropriação e a exploração dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, entendemos que há um importante avanço na PNAS (2004) ao tratar sobre o respeito à pluralidade e diversidade cultural, socioeconômica, política e religiosa. Assim, se faz necessário o rompimento com diversos paradigmas que ainda vivem no imaginário social, como as divisões de papéis baseadas no sexo. Neste mesmo sentido, a NOB/SUAS (2012) coloca como seguranças a serem afiançadas pela assistência social: acolhida; renda; convívio ou vivência familiar, comunitária e social; desenvolvimento de autonomia (que engloba, entre outros, o desenvolvimento de capacidades e habilidades para o exercício do protagonismo, da cidadania); apoio e auxílio. Consideremos ainda o princípio ético que trata sobre a autonomia e a sustentabilidade do usuário. Diante da matricialidade sociofamiliar, cabe-nos indagar sobre as objetivações presentes na atualidade para que a assistência social possa garantir a autonomia, sustentabilidade e o protagonismo familiar. Torna-se fundamental nos apropriarmos de Mota (2010) para compreendermos a inversão de prioridades que ocorre na seguridade social e o papel da assistência social na contemporaneidade. A autora chama a atenção para uma clivagem da política social em torno de dois polos: a expansão da assistência social em detrimento da Previdência e da Saúde, atravessadas por um intenso processo de privatização e mercantilização. Essa clivagem institui o que a autora define como cidadão-consumidor e cidadão-pobre, sendo este último objeto de intervenção da assistência social, que acaba se constituindo num mito social, pois na impossibilidade de garantir o direito ao trabalho, “(...) o Estado capitalista 9 amplia o campo de ação da Assistência Social ao mesmo tempo em que limita o acesso à saúde e à previdência social públicas” (MOTA, 2010, p. 141). Segundo Yazbek (2001), no caso brasileiro, as políticas sociais que historicamente tem-se caracterizado pela subordinação à matriz conservadora, oligárquica e patrimonialista que emoldura a história econômica e social do país, tenderão, nesse quadro neoliberal de regressão de direitos, a reforçar seu perfil assistencialista e clientelista. De forma a compreendermos os limites que a assistência social traz em si própria na contemporaneidade brasileira, precisamos considerar o acirramento das contradições sociais capitalistas. “Desemprego em dimensão estrutural, precarização do trabalho de modo ampliado e destruição da natureza em escala globalizada tornaram-se traços constitutivos dessa fase da reestruturação produtiva do capital”. (ANTUNES, 2009:36) As prioridades governamentais giram em torno da privatização do patrimônio público e dos sistemas de seguridade social; desregulamentação dos capitais produtivos transnacionais; supressão dos direitos trabalhistas; ataque aos sindicatos; mercadorização da vida social; e refilantropização da sociedade civil. Orquestrada pela ofensiva neoliberal, a ação sociorreguladora do Estado se retrai, pulverizando os meios de atendimento às necessidades sociais dos trabalhadores entre organizações privadas mercantis e não-mercantis, limitando sua responsabilidade social à segurança pública, à fiscalidade e ao atendimento, através da assistência social, àqueles absolutamente impossibilitados de vender sua força de trabalho. A classe trabalhadora é também atingida pelos processos de privatização, inicialmente através da venda de empresas produtivas estatais, seguindo-se uma ampla ofensiva mercantil na área dos serviços sociais e de infraestrutura, tais como os de saúde, previdência, educação, saneamento, habitação, etc., amparados pela liberalização da economia, sob a égide da liberdade de mercado e retração da intervenção do Estado (MOTA, 2010, p. 59). Assim, apontamos algumas considerações. Apesar da assistência social trazer a autonomia e o protagonismo familiar, as condições para que isto ocorra são adversas. A produção e reprodução da dependência da assistência social é uma realidade difícil de ser superada. A base da emancipação familiar, ainda que necessária e de fundamental importância, não pode estar em uma política que busca garantir o atendimento às necessidades básicas. Vieira (2008, p.191) afirma que as políticas assistenciais hoje são pautadas em ações e programas focais e descontínuos, “que se destinam a oferecer um mínimo capaz de aliviar 10 a pobreza conservando o nível de desigualdade social e denotando meras tentativas esparsas”. Cria-se uma dependência da assistência social, tendo em vista que o contexto macro societário não é favorável ao rompimento da (re)produção da pobreza e das desigualdades sociais. O princípio que trata sobre a supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica (LOAS, 1993) jamais foi respeitado no país. Ao contrário, conforme defendem os organismos internacionais, a prioridade está na garantia do superávit primário e o repasse de recursos para credores. A população, por sua vez, é sempre a mais penalizada, diante de um Estado que privilegia o pagamento de juros da dívida em detrimento de investimentos que atendam às diferentes necessidades da população. Coutinho (2005) aponta para o fato de que, embora tanto os direitos políticos como os direitos sociais sejam importantes conquistas dos trabalhadores, pode ocorrer que em determinadas conjunturas e em função de correlações de força específicas - eles não explicitem plenamente o seu potencial emancipatório. Para que tal ocorra, é mais uma vez necessária a intensificação das lutas pela realização da cidadania, o estabelecimento de correlações de força favoráveis aos segmentos sociais efetivamente empenhados nessa realização. Souza (2009) considera imprescindível a participação e o exercício dos atores políticos e sociais no âmbito da política, desnaturalizando ou tornando visíveis de forma mais tangente as desigualdades manifestadas em diversos matizes em nossa sociedade. Para ele: Sem indivíduos capazes de discutir e refletir com autonomia não existe democracia verdadeira. Sem práticas institucionais e sociais que estimulem e garantam a possibilidade de crítica e a independência de opinião e de ação, não existem indivíduos livres. O problema é que não é fácil perceber os modos insidiosos pelos quais as práticas dos poderes dominantes constroem a ilusão de liberdade e igualdade (SOUZA, 2009, p.42). Advindos da promulgação da Constituição Federal de 1988, soergueram direitos sociais, além de uma visibilidade maior sobre a temática dos direitos humanos na contemporaneidade. No entanto, infelizmente, no Brasil, o fato de estar no plano legal não constitui necessariamente estar no plano real. A História trouxe consigo uma lição a que os direitos, principalmente os sociais, não são concedidos, mas sim conquistados. Assim, desde 11 o princípio, a cidadania tem sido uma construção que ainda não foi consolidada e se encontra em estágios diversos de configuração nas variadas formas de sociedades que compõem o corpo geopolítico internacional. O que fica claro quando Bobbio (1992), discutindo a “Era dos Direitos”, nos diz que, em sociedades onde o ideal de justiça social se faz presente, a liberdade se encontra abalada; e onde o ideal de liberdade é contemplado, o de justiça social deixa a desejar. Para Carvalho (2006), a democracia no Brasil ainda não foi consolidada. Principalmente, na onda neoliberal em que o país entrou logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, elegendo Fernando Collor de Melo. Seu sucessor comungava dessas idéias, e no governo Lula, o projeto neoliberal não sofre tantas alterações. Carvalho (2006) acredita que a cidadania pregada pelo neoliberalismo é a do direito do consumo, e essa cultura dificulta o avanço da cidadania, visto que há a incapacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem a redução da desigualdade e o fim da divisão dos brasileiros em castas separadas pela educação, renda, cor. “A desigualdade é a escravidão de hoje” (Carvalho, 2006, p. 229). 5. Considerações finais A proposta desse estudo pautou-se em examinar a aplicabilidade da política de assistência social na vida das famílias enquadradas no perfil desta. Pôde-se perceber, através das leituras de muitos autores, a naturalização e invisibilidade de muitas mazelas que permeiam o universo desses sujeitos. As medidas tomadas pelo Estado, através das políticas públicas sociais são muitas vezes minimalistas, focalistas, fragmentadas e descontínuas. Se elas têm a função de transformação social, não conseguem chegar ao cerne do problema, pois o trabalho realizado não é contumaz. Igualmente, as políticas sociais no Brasil, de corte neoliberal, não possibilita à família exercer de forma real sua cidadania, transformando-a em subcidadã ou em não-cidadã. Todavia, ficou evidente que políticas de proteção, pautadas na cidadania e no direito, são recentes em nossa história política. Portanto, a partir de algumas décadas, as mobilizações através dos movimentos sociais, reivindicando uma conduta mais condizente à dignidade humana, passaram a ser mais freqüentes e influenciaram de maneira loquaz essas modificações que ocorrem em meados do século XX. No entanto, a incipiência dessa veia 12 política na população brasileira faz com que essas mudanças sejam tão paulatinas e graduais que, ainda hoje, vemos que as formas encontradas não foram capazes de grandes alterações. Coutinho (2005) atesta que enquanto houver uma sociedade dividida em classes sociais não será possível a universalização da cidadania, devido a incompatibilidade entre esses. Ou seja, a divisão da sociedade em classes entrava a afirmação da democracia. E, a partir daí, gera privilégios para uns, exclusão e déficits para outros. Não é preciso destacar que isso fere a dita “democracia”, que seria encarada como soberania popular, mas uma vez que o próprio Estado que cria essas leis não consegue executá-las, demonstra a fragilidade e a ineficiência da mesma. Podemos notar, logo, que uma parcela significativa da população brasileira, notadamente, os que não possuem condições econômicas, políticas e culturais, não exercem sua democracia, muito menos a cidadania que deveria advir dessa Constituição. Portanto, infere-se que em nosso país as políticas sociais, que buscam materializar os direitos presentes em nossa Carta Magna, são muito incipientes e superficiais, inclusive a política de assistência social. Seja pela forma como são implementadas, seja por serem recentes. O resultado não é satisfatório, uma vez que não consegue promover uma transformação societária na vida dessas diversas famílias. Assim, infelizmente, não conseguem conceber a promoção da cidadania, pois tanto a pobreza material quanto a pobreza política das famílias não são superadas, fazendo com que as mesmas não consigam se conscientizar de seu pertence ao mundo, como sujeitos portadores de direitos e capazes de serem atores e autores de sua própria história. 13 REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre a metamorfose e a centralidade do trabalho. São Paulo: Cortez, 2009. BEHRING, Elaine Rossetti. Fundamentos de Política Social. In: MOTA, A. E., et al. (orgs.). Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, ABEPSS, Ministério da Saúde, OPAS, OMS; 2006. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Campus: Rio de Janeiro, 1992. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Lei Orgânica de Assistência Social – Anotada. Brasília, 2009. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 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