Síndrome dos ovários policísticos

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Síndrome dos ovários policísticos: a Síndrome que não existe.
“Pensar sem aprender é inútil.
Aprender sem pensar é perigoso.”
Confúcio
Lucas Viana Machado
Em 1935, Stein e Leventhal publicaram no American Journal of Obstetrics and
Gynecology (vol 29: pag. 181) o trabalho “Amenorrhea associated with bilateral
polycystic ovaries”. Eles trataram 7 pacientes com as características clínicas citadas
acima, submetendo-as a uma ressecção de um terço a metade dos ovários. Após a
cirurgia, todas passaram a menstruar regularmente e duas engravidaram. A conclusão
dos autores foi a seguinte: - “A ressecção em cunha da córtex cística dos ovários
restaurou completamente a função fisiológica. Acreditamos que um acúmulo mecânico
da córtex por cistos, interfere com o progresso dos folículos de Graaf para a superfície
do ovário. Este fator mecânico pode ser responsável pelos sintomas de amenorréia e
esterilidade”.
Foi Jo Vincent Meigs, quem, em 1949, empregou pela primeira vez o termo
“Síndrome de Stein e Leventhal”.
Embora descrita inicialmente como “Doença esclerocística do ovário”, em 1844,
por Chereaux, coube a Irving Stein e Michael Leventhal o mérito da delimitação de um
quadro
clínico
razoavelmente
bem
definido,
caracterizado
por
amenorréia/oligomenorréia, obesidade, hirsutismo, infertilidade e a presença de ovários
policísticos bilateralmente aumentados, identificados através da pneumopelvigrafia.
Estes ovários apresentavam características histopatológicas típicas, tais como: aumento
bilateral do volume, superfície lisa, múltiplos cistos subcapsulares, com diâmetros entre
2 a 8mm, ausência ou raridade de estigmas de ovulação (corpos lúteos e albicans),
espessamento da túnica albugínea, luteinização da teca interna dos folículos e
hiperplasia do estroma ovariano.
Um conjunto de sinais e sintomas característicos, a comprovação do aumento
bilateral dos ovários pela pneumopelvigrafia, a confirmação pelos achados
histopatológicos dos ovários explicando a fisiopatologia do quadro e uma resposta
clínica favorável mediante uma conduta cirúrgica uniforme, caracterizam sem dúvida
uma síndrome. A causa estaria exatamente na barreira mecânica exercida pelo acúmulo
de folículos subcapsulares, que segundo os autores, impediriam a progressão do folículo
de Graaf para a superfície.
Entretanto, Robert Greenblatt, questionando a hipótese da barreira mecânica,
praticou em 6 pacientes com a “síndrome dos ovários policísticos”, a ooforectomia
unilateral, deixando o outro ovário intacto. Cinco delas ovularam e menstruaram
normalmente, provando claramente que não existe uma barreira mecânica, pois ocorreu
a ovulação nos ovários restantes que apresentavam as mesmas características (In:
Givens JR. The Infertile female. Panel III; 1979. Year Book Medical Publishers).
À partir desta constatação, a “Síndrome dos ovários policísticos” deixou de
existir. O que permaneceu foram os ovários policísticos, que nada mais representam do
que a expressão morfológica de um estado de anovulação crônica. A anovulação em si
poderá ser o resultado de um simples distúrbio funcional do eixo cortex-hipotálamohipófise-ovário, o que alias representa a maioria dos casos, como poderá ser uma
manifestação precoce de patologias graves que poderão, inclusive, levar a paciente ao
óbito.
Estabelecida a anovulação, qualquer que seja a causa, na presença de
quantidades basais ou pouco elevadas de LH e uma população folicular adequada, a
resposta ovariana será invariavelmente a mesma: tornar-se policístico. Não existe a
menor possibilidade de ocorrer ovários policísticos associados a ciclos ovulatórios, nem
anovulação crônica sem ovários policísticos. O que pode ocorrer é uma ovulação
esporádica em uma paciente com ovários policísticos ou erro de interpretação de
imagem ultrassonográfica em pacientes ovulatórias.
Falar de anovulação crônica é falar de ovários policísticos. Isto é óbvio, mas ao
mesmo tempo perigoso, pois poderia parecer que a investigação estaria encerrada: “Trata-se de um ovário policístico”. Sim! E daí ? - Deixemos os ovários em paz e nos
preocupemos com a investigação da causa da anovulação. O teste do progestogênio é
apenas a etapa inicial da investigação. Ele não nos informa se a anovulação se deve a
uma obesidade, a uma resistência periférica à insulina, a uma combinação das duas, a
uma forma não clássica ou de manifestação tardia da hiperplasia congênita da suprarenal, a uma hiperprolactinemia, a um adenoma ou carcinoma da supra-renal, a uma
síndrome de Cushing, a uma epilepsia do lobo temporal, a um tumor hipotalâmico, a um
hipotireoidismo, a uma alteração dos inúmeros fatores que interferem no eixo C-H-H-O
tais como fatores hipotalâmicos liberadores ou inibidores dos hormônios hipofisários,
neurotransmissores, enzimas que participam de todas as etapas da esteroidogênese,
fatores de crescimento, SHBG, estresse físico ou emocional, uso de medicamentos,
leptina e tantos outros que surgirão, à medida que os conhecimentos científicos e a
biologia molecular continuarem evoluindo. Certamente não será uma ressecção em
cunha ou uma cauterização laparoscópica de folículos que irá resolver estes problemas.
Após a boa resposta inicial, motivada pela brusca redução dos níveis de androgênios
produzidos no estroma ovariano, com conseqüente à liberação temporária do eixo C-HH-O, o quadro tende a retornar, pois não foi identificada nem corrigida a sua etiologia.
Imaginem remover ou destruir parenquima ovariano, conseguir uma gestação e
desconhecer uma resistência insulínica ou um tumor hipofisário ou adrenal. Tais
procedimentos irão sim, destruir ou remover milhares de folículos sadios e contribuir
para a antecipação da menopausa.
E a “Síndrome dos Ovários Policísticos”, como é que fica? Melhor não ficar,
pois ela existiu, em 1935, quando muito pouco se sabia sobre os delicados mecanismos
que regulam o eixo C-H-H-O. Quem poderá afirmar que entre as 7 pacientes descritas
originalmente por Stein e Leventhal não havia uma ou mais com hiperprolactinemia, ou
com uma forma tardia de hiperplasia congênita da supra-renal ou qualquer das
patologias acima mencionadas? Se me perguntarem quantos casos de SOP já encontrei
nos 44 anos de intensa atividade clínica, não saberei responder, pois não os procuro. O
que procuro é a causa da anovulação.
CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS
É absolutamente impossível estabelecer um consenso sobre os critérios
diagnósticos de uma síndrome que não existe. Entretanto, alguma luz tem surgido no
fim do túnel, pois já se admite que não há uma causa única. Trata-se de um quadro
multi-etiológico. Vamos então procurar a etiologia exata! Outro sinal importante é que
muitos autores não empregam mais o termo “Síndrome dos Ovários Policísticos” e sim
“anovulação hiperandrogênica” ou “anovulação crônica”, ou ainda “anovulação por
retrocontrole impróprio”, mas sempre anovulação. Mas, como dizia Albert Einstein: -
“Triste mundo em que vivemos. É mais fácil quebrar o átomo do que um mito”, esta
polêmica ainda vai longe. Venho dizendo a mesma coisa há mais de 40 anos e embora
tenha sido muito criticado, minha fala agora já encontra eco. É tão simples e lógica que
o saudoso Jean Claude Nahoun, primeiro editor de FEMINA, se referiu ao “Deixemos o
ovário em paz” como:- “Um apologético discurso, onde se ensina a pôr ordem na casa, a
não complicar o óbvio e a não ver o que não existe. Os ovários sensibilizados
agradecem”(FEMINA. 1986; vol.14, pág. 227).
Ao abordar o diagnóstico, sempre se fala em dosagens hormonais como FSH,
LH, relação LH/FSH, vários androgênios, estrogênios, ultra-sonografia ou mesmo
laparoscopia. Sempre insisti que tais exames representam riscos e despesas inúteis para
se comprovar o óbvio, o que, inclusive, motivou um inquérito entre professores
nacionais, publicado em FEMINA (1979; vol. 7, Nº 9, pág 702).
Em 1990 o “National Institute of Health (NIH) promoveu uma reunião de
consenso para definir os critérios diagnósticos da “Sindrome”. Eis as conclusões:
São necessários pelo menos dois dos seguintes itens:
1 – Anovulação crônica.
2 – Sinais clínicos e/ou bioquímicos de hiperandrogenismo.
3 – Exclusão de outras etiologias.
Foi acordado que resistência à insulina, relação LH/FSH aumentada, imagem
ultrassonográfica de microcistos, não são imprescindíveis para o diagnóstico. Houve um
baixo grau de concordância entre os debatedores. Nenhum critério foi considerado por
mais de 64% dos 58 participantes.
Se os “experts” não se entendem, imaginem os não iniciados? De qualquer
modo, já foi um avanço, pois basta identificar a anovulação crônica e excluir outras
patologias, o que venho falando há mais de 40 anos. Da mesma maneira, não
consideram imprescindíveis a relação LH/FSH e o ultra-som.
Como o avanço da tecnologia é fascinante e encanta a todos, técnicos sem o
necessário embasamento científico, voltaram a insistir na imagem ultrassonográfica,
inclusive com novos parâmetros dopplerfluxométricos, medidas mais apuradas do
diâmetro e quantidade dos folículos, assim como a valorização do aumento da
densidade do estroma (como se não fosse óbvio. Se numa almofada de espuma,
colocarmos abaixo da capa, dezenas de bola de tênis e medirmos a densidade da espuma
e compararmos, o que poderíamos esperar?). Como as dúvidas persistiam, foi desovado
uma nova revisão, conhecida como o “Consenso de Rotterdam”, lá realizado em
dezembro de 2003 e publicado em janeiro de 2004 (Fertil. And steril. Vol 81, pag. 19).
Nele, repetem-se os 3 critérios de 1990 e acrescenta-se o achado de ovários policísticos.
“Os participantes do workshop sentem que o ovário policístico deve agora ser
considerado como um possível critério para a SOP”. Essa é de doer! Quer dizer que
antes havia “Síndrome dos Ovários Policísticos” sem ovários policísticos. Os autores
complementam com a seguinte observação (as interrogações são minhas): “Uma mulher
com ovários policísticos, na ausência de um distúrbio ovulatório -?- ou
hiperandrogenismo (ovário policístico assintomático) -?- não deve ser considerada
como tendo SOP até que se conheça mais em relação à apresentação clínica”.
Cuidado, agora existe o ovário policístico assintomático. Essa afirmação ilustra
muito bem a confusão que um método propedêutico (ultrassom), totalmente
desnecessário para o diagnóstico, gera na cabeça do clínico. Se conhecermos mais em
relação à apresentação clínica, o US será dispensável. Basta conhecer as noções básicas
da fisiologia e fisiopatologia do eixo C-H-H-O.
Mas há, por outro lado, algumas recomendações interessantes que reproduzem o
que venho dizendo há anos: (1)- “Baseados nos dados citados, o consenso sente que a
medida dos níveis de LH sérico não deve ser considerado necessária para o diagnóstico
clínico da SOP”. (2)- “As limitações em definir excesso de androgênios são em parte
devidas à inacurácia e inabilidade dos métodos de laboratório. Dosar somente a
testosterona total pode não ser um marcador sensível do excesso de androgênios. Uma
pequena fração de pacientes com SOP pode ter elevações isoladas do DHEA-S. Alguns
acham que a medida da T total e do DHEA-S tem algum valor na detecção de um tumor
secretor de androgênios, contudo, dados mais recentes sugerem que o melhor preditor
dessas neoplasias é a apresentação clínica”. Como costumo dizer: “quando a mulher
estiver barbada, a coisa está cabeluda”.
Um aspecto prático muito importante refere-se à resistência insulínica:
“Atualmente há escassos dados para indicar que os marcadores da resistência insulínica
predizem uma resposta ao tratamento. Portanto, o papel desses marcadores no
diagnóstico da SOP, bem como na seleção de tratamentos específicos, é incerto. Testes
de sensibilidade à insulina são do maior interesse em pesquisas da fisiopatologia da
SOP. O critério para o diagnóstico da “síndrome metabólica” em mulheres com OP
inclui somente glicose de jejum e 2 horas após 75g de dextrosol, com valores de 110 –
126mg/dL e 140-199mg/dL, respectivamente”.
Como vimos, a síndrome que não existe permanece a procura de um critério
diagnóstico definitivo, o que certamente não virá, a menos que mudemos o nosso
enfoque. O importante não é diagnosticar a anovulação, o que é extremamente
fácil, muito menos os ovários policísticos, mas sim a causa da anovulação. A ênfase
que vem sendo dada à resistência insulínica, somente reforça esta conduta.
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