MÁQUINA PENAL: PERSPECTIVAS A PARTIR DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA, DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E DO GARANTISMO PENAL Edvania Fátima Fontes Godoy1 “Quanto mais uma sociedade é desigual, tanto mais ela tem necessidade de um sistema de controle social do desvio de tipo repressivo”. Alessandro Baratta RESUMO: O objetivo do presente trabalho é demonstrar que a realidade operacional do sistema penal se encontra totalmente perdida da planificação do discurso jurídico-penal, contaminada pela seletividade, reprodução da violência, criação de condições para maiores condutas lesivas, corrupção institucionalizada, concentração de poder, verticalização social e total destruição das relações horizontais ou comunitárias. Nesse contexto, a Criminologia Crítica vem propor uma investigação mais detalhada das funções simbólicas e reais do sistema penal, bem como, uma desconstrução individual e mais planejada da ideologia da defesa social, permitindo concluir que o Estado não deve recorrer ao direito penal e sua gravíssima sanção se houver a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros instrumentos jurídicos não penais. Enfim, a busca por um direito penal mínimo, onde a atuação estatal seja garantista, conciliando a normatividade e a efetividade, minimizando a violência e aumentando as margens de liberdade, configura, sem dúvidas, o meio mais adequado e efetivo para se alcançar o ideal de justiça penal almejado por todos. PALAVRAS-CHAVE: sistema penal; criminologia crítica; direito penal mínimo; garantismo penal. 1 Advogada. Professora Universitária. Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. INTRODUÇÃO É sabido por todos que o tema “criminalidade” é objeto de grande interesse, não só das instâncias de controle formal de um modo geral, como também da sociedade civil, justamente, porque costuma trazer a tona discussões acerca das bases jurídicas adequadas para o seu enfrentamento. Acredita-se, infelizmente, que um tratamento legislativo rígido é suficiente para combater a criminalidade. Todavia, como mostra a experiência, apenas diminui a sensação social de insegurança e impunidade. Criou-se uma noção generalizada de que o direito penal é um setor do ordenamento jurídico que protege os bens jurídicos e garante a liberdade social. Entretanto, isso faz parte do discurso oficial e da teoria jurídica. O direito penal, na realidade, acaba atuando de um modo absolutamente predatório contra os segmentos subalternos. Na verdade, não se combate criminalidade com direito penal, nem com processo penal. Aliás, é absolutamente inviável a mudança do processo penal tendo como fim o combate ao crime. Não se trata de simples satisfação social. É muito mais fácil alterar a lei penal e processual penal do que combater as causas da criminalidade. Através de penas severas conquista-se a falsa aparência de que as pessoas que cometem crime serão punidas. É um discurso altamente falacioso. Em síntese, se não forem adotadas políticas públicas anteriores às políticas do direito penal, pode-se aumentar o número de leis, penitenciárias e varas criminais, que ainda assim não haverá lugar para tantos “criminosos”. As reformas devem ser estruturais e o direito penal deve ser reservado para as condutas realmente lesivas. 2 O FUNCIONAMENTO DA MÁQUINA PENAL Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o sistema penal é uma complexa manifestação do poder social. Assim sendo, a sua legitimidade pode ser compreendida como a característica outorgada por sua própria racionalidade. Como se sabe, o poder social não é algo estático, que se “tem”, mas algo que se exerce (ZAFFARONI, 1998, p. 14-16). Desse modo, cumpre destacar logo de início que a construção teórica ou discursiva que pretende explicar esse planejamento é o discurso jurídico-penal. Entretanto, referido discurso não se compatibiliza de forma convincente com o sistema penal, ou seja, a experiência tem mostrado que se trata de um meio ilegítimo para alcançar um fim reconhecidamente “utópico”. É oportuno dizer que o discurso jurídico-penal falso não é um produto de má fé, nem de simples conveniência, nem mesmo resultado da elaboração calculada de alguns “gênios malignos”, mas é sustentado, em boa parte, pela incapacidade de ser substituído por outro discurso em razão da necessidade de se defenderem os direitos de algumas pessoas. Hodiernamente, tem-se consciência de que a realidade operacional dos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais. O sistema penal brasileiro, assim como a maioria dos demais, reproduz sua clientela através de um processo de seleção e condicionamento criminalizante, impulsionado, na maior parte das vezes, por estereótipos gerados pelos meios de comunicação em massa. Na concepção de Zaffaroni (1998, p. 133), os órgãos do sistema penal não só atribuem e exigem certos comportamentos de sua clientela como também instigam todos a “enxergar” do mesmo modo. Ademais, a dor e a morte que nossos sistemas penais espalham estão tão perdidas que o discurso jurídico-penal não pode ocultar seus “estragos”, valendo-se de seu ultrapassado arsenal de racionalizações reiterativas: trata-se de “um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade” (ZAFFARONI, 1998, p. 12). Feitas essas considerações, pode-se dizer que o modelo conservador de Justiça Penal estrutura-se no consumo do medo, cujo dominante marketing midiático se encarrega de influenciar a fim de condicionar a legitimação de um álibi recorrente em momentos de crise sócio-econômica, ou seja, comprometidos com o modelo econômico excludente, usam o Direito Penal para transmitir à opinião pública a sensação de que algo eficaz está sendo feito em defesa da sociedade. É sempre a mesma proposta: “aumento de penas, criminalização de condutas e restrição de garantias que aviltam os direitos individuais” (TRAD, 2006, p. 04). A propósito: Preservam-se os fundamentos de um sistema econômico que deidifica o lucro, erotiza o dinheiro, dissemina a desigualdade, prolifera a miséria, coisifica a pessoa humana e comercializa sentimentos em uma escala crescente de corrupção de valores que recorda os tempos de decadência de civilizações (TRAD, 2006, p. 04). Nesse diapasão, é sobremodo importante assinalar que tal situação é acentuada ao passo que a classe média se robotiza. Aliás, a classe média nada mais é que um produto de um processo calculado de dominação disfarçada, que, atormentada pela insegurança que consome diuturnamente, confunde violência com a sua dimensão mais visível – o crime – absorvendo a idéia de que o criminoso é um inimigo social que deve ser castigado por um Direito Penal duramente retributivo. “Supõe, neste espasmo ilusório, que o problema da criminalidade pode ser enfrentado com a expansão criminalizante e o endurecimento do regime punitivo” (2006, p. 04). De igual modo, quanto mais dramático o cenário em que se disputa a preponderância de idéias, melhor para o lado que se apossou dos meios que permitem a manipulação das emoções coletivas. Por isso, é incontestável discutir com equilíbrio e igualdade de condições o sistema penal em um contexto de desespero coletivo, ávido de vingança pública e privada, sem que o contraponto do discurso autoritário não seja logo estigmatizado e apequenado. Com propriedade vaticina Trad (2006, p. 04-05), que “entre uma sociedade escrava da vingança e uma sociedade aprendiz do perdão e da justiça, balança o pêndulo do debate deflagrado pela ineficácia das leis e ausência de valores civis e governamentais”. Nessa esteira, Cirino dos Santos (apud BATISTA, 2005, p. 2526) observa que o sistema penal é “constituído pelos aparelhos judicial, policial e prisional, e operacionalizado nos limites das matrizes legais”, pretendendo, assim, afirmar-se como um sistema garantidor de uma ordem social justa. No entanto, seu desempenho real contradiz essa aparência. Diante disso, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas. Da mesma forma, o sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que busca prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade. Contudo, seu desempenho é altamente repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Postas assim as coisas, é de se concluir que a seletividade, a repressividade e a estigmatização são algumas das características centrais de sistemas penais como o do Brasil. Oportuno se torna dizer que a máquina penal funciona de forma bem diversa da planejada. Todas as regras formais, todos os princípios que pretendem edificar uma justiça serena e imparcial, não protegem efetivamente as pessoas dos constrangimentos arbitrários, nem muito menos são válidos para a sociedade atual (HULSMAN, 1993, p. 57). Em síntese, como bem disse Baratta, é necessário que haja uma batalha cultural e ideológica em favor do desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo das condutas desviantes e da criminalidade, tentando-se inverter as relações da hegemonia cultural com um trabalho de decidida crítica ideológica, de produção científica e de informação (apud BATISTA, 2005, p. 3739). Nessa linha de raciocínio, imperioso ressaltar que em uma sociedade de classes a política criminal não pode restringir-se a uma política penal limitada à função punitiva do estado, nem muito menos a uma política de substitutivos penais, indefinidamente reformista e humanitária. Pelo contrário, deve-se empreender de movimentos eficazes, principalmente, no que tange à inserção social e intelectual dos rotulados pelo sistema. Antes de tudo, é necessário que se ofereça condições que levem o condenado a compreender as contradições sociais que o conduziram a uma reação individual e egoística, pois, se desenvolvida nele a consciência de classe, este se transformaria, sem sombra de dúvidas, em participação no movimento coletivo. Vale dizer, que na prática, princípios como o da igualdade perante a lei penal, ou a regra da intervenção mínima da máquina repressiva, não são aplicados de forma efetiva. Cada órgão ou serviço trabalha isoladamente e cada uma das pessoas que intervém no funcionamento desta máquina desempenha seu papel sem ter que se preocupar com o que se passou antes dela ou com o que se passará depois (HULSMAN, 1993, p. 59). O interessante seria que quem causou um dano ou um prejuízo sentisse remorsos, pesar, compaixão por aquele a quem fez mal. Porém, como esperar que tais sentimentos possam nascer no coração de um homem suplantado por um castigo desmedido, “que não compreende, que não aceita ou sequer possui condições para assimilar o que se passa ao seu redor”. Como esperar que alguém nestas condições possa refletir sobre as consequências decorrentes de sua atitude na vida da pessoa que atingiu (1993, p. 71). Nesse contexto evidencia Vera Lúcia Pereira de Andrade que (1997, p. 238): A passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo onde figuram a acumulação do capital, o desenvolvimento da produção, uma modificação do jogo de pressões econômicas, um forte crescimento demográfico, uma multiplicação da riqueza e da propriedade, uma valorização jurídica e moral das relações de propriedade, uma elevação geral do nível de vida e a necessidade de segurança jurídica como sua consequência. É possível aduzir, então, que no decorrer dos séculos, a justiça vem se tornando de certo modo mais pesada, sua legislação se agrava cada vez mais, e em vários pontos há severidade punitiva. A sociedade capitalista tem gerado uma reestruturação da “economia de ilegalidades”: a “ilegalidade dos direitos” que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos mais despojados é separada da “ilegalidade dos bens” (1997, p. 238-239). Divisão esta, que como pondera Focault, corresponde a uma posição de classes, pois, enquanto a ilegalidade mais acessível às classes baixas será a dos bens, a burguesia proprietária concentrar-se-á na “ilegalidade dos direitos”. Observa-se, desse modo, que o sistema penal, visivelmente, vem criando e reforçando as desigualdades sociais. Sua atuação não viola exclusivamente os direitos humanos dos criminalizados, como também de seus próprios operadores, deteriorando regressivamente os que o controlam e assim o crêem (ZAFFARONI, 1998, p. 143). De todo o exposto, pode-se concluir que o sistema penal se encontra estruturalmente montado para que sua legalidade processual não opere em sua plenitude, mas para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis. 2.1 Uma Perspectiva A Partir Da Criminologia Crítica Logo de início, cumpre destacar que ao contrário da Criminologia Tradicional, a Criminologia Crítica não aceita o código penal, mas investiga como, por que e para quem foi elaborado. Evidencia-se, assim, que a Criminologia Crítica não se autodelimita pelas definições legais de crime, interessando-se igualmente por comportamentos que implicam forte desaprovação social (BATISTA, 2005, p. 32). Nessa conjuntura, importante ressaltar que seu objetivo é justamente verificar o desempenho prático do sistema penal, a missão que efetivamente lhe corresponde, comparando-o funcional e estruturalmente com os demais instrumentos formais de controle social. Sendo assim, a Criminologia Crítica opta pela análise das condições objetivas, estruturais e funcionais que originam, na sociedade capitalista, os fenômenos de desvios, interpretando-os separadamente conforme se tratem de condutas das classes menos favorecidas ou condutas das classes dominantes, ou seja, os detentores do poder econômico e político (ANDRADE, 1997, p. 217). Em consonância com o atacado, conclui Baratta que o sistema penal não é unicamente um complexo estático de normas, e sim, um meio de criminalização, ao qual concorre a atividade das diversas instâncias oficiais, desde o legislador até os órgãos de execução penal e dos mecanismos informais da reação social (apud, 1997, p. 218). Ainda no pensamento de Baratta, a criminalidade se mostra, sobretudo, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: Em primeiro lugar, pela seleção de bens jurídicos penalmente protegidos e dos comportamentos ofensivos a estes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, pela seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos aqueles que praticam tais comportamentos (apud, 1997, p. 218). A realidade social está constituída pelas relações de produção, de propriedade, de poder e pela moral dominante. E legitimá-la significa reproduzir ideologicamente estas relações e a moral dominante, colocando de lado a função instrumental do sistema penal, ou seja, a tutela de interesses e direitos particulares dos indivíduos. Desse modo, a Criminologia Crítica chega à investigação das funções simbólicas e reais do sistema penal, bem como, a uma desconstrução individual e mais planejada da ideologia da defesa social. Contrariamente à Criminologia Tradicional que, na condição de instância interna do sistema penal, desempenha uma função auxiliar e legitimadora relativamente a este e à Política Criminal oficial, a Criminologia contemporânea, ao resgatar sua autonomia científica, situa-se como uma instância crítica externa do Direito e do sistema penal. Essa nova Criminologia parte do pressuposto de uma sociedade de classes, entendendo que o sistema punitivo está organizado ideologicamente para proteger os conceitos de interesses próprios da classe dominante. Portanto, o sistema acaba se destinando a conservar a estrutura vertical de dominação do poder existente na sociedade (BARATTA, 1999, p. 102). Isso se demonstra pelo caráter fragmentário do Direito Penal que pune intensamente condutas que são típicas dos grupos marginalizados, deixando livre de penas comportamentos austeros e socialmente dispendiosos, como, por exemplo, a criminalidade econômica, unicamente porque seus autores pertencem à classe hegemônica e em razão disso devem ficar imunes ao processo de criminalização. Diga-se de passagem, que o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso independem do prejuízo social decorrente das ações e até mesmo da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizaste e da sua intensidade. Como se pode notar, a Criminologia crítica coloca-se numa relação radicalmente diferente com a prática. Para ela, o sistema positivo e a prática oficial são, Para ela, o sistema positivo e a prática oficial são, antes de tudo, o objeto de seu saber. A relação com o sistema é crítica e a sua tarefa imediata não consiste em fornecer modelos de política criminal, mas sim, em examinar de maneira científica a origem do sistema, sua estrutura, seus mecanismos de seleção, e finalmente, as funções que ele realmente exerce, seus custos econômicos e sociais (ANDRADE, 1997, p. 227). Enquanto isso, para a Criminologia tradicional o sistema positivo e a prática oficial são os destinatários, os beneficiários do seu saber, “o príncipe que ela é chamada a aconselhar” (1997, p. 227). Por tais razões, cumpre salientar, que ao contrário do que pensam alguns juristas, o objetivo da Criminologia Crítica não é negar o Direito, mas, sim, dotá-lo de novos conteúdos, resgatando sua vertente ontologicamente garantidora. 3 EM BUSCA DE UM DIREITO PENAL MINÍMO Em todos os tempos, observa-se esta constante relação entre os objetivos estatais e o conteúdo das normas jurídicas. Estas estão sempre defendendo determinados interesses predominantes, determinados valores. Tais valores estão inseridos na ordem estatal, são por esta dados, e é em razão destes valores que as normas jurídicas vão se criando (SCHNAID, 2004, p. 8687). Como se depreende, o Direito Penal acaba atuando como um instrumento a serviço do Estado. De igual forma, pode estar a serviço tanto do bem como do mal, da justiça como da injustiça, da liberdade como da opressão, da paz como da guerra, do bem comum como da exploração humana. Paradoxalmente, a justiça não é inerente ao Direito, não serve para defini-lo. Pelo contrário, trata-se de uma eterna aspiração que deve ser conquistada. É o valor supremo que predica o Direito. Não é apenas a sanção que faz com que a norma seja cumprida, mas também os valores e, infelizmente, a sociedade atual encontra-se totalmente desprovida de valores. Tenha-se presente que, a constante promulgação de leis penais em nosso país, as quais deveriam ser colocadas para satisfazer às novas exigências de tutela, toma vulto absurdo, e quase sempre apresentando as mesmas características, ou seja, a ausência de critérios para a criminalização de condutas, corroborada pela ineficiente técnica de legiferação penal e correlativo “desperdício de figuras delituosas”, gerando, por conseguinte, a necessidade de revisão, justamente com fins à descriminalização, o que nem sempre é possível realizar (SALES, 2004, p. 168-170). Soma-se a isso o exagerado e indiscriminado uso simbólico do instrumento penal, bem como, o desprezo à tábua de princípios previstos na parte geral do Código Penal, compreendidos também os princípios e normas constitucionais, ou seja, uma inconcebível violação das garantias processuais e penais inscritas na Constituição. Não raras vezes, a tal fim, desconhecem-se as reais necessidades de tutela penal como extrema ratio, para adotar movimentos político-criminais não compatíveis com o Estado Democrático e Social de Direitos Humanos. Até hoje é perceptível à ausência de política criminal tendente a diminuir a dilatação da legislação complementar. Seja como for, é certo que devem ser banidas as leis caracterizadas pelo uso meramente simbólico do direito penal, demonstradamente condenado a não efetividade e cujo conteúdo é determinado pela densidade do significado estigmatizante de certos fatos e do procedimento penal, leis que se servem de expressões e institutos de efeitos persuasivos, hábeis a despertar na sociedade civil o necessário impacto emocional e político para qual, em regra, são colocadas. Registre-se que já não há mais discussão acerca do caráter simbólico do direito penal, sendo assim, imperativo reconhecer a necessidade de total e drástica diminuição da já conhecida tutela penal tão-somente simbólica, dirigida à função de estigmatizar fatos e autores pela via da criminalização, o que levaria, consequentemente, à diminuição do número de figuras delituosas. Somente deste modo o sistema penal seria efetivamente dotado de capacidade suasória, realizando sua tarefa de prevenção geral e especial de forma adequada. Percebe-se que a tão sonhada desconstrução do discurso penal expansionista e extremamente punitivo é um desafio que impele à proclamação de algumas verdades que a propaganda procura manipular. Na verdade, o modelo penal conservador busca o recrudescimento das penas e a vingança retributiva, enquanto o modelo penal garantista, vislumbra uma funcionalidade potestativa racional, optando pela proporcionalidade e, consequentemente, baseando-se na principiologia penal constitucional, ou seja, dignidade da pessoa humana, culpabilidade, humanidade de penas, intervenção mínima e proporcionalidade. Como se infere da realidade exposta, a pena é um meio extremo. Aliás, como diria Roxin, é “a intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao estado”. Sustentando esses preceitos, entende-se que o estado não deva recorrer ao direito penal e sua gravíssima sanção se existir a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros instrumentos jurídicos não penais (apud BATISTA, 2005, p. 84-87). Ademais, a prática cotidiana mostra que a pena é uma solução imperfeita, devendo ser concebida apenas como ultima ratio, ou seja, o direito penal deve ser reservado para os casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica devem ser objeto de outros ramos do direito. De fato, se o fim da pena é fazer justiça, toda e qualquer ofensa ao bem jurídico deve ser castigada. Entretanto, se o fim da pena é evitar o crime, cabe questionar a necessidade, a eficiência e a oportunidade de cominá-la para tal ou qual ofensa. Note que a subsidiariedade do direito penal, que pressupõe sua fragmentariedade, deriva justamente de sua consideração como remédio sancionador extremo, que deve, portanto, ser aplicado apenas quando qualquer outro se revele ineficiente. A intervenção deve ser dar exclusivamente quando fracassam as demais barreiras protetoras do bem jurídico predispostas por outros ramos do direito. Evidencie-se que não se justifica aplicar um recurso mais grave quando se obtém o mesmo resultado através de um mais suave. Nessa linha de intelecção, imperioso dizer que no paradigma penal do Estado Democrático de Direito, não há como fugir a uma estreita correlação entre os princípios de caráter constitucional, que ditam não só os direitos e garantias fundamentais do cidadão, como também a ordem política, econômica e social e, de outro, os bens jurídicos que compõem a ordem jurídicopenal (FRANCO, 2006, p. 12). Há, sem dúvida, um traço de conexão que vincula esse conjunto de valores expressa ou implicitamente revelados pelo modelo constitucional adotado, aos bens jurídicos que são objeto de tutela penal. Isto não significa que haja entre eles identidade absoluta, mas é inquestionável, uma relação de mútua referência. Vale lembrar, que na seleção dos recursos próprios do Estado, o Direito Penal deve apresentar-se como a ultima ratio legis, posicionando-se em último lugar e só atuando quando extremamente indispensável para a manutenção da ordem jurídica estabelecida (PRADO, 1997, p. 57-58). Ressalte-se, que o bem jurídico é protegido penalmente apenas perante certas formas de agressão ou ataque, consideradas socialmente inaceitáveis. Do mesmo modo, somente as ações mais graves dirigidas contra os bens reconhecidamente fundamentais podem ser criminalizadas. Essa orientação permite concluir que em um Estado de Direito democrático, social e protetivo dos direitos humanos, “a tutela penal não pode vir dissociada do pressuposto de bem jurídico”, justamente por sua legitimidade perante a ótica constitucional, “quando imprescindível para salvaguardar as condições de vida, o desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade” (PRADO, 1997, p. 59-60). Vê-se, pois, que o controle penal não se legitima por meio de uma intervenção ilimitadamente expansiva, idônea a atingir toda e qualquer conduta humana que possa lesionar ou pôr em risco bens jurídicos de dignidade jurídico-penal. O Direito Penal só pode atuar diante dos ataques mais violentos contra tais bens e sempre que todos os demais controles sociais não-penais se revelem inertes ou ineficazes na sua salvaguarda. Cabe ao legislador infraconstitucional, em regra, a relevante tarefa de fazer o juízo aferidor da necessidade de intervenção penal, pois (FRANCO, 2006, p. 12): No mundo intrincado da tipologia penal, é ele o personagem principal, o protagonista, o todo poderoso. É ele quem constrói o tecido punitivo. No seu tear, entrecruzam-se, no sentido transversal e longitudinal, os fios desenrolados dos novelos de fatos e de penas. É ele quem observando a carência de proteção penal, elege os fatos ofensivos mais significativos e escolhe as penas que sejam adequadas à danosidade social por eles provocada. Na sua esfera de atuação, estão, portanto, a descrição das ações humanas com palavras minimamente coerentes e a escolha quantitativa de sanções punitivas que tenham ao menos grandeza proporcionada. Cada tipo penal deve possuir um equilíbrio interno, e todo o conglomerado tipológico não suporta nem condutas humanas narradas de modo avaro, derramado ou conflitante, nem penas abusivas ou aberrantes. Exatamente por dispor, nesse contexto, do fantástico poder de compor figuras criminosas e cominar penas, pondo em grave risco o direito de liberdade do cidadão, é que o legislador comum está balizado expressamente por um princípio constitucional inafastável: o princípio da legalidade (artigo 5º, XXXIX, da CF). Nesse aspecto, o princípio da reserva legal pressupõe que a intervenção penal deva estar disciplinada pelo domínio da lei stricto sensu, objetivando, desse modo, evitar o exercício arbitrário e ilimitado do poder de punir. Trata-se de uma forma de restrição das fontes normativas e, sobretudo, de um meio para assegurar a garantia de liberdade pessoal do cidadão, representando um valor que se impõe a todos os responsáveis pela atuação do controle formal. Tenha-se presente que o protagonismo do legislador na formulação do juízo de necessidade da tutela penal, cedeu espaço nos últimos tempos a uma postura constitucional reconhecidamente intervencionista. A Constituição de 1988 abriu inúmeras possibilidades de proteção penal, de forma que o legislador constituinte se fez passar por legislador ordinário, manifestando em seu lugar, e por vezes de forma fracassada ou inadequada, as escolhas incriminatórias. Por fim, e considerando o histórico de decadência do sistema penal, no que tange às suas funções de controlar a criminalidade e promover a reinserção social do condenado, bem como os verdadeiros fins que tem exercido, deve-se lutar por um direito penal mínimo, apto a agir apenas em defesa dos bens juridicamente imprescindíveis à convivência pacífica dos homens, e que não possam ser protegidos eficazmente por outros meios. 3.1 Acepções Garantistas Considerando o explanado, verifica-se que o direito penal vem se restringindo cada vez mais aos interesses estatais como única forma legítima de solução da criminalidade. Nesse contexto, a Teoria do Garantismo Penal de Ferrajoli merece destaque, haja vista que sugere exatamente uma atuação eminentemente social, estruturada em um caráter essencialmente procedimental e totalmente desvinculado das formas tradicionais de observação do fenômeno jurídico (2001, p. 851-855). Cumpre asseverar, que essa orientação que desde algum tempo se conhece por garantismo, nasceu no campo penal como uma possível resposta ao crescente desenvolvimento das políticas criminais que se dizem atuar em nome da defesa do estado de direito e de um ordenamento jurídico democrático. Sendo assim, importante se faz distinguir as três acepções garantistas desenvolvidas por Ferrajoli, as quais, embora diversas, encontramse intimamente ligadas. A primeira acepção designa um modelo normativo de direito, respeitando o direito penal, sobretudo, seu modelo de estrita legalidade, que em um plano epistemológico, se caracteriza justamente pelo uso de poder mínimo. Já no plano político, posiciona-se como uma técnica de tutela capaz de minimizar a violência, maximizando a liberdade no plano jurídico, ou seja, impondo ao Estado a proteção efetiva dos direitos dos cidadãos. Em uma segunda acepção, propõe Ferrajoli uma teoria jurídica consistente na validade e efetividade como categorias distintas não só entre si, mas também com relação à existência e vigência das normas. Sob esse aspecto, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados o ser e o dever ser no direito. A questão central encontra-se precisamente na divergência existente nos ordenamentos tendencialmente garantistas, completos, bem como, entre modelos normativos nas práticas operatistas, tendencialmente anti-garantistas. No entender de Ferrajoli, o garantismo seria um modelo de direito que se preocupa com os aspectos formais e materiais necessários para uma atuação válida do direito. Essa correspondência entre aspectos formais e substanciais teria a função de efetivamente tornar possível aos cidadãos, todos os direitos fundamentais a eles inerentes. Por sua vez, a terceira acepção transmite um garantismo filosófico-político, impondo ao direito e ao estado uma carga de justificação externa conforme seus bens e interesses, cuja tutela e garantia constituem precisamente a finalidade de ambos. Como se pode notar, neste último sentido, o garantismo apresenta uma doutrina laica no que concerne a separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre o ponto de vista interno e o externo na valoração do ordenamento, ou seja, entre ser e dever ser de direito. É de se dizer que tal acepção propõe uma tentativa de aumento das formas de garantia efetiva de direitos, surgindo do normativismo, com o intuito de obter normas estatais que funcionem como um ponto de partida e, consequentemente, verificando ou não sua compatibilidade frente à realidade social. Conforme se depreende, essas três acepções sugerem, positivamente, os elementos de uma teoria geral do garantismo, expondo não só o caráter vinculado do poder público em um estado de direito, mas também, a divergência entre validade e vigência produzida pelos desníveis de normas e, inclusive, um certo grau irredutível de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de nível inferior. Consequentemente, parte para uma distinção entre o ponto de vista ético-político (externo) e o ponto de vista jurídico (interno) e a correspondente divergência entre justiça e validade. Uma teoria do garantismo, além de fundamentar a crítica do direito positivo com relação a seus parâmetros de legitimação externa e interna, é, também, uma crítica às ideologias políticas e jurídicas, pois, confundem, no plano político externo, a justiça com o direito e, no plano jurídico interno, a validade com a vigência, ou até mesmo o contrário, a efetividade com a validade. Assim, o garantismo constitui uma forma de conciliar a normatividade e a efetividade, influindo não só no campo jurídico, mas, também, no político, minimizando a violência e aumentando as margens de liberdade. O Estado, a partir de suas normas, exerceria seu poder de punir em troca da garantia dos direitos dos cidadãos, ou seja, se diminuiria a distância entre o texto da norma e sua aplicação prática, gerando um sistema mais próximo do ideal de justiça. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa revela que o mundo jurídico-penal vive uma crise sem precedentes, haja vista que a experiência colhida ao longo dos tempos não foi ainda suficiente para impulsionar a adoção de uma política de reversão do quadro de problemas que configuram um verdadeiro abismo. A atuação penal não consegue dar as respostas que lhe são lançadas. Percebe-se uma desvirtuação do social em detrimento do estatal. A própria noção ontologicamente constituída de direito dogmático encontra-se seriamente violada em função do distanciamento com o social. Como se pôde ver, a máquina penal caminha para se tornar um instrumento falido, na medida em que sua atuação seletiva e desigual contribui apenas para a expansão da “criminalidade”, a qual se encontra intimamente ligada às omissões do Estado, que atua sempre de modo repressivo, sem se preocupar com as formas de controle que realmente surtem efeito. Não há, na prática, efetividade de garantias. A sensação é de descrédito e deslegitimidade. O único mérito do sistema penal é criar expectativas. O uso desmedido do Direito Penal, que vem executando um papel que não lhe cabe, acaba por promover o aumento desmesurado de leis penais absolutamente contrárias ao ideal de justiça, verdadeiras aberrações legislativas, que só servem para aumentar o controle violento e incontestavelmente ineficaz. Vale lembrar, que o Direito Penal não foi concebido para acalmar os ânimos da sociedade civil. A legislação pode até ser aperfeiçoada, desde que seu objetivo seja o alcance da agilidade e a simplificação dos procedimentos. Porém, o que falta necessariamente é a atuação conjunta dos instrumentos de controle social (formal e informal), pois, somente assim, alcançar-se-á a gênese das causas da criminalidade. Não há que se falar em política de prevenção e de combate à criminalidade enquanto não houver adoção de novas políticas criminais sociais, tendentes à prevenção e a atuação proeminentemente garantista do Estado. A inserção social que tanto se fala, deve acontecer. O direito penal deve ser resguardado para as condutas realmente lesivas e, ainda assim, deve ser aplicado de forma igualitária, sem que haja perseguição dos seguimentos sociais menos favorecidos. Se a atuação do Estado respondesse às necessidades de igualdade e segurança, pouco se investiria na tutela penal. Em um mundo onde se valoriza o ter e não o ser, a resposta garantista é, na verdade, a que mais se adequa ao ideal de justiça almejado por todos. Devemos, sem dúvida, lutar pela maximização dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, limitando, de forma concomitante, à atuação punitiva desmedida do Estado. Quanto menor for à distância entre o texto da norma e sua aplicação, mais garantista será o ordenamento jurídico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão da Segurança Jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2005. FERRAJOLI, Luigi. Derecho e Razón: Teoria del garantismo penal. 5ª ed., Madrid: Editorial Trotta, 2001. 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