Revista Cientifica Artigo 06 - MÁQUINA PENAL

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MÁQUINA PENAL: PERSPECTIVAS A PARTIR DA
CRIMINOLOGIA CRÍTICA, DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E DO
GARANTISMO PENAL
Edvania Fátima Fontes Godoy1
“Quanto mais uma sociedade é
desigual, tanto mais ela tem necessidade de um sistema
de controle social do desvio de tipo repressivo”.
Alessandro
Baratta
RESUMO: O objetivo do presente trabalho é demonstrar que a realidade
operacional do sistema penal se encontra totalmente perdida da planificação do
discurso jurídico-penal, contaminada pela seletividade, reprodução da violência,
criação de condições para maiores condutas lesivas, corrupção
institucionalizada, concentração de poder, verticalização social e total destruição
das relações horizontais ou comunitárias. Nesse contexto, a Criminologia Crítica
vem propor uma investigação mais detalhada das funções simbólicas e reais do
sistema penal, bem como, uma desconstrução individual e mais planejada da
ideologia da defesa social, permitindo concluir que o Estado não deve recorrer
ao direito penal e sua gravíssima sanção se houver a possibilidade de garantir
uma proteção suficiente com outros instrumentos jurídicos não penais. Enfim, a
busca por um direito penal mínimo, onde a atuação estatal seja garantista,
conciliando a normatividade e a efetividade, minimizando a violência e
aumentando as margens de liberdade, configura, sem dúvidas, o meio mais
adequado e efetivo para se alcançar o ideal de justiça penal almejado por todos.
PALAVRAS-CHAVE: sistema penal; criminologia crítica; direito penal mínimo;
garantismo penal.
1
Advogada. Professora Universitária. Mestranda em Direito Negocial pela Universidade
Estadual de Londrina. Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de
Londrina – UEL.
INTRODUÇÃO
É sabido por todos que o tema “criminalidade” é objeto de grande
interesse, não só das instâncias de controle formal de um modo geral, como
também da sociedade civil, justamente, porque costuma trazer a tona discussões
acerca das bases jurídicas adequadas para o seu enfrentamento.
Acredita-se, infelizmente, que um tratamento legislativo rígido é
suficiente para combater a criminalidade. Todavia, como mostra a experiência,
apenas diminui a sensação social de insegurança e impunidade.
Criou-se uma noção generalizada de que o direito penal é um
setor do ordenamento jurídico que protege os bens jurídicos e garante a
liberdade social. Entretanto, isso faz parte do discurso oficial e da teoria jurídica.
O direito penal, na realidade, acaba atuando de um modo absolutamente
predatório contra os segmentos subalternos.
Na verdade, não se combate criminalidade com direito penal,
nem com processo penal. Aliás, é absolutamente inviável a mudança do
processo penal tendo como fim o combate ao crime. Não se trata de simples
satisfação social.
É muito mais fácil alterar a lei penal e processual penal do que
combater as causas da criminalidade. Através de penas severas conquista-se a
falsa aparência de que as pessoas que cometem crime serão punidas. É um
discurso altamente falacioso.
Em síntese, se não forem adotadas políticas públicas anteriores
às políticas do direito penal, pode-se aumentar o número de leis, penitenciárias
e varas criminais, que ainda assim não haverá lugar para tantos “criminosos”. As
reformas devem ser estruturais e o direito penal deve ser reservado para as
condutas realmente lesivas.
2 O FUNCIONAMENTO DA MÁQUINA PENAL
Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o sistema
penal é uma complexa manifestação do poder social. Assim sendo, a sua
legitimidade pode ser compreendida como a característica outorgada por sua
própria racionalidade. Como se sabe, o poder social não é algo estático, que se
“tem”, mas algo que se exerce (ZAFFARONI, 1998, p. 14-16).
Desse modo, cumpre destacar logo de início que a construção
teórica ou discursiva que pretende explicar esse planejamento é o discurso
jurídico-penal. Entretanto, referido discurso não se compatibiliza de forma
convincente com o sistema penal, ou seja, a experiência tem mostrado que se
trata de um meio ilegítimo para alcançar um fim reconhecidamente “utópico”.
É oportuno dizer que o discurso jurídico-penal falso não é um
produto de má fé, nem de simples conveniência, nem mesmo resultado da
elaboração calculada de alguns “gênios malignos”, mas é sustentado, em boa
parte, pela incapacidade de ser substituído por outro discurso em razão da
necessidade de se defenderem os direitos de algumas pessoas.
Hodiernamente, tem-se consciência de que a realidade
operacional dos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do
discurso jurídico-penal. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de
condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a
concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações
horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais
do exercício de poder de todos os sistemas penais.
O sistema penal brasileiro, assim como a maioria dos demais,
reproduz sua clientela através de um processo de seleção e condicionamento
criminalizante, impulsionado, na maior parte das vezes, por estereótipos gerados
pelos meios de comunicação em massa.
Na concepção de Zaffaroni (1998, p. 133), os órgãos do sistema
penal não só atribuem e exigem certos comportamentos de sua clientela como
também instigam todos a “enxergar” do mesmo modo.
Ademais, a dor e a morte que nossos sistemas penais espalham
estão tão perdidas que o discurso jurídico-penal não pode ocultar seus
“estragos”, valendo-se de seu ultrapassado arsenal de racionalizações
reiterativas: trata-se de “um discurso que se desarma ao mais leve toque com a
realidade” (ZAFFARONI, 1998, p. 12).
Feitas essas considerações, pode-se dizer que o modelo
conservador de Justiça Penal estrutura-se no consumo do medo, cujo dominante
marketing midiático se encarrega de influenciar a fim de condicionar a
legitimação de um álibi recorrente em momentos de crise sócio-econômica, ou
seja, comprometidos com o modelo econômico excludente, usam o Direito Penal
para transmitir à opinião pública a sensação de que algo eficaz está sendo feito
em defesa da sociedade. É sempre a mesma proposta: “aumento de penas,
criminalização de condutas e restrição de garantias que aviltam os direitos
individuais” (TRAD, 2006, p. 04).
A propósito:
Preservam-se os fundamentos de um sistema econômico que deidifica
o lucro, erotiza o dinheiro, dissemina a desigualdade, prolifera a
miséria, coisifica a pessoa humana e comercializa sentimentos em uma
escala crescente de corrupção de valores que recorda os tempos de
decadência de civilizações (TRAD, 2006, p. 04).
Nesse diapasão, é sobremodo importante assinalar que tal
situação é acentuada ao passo que a classe média se robotiza. Aliás, a classe
média nada mais é que um produto de um processo calculado de dominação
disfarçada, que, atormentada pela insegurança que consome diuturnamente,
confunde violência com a sua dimensão mais visível – o crime – absorvendo a
idéia de que o criminoso é um inimigo social que deve ser castigado por um
Direito Penal duramente retributivo. “Supõe, neste espasmo ilusório, que o
problema da criminalidade pode ser enfrentado com a expansão criminalizante
e o endurecimento do regime punitivo” (2006, p. 04).
De igual modo, quanto mais dramático o cenário em que se
disputa a preponderância de idéias, melhor para o lado que se apossou dos
meios que permitem a manipulação das emoções coletivas. Por isso, é
incontestável discutir com equilíbrio e igualdade de condições o sistema penal
em um contexto de desespero coletivo, ávido de vingança pública e privada, sem
que o contraponto do discurso autoritário não seja logo estigmatizado e
apequenado.
Com propriedade vaticina Trad (2006, p. 04-05), que “entre uma
sociedade escrava da vingança e uma sociedade aprendiz do perdão e da
justiça, balança o pêndulo do debate deflagrado pela ineficácia das leis e
ausência de valores civis e governamentais”.
Nessa esteira, Cirino dos Santos (apud BATISTA, 2005, p. 2526) observa que o sistema penal é “constituído pelos aparelhos judicial, policial
e prisional, e operacionalizado nos limites das matrizes legais”, pretendendo,
assim, afirmar-se como um sistema garantidor de uma ordem social justa. No
entanto, seu desempenho real contradiz essa aparência.
Diante disso, o sistema penal é apresentado como igualitário,
atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na
verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas,
integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas.
Da mesma forma, o sistema penal é também apresentado como
justo, na medida em que busca prevenir o delito, restringindo sua intervenção
aos limites da necessidade. Contudo, seu desempenho é altamente repressivo,
seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de
regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais.
Postas assim as coisas, é de se concluir que a seletividade, a
repressividade e a estigmatização são algumas das características centrais de
sistemas penais como o do Brasil.
Oportuno se torna dizer que a máquina penal funciona de forma
bem diversa da planejada. Todas as regras formais, todos os princípios que
pretendem edificar uma justiça serena e imparcial, não protegem efetivamente
as pessoas dos constrangimentos arbitrários, nem muito menos são válidos para
a sociedade atual (HULSMAN, 1993, p. 57).
Em síntese, como bem disse Baratta, é necessário que haja uma
batalha cultural e ideológica em favor do desenvolvimento de uma consciência
alternativa no campo das condutas desviantes e da criminalidade, tentando-se
inverter as relações da hegemonia cultural com um trabalho de decidida crítica
ideológica, de produção científica e de informação (apud BATISTA, 2005, p. 3739).
Nessa linha de raciocínio, imperioso ressaltar que em uma
sociedade de classes a política criminal não pode restringir-se a uma política
penal limitada à função punitiva do estado, nem muito menos a uma política de
substitutivos penais, indefinidamente reformista e humanitária. Pelo contrário,
deve-se empreender de movimentos eficazes, principalmente, no que tange à
inserção social e intelectual dos rotulados pelo sistema.
Antes de tudo, é necessário que se ofereça condições que levem
o condenado a compreender as contradições sociais que o conduziram a uma
reação individual e egoística, pois, se desenvolvida nele a consciência de classe,
este se transformaria, sem sombra de dúvidas, em participação no movimento
coletivo.
Vale dizer, que na prática, princípios como o da igualdade
perante a lei penal, ou a regra da intervenção mínima da máquina repressiva,
não são aplicados de forma efetiva. Cada órgão ou serviço trabalha
isoladamente e cada uma das pessoas que intervém no funcionamento desta
máquina desempenha seu papel sem ter que se preocupar com o que se passou
antes dela ou com o que se passará depois (HULSMAN, 1993, p. 59).
O interessante seria que quem causou um dano ou um prejuízo
sentisse remorsos, pesar, compaixão por aquele a quem fez mal. Porém, como
esperar que tais sentimentos possam nascer no coração de um homem
suplantado por um castigo desmedido, “que não compreende, que não aceita ou
sequer possui condições para assimilar o que se passa ao seu redor”. Como
esperar que alguém nestas condições possa refletir sobre as consequências
decorrentes de sua atitude na vida da pessoa que atingiu (1993, p. 71).
Nesse contexto evidencia Vera Lúcia Pereira de Andrade que
(1997, p. 238):
A passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade
de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo onde figuram a
acumulação do capital, o desenvolvimento da produção, uma
modificação do jogo de pressões econômicas, um forte crescimento
demográfico, uma multiplicação da riqueza e da propriedade, uma
valorização jurídica e moral das relações de propriedade, uma
elevação geral do nível de vida e a necessidade de segurança jurídica
como sua consequência.
É possível aduzir, então, que no decorrer dos séculos, a justiça
vem se tornando de certo modo mais pesada, sua legislação se agrava cada vez
mais, e em vários pontos há severidade punitiva. A sociedade capitalista tem
gerado uma reestruturação da “economia de ilegalidades”: a “ilegalidade dos
direitos” que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos mais despojados é
separada da “ilegalidade dos bens” (1997, p. 238-239).
Divisão esta, que como pondera Focault, corresponde a uma
posição de classes, pois, enquanto a ilegalidade mais acessível às classes
baixas será a dos bens, a burguesia proprietária concentrar-se-á na “ilegalidade
dos direitos”.
Observa-se, desse modo, que o sistema penal, visivelmente,
vem criando e reforçando as desigualdades sociais. Sua atuação não viola
exclusivamente os direitos humanos dos criminalizados, como também de seus
próprios operadores, deteriorando regressivamente os que o controlam e assim
o crêem (ZAFFARONI, 1998, p. 143).
De todo o exposto, pode-se concluir que o sistema penal se
encontra estruturalmente montado para que sua legalidade processual não
opere em sua plenitude, mas para que exerça seu poder com altíssimo grau de
arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis.
2.1 Uma Perspectiva A Partir Da Criminologia Crítica
Logo de início, cumpre destacar que ao contrário da Criminologia
Tradicional, a Criminologia Crítica não aceita o código penal, mas investiga
como, por que e para quem foi elaborado. Evidencia-se, assim, que a
Criminologia Crítica não se autodelimita pelas definições legais de crime,
interessando-se
igualmente
por
comportamentos
que
implicam
forte
desaprovação social (BATISTA, 2005, p. 32).
Nessa conjuntura, importante ressaltar que seu objetivo é
justamente verificar o desempenho prático do sistema penal, a missão que
efetivamente lhe corresponde, comparando-o funcional e estruturalmente com
os demais instrumentos formais de controle social.
Sendo assim, a Criminologia Crítica opta pela análise das
condições objetivas, estruturais e funcionais que originam, na sociedade
capitalista, os fenômenos de desvios, interpretando-os separadamente conforme
se tratem de condutas das classes menos favorecidas ou condutas das classes
dominantes, ou seja, os detentores do poder econômico e político (ANDRADE,
1997, p. 217).
Em consonância com o atacado, conclui Baratta que o sistema
penal não é unicamente um complexo estático de normas, e sim, um meio de
criminalização, ao qual concorre a atividade das diversas instâncias oficiais,
desde o legislador até os órgãos de execução penal e dos mecanismos informais
da reação social (apud, 1997, p. 218).
Ainda no pensamento de Baratta, a criminalidade se mostra,
sobretudo, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma
dupla seleção:
Em primeiro lugar, pela seleção de bens jurídicos penalmente
protegidos e dos comportamentos ofensivos a estes bens, descritos
nos tipos penais; em segundo lugar, pela seleção dos indivíduos
estigmatizados entre todos aqueles que praticam tais comportamentos
(apud, 1997, p. 218).
A realidade social está constituída pelas relações de produção,
de propriedade, de poder e pela moral dominante. E legitimá-la significa
reproduzir ideologicamente estas relações e a moral dominante, colocando de
lado a função instrumental do sistema penal, ou seja, a tutela de interesses e
direitos particulares dos indivíduos.
Desse modo, a Criminologia Crítica chega à investigação das
funções simbólicas e reais do sistema penal, bem como, a uma desconstrução
individual e mais planejada da ideologia da defesa social.
Contrariamente à Criminologia Tradicional que, na condição de
instância interna do sistema penal, desempenha uma função auxiliar e
legitimadora relativamente a este e à Política Criminal oficial, a Criminologia
contemporânea, ao resgatar sua autonomia científica, situa-se como uma
instância crítica externa do Direito e do sistema penal.
Essa nova Criminologia parte do pressuposto de uma sociedade
de classes, entendendo que o sistema punitivo está organizado ideologicamente
para proteger os conceitos de interesses próprios da classe dominante. Portanto,
o sistema acaba se destinando a conservar a estrutura vertical de dominação do
poder existente na sociedade (BARATTA, 1999, p. 102).
Isso se demonstra pelo caráter fragmentário do Direito Penal que
pune intensamente condutas que são típicas dos grupos marginalizados,
deixando livre de penas comportamentos austeros e socialmente dispendiosos,
como, por exemplo, a criminalidade econômica, unicamente porque seus autores
pertencem à classe hegemônica e em razão disso devem ficar imunes ao
processo de criminalização.
Diga-se de passagem, que o grau efetivo de tutela e a
distribuição do status de criminoso independem do prejuízo social decorrente
das ações e até mesmo da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas
não constituem a variável principal da reação criminalizaste e da sua intensidade.
Como se pode notar, a Criminologia crítica coloca-se numa
relação radicalmente diferente com a prática. Para ela, o sistema positivo e a
prática oficial são, Para ela, o sistema positivo e a prática oficial são, antes de
tudo, o objeto de seu saber. A relação com o sistema é crítica e a sua tarefa
imediata não consiste em fornecer modelos de política criminal, mas sim, em
examinar de maneira científica a origem do sistema, sua estrutura, seus
mecanismos de seleção, e finalmente, as funções que ele realmente exerce,
seus custos econômicos e sociais (ANDRADE, 1997, p. 227).
Enquanto isso, para a Criminologia tradicional o sistema positivo
e a prática oficial são os destinatários, os beneficiários do seu saber, “o príncipe
que ela é chamada a aconselhar” (1997, p. 227).
Por tais razões, cumpre salientar, que ao contrário do que
pensam alguns juristas, o objetivo da Criminologia Crítica não é negar o Direito,
mas, sim, dotá-lo de novos conteúdos, resgatando sua vertente ontologicamente
garantidora.
3 EM BUSCA DE UM DIREITO PENAL MINÍMO
Em todos os tempos, observa-se esta constante relação entre
os objetivos estatais e o conteúdo das normas jurídicas. Estas estão sempre
defendendo determinados interesses predominantes, determinados valores.
Tais valores estão inseridos na ordem estatal, são por esta dados, e é em razão
destes valores que as normas jurídicas vão se criando (SCHNAID, 2004, p. 8687).
Como se depreende, o Direito Penal acaba atuando como um
instrumento a serviço do Estado. De igual forma, pode estar a serviço tanto do
bem como do mal, da justiça como da injustiça, da liberdade como da opressão,
da paz como da guerra, do bem comum como da exploração humana.
Paradoxalmente, a justiça não é inerente ao Direito, não serve
para defini-lo. Pelo contrário, trata-se de uma eterna aspiração que deve ser
conquistada. É o valor supremo que predica o Direito. Não é apenas a sanção
que faz com que a norma seja cumprida, mas também os valores e, infelizmente,
a sociedade atual encontra-se totalmente desprovida de valores.
Tenha-se presente que, a constante promulgação de leis penais
em nosso país, as quais deveriam ser colocadas para satisfazer às novas
exigências de tutela, toma vulto absurdo, e quase sempre apresentando as
mesmas características, ou seja, a ausência de critérios para a criminalização
de condutas, corroborada pela ineficiente técnica de legiferação penal e
correlativo “desperdício de figuras delituosas”, gerando, por conseguinte, a
necessidade de revisão, justamente com fins à descriminalização, o que nem
sempre é possível realizar (SALES, 2004, p. 168-170).
Soma-se a isso o exagerado e indiscriminado uso simbólico do
instrumento penal, bem como, o desprezo à tábua de princípios previstos na
parte geral do Código Penal, compreendidos também os princípios e normas
constitucionais, ou seja, uma inconcebível violação das garantias processuais e
penais inscritas na Constituição.
Não raras vezes, a tal fim, desconhecem-se as reais
necessidades de tutela penal como extrema ratio, para adotar movimentos
político-criminais não compatíveis com o Estado Democrático e Social de
Direitos Humanos. Até hoje é perceptível à ausência de política criminal tendente
a diminuir a dilatação da legislação complementar.
Seja como for, é certo que devem ser banidas as leis
caracterizadas
pelo
uso
meramente
simbólico
do
direito
penal,
demonstradamente condenado a não efetividade e cujo conteúdo é determinado
pela densidade do significado estigmatizante de certos fatos e do procedimento
penal, leis que se servem de expressões e institutos de efeitos persuasivos,
hábeis a despertar na sociedade civil o necessário impacto emocional e político
para qual, em regra, são colocadas.
Registre-se que já não há mais discussão acerca do caráter
simbólico do direito penal, sendo assim, imperativo reconhecer a necessidade
de total e drástica diminuição da já conhecida tutela penal tão-somente
simbólica, dirigida à função de estigmatizar fatos e autores pela via da
criminalização, o que levaria, consequentemente, à diminuição do número de
figuras delituosas. Somente deste modo o sistema penal seria efetivamente
dotado de capacidade suasória, realizando sua tarefa de prevenção geral e
especial de forma adequada.
Percebe-se que a tão sonhada desconstrução do discurso penal
expansionista e extremamente punitivo é um desafio que impele à proclamação
de algumas verdades que a propaganda procura manipular. Na verdade, o
modelo penal conservador busca o recrudescimento das penas e a vingança
retributiva, enquanto o modelo penal garantista, vislumbra uma funcionalidade
potestativa racional, optando pela proporcionalidade e, consequentemente,
baseando-se na principiologia penal constitucional, ou seja, dignidade da pessoa
humana, culpabilidade, humanidade de penas, intervenção mínima e
proporcionalidade.
Como se infere da realidade exposta, a pena é um meio extremo.
Aliás, como diria Roxin, é “a intervenção mais radical na liberdade do indivíduo
que o ordenamento jurídico permite ao estado”. Sustentando esses preceitos,
entende-se que o estado não deva recorrer ao direito penal e sua gravíssima
sanção se existir a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros
instrumentos jurídicos não penais (apud BATISTA, 2005, p. 84-87).
Ademais, a prática cotidiana mostra que a pena é uma solução
imperfeita, devendo ser concebida apenas como ultima ratio, ou seja, o direito
penal deve ser reservado para os casos de ataques muito graves aos bens
jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica
devem ser objeto de outros ramos do direito.
De fato, se o fim da pena é fazer justiça, toda e qualquer ofensa
ao bem jurídico deve ser castigada. Entretanto, se o fim da pena é evitar o crime,
cabe questionar a necessidade, a eficiência e a oportunidade de cominá-la para
tal ou qual ofensa.
Note que a subsidiariedade do direito penal, que pressupõe sua
fragmentariedade, deriva justamente de sua consideração como remédio
sancionador extremo, que deve, portanto, ser aplicado apenas quando qualquer
outro se revele ineficiente. A intervenção deve ser dar exclusivamente quando
fracassam as demais barreiras protetoras do bem jurídico predispostas por
outros ramos do direito.
Evidencie-se que não se justifica aplicar um recurso mais grave
quando se obtém o mesmo resultado através de um mais suave.
Nessa linha de intelecção, imperioso dizer que no paradigma
penal do Estado Democrático de Direito, não há como fugir a uma estreita
correlação entre os princípios de caráter constitucional, que ditam não só os
direitos e garantias fundamentais do cidadão, como também a ordem política,
econômica e social e, de outro, os bens jurídicos que compõem a ordem jurídicopenal (FRANCO, 2006, p. 12).
Há, sem dúvida, um traço de conexão que vincula esse conjunto
de valores expressa ou implicitamente revelados pelo modelo constitucional
adotado, aos bens jurídicos que são objeto de tutela penal. Isto não significa que
haja entre eles identidade absoluta, mas é inquestionável, uma relação de mútua
referência.
Vale lembrar, que na seleção dos recursos próprios do Estado,
o Direito Penal deve apresentar-se como a ultima ratio legis, posicionando-se em
último lugar e só atuando quando extremamente indispensável para a
manutenção da ordem jurídica estabelecida (PRADO, 1997, p. 57-58).
Ressalte-se, que o bem jurídico é protegido penalmente apenas
perante certas formas de agressão ou ataque, consideradas socialmente
inaceitáveis. Do mesmo modo, somente as ações mais graves dirigidas contra
os bens reconhecidamente fundamentais podem ser criminalizadas.
Essa orientação permite concluir que em um Estado de Direito
democrático, social e protetivo dos direitos humanos, “a tutela penal não pode
vir dissociada do pressuposto de bem jurídico”, justamente por sua legitimidade
perante a ótica constitucional, “quando imprescindível para salvaguardar as
condições de vida, o desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado
maior da liberdade” (PRADO, 1997, p. 59-60).
Vê-se, pois, que o controle penal não se legitima por meio de
uma intervenção ilimitadamente expansiva, idônea a atingir toda e qualquer
conduta humana que possa lesionar ou pôr em risco bens jurídicos de dignidade
jurídico-penal. O Direito Penal só pode atuar diante dos ataques mais violentos
contra tais bens e sempre que todos os demais controles sociais não-penais se
revelem inertes ou ineficazes na sua salvaguarda.
Cabe ao legislador infraconstitucional, em regra, a relevante
tarefa de fazer o juízo aferidor da necessidade de intervenção penal, pois
(FRANCO, 2006, p. 12):
No mundo intrincado da tipologia penal, é ele o personagem principal,
o protagonista, o todo poderoso. É ele quem constrói o tecido punitivo.
No seu tear, entrecruzam-se, no sentido transversal e longitudinal, os
fios desenrolados dos novelos de fatos e de penas. É ele quem
observando a carência de proteção penal, elege os fatos ofensivos
mais significativos e escolhe as penas que sejam adequadas à
danosidade social por eles provocada.
Na sua esfera de atuação, estão, portanto, a descrição das
ações humanas com palavras minimamente coerentes e a escolha quantitativa
de sanções punitivas que tenham ao menos grandeza proporcionada. Cada tipo
penal deve possuir um equilíbrio interno, e todo o conglomerado tipológico não
suporta nem condutas humanas narradas de modo avaro, derramado ou
conflitante, nem penas abusivas ou aberrantes.
Exatamente por dispor, nesse contexto, do fantástico poder de
compor figuras criminosas e cominar penas, pondo em grave risco o direito de
liberdade do cidadão, é que o legislador comum está balizado expressamente
por um princípio constitucional inafastável: o princípio da legalidade (artigo 5º,
XXXIX, da CF).
Nesse aspecto, o princípio da reserva legal pressupõe que a
intervenção penal deva estar disciplinada pelo domínio da lei stricto sensu,
objetivando, desse modo, evitar o exercício arbitrário e ilimitado do poder de
punir. Trata-se de uma forma de restrição das fontes normativas e, sobretudo,
de um meio para assegurar a garantia de liberdade pessoal do cidadão,
representando um valor que se impõe a todos os responsáveis pela atuação do
controle formal.
Tenha-se presente que o protagonismo do legislador na
formulação do juízo de necessidade da tutela penal, cedeu espaço nos últimos
tempos a uma postura constitucional reconhecidamente intervencionista. A
Constituição de 1988 abriu inúmeras possibilidades de proteção penal, de forma
que o legislador constituinte se fez passar por legislador ordinário, manifestando
em seu lugar, e por vezes de forma fracassada ou inadequada, as escolhas
incriminatórias.
Por fim, e considerando o histórico de decadência do sistema
penal, no que tange às suas funções de controlar a criminalidade e promover a
reinserção social do condenado, bem como os verdadeiros fins que tem
exercido, deve-se lutar por um direito penal mínimo, apto a agir apenas em
defesa dos bens juridicamente imprescindíveis à convivência pacífica dos
homens, e que não possam ser protegidos eficazmente por outros meios.
3.1 Acepções Garantistas
Considerando o explanado, verifica-se que o direito penal vem
se restringindo cada vez mais aos interesses estatais como única forma legítima
de solução da criminalidade. Nesse contexto, a Teoria do Garantismo Penal de
Ferrajoli merece destaque, haja vista que sugere exatamente uma atuação
eminentemente social, estruturada em um caráter essencialmente procedimental
e totalmente desvinculado das formas tradicionais de observação do fenômeno
jurídico (2001, p. 851-855).
Cumpre asseverar, que essa orientação que desde algum tempo
se conhece por garantismo, nasceu no campo penal como uma possível
resposta ao crescente desenvolvimento das políticas criminais que se dizem
atuar em nome da defesa do estado de direito e de um ordenamento jurídico
democrático.
Sendo assim, importante se faz distinguir as três acepções
garantistas desenvolvidas por Ferrajoli, as quais, embora diversas, encontramse intimamente ligadas.
A primeira acepção designa um modelo normativo de direito,
respeitando o direito penal, sobretudo, seu modelo de estrita legalidade, que em
um plano epistemológico, se caracteriza justamente pelo uso de poder mínimo.
Já no plano político, posiciona-se como uma técnica de tutela capaz de minimizar
a violência, maximizando a liberdade no plano jurídico, ou seja, impondo ao
Estado a proteção efetiva dos direitos dos cidadãos.
Em uma segunda acepção, propõe Ferrajoli uma teoria jurídica
consistente na validade e efetividade como categorias distintas não só entre si,
mas também com relação à existência e vigência das normas. Sob esse aspecto,
a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados
o ser e o dever ser no direito.
A questão central encontra-se precisamente na divergência
existente
nos
ordenamentos
tendencialmente
garantistas,
completos,
bem
como,
entre
modelos
normativos
nas
práticas
operatistas,
tendencialmente anti-garantistas.
No entender de Ferrajoli, o garantismo seria um modelo de
direito que se preocupa com os aspectos formais e materiais necessários para
uma atuação válida do direito. Essa correspondência entre aspectos formais e
substanciais teria a função de efetivamente tornar possível aos cidadãos, todos
os direitos fundamentais a eles inerentes.
Por sua vez, a terceira acepção transmite um garantismo
filosófico-político, impondo ao direito e ao estado uma carga de justificação
externa conforme seus bens e interesses, cuja tutela e garantia constituem
precisamente a finalidade de ambos.
Como se pode notar, neste último sentido, o garantismo
apresenta uma doutrina laica no que concerne a separação entre direito e moral,
entre validade e justiça, entre o ponto de vista interno e o externo na valoração
do ordenamento, ou seja, entre ser e dever ser de direito.
É de se dizer que tal acepção propõe uma tentativa de aumento
das formas de garantia efetiva de direitos, surgindo do normativismo, com o
intuito de obter normas estatais que funcionem como um ponto de partida e,
consequentemente, verificando ou não sua compatibilidade frente à realidade
social.
Conforme se depreende, essas três acepções sugerem,
positivamente, os elementos de uma teoria geral do garantismo, expondo não só
o caráter vinculado do poder público em um estado de direito, mas também, a
divergência entre validade e vigência produzida pelos desníveis de normas e,
inclusive, um certo grau irredutível de ilegitimidade jurídica das atividades
normativas de nível inferior. Consequentemente, parte para uma distinção entre
o ponto de vista ético-político (externo) e o ponto de vista jurídico (interno) e a
correspondente divergência entre justiça e validade.
Uma teoria do garantismo, além de fundamentar a crítica do
direito positivo com relação a seus parâmetros de legitimação externa e interna,
é, também, uma crítica às ideologias políticas e jurídicas, pois, confundem, no
plano político externo, a justiça com o direito e, no plano jurídico interno, a
validade com a vigência, ou até mesmo o contrário, a efetividade com a validade.
Assim, o garantismo constitui uma forma de conciliar a
normatividade e a efetividade, influindo não só no campo jurídico, mas, também,
no político, minimizando a violência e aumentando as margens de liberdade. O
Estado, a partir de suas normas, exerceria seu poder de punir em troca da
garantia dos direitos dos cidadãos, ou seja, se diminuiria a distância entre o texto
da norma e sua aplicação prática, gerando um sistema mais próximo do ideal de
justiça.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa revela que o mundo jurídico-penal vive uma crise
sem precedentes, haja vista que a experiência colhida ao longo dos tempos não
foi ainda suficiente para impulsionar a adoção de uma política de reversão do
quadro de problemas que configuram um verdadeiro abismo. A atuação penal
não consegue dar as respostas que lhe são lançadas. Percebe-se uma
desvirtuação
do
social
em
detrimento
do
estatal.
A
própria
noção
ontologicamente constituída de direito dogmático encontra-se seriamente
violada em função do distanciamento com o social.
Como se pôde ver, a máquina penal caminha para se tornar um
instrumento falido, na medida em que sua atuação seletiva e desigual contribui
apenas para a expansão da “criminalidade”, a qual se encontra intimamente
ligada às omissões do Estado, que atua sempre de modo repressivo, sem se
preocupar com as formas de controle que realmente surtem efeito. Não há, na
prática, efetividade de garantias.
A sensação é de descrédito e deslegitimidade. O único mérito
do sistema penal é criar expectativas.
O uso desmedido do Direito Penal, que vem executando um
papel que não lhe cabe, acaba por promover o aumento desmesurado de leis
penais absolutamente contrárias ao ideal de justiça, verdadeiras aberrações
legislativas,
que
só
servem
para
aumentar
o
controle
violento
e
incontestavelmente ineficaz.
Vale lembrar, que o Direito Penal não foi concebido para acalmar
os ânimos da sociedade civil. A legislação pode até ser aperfeiçoada, desde que
seu objetivo seja o alcance da agilidade e a simplificação dos procedimentos.
Porém, o que falta necessariamente é a atuação conjunta dos instrumentos de
controle social (formal e informal), pois, somente assim, alcançar-se-á a gênese
das causas da criminalidade.
Não há que se falar em política de prevenção e de combate à
criminalidade enquanto não houver adoção de novas políticas criminais sociais,
tendentes à prevenção e a atuação proeminentemente garantista do Estado. A
inserção social que tanto se fala, deve acontecer.
O direito penal deve ser resguardado para as condutas
realmente lesivas e, ainda assim, deve ser aplicado de forma igualitária, sem que
haja perseguição dos seguimentos sociais menos favorecidos.
Se a atuação do Estado respondesse às necessidades de
igualdade e segurança, pouco se investiria na tutela penal.
Em um mundo onde se valoriza o ter e não o ser, a resposta
garantista é, na verdade, a que mais se adequa ao ideal de justiça almejado por
todos. Devemos, sem dúvida, lutar pela maximização dos direitos e garantias
fundamentais do cidadão, limitando, de forma concomitante, à atuação punitiva
desmedida do Estado.
Quanto menor for à distância entre o texto da norma e sua
aplicação, mais garantista será o ordenamento jurídico.
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