NORMATIVISMO JURÍDICO: a importância de

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NORMATIVISMO JURÍDICO: A IMPORTÂNCIA DE KELSEN NOS DIAS ATUAIS
Autora: Eleíse Rocha de Souza *
Orientador: Jorge Franklin Alves Felipe
Resumo: o presente artigo pretende contribuir para um estudo sobre a importância do normativismo jurídico de Hans Kelsen
nos dias atuais, mostrando não só as críticas sobre sua teoria, mas, sobretudo, revelando os grandes ensinamentos que ficaram
para nós deste grande jusfilósofo do Círculo de Viena, perseguindo com a maior fidelidade possível as suas lições.
Palavras – chaves: normativismo jurídico; neutralidade; pureza; fundamentação.
“ O conselho que dou aos sábios e solenes historiadores é que não se ponham a interpretar nenhum
pormenor ou segredo de qualquer arte ou ciência, especialmente as leis deste reino, sem antes consultar os que as
conhecem e dominam.”1
E-mail: [email protected]
*
Acadêmica do 3° ano do curso de graduação da Faculdade de Direito do Instituto Vianna Júnior.
Sir. Edward Coke, 3 Reports, sig. D2. Apud: ILL, Christopher, Origens intelectuais da Revolução Inglesa, São Paulo. Martins
Fontes, 1992. P. 307.
1
NORMATIVISMO JURÍDICO: A IMPORTÂNCIA DE KELSEN NOS DIAS ATUAIS
O presente trabalho pretende colaborar com a divulgação dos ensinamentos deixados por Kelsen,
perseguindo com a maior fidelidade possível as suas lições, pois, apesar das várias críticas recebidas a respeito de
seu pensamento, não podemos romper com a seriedade acadêmica e vedar nosso estudo do grande trabalho deixado
por esse ilustre jusfilósofo.
Para melhor compreendermos o normativismo jurídico de Hans Kelsen é preciso entendermos o contexto
em que este surgiu. A teoria kelseniana é uma conseqüência da decadência do mundo capitalista-liberal marcada pela
1ª Guerra Mundial. A teoria pura nasce como uma espécie de crítica das concepções dominantes da época, ela é “
fruto de um mundo em que as ideologias totalitárias nascentes e suas primeiras experiências concretas conviviam
com um liberalismo democrático em sua fase conservadora, a teoria pura devia reconhecer a existência de ordens
jurídicas de conteúdo político, diverso do conteúdo liberal ou social-democrático que exibia nos povos europeus
ocidentais. Deveria constituir-se numa teoria de direito que tivesse condições conceituais para reconhecer a
existência ao lado de um direito democrático-liberal, de um direito soviético, fascista ou nazista. É isso que
representa a sua vocação adiáfora da mais absoluta neutralidade em face do conteúdo político, ético religioso, enfim,
axiológico das norma jurídicas”2. Por isso, o direito deveria ser absolutamente neutro diante de qualquer outro
conteúdo sociológico e axiológico das normas jurídicas, fazendo assim com que cada governo pudesse legitimar o
seu poder.
Kelsen chegou até mesmo a ser injustamente acusado de ter servido, ainda que indiretamente, ao regime
nazista. Ele, que fugiu da Alemanha, era obrigado a reconhecer, como de fato reconheceu ao chegar para o exílio nos
EUA, que o direito nazista, por injusto e imoral que o considerasse, ainda assim era direito válido e legítimo. Isto
prova ainda mais o seu mérito de ser um “ardoso defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica’’3,
pois Kelsen, não só por ser judeu, mas por suas posições ideológicas em defesa da democracia, nunca foi nazista.
Analisando o momento histórico em que se deu o surgimento da teoria kelseniana, fica mais fácil de
compreendermos os fundamentos desta, ao contrário de muitos críticos que se deixam levar por interpretações
preliminares e derramam discursos inúteis de que nadam colaboram para a excelência acadêmica, fato presenciado
em muitos artigos publicados sobre o tema.
O positivismo jurídico desta doutrina foi um fenômeno majoritário e universal do início do século XX,
mostrando o seu grande valor e sua importância deixada para todo o mundo. Kelsen propôs o princípio da
pureza, segundo o qual o método e o objeto do direito deveriam ter enfoque normativo, livre de qualquer fato
social ou outro valor transcendente.
A Jurisprudência ( entendida aqui como a ciência do direito), foi para Kelsen submetida a uma dupla
depuração:
-
a primeira procurou afastá-la de quaisquer influências sociológicas, liberando-as da análise de fatores sociais
que poderiam estar ligados ao direito. Para Kelsen, estas investigações sociológicas nada têm a ver com a
ciência jurídica, pois esta já recebe a norma feita. Ele diz que poderiam, por exemplo, apenas influenciar o
legislador na hora de elaborar as leis;
-
a segunda purificação retira da análise da ciência jurídica a ideologia e os aspectos axiológicos, ou seja, toda e
qualquer investigação moral e política, tanto como a ética, a política, a religião e a filosofia.
Devemos deixar claro que, apesar de muitas interpretações errôneas feitas a respeito, Kelsen nunca negou a
utilidade sociológica do direito nem mesmo sustentou que a justiça não existe, pois, em inúmeras passagens de sua
obra admitiu a possibilidade de considerações axiológicas, não permitindo apenas que essas lucubrações sejam feitas
2
3
NETO, Machado, Teoria da ciência jurídica, cit., p. 135.
COELHO, Fábio Ulhoa, Para Entender Kelsen, cit., p.17.
pela ciência jurídica. Kelsen, ao constituir sua peculiar metodologia jurídica fundada no princípio da pureza
metódica, estabelece ao lado da ciência do direito, uma teoria da justiça e uma investigação sociológica do direito.
Percebemos aqui o seu rigoroso método científico, pois, foi para salvaguardar a autonomia, a neutralidade e a
objetividade da ciência do direito que Kelsen estabeleceu essa rigorosa atitude metódica, que deve manter-se alheia a
aspectos axiológicos e sociais, tendo por objeto único a norma jurídica.
Essa tentativa Kelseniana de construir uma ciência jurídica pura tem levado muitos protestos, como o de
Miguel Reale, o filósofo da tridimensionalidade do direito, que tem observado que o jurista ante o sistema de
normas, deve sentir que há nele algo subjacente, os fatos e valores, não podendo, portanto, ao estudá-lo, abstrair tais
fatos e valores presentes. Mas Miguel Reale não deixa de reconhecer a superação de Hans Kelsen de certas
concepções estreitas da Jurisprudência anterior, depurando-a de resíduos jusnaturalistas, apontando como primeira
contribuição inestimável de Kelsen o fato de “determinar melhor a natureza lógica da norma jurídica”.4
Kelsen foi o ponto de partida para muitas teorias que surgiram ao seu lado ou até mesmo para combatê-la a
partir de outros mirantes epistemológicos, buscando explicar o fenômeno jurídico de forma diversa da proposta por
Kelsen e dentre essas teorias a que nos parece em caminho diametralmente oposto, exceto pelo mesmo esforço de
conferir cientificidade ao direito, é a teoria sistêmica baseada no pensamento de Niklas Luhman, que, ao contrário da
exclusão de interferências de valores sociais, toma o direito a partir do social, apoiado numa perspectiva
interdisciplinar, colocando conceitos opostos à teoria kelseniana.
Mesmo com as várias teorias surgidas depois de Kelsen e que tentaram combatê-la, somos obrigados a
reconhecer o mérito da teoria pura do direito; foi o primeiro grande ensaio de uma teoria da ciência jurídica, como
método rigoroso e plano sistemático, como nos diz Karl Larenz “o mais grandioso esforço presenciado neste século,
no sentido de fundamentar a ciência do direito como ciência. Trata-se de uma epistemologia jurídica e, enquanto tal,
plenamente está seu formalismo”.5
Para Kelsen o jurista teórico deve conhecer e descrever as normas mediante a proposição jurídica, que seria
a descrição de uma norma jurídica mediante um ato de conhecimento. Ele faz distinção entre norma e proposição.
Esta, como ato de conhecimento, pode ser verdadeira ou falsa, pois este conhecimento deve descrever as normas em
foco, como por exemplo: é verdadeira a proposição que diz um professor de direito penal que o homicídio deve ser
punido com reclusão de seis a vinte anos, pois esta proposição descreve fielmente a norma em foco. Como para
Kelsen a ciência jurídica descrever normas mediante proposições, estas têm por missão conhecer a norma, apenas
descrevendo-a com base no seu conhecimento, não regulando, portanto, a conduta humana. A proposição jurídica é
um juízo que contém um enunciado sobre referida norma. Kelsen acredita na existência de uma margem de
indeterminação relativa, derivada da pluralidade de significações das palavras e da distância entre a real vontade da
autoridade competente e a expressão jurídica da norma.
Em razão desta indeterminação relativa da norma, ela pode metaforicamente ser comparada a uma moldura,
dentro da qual se amoldam muitos significados. Todas as significações reunidas na moldura relativa à norma têm
rigorosamente igual valor para a ciência jurídica. A ciência do direito, portanto, deve apenas elencar os possíveis
sentidos da norma jurídica em estudo, superando a ficção de uma única interpretação correta. Kelsen admite,
portanto, a existência de várias interpretações, cabendo ao jurista ajustá-las ao caso concreto.
Já a norma jurídica não pode ser considerada como verdadeira ou falsa, apenas como válida ou inválida. A
ordem jurídica formaria uma pirâmide normativa hierarquizada, onde cada norma se fundamentaria em outra e a
chamada norma hipotética fundamental legitimaria toda a estrutura normativa. Então, para Kelsen, um um dos
requisitos de validade da norma seria que esta deveria encontrar seu fundamento em outra hierarquicamente superior
e a norma hipotética fundamental seria o fundamento para todo o ordenamento jurídico. Esta norma é considerada
hipotética porque trata de uma norma jurídica pressuposta e não posta, fruto de uma convenção social indispensável
para que todo o ordenamento jurídico tenha validade e é fundamental porque serve de fundamento para toda ordem
jurídica. O sistema kelseniano é cerrado e não está isento de objeções. Estas, contudo, se postas seriamente, nos
mostra como seu pensamento é capaz de nos empurrar para diante, evitando o parasitismo das concepções feitas.
4
5
REALE, Miguel, Filosofia do Direito, cit., p. 457.
LARENZ, Karl, Metodologia de la ciencia del derecho, cit., p. 84.
Para Kelsen a função da ciência jurídica é descobrir o significado objetivo que a norma confere ao
comportamento e o critério para operar esta descrição sempre se localiza em alguma outra norma, da qual a primeira
depende. O jurista deve caminhar de norma em norma, até a hipotética fundamental. Kelsen estuda a estrutura lógica
da ordem jurídica como piramidal. Diz ele que o legislador, ao elaborar a lei, está aplicando a norma constitucional;
o juiz, ao sentenciar, está aplicando a lei. Temos aplicação de uma norma superior e a produção de uma norma
inferior.
O jurista italiano Santi Romano foi um dos primeiros a chamar a atenção dos estudiosos do direito para a
insuficiência da concepção normativista, ao declarar que:
“Derecho no es solo la norma dada, sino también la entidad de la cual há emanado la norma. El proceso de
objetivación, que dá lugar al fenómeno jurídico, no se inicia en la emanación de una regla, sino en un
momento anterior: las normas no son sino una manifestación, una de las distintas manifestaciones; un
medido del cual se hance valer el poder del ‘yo’ social”.6
Giogio Campanini, dentre outros, também entende que o conceito do direito não pode identificar-se como o
de norma. Diz ele:
“Indubbiamente el concetto di legge è parte integrante del più generale concetto di Diritto, mas non si
resolve in esso, perchè Diritto non è soltanto la legge, nè com essa è stato storicamente identificato: accanto
alla legge positiva sono sempre state poste, anche nel momento normativo del Diritto, legge naturale e
consuetudine, talché ridurre la storia del concetto di Diritto alla storia del concetto de legge sarebbe un
“aritraria e ingiustificata trasposizione sul piano storico di atuali posizion teoretiche non sufficientemente e
criticamente fondate”.7
A maioria dos autores apresenta como objeção fundamental à teoria de Kelsen o seu caráter fragmentário,
ou sua visão parcial do direito. Outros ainda, como Paul Amseleck, vislumbram na teoria pura do direito uma
inspiração fenomenológica, considerando Kelsen como o precursor da fenomenologia do direito, porque vêem na sua
doutrina uma ciência fundada sobre a teoria eidética do direito. Entendem que Kelsen, ao propor uma ciência pura,
evitando toda a mescla de elementos éticos, políticos e sociológicos, procede de maneira semelhante à
fenomenologia. Devemos observar que tal não ocorre, pois Kelsen não aplicou o método fenomenológico de
Husserl8 pelo fato de não ter empreendido uma investigação acerca da essência do direito. Não encontramos na teoria
kelseniana, como pretendem afirmar alguns autores, nenhuma falsa definição do direito.
Apesar da “cegueira ontológica” da doutrina kelseniana, percebemos sua supremacia em não se preocupar
com o conceito essencial do direito, devido à impossibilidade de se conseguir uma definição universalmente aceita,
que abranja de modo satisfatório toda a gama de elementos heterogêneos que o compõem, já que é clara a natureza
epistemológica dessa concepção, uma vez que nela encontramos o esforço de conceder cientificidade ao
conhecimento do direito, fixando as bases de uma ciência jurídica autônoma e rigorosa.
Kelsen também faz uma distinção entre teoria estática e teoria dinâmica. A teoria estática tem por objeto o
direito como um conjunto de normas, estudando-o em seu estado de repouso. A teoria dinâmica considera o direito
em seu movimento, tendo por objeto o processo jurídico em que é produzido e aplicado o direito. Essa distinção
entre teoria estática e dinâmica tem apenas por objetivo tornar possível a contemplação do direito no seu estado de
repouso, como um sistema de normas, ou em seu movimento, como um complexo de atos jurídicos de criação e
aplicação de normas, sendo que o princípio dinâmico só deve ser considerado no plano do direito positivo, ao passo
que o estático é aplicado no âmbito da ciência jurídica.
Para formular sua teoria, Hans Kelsen introduziu em sua obra o dualismo neokantiano do “ser” e “dever
ser”. Kelsen considerou o “dever ser” como uma expressão da normatividade do direito, que deve ser investigada
6
ROMANO, Santi, L’ ordinamento giuridico, Firenze, p.25. Apud DINIZ, Maria Helena, A Ciência Jurídica. P. 53.
CAMPINI, G., Ragione e voluntànella legge, Giriffrè, p.3. Apud DINIZ, Maria Helena, A Ciência Jurídica. P. 53.
8
HUSSERL, Edmund, Idéias para uma fenomenologia pura e filosofia fenomenológica, cit., p. 105.
7
pela ciência jurídica. Em contraposição, o “ser” diz respeito à natureza, regida pela lei da causalidade, que enuncia
que os objetos da natureza se compartam de um determinado modo, como os preceitos morais. Mas, ante as
revolucionárias conclusões da física moderna, entende que a lei da natureza é governada pela probabilidade e não
pela causalidade, mostrando que Kelsen era sempre passível de rever suas posições.
Para ele, no campo do direito, o princípio metodológico prevalecente é o da imputação. O jurista, segundo a
concepção kelseniana, deverá aplicar este método. A imputação estabelece a conexão existente entre o ilícito e a
conseqüência do ilícito.
Diante desse breve inventário sobre as concepções kelsenianas, percebemos a grande influência que o
Mestre de Viena exerceu não só no século passado, mas que continua exercendo até os dias atuais. Sua teoria
continua iluminando os círculos acadêmicos de todo o mundo, divulgando seu esforço de conceder-nos um rigoroso
método científico. É válido, agora, lembrarmos que um dos momentos mais significativos do pensamento filosófico
do século XX se encontra no aforismo de Wittgenstein: “ sobre aquilo de que não se pode falar deve-se
calar.”9Baseando-se nisto Kelsen propõe que, uma vez demonstrada a impossibilidade de se superar cientificamente
a multiplicidade de sistemas morais, o mais correto para a doutrina seria renunciar à avaliação da justiça ou injustiça
da ordem jurídica. Para ele, o que não se pode falar sobre o direito positivo, com consistência científica, deve calarse, representando assim a crença na possibilidade de construção de um conhecimento rigoroso, confiável e
verdadeiro acerca dos conteúdos de normas jurídicas.
9
WITTGENSTEIN, Ludwig, Tractatus Logico-Philosophicus, edusp, 1994. Apud COELHO, Fábio Ulhoa, Para entender
Kelsen, p.65.
- Referências:
1- BASTOS, Aurélio Wander. Introdução à teoria do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.
2 - COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999.
3- DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2003.
4- DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2003.
5- FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 1999.
6- HILL, Cristopher. Origens intelectuais da Revolução Inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
7- KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Forense,
2003.
8 - HUSSERL, Edmund, Idéias para uma fenomenologia pura e filosofia fenomenológica. Paris, 1950.
9- LARENZ, Karl. Metodologia de la ciencia del derecho. Barcelona: Ariel, 1996.
10- LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasil, 1983.
11- NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 1999.
12- REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2003.
13- REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,1998.
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