ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL APELAÇÃO. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALISMO.TRAVESTISMO. ALTERAÇÃO DE PRENOME INDEPENDENTEMENTE DA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL E À DIGNIDADE. CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU. ACOLHIMENTO DE PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SEGUNDO GRAU. A demonstração de que as características físicas e psíquicas do indivíduo, que se apresenta como mulher, não estão em conformidade com as características que o seu nome masculino representa coletiva e individualmente são suficientes para determinar a sua alteração. A distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade social. Pronta indicação de dispositivos legais e constitucionais que visa evitar embargo de declaração com objetivo de prequestionamento. REJEITADAS AS PRELIMINARES, PROVIMENTO. UNÂNIME. APELAÇÃO CÍVEL NEGARAM OITAVA CÂMARA CÍVEL Nº 70022504849 COMARCA DE CAXIAS DO SUL MINISTERIO PUBLICO APELANTE ARTUR ROBERTO CUNHA SANTOS APELADO ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. 1 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao recurso. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA E DES. JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE. Porto Alegre, 16 de abril de 2009. DES. RUI PORTANOVA, Relator. [email protected] RELATÓRIO DES. RUI PORTANOVA (RELATOR) Ação de retificação de registro civil proposta por ARTUR. Na inicial o autor postulou a alteração do seu nome de ARTUR ROBERTO CUNHA SANTOS para CRISLAINE CUNHA SANTOS. A sentença julgou procedente o pedido determinando a alteração do nome do autor para CRISLAINE CUNHA SANTOS. Apelou o MINISTÉRIO PÚBLICO pedindo a improcedência do pedido inicial. Prequestionou o artigo 109 e §1º da lei 6.015/73; e o artigo 83, I do Código de Processo Civil. 2 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Vieram contra-razões. O Ministério Público, neste grau de jurisdição manifestou-se, preliminarmente, pela nulidade do processo pela ausência de vista ao agente ministerial que atua junto ao primeiro grau. No mérito manifestou-se pelo improvimento do recurso. É o relatório. VOTOS DES. RUI PORTANOVA (RELATOR) A substituição de um Código Civil por outro não se reduz à troca de uma lei por outra, porque significa, antes de mais nada, o advento de um novo paradigma cultural, tomada a palavra paradigma no sentido que lhe dá Thomas Kuhn, como um conjunto de idéias-mestras que torna necessário proceder à revisão de muitas teses havidas como assentes, quer para substituí-las, quer para retificá-las. (Prefácio ao livro Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro de autoria de Judith Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos Branco. Ed.Saraiva). PRELIMINAR: O Ministério Público apelante alegou que a petição inicial não foi instruída com documentos comprobatórios dos fatos alegados, tampouco arrolou testemunhas, razões pelas quais não poderia ter sido recebida. 3 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Disse ainda que a sentença foi prolatada após a juntada de documentos pela parte autora, sem que fosse dada vista ao apelante. Neste grau de jurisdição Ministério Público manifestou-se pelo acolhimento das preliminares, para declarar a nulidade do feito. Vale a pena começar com o que disse o Ministério Público que atua junto a este Tribunal de Justiça: (...). Com efeito, além de a inicial não estar instruída com os documentos necessários à propositura da ação (imprescindível atestado médico indicando diagnóstico de transexualismo), o feito foi encerrado abruptamente. Antes da prolação da sentença, não teve o Ministério Público vista dos documentos das fls. 27-31, que fundamentaram o deferimento do pedido, nem oportunidade de manifestar-se sobre o mérito, após os esclarecimentos da parte e a juntada de novos subsídios de prova. Com efeito, na condição de fiscal da lei, cumpre ao Ministério Público ter vista dos autos depois da parte, justamente para requerer os elementos de convicção que julgar necessários, a teor do art. 83, I, do CPC. O encerramento apressado da instrução, sem a realização dos trâmites legais, acarretou efetivo prejuízo ao Ministério Público, impedido de analisar a prova produzida e apontar as razões de fato e de direito relativas à questão de fundo. (...) De pronto quero dizer que não vejo qualquer nulidade processual que implique na anulação deste processo. 4 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL A primeira preliminar suscitada é de ausência de documentos juntados com a inicial. Mas compulsando os autos verifiquei que com a inicial foram juntados fotografias e outros documentos suficientes a dar início ao processo, bem como embasar o pedido da parte autora. Não se pode perder de vista a instrução processual que tem justamente por objetivo a produção das provas dos fatos alegados. Logo, não se vá querer que a parte autora junte com a inicial os documentos que ela mesma pretende produzir na instrução processual e que servirão para demonstrar a veracidade do que vem alegado desde o início. Com efeito, não estamos diante de uma ação onde a prova deve vir pré-constituída. Tanto é assim que com a instrução do feito outras provas foram sendo juntadas e o juízo pode prolatar a sua sentença. Ao depois, o próprio Ministério Público, ora apelante, em sua primeira manifestação, logo após a inicial e seus documentos (fls. 02/17), e em atenção ao primeiro despacho do juízo (fl. 18), ofertou parecer de 05 laudas (fls. 19/23), onde discorreu extensamente sobre o mérito da causa e se manifestou inclusive pela “denegação do pedido” (fl. 23). 5 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL E ainda, neste mesmo parecer (fl. 19), o Ministério Público disse que “Não se vislumbra necessidade/possibilidade de dilação probatória, com depoimento do requerente e de testemunhas, como pedido na fl. 08, porque se presume, pelo conhecimento geral, que o requerente ainda possa, de fato, mesmo hodiernamente, vir a enfrentar alguma situação de embaraço...” E por fim, não houve neste momento qualquer manifestação do apelante pela nulidade alegada. A questão somente foi levantada posteriormente. Ora, esse parecer é a evidência de que na ótica do próprio apelante, naquele momento processual, os documentos até ali juntados eram suficientes não só para que o processo fosse iniciado, mas também julgado de plano. Fosse outro o entendimento, a manifestação ministerial não poderia ser pelo julgamento de mérito com a improcedência do pedido, dispensando-se outras provas. Já a segunda preliminar diz com a ausência de vista do Ministério Público dos documentos que foram juntados antes da sentença. E de fato, é verdade que a sentença foi prolatada após a juntada de novos documentos sem que fosse dada vista ao apelante de tais documentos. 6 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Mas como se sabe, não há falar em nulidade processual sem a efetiva comprovação do prejuízo. Aqui o apelante disse que sofreu “prejuízo manifesto para a atuação institucional o que foi processado a partir da fl. 26, porque foi ordenada e produzida prova unilateral, destinada a contrariar a impugnação ministerial anterior” (fl. 48). Mas em momento algum o apelante impugnou aquelas provas produzidas pela parte autora. O alegado prejuízo é meramente formal e não traz qualquer prejuízo efetivo para as partes ou para a prestação jurisdicional. Ademais, em face ao princípio constitucional da unicidade do Ministério Público, a manifestação ministerial no segundo grau supriu a ausência de manifestação junto ao primeiro grau. E embora o Ministério Público neste grau de jurisdição tenha se manifestado pelo acolhimento da preliminar, no mérito, foi pelo improvimento do recurso. O que demonstra que o entendimento do órgão ministerial é pela manutenção da sentença no que diz com a sua substância. De resto, tanto aqui no segundo grau, quanto no primeiro, o Ministério Público atuou como fiscal da lei, sendo desnecessária nova manifestação. 7 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Por isso, rejeito as preliminares. MÉRITO. A sentença. A sentença determinou a retificação do nome. Ao sentenciar, a digna julgadora de primeiro grau disse: (...). Como antes já referido, o autor ingressou com ação de retificação de registro civil a fim de adequar o registro de nascimento ao sexo aparente adotado pelo mesmo. (...). O caso concreto é de transexualismo e esta condição é uma alteração da psique a qual é caracterizada pela inconformidade do sexo biológico ser um e o sexo psicológico outro. Isto acarreta ao indivíduo transexual um desconforto perante a sociedade, visto que, muitas vezes a dor e o sofrimento são tão grandes, que sentemse presos a um corpo que não condiz com a sua realidade e seu estado emocional. (...). Nos casos que se referem a transexuais o Poder Judiciário, especialmente no E. TJ/RS, vem concedendo autorização para a troca do prenome no assento de nascimento nas situações em que a pessoa se submete à cirurgia de mudança de sexo dentro dos critérios exigidos pelo Conselho Federal de Medicina, ou seja, os indivíduos que se sentem psiquicamente em desacordo com o sexo biológico teriam, necessariamente, de fazer a cirurgia para obter o direito à troca do nome e ou documentação. (...). 8 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Todavia, se permitirmos estas cirurgias e não a mudança de documentos estaríamos cometendo o absurdo de permitir uma eventual “mutilação” com a justificativa de melhorar a vida dos transexuais e, ao mesmo tempo, impedindo a posse da documentação condizente com seu aspecto físico, essencial para que a sua vida, principalmente em sociedade, efetivamente melhore. (...). ISSO POSTO, julgo PROCEDENTE o pedido contido na AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL ajuizada por Artur e DEFIRO a retificação conforme postulado na inicial, passando o autor a chamar-se CRISLAINE CUNHA SANTOS, aguardando a definição futura com relação à cirurgia de redesignação para alteração do sexo constante no registro, mormente porque não houve pedido expresso na inicial para esta retificação.” O parecer do Ministério Público de segundo grau. O Ministério Público neste Grau de jurisdição é pela confirmação da sentença. Aqui a Ilustre Procuradora de Justiça Maria Ignez Franco Santos, abordou o tema com tamanha riqueza que é necessário transcrevêlo: (...). De início, para evitar imprecisões, impende referir a distinção entre travestismo, homossexualismo e transexualismo, que se tratam de realidades diferentes. No primeiro, o indivíduo manifesta prazer de cunho sexual em vestir-se com as roupas do sexo oposto ao seu, não tendo 9 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL necessariamente atração sexual pelo sexo diverso. Já a expressão homossexualismo é utilizada para designar o interesse e a atração sexual por indivíduos do mesmo sexo. Não constituiria uma patologia, mas um “estilo de comportamento”. Por último, o transexualismo é um transtorno de identidade, catalogado como doença. Na espécie, desde que seguro se tratar o caso dos autos de transexualismo, à vista de diagnóstico médico1, não cabe prover o apelo, a despeito das respeitáveis ponderações do apelante. Tivemos oportunidade de examinar a matéria em trabalho escrito2, que se transcreve parcialmente, no que pertine, em homenagem ao debate: Na atual fase do conhecimento científico, a identificação do sexo do ser humano é irreversível e ocorre no momento da concepção, dependendo do número dos cromossomos em cada célula. Sabe-se que todo o ser humano recebe um cromossoma X, da mãe. Quem herde um cromossoma X do pai, é mulher (XX), quem herde um Y, é homem (XY)3. Coincidem também componentes de ordem hormonal para caracterização do sexo, predominando o 1 Classificação Internacional de Doenças – 10ª versão – CID 10, da Organização Mundial de Saúde (1993) – Capítulo V – Transtornos Mentais e do Comportamento, inclui nos chamados Transtornos de Identidade Sexual o transsexualismo – F64.0. 2 A identidade pessoal e a cirurgia de redesignação de sexo, in Estudos sobre o Direito das Pessoas, Coord. Diogo Leite de Campos, Editora Almedina, Coimbra, Maio de 2007, p. 159-178. 3 RIDLEY, Matt – Genome/The autobiography of a species in 23 chapters, 2000. Tradução portuguesa da versão de 1999, de CARLA REGO, Genoma, 2001. Cada célula humana contém 46 cromossomas; 22 pares de autossomas que se encontram tanto no homem como na mulher e um par de gonossomas, cromossomas que se chamam sexuais, porque determinam o sexo. 10 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL estrogênio (hormônio feminino) ou a testosterona (hormônio masculino). Afora a herança genética, em função da obrigação jurídica de declarar o sexo no assento de nascimento, providência que em geral ocorre nos primeiros dias de vida do ser humano, tem-se como parâmetros os seus órgãos sexuais externos. Apesar dessa verificação de ordem natural no momento do nascimento, constata-se que algumas pessoas sofrem de profunda, persistente e autêntica insatisfação psíquica em razão de seu sexo anatômico, assumindo um sexo psicológico oposto. Há uma clara contradição entre o sexo genético e genital, e o sexo cerebral ou social. É o que caracteriza o transexual4. A partir da constatação da existência de problemas de identidade sexual no ser humano5 e do eventual desejo de redesignação de sexo, surgem questões de ordem ética, médica e sóciojurídicas a enfrentar. Diz-se da pessoa que sofre de transexualismo. Constituição psicológica particular, muitas vezes confundida com o travestismo e a homossexualidade, caracterizado pelo facto de um indivíduo ter o sentimento de pertencer ao sexo oposto ao seu e pelo desejo intenso, muitas vezes obcecante, de mudar de sexo – definição constante do Dicionário Médico – L. MANUILA, A MANUILA, P. LEWALLE e M. NICOULIN, 3ª edição, Climepsi Editores, março 2004, p. 598. 5 Segundo RUSSEL W REID (psychiatre, Hillingdon Hospital, Londres), in Aspects Psychiatriques et Psychologiques du Transsexualisme, atualmente, nem a psicologia/psiquiatria nem a biologia podem fornecer uma explicação conclusiva ou mesmo satisfatória a respeito da etiologia dos problemas de identidade sexual. Existe na história dos transexuais fatores biológicos não conhecidos que os tornam diferentes dos não-transexuais. Até o momento, alguns fatores psicológicos implicados no estabelecimento pós-natal da identidade sexual e de seus problemas de identidade foram identificados, embora não seja possível estabelecer até que ponto contribuem para o desenvolvimento do transexualismo. 11 4 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL A identificação sexual é formada por variáveis, a cromossômica, a endócrina - gonadal6 ou extragonadal7, a hormonal, a morfológica externa e a morfológica interna, a que se devem acrescentar elementos sociopsicológicos do “gênero”, segundo a terminologia inglesa, que significa o sexo psicossocial. Há quem diga, conforme SESSAREGO8 que “o sistema existente (como método de divisão das pessoas em um e outro sexo) produz desafortunadas conseqüências e deve ser abandonado”. De fato, amplia-se o debate acerca da caracterização científica do sexo, sendo certo que “existe uma etapa de desenvolvimento, estabilidade e constância sexual não coincidentes com os primeiros dias de vida do ser humano”, consoante explicita REID9. Para BORIS CYRULNIK10, “os animais ensinam-nos que o sexo não existe, o que existe é o sistema sexual”. Acrescenta, ainda, que “o cérebro, as emoções, os comportamentos sexualizam-se progressivamente durante a maturação” . Ensina TEREZA VIEIRA11, ainda, que “o sexo não é mais considerado tão-somente como um dado fisiológico (e, portanto, geneticamente determinado) e, por isso, imutável, a partir de contribuição das áreas de conhecimento da psicologia, da biologia, da antropologia, entre outros”. 6 Identificado nas glândulas sexuais, testículos, para o homem ou, ovários, para a mulher. 7 É constituído por outras glândulas, a tiróide e a epífise, cuja função é atribuir à pessoa outros traços de masculinidade ou feminilidade. 8 SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho A La Identidad Personal. Editorial Astrea, Buenos Aires, 1992. 9 Ver a respeito http://pierrehenri.castel.fr e Russel W. Reid. ob. cit. p. 3 10 BORIS CYRULNIK, Memória de Macaco e Palavras de Homem, Instituto Piaget, Lisboa. 11 VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e Direito. 12 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Acerca dessa identificação, STEFANO 12 RODOTÀ explica que a definição e a estruturação definitiva dos caracteres sexuais da pessoa demandam um tempo mais longo do que o exigido para a declaração do sexo de recémnascido nos assentos públicos. Também afirma que não se deve confiar na nitidez e na certeza do sexo genético. Acrescenta que o estado das pessoas resultante dos registros públicos é uma descrição do papel social ligado a um elemento biológico presumido imutável. Entretanto, esta presunção ou ficção jurídica não pode mais ser considerada hoje com a mesma certeza que no passado. Na tutela geral da personalidade, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. Esclarece JORGE MIRANDA13 que “os direitos de personalidade são posições jurídicas fundamentais do homem que ele tem pelo simples facto de nascer e viver; são aspectos imediatos da exigência de integração do homem; são condições essenciais ao seu ser e devir; revelam o conteúdo necessário da personalidade; são emanações da personalidade humana em si; são direitos de exigir de outrem o respeito da própria personalidade; têm por objeto, não algo de exterior ao sujeito, mas modos de ser físicos e morais da pessoa ou de bens da personalidade física, moral e jurídica ou manifestações parcelares da personalidade humana”. Também LEITE DE CAMPOS14 é enfático ao afirmar que “os direitos da personalidade são 12 STEFANO RODOTÀ. Présentation Générale des Problèmes Liés au Transsexualismo, in Editions du Conseil de l´Europe, 1995, imprimé au Pays Bas. 13 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional – Tomo IV – Direitos Fundamentais, 3ª edição, Coimbra Editora, p. 58-9. 14 DIOGO LEITE DE CAMPOS, Nós – Estudos sobre os Direitos das Pessoas, Editora Almedina, março, 2004. 13 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL direitos naturais. São expressão e tutela jurídicas da estrutura e das funções da pessoa, do seu ser e da sua maneira-de-ser”. E, adverte, com precisão: “ O Direito tem um fundamento axiológico (que é a sua justificação, e sem o qual se transforma em instrumento de opressão) que é imposto pela pessoa humana – o direito é produto do homem e feito para o homem”. O direito ao nome e a dignidade da pessoa humana, consagrada como direito fundamental da ordem jurídica constitucional, distingue a pessoa na sua vida em sociedade, tutelando o seu nome, a sua filiação, o seu sexo, a sua nacionalidade, o momento de seu nascimento. Aferida pela singularidade, indivisibilidade e irrepetibilidade, no dizer de PAULO OTERO15, é a marca distintiva da pessoa, que a individualiza, permitindo a construção da sua personalidade. É a sua maneira de ser, como se realiza na comunidade, com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural. É “a identidade consigo próprio”, referida por JOHAN GALTUNG16, coerência interna, o direito de a pessoa ser ela mesma. Atribui-se a DE CUPIS17 uma das primeiras representações do direito à identidade pessoal. Segundo o jurista, a identidade pessoal “é ser único, representado por seus próprios caracteres e acções, constituindo a verdade da pessoa, não podendo ser destruída, pois a verdade não pode ser eliminada. Ser único, significa sê-lo também no conhecimento e na opinião dos outros”. Representa a sua imagem social, bem jurídico que mereceria a tutela do direito. Trata-se do 15 PAULO OTERO, in Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Humano; Um perfil constitucional da bioética. Livraria Almedina, Coimbra, Setembro/1999. 16 JOHAN GALTUNG, in Direitos Humanos – Uma Nova Perspectiva, Instituto Piaget, Lisboa, 1994. 17 DE CUPIS, Adriano. Il diritto della personalità, Milano, Giuffrè, 1982. 14 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL interesse da pessoa em afirmar a sua própria individualidade, de resultar, no âmbito social, aquilo que realmente é, com suas qualidades e acções. Para outro tratadista, como MESSINEO18, a pessoa tem o direito de “não ser confundida com os outros”, limitando a identidade pessoal ao direito ao nome. O direito à identidade reclama, para DOGLIOTTI19, uma integral representação da personalidade individual em todos os seus aspectos e implicações, em suas qualidades e atributos, enquanto TOMMASINI20 considera que a identidade da pessoa deve ser apreciada dinamicamente em relação às modificações sofridas segundo os diversos comportamentos assumidos. O que se tutela juridicamente não seria uma aparente identidade, senão a projeção externa da personalidade sempre que reflita a verdade dos valores e acções próprios da pessoa. Na atualidade, segundo SESSAREGO21, a doutrina superou a antiga noção estática de identidade pessoal, entendendo que o nome é apenas um dado da identificação da pessoa, a que se unem outros como a filiação, o sexo, o lugar e a data do nascimento. Assinala a noção dinâmica e atemporal da identidade “por ser fluida como a pessoa. Não é algo acabado e finito, senão que se constrói no transcurso do tempo, com o tempo. Se enriquece e se empobrece, se modifica”. Acrescenta: “o direito à identidade supõe a exigência de respeito da própria biografia, com as suas luzes e as suas sombras, com o que exalta e com o que degrada”. E, arremata: em face do direito da pessoa “ergue-se o direito dos demais respeitarem a verdade que cada um projeta, de modo objetivo, na sua vida de relação. 18 MESSINEO, Francesco, Manual de derecho civil y comercial, t. II. Citado por Sessarego. 20 Citado por Sessarego. 21 SESSAREGO, Ob. Cit. p. 4. 19 15 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL (...) Não pode perder-se de vista que a identidade é a projeção social de uma verdade pessoal, de uma maneira individual de ser humano. É esta verdade que configura o interesse existencial digno de tutela jurídica”. Com base em estudos científicos atuais no campo da sexualidade, é possível verificar que a estruturação da identidade da pessoa estava calcada em referências baseadas numa representação da ordem natural que hoje passa a ser discutível (porque não bastaria a constatação física, cumulada com o registro civil), na medida em que se tem nova percepção acerca do que constitui o sexo, numa dimensão mais humana da sexualidade, que procura a liberdade de sua expressão. É que a identidade sexual constitui um aspecto importante da identidade pessoal, na medida em que a sexualidade está presente em todas as manifestações da personalidade do ser humano. Sexualidade vista primordialmente “como um fenômeno humano que se enraíza no corpo e não uma vida objectivamente biológica à qual se sobrepõe uma superestrutura consciente e ética”22.Identidade sexual e pessoal em estreita ligação com uma pluralidade de direitos da pessoa, como os referentes ao livre desenvolvimento da personalidade (“um direito de conformação da própria vida” consoante GUILHERME DE OLIVEIRA23), à saúde, à integridade psíquica e ao seu bem-estar. Para além de tais considerações, importa assinalar que, para o transexual, sua identidade não coincide com o seu sexo anatômico, porque sua verdade e singularidade apontam para o sexo 22 In MICHEL RENAUD, A Sexualidade Humana – Reflexão Ética, parecer no Conselho Nacional de Ética Para as Ciências da Vida – CNECV, 1999. 23 GUILHERME DE OLIVEIRA, in Curso de Direito de Família, 3ª edição, Coimbra Editora, 2003. 16 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL psicossocial. Viabiliza-se a intervenção da medicina, através de ato cirúrgico, privilegiandose a orientação clássica de que para a determinação do sexo o critério deva ser o corporal, morfológico-externo. Um dos traços identificadores da espécie humana é seguramente a dignidade, cuja raiz latina da palavra – dignus, significa “ aquele que merece estima e honra, aquele que é importante”. Atribuise ao Cristianismo a introdução da concepção ética da dignidade da pessoa humana, através das idéias do amor fraterno e da igualdade perante Deus, poderoso e misericordioso, sabido que a Antiguidade clássica não foi expressão do reconhecimento desse valor. A expressão jurídica da dignidade humana, construída sob conceitos filosóficos e políticos, é o seu reconhecimento como valor fundamental das Constituições mais modernas, baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, regra da qual não fugiu a Constituição Brasileira. Estabelece no art. 1º , inciso III a dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Resulta que “ os direitos, liberdades e garantias pessoais têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”, conforme sentencia e enfatiza JORGE MIRANDA24. INGO SARLET 25, a respeito do princípio da dignidade humana, leciona: “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e 24 25 JORGE MIRANDA, ob. Cit. INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001. 17 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL desumano, como venha a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. Dignidade que seria indeclinável, indisponível e irrenunciável, consoante PAULO OTERO26. É importante assentar que não se interpreta o direito das pessoas com um sentido essencialmente individualista, sabido que as aspirações individuais e os interesses próprios não podem nortear cegamente a vida em sociedade. A liberdade absoluta é um mito. Ela está condicionada pelo próprio mundo interior do indivíduo, pelas coisas e pessoas que o rodeiam, que oferecem resistências à sua plena realização como ser totalmente livre. Explicita PERLINGIERI27 que “o simples consentimento de quem tem o direito não é suficiente para tornar lícito o que para o ordenamento é ilícito, nem pode – sem um retorno do dogma da vontade como valor – representar um ato de autonomia de per si merecedor de tutela”. Evidentemente, no mundo de hoje, frente à ordem constitucional, não poderia prosperar uma concepção de absoluta e ilimitada disposição do indivíduo por seu corpo ou por seu sexo, porque preponderam valores éticos superiores. Traz-se uma vez mais a lição de PERLINGIERI28, quando assinala que “as situações existenciais exprimemse não somente em termos de direitos, mas, também, de deveres: no centro do ordenamento está a pessoa, não como vontade de realizar-se 26 OTERO, Paulo. Ob. Cit. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional – Editora Renovar, Brasil, 3ª edição, Rio de Janeiro, 1997. 28 PERLINGIERI, Pietro. Ob. Cit. acima. 18 27 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL libertariamente, mas como valor a ser preservado também no respeito de si mesma”. Excepcionalmente, quando não há plena correspondência entre o sexo biológico, anatômico e registral e o cerebral, psicológico ou social, diz-se que há um problema de identidade sexual ou uma forma extrema de disforia sexual, caracterizando o “transexual”. Analisando a terminologia empregada no estudo do transexualismo, REID29 define “identidade sexual (gender identity) como a relação elementar de se sentir propriamente um homem ou uma mulher”, comportando um componente cognitivo e afetivo, e o “sexo (o gênero) como o estatuto pessoal, social e jurídico de um indivíduo como homem ou mulher, ou como estatuto misto, estabelecido segundo critérios somáticos e comportamentais mais complexos que os critérios genitais e/ou os critérios eróticos isolados”. A literatura especializada salienta que o diagnóstico do transexualismo é extremamente difícil, porque não se baseia apenas em critérios objetivos. Seria o resultado da combinação de fatores psicológicos, neurológicos, ambientais, educativos. Entretanto, a conduta diagnóstica recomendada pelos padrões de cuidado e segurança da Associação Internacional da Disforia Sexual Harry Benjamin compreende duas etapas: a identificação da persistência de um sentimento de mal-estar de que o sexo declarado é inapropriado e a constante preocupação, no mínimo por dois anos, de se livrar das características sexuais primárias e secundárias e de adquirir os caracteres sexuais de outro sexo, considerado sempre o indivíduo adulto. Identifica-se no transexual um distúrbio de saúde, a que corresponde um direito de buscar a sua cura e a diminuição de seu sofrimento, através 29 RUSSEL W REID – Ob cit. p. 3. 19 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL dos meios médicos possíveis. É também uma faceta do direito à proteção da saúde do ser humano, inscrito no art. 196 da Constituição da República. Evidentemente, não se compreende que os direitos das pessoas estejam subsumidos na busca de satisfações ilimitadas, embora a técnica e a ciência estejam descortinando pretensões inimagináveis. Todavia, os sentimentos humanos são elementos da vida e devem ser considerados, porque fatores importantes para o equilíbrio e a dignidade da pessoa. Talvez a fórmula do “ bemestar consigo mesmo” seja a busca de paz interior. Difícil de definir, embora possa corresponder ao pleno gozo dos sentidos. É física e espiritual. Representa tranqüilidade de consciência, ausência de sofrimento por desejos insatisfeitos ou por aspirações contrariadas. No exercício da sua liberdade, a pessoa tem direito de buscar qualidade de vida, não apenas através do pleno funcionamento das suas funções orgânicas e psíquicas, também no emprego das suas faculdades e na satisfação dos seus anseios. Profundas insatisfações da pessoa com a própria identidade não apenas a impedem de viver com dignidade, como constituem fator de perturbação social pelo sentimento de inadaptação, sendo fundamental que a pessoa componha equilíbrio com o meio. Segundo enfatiza BORIS CYRULNIK30, “ é preciso sentir-se no seu lugar e bem na sua pele para experimentar o sentimento de ser alguém dentro da sua cultura”. A ciência tem procurado descobrir a origem da transexualidade, mas ainda existem incertezas. Apesar das vacilações e falta de respostas, a medicina e o direito deparam-se com situações humanas tormentosas, por vezes, dramáticas, 30 BORIS CYRULNIK. Nutrir os Afectos. Instituto Piaget, Lisboa, 1995. 20 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL quando os indivíduos buscam soluções para a satisfação de seus conflitos e expectativas existenciais, especialmente na área da sexualidade. Alguns tratamentos através da admissão de hormônios foram aplicados a transexuais, sem resultados satisfatórios, não havendo reorientação de sua alterada preferência erótica. Também a psicoterapia com pacientes transexuais mostrouse ineficaz, o que levou os especialistas a encontrar outra solução para o problema. Por isso, a intervenção cirúrgica31 tem sido a técnica mais empregada na tentativa de readequar o sexo cerebral ao sexo anatômico do indivíduo, depois de uma avaliação multidisciplinar e cumprindo determinados pressupostos, quando outros métodos terapêuticos não surtiram efeito. No Brasil, normatização do Conselho Federal de Medicina autoriza a cirurgia em hospitais-escola ou destinados a pesquisa, desde que haja diagnóstico clínico de transexualismo. Entretanto, as situações fáticas têm-se adiantado ao direito, observando-se numerosos casos em que o indivíduo se apresenta aos serviços de saúde parcialmente alterado fisicamente, porque já se submeteu a cirurgias de ablação/extirpação de órgãos em outros países ou por mãos de médicos inescrupulosos, no afã de resolver o seu problema de identificação sexual. 31 A cirurgia de redeterminação sexual, radical e completa, para o homem (transexualismo masculino), consiste na remoção dos testículos, na amputação do pênis e na formação de uma vagina artificial, além do aumento dos seios através do implante de silicone. No caso do transexualismo feminino (para a mulher), suprimem-se os ovários e o útero, reduzem-se os seios de tamanho e fabrica-se um pênis artificial. Evidentemente, a intervenção cirúrgica não modifica a conformação genética e cromossômica do sujeito, que se mantém inalterada depois da prática cirúrgica. Quanto à função reprodutiva ou reprodutora, é essencial que seja extinta. Afora as intervenções cirúrgicas nos órgãos reprodutores e sexuais, é possível outras cirurgias faciais (traços físicos femininos ou masculinos) e de adaptação vocal. 21 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL O problema da identidade sexual não é novo, embora, na atualidade, ainda sejam escassos os ordenamentos jurídicos que regulam expressamente a matéria. O Direito parece aguardar um esclarecimento científico mais uniforme para uma sistematização de critérios, porque não se apresenta como um assunto pacífico no âmbito médico-científico. No país, tramita projeto de lei sobre o tema, desde 1995, mas não há notícias de sua aprovação. Em geral, as soluções em matéria de transexualismo têm sido apreciadas caso a caso, por mãos dos juízes. No entanto, alguns países optaram por atribuir ao Parlamento a normativa definitiva, despontando a Suécia, na Europa, como o primeiro a legislar sobre a matéria, em 197232. Segundo explicita REMÉDIO MARQUES33, a lei sueca permite “a todos aqueles que, finda a adolescência, se não reconheçam como pertencentes ao sexo indicado no assento de nascimento, a possibilidade de peticionarem à autoridade administrativa competente a atestação de que são do sexo oposto, contando que se tenham comportado ou o venham, invariavelmente, a fazer, na sua vida de relação, como se de pessoas do sexo oposto se tratasse”. Exige alguns requisitos: é preciso ser sueco, solteiro, maior de 18 anos, estéril ou impotente, devendo submeter-se à esterilização, na hipótese de não o ser, ficando a cirurgia dependente de autorização, a qual certifica os pressupostos concernentes ao âmbito médico. A lei também disciplina outras questões como a tutela da intimidade da vida privada do transexual, a responsabilidade médica, a representação do 32 Em sueco, “Könsroller”. REMÉDIO MARQUES, João Paulo. Mudança de Sexo - O Critério Jurídico, Coimbra, 1991, monografia não publicada – p. 206. 22 33 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL menor e a necessidade do seu consentimento, os limites e modalidades da intervenção cirúrgica. Mais abrangente e rigorosa apresenta-se a Lei Alemã de 198034. Socorrendo-nos de REMÉDIO MARQUES35, vemos que a normativa alemã apresenta vários instrumentos jurídicos ao transexual, podendo escolher o simples pedido de mudança de nome (para quem há três anos viva de acordo com o sexo peticionado, presumindo-se que a convicção não se alterará) ou trilhar todo o caminho que conduz ao sexo de eleição, obtendo sentença declaratória de pertença ao sexo oposto (e seus efeitos jurídicos), para o que se exige a prévia submissão à cirurgia. Importante assinalar que a lei permite à pessoa retornar ao sexo de sua identidade inicial. É necessário que já tenha completado 25 anos, seja de nacionalidade alemã, apátrida ou refugiado, residente no território da República da Alemanha e solteiro. Na Holanda, desde 1985, a lei permite que seja reconhecida ao transexual holandês a sua nova identidade sexual, alterando seu ato de registro civil. Exige-se o celibato do transexual, idade superior a 18 anos, intervenção cirúrgica e terapia hormonal. Estende a possibilidade dos estrangeiros requererem a mudança das menções relativas ao sexo, nos instrumentos registrais de nascimento, contanto que residam na Holanda há pelo menos um ano, com licença de residência válida. Nesse caso, devem pedir a transcrição do instrumento registral de nascimento estrangeiro, nos registros de nascimento da “ Conservatória dos Registros Centrais de Haia”. Em 1982, entrou em vigor a lei italiana a respeito da mudança de caracteres sexuais. Não refere a palavra transexual, embora deva aplicar-se aos casos de intersexualidade. A autorização judicial é 34 35 A “transexullengesetz” REMÉDIO MARQUES, ob. cit. acima - p. 209. 23 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL necessária para a intervenção médico-cirúrgica, podendo valer-se o juiz da intervenção de peritos, e a sentença que acolha a “modificação superveniente dos caracteres sexuais” deve determinar a retificação material do sexo no assento de nascimento. Provoca, ainda, a dissolução do casamento civil ou a cessação dos efeitos do casamento canônico. No atual momento histórico, de afirmação dos direitos da pessoa e das liberdades fundamentais, a questão da transexualidade precisa ser enfrentada pelo Direito 36. Não faz muito tempo, a classificação dos sexos era indiscutível e não se reconheciam incertezas. Hoje, não se reconhece apenas a possibilidade de falta de coincidência entre o sexo anatômico e o cerebral ou social, como a ciência desenvolveu técnicas para realização cirúrgica de retirada ou implantação de órgãos para a redesignação do sexo. É meio de assegurar-lhe a dignidade, a liberdade, a integridade física e moral, a igualdade, pelo reconhecimento da sua diferença, através de conformação pessoal e única. De fato, também possui direito individual à identidade a pessoa que não corresponde à representação tradicional. A possibilidade de radical alteração do corpo humano, do seu sistema reprodutor e sexual, suscita discussões éticas, especialmente nos campos do Direito e da Medicina. Em princípio, tal idéia é motivo de repugnância para a maior parte das pessoas, por força do princípio da imutabilidade do sexo, o que não autoriza rejeição ao debate do tema no âmbito jurídico. Adverte com precisão o médico e etólogo BORIS 36 O tema do transexualismo já foi apreciado por dois órgãos do Conselho de Europa (a Assembléia Parlamentar e o Comitê de Ministros) e também pela Comissão e a Corte Européia dos Direitos do Homem, o que revela a importância da sua discussão, considerando que são órgãos com vocação para proteger os direitos dos indivíduos. 24 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL CYRULNIK37, ao analisar experiências científicas em embriões: “o terror colectivo que estas práticas provocam, não passa, talvez, de uma angústia milenarista. Sempre que uma descoberta científica ou um debate cultural altera a representação do homem, provoca uma angústia virtuosa que permite rejeitar esta alteração. Galileu, Darwin e Freud fizeram essa experiência. Mais recentemente, a descoberta do clorofórmio no século XIX foi combatida virtuosamente por Balzac. A descoberta do parto sem dor devia preparar as mulheres para parirem como vacas, visto que deixariam de conhecer o sofrimento redentor. A descoberta dos tranquilizantes é ainda mais angustiante. Os antituberculóticos, as vacinas, as perfusões provocaram manifestações indignadas. E, hoje, a genética e a procriação pela medicina desencadeiam receios antecipatórios provavelmente muito diferentes do que se vai passar no real”. Questão de profundo conteúdo humano, o transexualismo traz à tona o problema da faculdade de disposição do próprio corpo, nos limites da ciência médica, bem como do reconhecimento do direito à identidade sexual, que se insere no direito à identidade pessoal. Adverte GOOREN38 que “o transexualismo provém de um erro no processo de diferenciação sexual” e que o transexual “não é pessoalmente responsável por seu estado, ele não o escolheu”, observando-se que a espécie humana está exposta a este problema, existente em sistemas socioculturais bastante diferentes39. A 37 BORIS CYRULNIK, Ob. Cit. p. 10. L.J.G. GOOREN. Vrije Universiteit, Amsterdão, in Transsexualisme, médecine et droit. XXIII Colloque de droit européen, avril 1993. 39 RUSSEL W REID, Ob. Cit. p. 3, explica que o transsexualismo não é o sintoma de uma cultura ocidental decadente, porque existe em outros sistemas sócioculturais. São os “ xanith” da cultura árabe islâmica, os “ berdache” , índios da América, do México ao Alasca, os “ hijras” da Índia, os “ kushra”, no Paquistão, os “ acaults” na Birmânia, sendo conhecidos 25 38 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL redesignação do sexo não se insere num simples querer da pessoa, já que o simples consentimento “nunca será suficiente, uma vez que este é mais um campo em que o ordenamento não prioriza a esfera de livre autonomia da vontade”40. Corresponde a um sentimento profundo e forte, que acompanha o transexual, normalmente, desde a infância, responsável por um desconforto psíquico intenso, que o impele em direção a uma verdadeira mutilação do corpo. O conflito interior com o sexo biológico é tão forte e persistente, que a pessoa se submete a diversas cirurgias para readequação sexual, em procedimentos dolorosos, na ânsia de libertar-se do sexo que não a identifica psicologicamente, para “estar em paz com ela mesma”, no dizer de ELISABETH BADINTER41 e poder dar amplo curso ao desenvolvimento da sua personalidade. Não se desconhece que os transexuais encontram diversos problemas para viver em sociedade e são numerosas vezes desconsiderados e estigmatizados como degenerescência moral. São pessoas diferentes, sim, mas têm direito à igualdade de tratamento na ordem jurídica e social. Por isso, o reconhecimento do direito à identidade sexual e a possibilidade de redesignação do sexo, através da cirurgia, sem prejuízo de eventual consolidação normativa sobre o tema, já existente em alguns países, constituem caminho para o fortalecimento da sua auto-estima, da sua consideração social, a fim de que sejam tratados com respeito e dignidade a que fazem jus como seres humanos. Harmonizando os valores também registros científicos na China, na Tailândia, em Singapura e em países do Leste Europeu. 40 KONDER, Carlos Nelson. O Consentimento no Biodireito: Os casos dos transexuais e dos wannabes, in Revista Trimestral de Direito Civil, Ano 4, vol. 15, jul/set 2003, Editora Padma, Brasil. 41 ELISABETH BADINTER. XY De l´identité masculine. Éditions Odile Jacob, 1992. 26 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL constitucionalmente protegidos na ordem jurídica – dignidade, integridade psicofísica, igualdade, liberdade, tem-se que a cirurgia de redesignação de sexo é instrumento capaz de garantir ao transexual sua identidade pessoal como emanação de sua personalidade. De fato, a identidade do transexual deve ser reconhecida perante o Estado, permitindo-se a retificação do registro civil, independentemente da realização da cirurgia, a fim de que a pessoa possa gozar de seus direitos como homem ou mulher, com dignidade, sem discriminação de qualquer espécie. É certo que talvez a ordem jurídica não esteja suficientemente esclarecida sobre o transexualismo, porque também no meio médico existem dúvidas sobre o prognóstico da doença. Por isso, parece fundamental que se afastem as obscuridades sobre o tema, com apoio na multidisciplinariedade, a fim de que seja possível normatizar42 as questões relativas à transexualidade e os seus efeitos jurídicos, por razões de ordem pública. Apesar da complexidade do tema, que acaba por afastar um conceito estático de sexualidade, fundado em razões de segurança jurídica, haverá de privilegiar-se o respeito à pessoa e seu direito à identidade como emanação de sua personalidade e dignidade. Quando se trata de sua saúde física e psíquica, é o primado do ser humano, seu interesse e bem-estar, que devem 42 A Corte Européia de Direitos Humanos não tem acolhido a alegação de infração ao art. 8º (toute personne a droit au respect de sa vie privée et familiale, de son domicile et de sa correspondance) nos casos de recusa ao pleno reconhecimento dos efeitos jurídicos da redesignação sexual, sob o fundamento de que no trato da matéria deve-se dar larga margem de apreciação aos Estados. 27 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL prevalecer, sobre o interesse único da sociedade ou da ciência43.” (...). Pequeno acréscimo. Depois do que foi dito pela digna magistrada prolatora da sentença e pela ilustre procuradora de justiça, resta pouco a ser acrescido. Quero, contudo, apontar algumas particularidades deste caso. O presente processo traz a discussão um tema que não é novo, mas um tanto controvertido: a possibilidade de alteração de um nome (masculino) de uma pessoa para conformá-lo com a sua identidade (feminina). A alegação de ARTUR é de que o nome masculino não retrata a sua identidade social que é feminina. Diz que sua aparência é de mulher e que todas as pessoas de seu convívio lhe chamam de Cris. Relata seu constrangimento toda vez que tem que se identificar com o nome que lhe foi dado. Com efeito, a Corte freqüentemente tem apreciado pedidos que envolvem o reconhecimento de direitos a pessoas com orientações sexuais diversas da heterossexual. 43 Art. 2º da Convenção de Oviedo para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina – em vigor desde 1999. 28 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Não é demais lembrar os diversos casos já julgados pela Câmara em que se postulou o reconhecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, a alteração do nome e do sexo de pessoas transexuais com ou sem cirurgia de transgenitalização, adoção por homossexuais, e tantos outros. Como já dito, o tema não é novo, embora controvertido. Mas a peculiaridade que aqui destaco é a forma como o pedido veio articulado em relação às razões alegadas. A inicial ora diz que ARTUR é TRAVESTI (fl. 03), ora lhe identifica como TRANSEXUAL (fl. 04/05). Na inicial ARTUR pediu para passar a se chamar CRISLAINE. Ele não faz pedido para troca registral de sexo. Em seu primeiro parecer, o Ministério Público (fls. 19/23) tratou a parte autora como transexual. E aos sentenciar o juízo também entendeu que ARTUR é transexual (fls. 33/45). Por seguinte, o Ministério Público neste grau de jurisdição, embora fazendo a distinção entre travesti e transexual, entendeu que ARTUR é transexual e, por isso, poderia mudar o nome para conformá-lo com sua orientação sexual. 29 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL E aqui está o ponto. Artur é travesti ou transexual? E seu nome deve ser mudado (ou não) porque ele é travesti, ou porque ele é transexual? Travesti ou transexual. Com efeito, da leitura do parecer do Ministério Público se pode ver que diversas áreas da ciência tentam fazer distinções e categorizar as diferenças entre travesti e transexual pelos mais diversos critérios. Ora por critérios biológicos, ora por critérios sociais. Sobre o tema, vale a pena trazer um trecho do voto do Juiz Federal Roger Raupp 2001.71.00.026279-9/RS, Rios no julgamento da apelação cível nº onde é feita uma abordagem acerca da transexualidade sob os dois aspectos, o biomédico e o social. (...). A abordagem biomédica da transexualidade A partir de uma perspectiva biomédica, a transexualidade pode ser descrita como distúrbio de identidade sexual, no qual o indivíduo necessita alterar a designação sexual que lhe foi assinada, sob pena de graves conseqüências para sua vida, dentre as quais se destaca intenso sofrimento, chegando a gerar, muitas vezes, no caso dos homens, à auto-mutilação genital e, no 30 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL caso das mulheres, à auto-mutilação dos seios; em ambos, ao suicídio. Conforme explica o Prof. Edvaldo Souza Couto, "existem diferentes conceitos de transexualidade. Eles têm em comum a incompatibilidade da conformação genital com a identidade psicológica no mesmo indivíduo. O transexual é aquele que recusa totalmente o sexo que lhe foi atribuído civilmente. Identifica-se psicologicamente com o sexo oposto, embora biologicamente não seja portador de nenhuma anomalia. Geralmente possui genitália perfeita, interna e externa, de um único sexo mas a nível psicológico responde a estímulos de outro. Costumam considerar-se um 'erro da natureza'. Segundo a Associação Paulista de Medicina, transexual é o indivíduo com identidade psicossexual oposta a seus órgãos genitais externos, com o desejo compulsivo de mudança destes. Neste quadro, as principais características da transexualidade são: a) a convicção de pertencer a outro sexo; b) aversão pelos atributos genitais dados pela natureza e c) o interesse pela adequação dos genitais." (Transexualidade - o corpo em mutação, Salvador: Editora GGB, 1999, p. 26). Assim descrita, a transexualidade é considerada doença pela Organização Mundial de Saúde e está enquadrada no Código Internacional de Doenças. Ainda no campo biomédico, diversamente do que ocorria com as formas de intersexualidade fisiológica (caso do hermafroditismo) e com a homossexualidade (entendida como desordem psíquica - a chamada homossexualidade egodistônica ou como uma variação legítima da orientação sexual), a transexualidade ganha estatuto médico autônomo a partir dos anos 1950, hipótese onde a intervenção médica tem o efeito de reparar uma situação de desarmonia entre o corpo real e sua representação psicológica, donde a noção de cirurgia de redesignação sexual 31 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL (sobre a história da compreensão da transexualidade, Pierre-Henri Castel, 'Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do 'fenômeno transexual' (1910-1995)', Revista Brasileira de História, SP: ANPUH, vol. 21, nº 41, 2001). Nesta abordagem, é aos profissionais da medicina, portanto, que incumbe corrigir um "erro da natureza" ou, dito de outra forma, de tornar o corpo conforme a verdadeira personalidade (ver Denis Salas, Sujet de chair et sujet de droit: la justice face au transsexualisme, Paris: Presses Universitaires de France, 1994, p. 35-39). A abordagem biomédica é, historicamente, predominante neste campo. Todavia, como será visto logo a seguir, ela não é a única perspectiva existente; é imperiosa a consideração de uma perspectiva social (que diz respeito ao conteúdo e à forma das relações sociais, cujo desvendamento só se tornou posssível a partir da noção de gênero), sob pena de emprestar-se solução jurídica incorreta quanto à interpretação sistemática do direito e à força normativa da Constituição. Com efeito, a força normativa da Constituição, como método próprio de interpretação constitucional, exige do juiz, ao resolver uma questão de direitos fundamentais, adotar a solução que propicie a maior eficácia jurídica possível das normas constitucionais, conforme lição de Konrad Hesse (Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Porto Alegre: SAF, 1998). É, portanto, diante deste princípio de hermenêutica constitucional que se revela imprescindível a consideração de uma abordagem social da transexualidade, ao lado da biomédica, a fim de que se alcance uma solução jurídica constitucionalmente adequada para este litígio. A abordagem social da transexualidade A análise da controvérsia pode ser efetuada a partir de duas perspectivas, concorrentes e juridicamente não-conflitantes: via direito à saúde 32 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL e via direito à auto-determinação da identidade sexual, esta última informada pelos direitos fundamentais da liberdade, da igualdade e da proteção à dignidade humana. Do ponto de vista da teoria e da dogmática dos direitos fundamentais, a dianteira de uma ou outra perspectiva não é irrelevante. Ao contrário, a força normativa da Constituição e o conseqüente dever de adotar a compreensão que maior eficácia empreste aos direitos fundamentais requer a prevalência da interpretação que concretize o direito à saúde a partir da perspectiva da liberdade, da igualdade e da proteção da dignidade humana. Não se trata de hierarquizar direitos fundamentais, privilegiando direitos de liberdade negativa sobre direitos prestacionais positivos. O que está em jogo é como dar concretude à noção da indivisibilidade e da interdependência entre os vários direitos humanos fundamentais, de modo a alcançar a maior eficácia jurídica de todos os direitos fundamentais. O fenômeno da transexualidade é emblemático para se demonstrar esta dinâmica entre os vários direitos fundamentais. Isto porque, como acima relatei, a medicalização é a abordagem que predomina quando o assunto é transexualidade, donde a ênfase no debate sobre o direito à intervenção cirúrgica, instrumento apto a reparar o "erro da natureza". Na realidade, à esta perspectiva biomédica subjaz o chamado "binarismo de gênero", vale dizer, a concepção segundo a qual as identidades sexuais masculina e feminina correspondem a certos padrões prédeterminados, resultantes de uma série de elementos e características. Quem define esta combinação é, basicamente, a atuação combinada de duas ordens de saber e de crenças: o poder que detêm os profissionais da saúde (vistos como guardiões do saber biomédico) de definir "cientificamente" quem é 33 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL homem e quem é mulher e, a seu lado, a prevalência de determinadas percepções, socialmente dominantes, sobre o que é ser masculino e o que é ser feminino. Tanto é verdade, que, para a apropriação médica da transexualidade como algo reservado à atuação e ao saber médicos, foi necessário separar os "verdadeiros" transexuais (mediante a enumeração de sintomas determinados, acima referidos) dos "falsos" transexuais. (...) Por aqui já se vê que não há ainda um conceito uno entre as diversas áreas das ciências que estudam o tema. Mas há mais. Segundo Elizabeth Zambrano: (...). O senso comum considera que uma pessoa, ao ser classificada como homem ou mulher (sexo biológico), terá, naturalmente, o sentimento e o comportamento masculino ou feminino (identidade/papel de gênero) e o seu desejo sexual será dirigido para pessoas do sexo e/ou gênero diferente do seu (orientação heterossexual). Esses três elementos - sexo, gênero e orientação - são pensados, em nossa cultura, como estando sempre combinados de uma mesma maneira - homem masculino heterossexual ou mulher feminina heterossexual. É possível, entretanto, inúmeras combinações entre eles. Uma delas é a homossexualidade, termo referente a pessoas que praticam sexo com pessoas do mesmo sexo. Essas pessoas têm orientação sexual diferente da esperada para o seu sexo e gênero, mas isso, não necessariamente, indica uma mudança de 'identidade de gênero'. Elas não se percebem nem são percebidas pelos outros como de um 34 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL gênero (masculino ou feminino) diferente do seu sexo (homem ou mulher), mesmo com comportamentos considerados ambíguos (homem afeminado ou mulher masculinizada). Já homens que fazem uso de roupas e modificações corporais para se parecer com uma mulher, sem buscar uma troca de sexo cirúrgica são considerados travestis. Travestis, aceitando seu corpo biológico de homem (embora modificado, às vezes, pelo uso de hormônios femininos e/ou implantes de silicone) e se percebendo como mulheres, reivindicam a manutenção dessa ambigüidade corporal, considerando-se, simultaneamente, homens e mulheres; ou se vêem 'entre os dois sexos' nem homens, nem mulheres. Todos, porém, se percebem como tendo uma identidade de gênero feminina. Outra combinação possível diz respeito aos transexuais, pessoas que afirmam ser de um sexo diferente do seu sexo corporal e fazem demanda de 'mudança de sexo' dirigida ao sistema médico e judiciário. É muito comum homossexuais, travestis e transexuais serem percebidos como fazendo parte de um mesmo grupo, numa confusão entre a orientação sexual (homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade) e as 'identidades de gênero' (homens masculinos, mulheres femininas, travestis, transexuais femininos e masculinos, entre outras). Todos os indivíduos que reivindicam um gênero que não apoiado no seu sexo podem ser chamados de 'transgênero'. Estariam incluídos aí, além de transexuais que realizaram cirurgia de troca de sexo, travestis que reconhecem seu sexo biológico, mas têm o seu gênero identificado como feminino; travestis que dizem pertencer a ambos os sexos/gêneros e transexuais masculinos e femininos que se percebem como homens ou mulheres mas não querem fazer cirurgia. A classificação de suas práticas sexuais como homo ou heterossexuais estará na 35 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL dependência da categoria que estiver sendo considerada pelo indivíduo como a definidora de sua identidade (o sexo ou o gênero). (in Lima, Antônio Carlos de Souza (org.), Antropologia e Direito: Bases Para um Diálogo Interdisciplinar; Brasília, Associação Brasileira de Antropologia, 2007, no prelo). Como se vê, as possibilidades são diversas. As combinações entre gênero e sexualidade abrem um amplo espaço para discutir conceitos e classificações. Por isso, estou em que o real fundamento, o motivo pelo qual efetivamente se deve atender ao pedido de ARTUR não está voltado ao reconhecimento de sua condição de transexual ou de travesti. Com efeito, não se pode perder de vista que o papel da ciência do direito nesses casos não é o de delinear tais conceitos. Ao direito não cumpre definir o que é um transexual ou um travesti. Tais categorias fazem parte sim da esfera de atuação das demais ciências sociais, como a sociologia e a antropologia. Aliás, em pesquisas que fiz junto a trabalhos realizados nessas áreas, ficou claro o quão avançados encontram-se tais ramos das ciências sociais no que diz com o presente tema. Nesse contexto, para que se possa atender ao pedido de ARTUR deve-se olhar não para critérios diferenciadores, mas para a aqueles que igualam a todos e permitem o pleno exercício da sua condição de 36 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL pessoa humana. E esses critérios estão no reconhecimento do direito à liberdade e à dignidade humanas. Liberdade, igualdade e dignidade e a alteração do nome. O cerne do princípio da igualdade está na proibição do tratamento discriminatório. Ou seja, são vedadas as que visem a prejudicar, restringir ou mesmo acabar com o exercício de direitos e liberdades fundamentais, em razão de sexo, raça, etnia, cor, idade, origem, religião. É inegável que, no exercício da sua liberdade, ARTUR tem o direito de buscar a qualidade de vida através da satisfação dos seus anseios, concretizando assim o seu direito à liberdade e à dignidade. E aqui a satisfação de ARTUR está representada na alteração do seu nome. Ele quer sentir-se bem e conformado com a sua condição social expressada através do nome e tudo o que ele representa coletiva e individualmente. Não há negar que a identidade social e psicológica é base para essa busca. A insatisfação com a própria identidade, representada pelo nome, o descompasso entre o que se é de fato e o que vem representado através do nome, impede a pessoa de viver com dignidade e fomenta um sentimento de total inadaptação. 37 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL É por isso que nessa “perspectiva jusfundamental, o que se tem que evitar é, para o fim de superar a disforia sexual, afirmar que só é masculino e só é feminino quem atender a uma determinada, rígida, fixa e excludente combinação de características, impostas pelas convicções sociais da maioria ou pela pretensão de um saber médico neutro e objetivo. Tal percepção, intransigente e inflexível, gera violações de direitos fundamentais e é fruto do fechar dos olhos à realidade: a sexualidade e a vida humana não se deixam enquadrar em padrões historicamente definidos por profissionais da saúde ou por representantes da opinião da maioria. A vida humana e suas manifestações são um "continuum", que não se deixam aprisionar em polaridades opostas e compartimentos estanques. No campo da sexualidade, a demonstração mais famosa desta realidade, com enorme impacto científico, social e cultural, veio com o clássico Sexual Behavior in the Human Male, do biólogo Alfred Kinsey, publicado em 1948 e baseado em exaustivo estudo estatístico.” (Roger Raupp Rios, apelação cível nº 2001.71.00.026279-9/RS). Logo, desimporta aqui a apuração da verdade sobre a sexualidade ou o gênero ao qual ARTUR pertence. Não é necessário categorizá-lo como travesti ou transexual para reconhecer a sua condição de ser humano e digno. É inútil, e até indigna, a categorização das pessoas pelo sexo, como condição para que se possa atribuir-lhe uma conformação social entre o nome e sua aparência. As ações, modo de vida, e a própria opção pessoal de cada um são os motivos suficientes para determinar a verdadeira identidade e não podem servir para discriminar. 38 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Novamente aqui convém trazer um excerto do voto na apelação supracitada da lavra do Juiz Federal Roger Raupp Rios, onde ele diz que adotando-se o binarismo sexual, (...) estar-se-á reforçando a rigidez e a determinação por terceiros (os detentores do saber médico e as crenças majoritárias sobre o que ser verdadeiramente feminino e masculino) acerca da identidade sexual e de gênero que cada indivíduo experimenta e desenvolve em sua vida; o que se estará enfraquecendo, quando não compremetendo mortalmente, é o conteúdo jurídico dos direitos de liberdade, de igualdade, de não-discriminação e do respeito à dignidade humana. Neste contexto, onde a autonomia e a igualdade, que são os valores básicos do constitucionalismo democrático, serão eclipsadas pelo poder alheio da medicalização e de opiniões socialmente dominantes, só restará uma alternativa aos seres humanos: deixar-se enquadrar no processo classificatório imposto por estas forças, onde o ser homem e o ser mulher, o ser masculino e o ser feminino, dependerão sempre do atestado alheio, que exige e impõe o enquadramento segundo um processo classificatório heterônomo, onde um conjunto de características é avaliado, abrangendo fatores genético, gonadal, endócrino, genital e psíquico. (...) De fato, para os direitos das mulheres, uma solução orientada por tal binarismo rígido reforça dinâmicas históricas de subordinação feminina, reproduzindo situações e ideologias onde às mulheres são reservados o domínio do lar e um papel secundário na vida pública, social e 39 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL econômica. Isto porque o reforço do binarismo de gênero tende a compactuar com diferencialismos sexuais que diminuem o espaço de construção de novas relações entre homens e mulheres, capazes de romper com privilégios e dominação masculinos. Num dos exemplos mais gritantes, repercussões jurídicas deste padrão chegaram, até bem pouco tempo atrás, a alimentar argumentos jurídicos que justificavam o estupro doméstico de esposas por maridos a pretexto de cumprimento de deveres conjugais, o assassinato de esposas por maridos em nome da legítima defesa da honra e a não caracterização do estupro como crime hediondo quando não houvesse violência ou grave ameaça, como se fosse possível estuprar uma mulher sem violência grave. Com relação à homossexualidade, uma perspectiva que reforce o binarismo de gênero é devastadora. De fato, no horizonte desta dinâmica binária, a atração ou a conduta sexuais de alguém em direção a indivíduo do mesmo sexo são consideradas anormais e intoleráveis. Tanto que a proposta daqueles a quem mais incomoda e os quais menos toleram a diversidade sexual (que é o oposto do binarismo) é, pura e simplesmente, a eliminação da homossexualidade mediante a sua cura, através da inclusão de tratamentos médicos ou de rituais e práticas religiosas comunitárias, a serem inclusive disponibilizados ou custeados pelo SUS e por outros órgãos do Poder Público, quando não a criminalização. Para os direitos das travestis, o reforço do binarismo de gênero é ainda mais violento. As travestis, encarnando quiçá a experiência mais radical da autonomia individual diante das convenções sociais sobre o que é padronizado como "natural" quanto ao sexo e sobre o que é tolerável pelos padrões tradicionais e dominantes de convívio entre homens e mulheres, ousam inventar um novo modo de ser em termos de 40 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL gênero, transitando verdadeiramente nas "fronteiras do gênero" (para usar a expressão de Maria Luiza Heilborn, 'Gênero e Sexo dos Travestis', Sexualidade, Gênero e Sociedade, Rio de Janeiro: IMS-UERJ, nº 7-8). Trata-se de uma construção de si peculiar e original, onde, do ponto de vista do gênero, os indivíduos travestis se constroem pelo feminino. Nas palavras de Marcos Benedetti, "o feminino travesti", onde, "ao mesmo tempo em que produzem meticulosamente traços e formas femininas no corpo, estão construindo e recriando seus valores de gênero, tanto no que concerne ao feminino como ao masculino. A ingestão de hormônios, as aplicações de silicone, as roupas e os acessórios, o acuendar a neca, as depilações são momentos de um processo que é maior e que tem por resultado a própria travesti e o universo que ela cria e habita."(Toda Feita - o corpo e o gênero das travestis, Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 131). Como alertei logo acima, o reforço do binarismo de gênero em face das travestis incentiva todo o tipo de violência contra estes indivíduos: desde a desqualificação moral mais intensa até o freqüente assassinato, as travestis são vítimas número um da violência discriminatória. (...) Com efeito, embora o nome apresente-se como um elemento de diferenciação do indivíduo perante a coletividade, o seu maior atributo não está no coletivo, mas no individual. É através do nome que todo e qualquer indivíduo se identifica, se vê como um ser dotado das características que aquele signo representa para si. 41 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL É claro que a forma como o indivíduo é visto socialmente também importa para a conformação do nome. Mas a importância dessa visão social e coletiva do indivíduo volta-se muito mais para o próprio indivíduo em respeito à sua dignidade, em atenção à forma como esse indivíduo sente-se ao ser visto dessa ou daquela forma pelo coletivo. Esta certo que ARTUR não só apresenta-se com características físicas e psíquicas femininas, como também deixa certo que o nome que melhor lhe identifica e que satisfaz os seus anseios é o nome com tais características. Basta olhar as fotos de fls. 12/15 e ser verá que ARTUR efetivamente se apresenta como uma mulher. Dito isso, desimporta se, ao fim e ao cabo, ARTUR é um transexual ou um travesti. Desimporta se ele fez ou fará cirurgia de transgenitalização, se sua orientação sexual é pelo mesmo sexo ou pelo sexo oposto, por homem ou por mulher. Todos esses fatores não modificam a forma como ARTUR se vê e é visto por todos. Como uma mulher. Tal como dito por Berenice Bento “Os ‘normais’ negam-se a reconhecer a presença da margem no centro como elemento estruturante e indispensável. Daí eliminá-la obsessivamente pelos insultos, leis, castigos, no assassinato ritualizado de uma transexual que precisa morrer cem vezes na ponta afiada de uma faca que se nega a parar mesmo diante do corpo moribundo. Quem estava sendo morto? A margem? Não seria o medo de o centro admitir que ela (a transexual/a margem) me habita e me apavora? Antes de matá-la. Antes de agir em nome da norma, da lei e fazer a 42 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL assepsia que garantirá o bom funcionamento e regulação das normas. Outra solução ‘mais eficaz’ é confinar os ‘seres abjetos’ aos compêndios médicos e trazê-los à vida humana por uma aguilhada que marca um código abrasado a cada relatório médico que diagnostica um ‘transtorno’.” (BENTO, Berenice. O que é transexualidade. p. 38-39. Ed. Brasiliense.) Enfim, de qualquer forma que se aborde o assunto, a solução não pode ser outra que não o atendimento do pedido da autora. PREQUESTIONAMENTO. O apelante prequestionou o artigo 109 e §1º da lei 6.015/73; artigo 83, I do Código de Processo Civil; artigo 1º, II, III e artigo 102, III, a, da Constituição da República. Mas a presente decisão não negou vigência aos citados dispositivos legais, bem como aos demais artigos referidos pelo recorrente em suas razões recursais. ANTE O EXPOSTO, nego provimento ao apelo. DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA (REVISOR) - De acordo. DES. JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE - De acordo. DES. RUI PORTANOVA - Presidente - Apelação Cível nº 70022504849, Comarca de Caxias do Sul: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." 43 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA RP Nº 70022504849 2007/CÍVEL Julgador(a) de 1º Grau: MARIA ALINE FONSECA BRUTTOMESSO 44