TRANSEXUAIS: Uma discussão jurídica

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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
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Nº 70022504849
2007/CÍVEL
APELAÇÃO. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.
TRANSEXUALISMO.TRAVESTISMO. ALTERAÇÃO
DE
PRENOME
INDEPENDENTEMENTE
DA
REALIZAÇÃO
DE
CIRURGIA
DE
TRANSGENITALIZAÇÃO. DIREITO À IDENTIDADE
PESSOAL E À DIGNIDADE. CONFIRMAÇÃO DE
SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU. ACOLHIMENTO
DE PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE
SEGUNDO GRAU.
A demonstração de que as características
físicas e psíquicas do indivíduo, que se apresenta
como mulher, não estão em conformidade com as
características que o seu nome masculino
representa coletiva e individualmente são
suficientes para determinar a sua alteração.
A distinção entre transexualidade e
travestismo não é requisito para a efetivação do
direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo
sem a realização da cirurgia de transgenitalização,
a retificação do nome da requerente para
conformá-lo com a sua identidade social.
Pronta indicação de dispositivos legais e
constitucionais que visa evitar embargo de
declaração com objetivo de prequestionamento.
REJEITADAS AS PRELIMINARES,
PROVIMENTO. UNÂNIME.
APELAÇÃO CÍVEL
NEGARAM
OITAVA CÂMARA CÍVEL
Nº 70022504849
COMARCA DE CAXIAS DO SUL
MINISTERIO PUBLICO
APELANTE
ARTUR ROBERTO CUNHA SANTOS
APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
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Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara
Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento
ao recurso.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os
eminentes Senhores DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA E DES. JOSÉ
ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE.
Porto Alegre, 16 de abril de 2009.
DES. RUI PORTANOVA,
Relator.
[email protected]
RELATÓRIO
DES. RUI PORTANOVA (RELATOR)
Ação de retificação de registro civil proposta por ARTUR.
Na inicial o autor postulou a alteração do seu nome de ARTUR
ROBERTO CUNHA SANTOS para CRISLAINE CUNHA SANTOS.
A sentença julgou procedente o pedido determinando a
alteração do nome do autor para CRISLAINE CUNHA SANTOS.
Apelou o MINISTÉRIO PÚBLICO pedindo a improcedência do
pedido inicial. Prequestionou o artigo 109 e §1º da lei 6.015/73; e o artigo 83,
I do Código de Processo Civil.
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Vieram contra-razões.
O Ministério Público, neste grau de jurisdição manifestou-se,
preliminarmente, pela nulidade do processo pela ausência de vista ao
agente ministerial que atua junto ao primeiro grau. No mérito manifestou-se
pelo improvimento do recurso.
É o relatório.
VOTOS
DES. RUI PORTANOVA (RELATOR)
A substituição de um Código Civil
por outro não se reduz à troca de
uma lei por outra, porque significa,
antes de mais nada, o advento de um
novo paradigma cultural, tomada a
palavra paradigma no sentido que lhe
dá Thomas Kuhn, como um conjunto
de
idéias-mestras
que
torna
necessário proceder à revisão de
muitas teses havidas como assentes,
quer para substituí-las, quer para
retificá-las.
(Prefácio
ao
livro
Diretrizes Teóricas do Novo Código
Civil Brasileiro de autoria de Judith
Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos
Branco. Ed.Saraiva).
PRELIMINAR:
O Ministério Público apelante alegou que a petição inicial não
foi instruída com documentos comprobatórios dos fatos alegados, tampouco
arrolou testemunhas, razões pelas quais não poderia ter sido recebida.
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Disse ainda que a sentença foi prolatada após a juntada de documentos pela
parte autora, sem que fosse dada vista ao apelante.
Neste grau de jurisdição Ministério Público manifestou-se pelo
acolhimento das preliminares, para declarar a nulidade do feito.
Vale a pena começar com o que disse o Ministério Público que
atua junto a este Tribunal de Justiça:
(...).
Com efeito, além de a inicial não estar instruída
com os documentos necessários à propositura da
ação (imprescindível atestado médico indicando
diagnóstico de transexualismo), o feito foi
encerrado abruptamente.
Antes da prolação da sentença, não teve o
Ministério Público vista dos documentos das fls.
27-31, que fundamentaram o deferimento do
pedido, nem oportunidade de manifestar-se sobre
o mérito, após os esclarecimentos da parte e a
juntada de novos subsídios de prova.
Com efeito, na condição de fiscal da lei, cumpre
ao Ministério Público ter vista dos autos depois da
parte, justamente para requerer os elementos de
convicção que julgar necessários, a teor do art.
83, I, do CPC. O encerramento apressado da
instrução, sem a realização dos trâmites legais,
acarretou efetivo prejuízo ao Ministério Público,
impedido de analisar a prova produzida e apontar
as razões de fato e de direito relativas à questão
de fundo.
(...)
De pronto quero dizer que não vejo qualquer nulidade
processual que implique na anulação deste processo.
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A primeira preliminar suscitada é de ausência de documentos
juntados com a inicial.
Mas compulsando os autos verifiquei que com a inicial foram
juntados fotografias e outros documentos suficientes a dar início ao
processo, bem como embasar o pedido da parte autora.
Não se pode perder de vista a instrução processual que tem
justamente por objetivo a produção das provas dos fatos alegados.
Logo, não se vá querer que a parte autora junte com a inicial os
documentos que ela mesma pretende produzir na instrução processual e
que servirão para demonstrar a veracidade do que vem alegado desde o
início.
Com efeito, não estamos diante de uma ação onde a prova
deve vir pré-constituída.
Tanto é assim que com a instrução do feito outras provas foram
sendo juntadas e o juízo pode prolatar a sua sentença.
Ao depois, o próprio Ministério Público, ora apelante, em sua
primeira manifestação, logo após a inicial e seus documentos (fls. 02/17), e
em atenção ao primeiro despacho do juízo (fl. 18), ofertou parecer de 05
laudas (fls. 19/23), onde discorreu extensamente sobre o mérito da causa e
se manifestou inclusive pela “denegação do pedido” (fl. 23).
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E ainda, neste mesmo parecer (fl. 19), o Ministério Público
disse que “Não se vislumbra necessidade/possibilidade de dilação
probatória, com depoimento do requerente e de testemunhas, como pedido
na fl. 08, porque se presume, pelo conhecimento geral, que o requerente
ainda possa, de fato, mesmo hodiernamente, vir a enfrentar alguma situação
de embaraço...”
E por fim, não houve neste momento qualquer manifestação do
apelante pela nulidade alegada. A questão somente foi levantada
posteriormente.
Ora, esse parecer é a evidência de que na ótica do próprio
apelante, naquele momento processual, os documentos até ali juntados
eram suficientes não só para que o processo fosse iniciado, mas também
julgado de plano.
Fosse outro o entendimento, a manifestação ministerial não
poderia ser pelo julgamento de mérito com a improcedência do pedido,
dispensando-se outras provas.
Já a segunda preliminar diz com a ausência de vista do
Ministério Público dos documentos que foram juntados antes da sentença.
E de fato, é verdade que a sentença foi prolatada após a
juntada de novos documentos sem que fosse dada vista ao apelante de tais
documentos.
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Mas como se sabe, não há falar em nulidade processual sem a
efetiva comprovação do prejuízo.
Aqui o apelante disse que sofreu “prejuízo manifesto para a
atuação institucional o que foi processado a partir da fl. 26, porque foi
ordenada e produzida prova unilateral, destinada a contrariar a impugnação
ministerial anterior” (fl. 48).
Mas em momento algum o apelante impugnou aquelas provas
produzidas pela parte autora.
O alegado prejuízo é meramente formal e não traz qualquer
prejuízo efetivo para as partes ou para a prestação jurisdicional.
Ademais, em face ao princípio constitucional da unicidade do
Ministério Público, a manifestação ministerial no segundo grau supriu a
ausência de manifestação junto ao primeiro grau.
E embora o Ministério Público neste grau de jurisdição tenha se
manifestado pelo acolhimento da preliminar, no mérito, foi pelo improvimento
do recurso. O que demonstra que o entendimento do órgão ministerial é pela
manutenção da sentença no que diz com a sua substância.
De resto, tanto aqui no segundo grau, quanto no primeiro, o
Ministério Público atuou como fiscal da lei, sendo desnecessária nova
manifestação.
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Por isso, rejeito as preliminares.
MÉRITO.
A sentença.
A sentença determinou a retificação do nome.
Ao sentenciar, a digna julgadora de primeiro grau disse:
(...).
Como antes já referido, o autor ingressou com
ação de retificação de registro civil a fim de
adequar o registro de nascimento ao sexo
aparente adotado pelo mesmo.
(...).
O caso concreto é de transexualismo e esta
condição é uma alteração da psique a qual é
caracterizada pela inconformidade do sexo
biológico ser um e o sexo psicológico outro. Isto
acarreta ao indivíduo transexual um desconforto
perante a sociedade, visto que, muitas vezes a
dor e o sofrimento são tão grandes, que sentemse presos a um corpo que não condiz com a sua
realidade e seu estado emocional.
(...).
Nos casos que se referem a transexuais o Poder
Judiciário, especialmente no E. TJ/RS, vem
concedendo autorização para a troca do prenome
no assento de nascimento nas situações em que
a pessoa se submete à cirurgia de mudança de
sexo dentro dos critérios exigidos pelo Conselho
Federal de Medicina, ou seja, os indivíduos que
se sentem psiquicamente em desacordo com o
sexo biológico teriam, necessariamente, de fazer
a cirurgia para obter o direito à troca do nome e
ou documentação.
(...).
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Todavia, se permitirmos estas cirurgias e não a
mudança de documentos estaríamos cometendo
o absurdo de permitir uma eventual “mutilação”
com a justificativa de melhorar a vida dos
transexuais e, ao mesmo tempo, impedindo a
posse da documentação condizente com seu
aspecto físico, essencial para que a sua vida,
principalmente em sociedade, efetivamente
melhore.
(...).
ISSO POSTO, julgo PROCEDENTE o pedido
contido na AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE
REGISTRO CIVIL ajuizada por Artur e DEFIRO a
retificação conforme postulado na inicial,
passando o autor a chamar-se CRISLAINE
CUNHA SANTOS, aguardando a definição futura
com relação à cirurgia de redesignação para
alteração do sexo constante no registro,
mormente porque não houve pedido expresso na
inicial para esta retificação.”
O parecer do Ministério Público de segundo grau.
O Ministério Público neste Grau de jurisdição é pela
confirmação da sentença.
Aqui a Ilustre Procuradora de Justiça Maria Ignez Franco
Santos, abordou o tema com tamanha riqueza que é necessário transcrevêlo:
(...).
De início, para evitar imprecisões, impende referir
a distinção entre travestismo, homossexualismo e
transexualismo, que se tratam de realidades
diferentes. No primeiro, o indivíduo manifesta
prazer de cunho sexual em vestir-se com as
roupas do sexo oposto ao seu, não tendo
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necessariamente atração sexual pelo sexo
diverso. Já a expressão homossexualismo é
utilizada para designar o interesse e a atração
sexual por indivíduos do mesmo sexo. Não
constituiria uma patologia, mas um “estilo de
comportamento”. Por último, o transexualismo é
um transtorno de identidade, catalogado como
doença.
Na espécie, desde que seguro se tratar o caso
dos autos de transexualismo, à vista de
diagnóstico médico1, não cabe prover o apelo, a
despeito das respeitáveis ponderações do
apelante.
Tivemos oportunidade de examinar a matéria em
trabalho escrito2, que se transcreve parcialmente,
no que pertine, em homenagem ao debate:
Na atual fase do conhecimento científico, a
identificação do sexo do ser humano é irreversível
e ocorre no momento da concepção, dependendo
do número dos cromossomos em cada célula.
Sabe-se que todo o ser humano recebe um
cromossoma X, da mãe. Quem herde um
cromossoma X do pai, é mulher (XX), quem herde
um Y, é homem (XY)3. Coincidem também
componentes
de
ordem
hormonal
para
caracterização do sexo, predominando o
1
Classificação Internacional de Doenças – 10ª versão – CID 10, da
Organização Mundial de Saúde (1993) – Capítulo V – Transtornos Mentais e
do Comportamento, inclui nos chamados Transtornos de Identidade Sexual
o transsexualismo – F64.0.
2
A identidade pessoal e a cirurgia de redesignação de sexo, in Estudos
sobre o Direito das Pessoas, Coord. Diogo Leite de Campos, Editora
Almedina, Coimbra, Maio de 2007, p. 159-178.
3
RIDLEY, Matt – Genome/The autobiography of a species in 23 chapters,
2000. Tradução portuguesa da versão de 1999, de CARLA REGO, Genoma,
2001. Cada célula humana contém 46 cromossomas; 22 pares de
autossomas que se encontram tanto no homem como na mulher e um par de
gonossomas, cromossomas que se chamam sexuais, porque determinam o
sexo.
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estrogênio (hormônio feminino) ou a testosterona
(hormônio masculino).
Afora a herança genética, em função da
obrigação jurídica de declarar o sexo no assento
de nascimento, providência que em geral ocorre
nos primeiros dias de vida do ser humano, tem-se
como parâmetros os seus órgãos sexuais
externos. Apesar dessa verificação de ordem
natural no momento do nascimento, constata-se
que algumas pessoas sofrem de profunda,
persistente e autêntica insatisfação psíquica em
razão de seu sexo anatômico, assumindo um
sexo psicológico oposto. Há uma clara
contradição entre o sexo genético e genital, e o
sexo cerebral ou social. É o que caracteriza o
transexual4.
A partir da constatação da existência de
problemas de identidade sexual no ser humano5 e
do eventual desejo de redesignação de sexo,
surgem questões de ordem ética, médica e
sóciojurídicas a enfrentar.
Diz-se da pessoa que sofre de transexualismo. Constituição psicológica
particular, muitas vezes confundida com o travestismo e a
homossexualidade, caracterizado pelo facto de um indivíduo ter o
sentimento de pertencer ao sexo oposto ao seu e pelo desejo intenso,
muitas vezes obcecante, de mudar de sexo – definição constante do
Dicionário Médico – L. MANUILA, A MANUILA, P. LEWALLE e M.
NICOULIN, 3ª edição, Climepsi Editores, março 2004, p. 598.
5 Segundo RUSSEL W REID (psychiatre, Hillingdon Hospital, Londres), in
Aspects Psychiatriques et Psychologiques du Transsexualisme, atualmente,
nem a psicologia/psiquiatria nem a biologia podem fornecer uma explicação
conclusiva ou mesmo satisfatória a respeito da etiologia dos problemas de
identidade sexual. Existe na história dos transexuais fatores biológicos não
conhecidos que os tornam diferentes dos não-transexuais. Até o momento,
alguns fatores psicológicos implicados no estabelecimento pós-natal da
identidade sexual e de seus problemas de identidade foram identificados,
embora não seja possível estabelecer até que ponto contribuem para o
desenvolvimento do transexualismo.
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A identificação sexual é formada por variáveis, a
cromossômica, a endócrina - gonadal6 ou
extragonadal7, a hormonal, a morfológica externa
e a morfológica interna, a que se devem
acrescentar elementos sociopsicológicos do
“gênero”, segundo a terminologia inglesa, que
significa o sexo psicossocial. Há quem diga,
conforme SESSAREGO8 que “o sistema existente
(como método de divisão das pessoas em um e
outro
sexo)
produz
desafortunadas
conseqüências e deve ser abandonado”.
De fato, amplia-se o debate acerca da
caracterização científica do sexo, sendo certo que
“existe
uma
etapa
de
desenvolvimento,
estabilidade e constância sexual não coincidentes
com os primeiros dias de vida do ser humano”,
consoante explicita REID9.
Para BORIS
CYRULNIK10, “os animais ensinam-nos que o
sexo não existe, o que existe é o sistema sexual”.
Acrescenta, ainda, que “o cérebro, as emoções,
os
comportamentos
sexualizam-se
progressivamente durante a maturação” . Ensina
TEREZA VIEIRA11, ainda, que “o sexo não é mais
considerado tão-somente como um dado
fisiológico
(e,
portanto,
geneticamente
determinado) e, por isso, imutável, a partir de
contribuição das áreas de conhecimento da
psicologia, da biologia, da antropologia, entre
outros”.
6
Identificado nas glândulas sexuais, testículos, para o homem ou, ovários,
para a mulher.
7
É constituído por outras glândulas, a tiróide e a epífise, cuja função é
atribuir à pessoa outros traços de masculinidade ou feminilidade.
8
SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho A La Identidad Personal.
Editorial Astrea, Buenos Aires, 1992.
9 Ver a respeito http://pierrehenri.castel.fr e Russel W. Reid. ob. cit. p. 3
10 BORIS CYRULNIK, Memória de Macaco e Palavras de Homem, Instituto
Piaget, Lisboa.
11
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e Direito.
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Acerca
dessa
identificação,
STEFANO
12
RODOTÀ
explica que a definição e a
estruturação definitiva dos caracteres sexuais da
pessoa demandam um tempo mais longo do que
o exigido para a declaração do sexo de recémnascido nos assentos públicos. Também afirma
que não se deve confiar na nitidez e na certeza do
sexo genético. Acrescenta que o estado das
pessoas resultante dos registros públicos é uma
descrição do papel social ligado a um elemento
biológico presumido imutável. Entretanto, esta
presunção ou ficção jurídica não pode mais ser
considerada hoje com a mesma certeza que no
passado.
Na tutela geral da personalidade, a lei protege os
indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou
ameaça de ofensa à sua personalidade física ou
moral. Esclarece JORGE MIRANDA13 que “os
direitos de personalidade são posições jurídicas
fundamentais do homem que ele tem pelo simples
facto de nascer e viver; são aspectos imediatos
da exigência de integração do homem; são
condições essenciais ao seu ser e devir; revelam
o conteúdo necessário da personalidade; são
emanações da personalidade humana em si; são
direitos de exigir de outrem o respeito da própria
personalidade; têm por objeto, não algo de
exterior ao sujeito, mas modos de ser físicos e
morais da pessoa ou de bens da personalidade
física, moral e jurídica ou manifestações
parcelares da personalidade humana”.
Também LEITE DE CAMPOS14 é enfático ao
afirmar que “os direitos da personalidade são
12
STEFANO RODOTÀ. Présentation Générale des Problèmes Liés au
Transsexualismo, in Editions du Conseil de l´Europe, 1995, imprimé au Pays
Bas.
13 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional – Tomo IV – Direitos
Fundamentais, 3ª edição, Coimbra Editora, p. 58-9.
14 DIOGO LEITE DE CAMPOS, Nós – Estudos sobre os Direitos das
Pessoas, Editora Almedina, março, 2004.
13
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direitos naturais. São expressão e tutela jurídicas
da estrutura e das funções da pessoa, do seu ser
e da sua maneira-de-ser”. E, adverte, com
precisão: “ O Direito tem um fundamento
axiológico (que é a sua justificação, e sem o qual
se transforma em instrumento de opressão) que é
imposto pela pessoa humana – o direito é produto
do homem e feito para o homem”.
O direito ao nome e a dignidade da pessoa
humana, consagrada como direito fundamental da
ordem jurídica constitucional, distingue a pessoa
na sua vida em sociedade, tutelando o seu nome,
a sua filiação, o seu sexo, a sua nacionalidade, o
momento de seu nascimento. Aferida pela
singularidade, indivisibilidade e irrepetibilidade, no
dizer de PAULO OTERO15, é a marca distintiva da
pessoa, que a individualiza, permitindo a
construção da sua personalidade. É a sua
maneira de ser, como se realiza na comunidade,
com seus atributos e defeitos, com suas
características e aspirações, com sua bagagem
cultural. É “a identidade consigo próprio”, referida
por JOHAN GALTUNG16, coerência interna, o
direito de a pessoa ser ela mesma.
Atribui-se a DE CUPIS17 uma das primeiras
representações do direito à identidade pessoal.
Segundo o jurista, a identidade pessoal “é ser
único, representado por seus próprios caracteres
e acções, constituindo a verdade da pessoa, não
podendo ser destruída, pois a verdade não pode
ser eliminada. Ser único, significa sê-lo também
no conhecimento e na opinião dos outros”.
Representa a sua imagem social, bem jurídico
que mereceria a tutela do direito. Trata-se do
15 PAULO
OTERO, in Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser
Humano; Um perfil constitucional da bioética. Livraria Almedina, Coimbra,
Setembro/1999.
16
JOHAN GALTUNG, in Direitos Humanos – Uma Nova Perspectiva,
Instituto Piaget, Lisboa, 1994.
17
DE CUPIS, Adriano. Il diritto della personalità, Milano, Giuffrè, 1982.
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interesse da pessoa em afirmar a sua própria
individualidade, de resultar, no âmbito social,
aquilo que realmente é, com suas qualidades e
acções. Para outro tratadista, como MESSINEO18,
a pessoa tem o direito de “não ser confundida
com os outros”, limitando a identidade pessoal ao
direito ao nome. O direito à identidade reclama,
para DOGLIOTTI19, uma integral representação
da personalidade individual em todos os seus
aspectos e implicações, em suas qualidades e
atributos, enquanto TOMMASINI20 considera que
a identidade da pessoa deve ser apreciada
dinamicamente em relação às modificações
sofridas segundo os diversos comportamentos
assumidos. O que se tutela juridicamente não
seria uma aparente identidade, senão a projeção
externa da personalidade sempre que reflita a
verdade dos valores e acções próprios da pessoa.
Na atualidade, segundo SESSAREGO21, a
doutrina superou a antiga noção estática de
identidade pessoal, entendendo que o nome é
apenas um dado da identificação da pessoa, a
que se unem outros como a filiação, o sexo, o
lugar e a data do nascimento. Assinala a noção
dinâmica e atemporal da identidade “por ser fluida
como a pessoa. Não é algo acabado e finito,
senão que se constrói no transcurso do tempo,
com o tempo. Se enriquece e se empobrece, se
modifica”. Acrescenta: “o direito à identidade
supõe a exigência de respeito da própria
biografia, com as suas luzes e as suas sombras,
com o que exalta e com o que degrada”. E,
arremata: em face do direito da pessoa “ergue-se
o direito dos demais respeitarem a verdade que
cada um projeta, de modo objetivo, na sua vida de
relação.
18
MESSINEO, Francesco, Manual de derecho civil y comercial, t. II.
Citado por Sessarego.
20
Citado por Sessarego.
21
SESSAREGO, Ob. Cit. p. 4.
19
15
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(...) Não pode perder-se de vista que a identidade
é a projeção social de uma verdade pessoal, de
uma maneira individual de ser humano. É esta
verdade que configura o interesse existencial
digno de tutela jurídica”.
Com base em estudos científicos atuais no campo
da sexualidade, é possível verificar que a
estruturação da identidade da pessoa estava
calcada em referências baseadas numa
representação da ordem natural que hoje passa a
ser discutível (porque não bastaria a constatação
física, cumulada com o registro civil), na medida
em que se tem nova percepção acerca do que
constitui o sexo, numa dimensão mais humana da
sexualidade, que procura a liberdade de sua
expressão.
É que a identidade sexual constitui um aspecto
importante da identidade pessoal, na medida em
que a sexualidade está presente em todas as
manifestações da personalidade do ser humano.
Sexualidade vista primordialmente “como um
fenômeno humano que se enraíza no corpo e não
uma vida objectivamente biológica à qual se
sobrepõe uma superestrutura consciente e
ética”22.Identidade sexual e pessoal em estreita
ligação com uma pluralidade de direitos da
pessoa,
como
os
referentes
ao
livre
desenvolvimento da personalidade (“um direito de
conformação da própria vida” consoante
GUILHERME DE OLIVEIRA23),
à saúde, à
integridade psíquica e ao seu bem-estar.
Para além de tais considerações, importa
assinalar que, para o transexual, sua identidade
não coincide com o seu sexo anatômico, porque
sua verdade e singularidade apontam para o sexo
22
In MICHEL RENAUD, A Sexualidade Humana – Reflexão Ética, parecer
no Conselho Nacional de Ética Para as Ciências da Vida – CNECV, 1999.
23
GUILHERME DE OLIVEIRA, in Curso de Direito de Família, 3ª edição,
Coimbra Editora, 2003.
16
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psicossocial. Viabiliza-se a intervenção da
medicina, através de ato cirúrgico, privilegiandose a orientação clássica de que para a
determinação do sexo o critério deva ser o
corporal, morfológico-externo.
Um dos traços identificadores da espécie humana
é seguramente a dignidade, cuja raiz latina da
palavra – dignus, significa “ aquele que merece
estima e honra, aquele que é importante”. Atribuise ao Cristianismo a introdução da concepção
ética da dignidade da pessoa humana, através
das idéias do amor fraterno e da igualdade
perante Deus, poderoso e misericordioso, sabido
que a Antiguidade clássica não foi expressão do
reconhecimento desse valor.
A expressão jurídica da dignidade humana,
construída sob conceitos filosóficos e políticos, é
o seu reconhecimento como valor fundamental
das Constituições mais modernas, baseada na
Declaração Universal dos Direitos Humanos,
regra da qual não fugiu a Constituição Brasileira.
Estabelece no art. 1º , inciso III a dignidade da
pessoa humana como fundamento da República.
Resulta que “ os direitos, liberdades e garantias
pessoais têm a sua fonte ética na dignidade da
pessoa, de todas as pessoas”, conforme
sentencia e enfatiza JORGE MIRANDA24.
INGO SARLET 25, a respeito do princípio da
dignidade humana, leciona: “a qualidade
intrínseca e distintiva de cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração
por parte do Estado e da comunidade, implicando,
neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem à pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
24
25
JORGE MIRANDA, ob. Cit.
INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos
Fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre, Livraria do
Advogado, 2001.
17
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desumano, como venha a lhe garantir as
condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua
participação ativa e co-responsável nos destinos
da própria existência e da vida em comunhão com
os demais seres humanos”. Dignidade que seria
indeclinável,
indisponível
e
irrenunciável,
consoante PAULO OTERO26.
É importante assentar que não se interpreta o
direito
das
pessoas
com
um
sentido
essencialmente individualista, sabido que as
aspirações individuais e os interesses próprios
não podem nortear cegamente a vida em
sociedade. A liberdade absoluta é um mito. Ela
está condicionada pelo próprio mundo interior do
indivíduo, pelas coisas e pessoas que o rodeiam,
que oferecem resistências à sua plena realização
como ser totalmente livre.
Explicita PERLINGIERI27 que “o simples
consentimento de quem tem o direito não é
suficiente para tornar lícito o que para o
ordenamento é ilícito, nem pode – sem um retorno
do dogma da vontade como valor – representar
um ato de autonomia de per si merecedor de
tutela”.
Evidentemente, no mundo de hoje, frente à
ordem constitucional, não poderia prosperar uma
concepção de absoluta e ilimitada disposição do
indivíduo por seu corpo ou por seu sexo, porque
preponderam valores éticos superiores. Traz-se
uma vez mais a lição de PERLINGIERI28, quando
assinala que “as situações existenciais exprimemse não somente em termos de direitos, mas,
também, de deveres: no centro do ordenamento
está a pessoa, não como vontade de realizar-se
26
OTERO, Paulo. Ob. Cit.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil
Constitucional – Editora Renovar, Brasil, 3ª edição, Rio de Janeiro, 1997.
28
PERLINGIERI, Pietro. Ob. Cit. acima.
18
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libertariamente, mas como valor a ser preservado
também no respeito de si mesma”.
Excepcionalmente, quando não há plena
correspondência entre o sexo biológico,
anatômico e registral e o cerebral, psicológico ou
social, diz-se que há um problema de identidade
sexual ou uma forma extrema de disforia sexual,
caracterizando o “transexual”. Analisando a
terminologia
empregada
no
estudo
do
transexualismo, REID29 define “identidade sexual
(gender identity) como a relação elementar de se
sentir propriamente um homem ou uma mulher”,
comportando um componente cognitivo e afetivo,
e o “sexo (o gênero) como o estatuto pessoal,
social e jurídico de um indivíduo como homem ou
mulher, ou como estatuto misto, estabelecido
segundo critérios somáticos e comportamentais
mais complexos que os critérios genitais e/ou os
critérios eróticos isolados”.
A literatura especializada salienta que o
diagnóstico do transexualismo é extremamente
difícil, porque não se baseia apenas em critérios
objetivos. Seria o resultado da combinação de
fatores psicológicos, neurológicos, ambientais,
educativos. Entretanto, a conduta diagnóstica
recomendada pelos padrões de cuidado e
segurança da Associação Internacional da
Disforia Sexual Harry Benjamin compreende duas
etapas: a identificação da persistência de um
sentimento de mal-estar de que o sexo declarado
é inapropriado e a constante preocupação, no
mínimo por dois anos, de se livrar das
características sexuais primárias e secundárias e
de adquirir os caracteres sexuais de outro sexo,
considerado sempre o indivíduo adulto.
Identifica-se no transexual um distúrbio de saúde,
a que corresponde um direito de buscar a sua
cura e a diminuição de seu sofrimento, através
29
RUSSEL W REID – Ob cit. p. 3.
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dos meios médicos possíveis. É também uma
faceta do direito à proteção da saúde do ser
humano, inscrito no art. 196 da Constituição da
República.
Evidentemente, não se compreende que os
direitos das pessoas estejam subsumidos na
busca de satisfações ilimitadas, embora a técnica
e a ciência estejam descortinando pretensões
inimagináveis. Todavia, os sentimentos humanos
são elementos da vida e devem ser considerados,
porque fatores importantes para o equilíbrio e a
dignidade da pessoa. Talvez a fórmula do “ bemestar consigo mesmo” seja a busca de paz
interior. Difícil de definir, embora possa
corresponder ao pleno gozo dos sentidos. É física
e espiritual. Representa tranqüilidade de
consciência, ausência de sofrimento por desejos
insatisfeitos ou por aspirações contrariadas.
No exercício da sua liberdade, a pessoa tem
direito de buscar qualidade de vida, não apenas
através do pleno funcionamento das suas funções
orgânicas e psíquicas, também no emprego das
suas faculdades e na satisfação dos seus
anseios. Profundas insatisfações da pessoa com
a própria identidade não apenas a impedem de
viver com dignidade, como constituem fator de
perturbação
social
pelo
sentimento
de
inadaptação, sendo fundamental que a pessoa
componha equilíbrio com o meio. Segundo
enfatiza BORIS CYRULNIK30, “ é preciso sentir-se
no seu lugar e bem na sua pele para experimentar
o sentimento de ser alguém dentro da sua
cultura”.
A ciência tem procurado descobrir a origem da
transexualidade, mas ainda existem incertezas.
Apesar das vacilações e falta de respostas, a
medicina e o direito deparam-se com situações
humanas tormentosas, por vezes, dramáticas,
30
BORIS CYRULNIK. Nutrir os Afectos. Instituto Piaget, Lisboa, 1995.
20
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quando os indivíduos buscam soluções para a
satisfação de seus conflitos e expectativas
existenciais,
especialmente
na
área
da
sexualidade.
Alguns tratamentos através da admissão de
hormônios foram aplicados a transexuais, sem
resultados satisfatórios, não havendo reorientação
de sua alterada preferência erótica. Também a
psicoterapia com pacientes transexuais mostrouse ineficaz, o que levou os especialistas a
encontrar outra solução para o problema. Por
isso, a intervenção cirúrgica31 tem sido a técnica
mais empregada na tentativa de readequar o sexo
cerebral ao sexo anatômico do indivíduo, depois
de uma avaliação multidisciplinar e cumprindo
determinados pressupostos, quando outros
métodos terapêuticos não surtiram efeito.
No Brasil, normatização do Conselho Federal de
Medicina autoriza a cirurgia em hospitais-escola
ou destinados a pesquisa, desde que haja
diagnóstico clínico de transexualismo. Entretanto,
as situações fáticas têm-se adiantado ao direito,
observando-se numerosos casos em que o
indivíduo se apresenta aos serviços de saúde
parcialmente alterado fisicamente, porque já se
submeteu a cirurgias de ablação/extirpação de
órgãos em outros países ou por mãos de médicos
inescrupulosos, no afã de resolver o seu problema
de identificação sexual.
31 A cirurgia de redeterminação sexual, radical e completa, para o homem (transexualismo
masculino), consiste na remoção dos testículos, na amputação do pênis e na formação de
uma vagina artificial, além do aumento dos seios através do implante de silicone. No caso
do transexualismo feminino (para a mulher), suprimem-se os ovários e o útero, reduzem-se
os seios de tamanho e fabrica-se um pênis artificial. Evidentemente, a intervenção cirúrgica
não modifica a conformação genética e cromossômica do sujeito, que se mantém inalterada
depois da prática cirúrgica. Quanto à função reprodutiva ou reprodutora, é essencial que
seja extinta. Afora as intervenções cirúrgicas nos órgãos reprodutores e sexuais, é possível
outras cirurgias faciais (traços físicos femininos ou masculinos) e de adaptação vocal.
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O problema da identidade sexual não é novo,
embora, na atualidade, ainda sejam escassos os
ordenamentos
jurídicos
que
regulam
expressamente a matéria. O Direito parece
aguardar um esclarecimento científico mais
uniforme para uma sistematização de critérios,
porque não se apresenta como um assunto
pacífico no âmbito médico-científico. No país,
tramita projeto de lei sobre o tema, desde 1995,
mas não há notícias de sua aprovação.
Em geral, as soluções em matéria de
transexualismo têm sido apreciadas caso a caso,
por mãos dos juízes. No entanto, alguns países
optaram por atribuir ao Parlamento a normativa
definitiva, despontando a Suécia, na Europa,
como o primeiro a legislar sobre a matéria, em
197232.
Segundo explicita REMÉDIO MARQUES33, a lei
sueca permite “a todos aqueles que, finda a
adolescência, se não reconheçam como
pertencentes ao sexo indicado no assento de
nascimento, a possibilidade de peticionarem à
autoridade administrativa competente a atestação
de que são do sexo oposto, contando que se
tenham
comportado
ou
o
venham,
invariavelmente, a fazer, na sua vida de relação,
como se de pessoas do sexo oposto se tratasse”.
Exige alguns requisitos: é preciso ser sueco,
solteiro, maior de 18 anos, estéril ou impotente,
devendo submeter-se à esterilização, na hipótese
de não o ser, ficando a cirurgia dependente de
autorização, a qual certifica os pressupostos
concernentes ao âmbito médico. A lei também
disciplina outras questões como a tutela da
intimidade da vida privada do transexual, a
responsabilidade médica, a representação do
32
Em sueco, “Könsroller”.
REMÉDIO MARQUES, João Paulo. Mudança de Sexo - O Critério
Jurídico, Coimbra, 1991, monografia não publicada – p. 206.
22
33
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menor e a necessidade do seu consentimento, os
limites e modalidades da intervenção cirúrgica.
Mais abrangente e rigorosa apresenta-se a Lei
Alemã de 198034. Socorrendo-nos de REMÉDIO
MARQUES35, vemos que a normativa alemã
apresenta vários instrumentos jurídicos ao
transexual, podendo escolher o simples pedido de
mudança de nome (para quem há três anos viva
de acordo com o sexo peticionado, presumindo-se
que a convicção não se alterará) ou trilhar todo o
caminho que conduz ao sexo de eleição, obtendo
sentença declaratória de pertença ao sexo oposto
(e seus efeitos jurídicos), para o que se exige a
prévia submissão à cirurgia. Importante assinalar
que a lei permite à pessoa retornar ao sexo de
sua identidade inicial. É necessário que já tenha
completado 25 anos, seja de nacionalidade
alemã, apátrida ou refugiado, residente no
território da República da Alemanha e solteiro.
Na Holanda, desde 1985, a lei permite que seja
reconhecida ao transexual holandês a sua nova
identidade sexual, alterando seu ato de registro
civil. Exige-se o celibato do transexual, idade
superior a 18 anos, intervenção cirúrgica e terapia
hormonal.
Estende
a
possibilidade
dos
estrangeiros requererem a mudança das menções
relativas ao sexo, nos instrumentos registrais de
nascimento, contanto que residam na Holanda há
pelo menos um ano, com licença de residência
válida. Nesse caso, devem pedir a transcrição do
instrumento registral de nascimento estrangeiro,
nos registros de nascimento da “ Conservatória
dos Registros Centrais de Haia”.
Em 1982, entrou em vigor a lei italiana a respeito
da mudança de caracteres sexuais. Não refere a
palavra transexual, embora deva aplicar-se aos
casos de intersexualidade. A autorização judicial é
34
35
A “transexullengesetz”
REMÉDIO MARQUES, ob. cit. acima - p. 209.
23
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necessária para a intervenção médico-cirúrgica,
podendo valer-se o juiz da intervenção de peritos,
e a sentença que acolha a “modificação
superveniente dos caracteres sexuais” deve
determinar a retificação material do sexo no
assento de nascimento. Provoca, ainda, a
dissolução do casamento civil ou a cessação dos
efeitos do casamento canônico.
No atual momento histórico, de afirmação dos
direitos da pessoa e das liberdades fundamentais,
a questão da transexualidade precisa ser
enfrentada pelo Direito 36. Não faz muito tempo, a
classificação dos sexos era indiscutível e não se
reconheciam incertezas. Hoje, não se reconhece
apenas a possibilidade de falta de coincidência
entre o sexo anatômico e o cerebral ou social,
como a ciência desenvolveu técnicas para
realização cirúrgica de retirada ou implantação de
órgãos para a redesignação do sexo.
É meio de assegurar-lhe a dignidade, a liberdade,
a integridade física e moral, a igualdade, pelo
reconhecimento da sua diferença, através de
conformação pessoal e única. De fato, também
possui direito individual à identidade a pessoa que
não corresponde à representação tradicional.
A possibilidade de radical alteração do corpo
humano, do seu sistema reprodutor e sexual,
suscita discussões éticas, especialmente nos
campos do Direito e da Medicina. Em princípio, tal
idéia é motivo de repugnância para a maior parte
das pessoas, por força do princípio da
imutabilidade do sexo, o que não autoriza rejeição
ao debate do tema no âmbito jurídico. Adverte
com precisão o médico e etólogo BORIS
36
O tema do transexualismo já foi apreciado por dois órgãos do Conselho de Europa (a
Assembléia Parlamentar e o Comitê de Ministros) e também pela Comissão e a Corte
Européia dos Direitos do Homem, o que revela a importância da sua discussão,
considerando que são órgãos com vocação para proteger os direitos dos indivíduos.
24
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CYRULNIK37, ao analisar experiências científicas
em embriões: “o terror colectivo que estas
práticas provocam, não passa, talvez, de uma
angústia milenarista. Sempre que uma descoberta
científica ou um debate cultural altera a
representação do homem, provoca uma angústia
virtuosa que permite rejeitar esta alteração.
Galileu, Darwin e Freud fizeram essa experiência.
Mais recentemente, a descoberta do clorofórmio
no século XIX foi combatida virtuosamente por
Balzac. A descoberta do parto sem dor devia
preparar as mulheres para parirem como vacas,
visto que deixariam de conhecer o sofrimento
redentor. A descoberta dos tranquilizantes é ainda
mais angustiante. Os antituberculóticos, as
vacinas, as perfusões provocaram manifestações
indignadas. E, hoje, a genética e a procriação
pela
medicina
desencadeiam
receios
antecipatórios provavelmente muito diferentes do
que se vai passar no real”.
Questão de profundo conteúdo humano, o
transexualismo traz à tona o problema da
faculdade de disposição do próprio corpo, nos
limites da ciência médica, bem como do
reconhecimento do direito à identidade sexual,
que se insere no direito à identidade pessoal.
Adverte GOOREN38 que
“o transexualismo
provém de um erro no processo de diferenciação
sexual” e que o transexual “não é pessoalmente
responsável por seu estado, ele não o escolheu”,
observando-se que a espécie humana está
exposta a este problema, existente em sistemas
socioculturais
bastante
diferentes39.
A
37
BORIS CYRULNIK, Ob. Cit. p. 10.
L.J.G. GOOREN. Vrije Universiteit, Amsterdão, in Transsexualisme,
médecine et droit. XXIII Colloque de droit européen, avril 1993.
39 RUSSEL W REID, Ob. Cit. p. 3, explica que o transsexualismo não é o
sintoma de uma cultura ocidental decadente, porque existe em outros
sistemas sócioculturais. São os “ xanith” da cultura árabe islâmica, os “
berdache” , índios da América, do México ao Alasca, os “ hijras” da Índia, os
“ kushra”, no Paquistão, os “ acaults” na Birmânia, sendo conhecidos
25
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redesignação do sexo não se insere num simples
querer da pessoa, já que o simples consentimento
“nunca será suficiente, uma vez que este é mais
um campo em que o ordenamento não prioriza a
esfera de livre autonomia da vontade”40.
Corresponde a um sentimento profundo e forte,
que acompanha o transexual, normalmente,
desde a infância, responsável por um desconforto
psíquico intenso, que o impele em direção a uma
verdadeira mutilação do corpo. O conflito interior
com o sexo biológico é tão forte e persistente, que
a pessoa se submete a diversas cirurgias para
readequação
sexual,
em
procedimentos
dolorosos, na ânsia de libertar-se do sexo que
não a identifica psicologicamente, para “estar em
paz com ela mesma”, no dizer de ELISABETH
BADINTER41 e poder dar amplo curso ao
desenvolvimento da sua personalidade.
Não se desconhece que os transexuais
encontram diversos problemas para viver em
sociedade
e
são
numerosas
vezes
desconsiderados
e
estigmatizados
como
degenerescência moral. São pessoas diferentes,
sim, mas têm direito à igualdade de tratamento na
ordem jurídica e social. Por isso, o
reconhecimento do direito à identidade sexual e a
possibilidade de redesignação do sexo, através
da cirurgia, sem prejuízo de eventual
consolidação normativa sobre o tema, já existente
em alguns países, constituem caminho para o
fortalecimento da sua auto-estima, da sua
consideração social, a fim de que sejam tratados
com respeito e dignidade a que fazem jus como
seres humanos. Harmonizando os valores
também registros científicos na China, na Tailândia, em Singapura e em
países do Leste Europeu.
40 KONDER, Carlos Nelson. O Consentimento no Biodireito: Os casos dos
transexuais e dos wannabes, in Revista Trimestral de Direito Civil, Ano 4,
vol. 15, jul/set 2003, Editora Padma, Brasil.
41
ELISABETH BADINTER. XY De l´identité masculine. Éditions Odile
Jacob, 1992.
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constitucionalmente protegidos na ordem jurídica
– dignidade, integridade psicofísica, igualdade,
liberdade, tem-se que a cirurgia de redesignação
de sexo é instrumento capaz de garantir ao
transexual sua identidade pessoal como
emanação de sua personalidade.
De fato, a identidade do transexual deve ser
reconhecida perante o Estado, permitindo-se a
retificação do registro civil, independentemente da
realização da cirurgia, a fim de que a pessoa
possa gozar de seus direitos como homem ou
mulher, com dignidade, sem discriminação de
qualquer espécie. É certo que talvez a ordem
jurídica não esteja suficientemente esclarecida
sobre o transexualismo, porque também no meio
médico existem dúvidas sobre o prognóstico da
doença. Por isso, parece fundamental que se
afastem as obscuridades sobre o tema, com apoio
na multidisciplinariedade, a fim de que seja
possível normatizar42 as questões relativas à
transexualidade e os seus efeitos jurídicos, por
razões de ordem pública.
Apesar da complexidade do tema, que acaba por
afastar um conceito estático de sexualidade,
fundado em razões de segurança jurídica, haverá
de privilegiar-se o respeito à pessoa e seu direito
à identidade
como emanação de sua
personalidade e dignidade. Quando se trata de
sua saúde física e psíquica, é o primado do ser
humano, seu interesse e bem-estar, que devem
42
A Corte Européia de Direitos Humanos não tem acolhido a alegação de
infração ao art. 8º (toute personne a droit au respect de sa vie privée et
familiale, de son domicile et de sa correspondance) nos casos de recusa ao
pleno reconhecimento dos efeitos jurídicos da redesignação sexual, sob o
fundamento de que no trato da matéria deve-se dar larga margem de
apreciação aos Estados.
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prevalecer, sobre o interesse único da sociedade
ou da ciência43.”
(...).
Pequeno acréscimo.
Depois do que foi dito pela digna magistrada prolatora da
sentença e pela ilustre procuradora de justiça, resta pouco a ser acrescido.
Quero, contudo, apontar algumas particularidades deste caso.
O presente processo traz a discussão um tema que não é
novo, mas um tanto controvertido: a possibilidade de alteração de um nome
(masculino) de uma pessoa para conformá-lo com a sua identidade
(feminina).
A alegação de ARTUR é de que o nome masculino não retrata
a sua identidade social que é feminina. Diz que sua aparência é de mulher e
que todas as pessoas de seu convívio lhe chamam de Cris. Relata seu
constrangimento toda vez que tem que se identificar com o nome que lhe foi
dado.
Com efeito, a Corte freqüentemente tem apreciado pedidos que
envolvem o reconhecimento de direitos a pessoas com orientações sexuais
diversas da heterossexual.
43 Art. 2º da Convenção de Oviedo para a Proteção dos Direitos do Homem
e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da
Medicina – em vigor desde 1999.
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Não é demais lembrar os diversos casos já julgados pela
Câmara em que se postulou o reconhecimento de uniões estáveis entre
pessoas do mesmo sexo, a alteração do nome e do sexo de pessoas
transexuais com ou sem cirurgia de transgenitalização, adoção por
homossexuais, e tantos outros.
Como já dito, o tema não é novo, embora controvertido.
Mas a peculiaridade que aqui destaco é a forma como o pedido
veio articulado em relação às razões alegadas.
A inicial ora diz que ARTUR é TRAVESTI (fl. 03), ora lhe
identifica como TRANSEXUAL (fl. 04/05).
Na inicial ARTUR pediu para passar a se chamar CRISLAINE.
Ele não faz pedido para troca registral de sexo.
Em seu primeiro parecer, o Ministério Público (fls. 19/23) tratou
a parte autora como transexual.
E aos sentenciar o juízo também entendeu que ARTUR é
transexual (fls. 33/45).
Por seguinte, o Ministério Público neste grau de jurisdição,
embora fazendo a distinção entre travesti e transexual, entendeu que
ARTUR é transexual e, por isso, poderia mudar o nome para conformá-lo
com sua orientação sexual.
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E aqui está o ponto.
Artur é travesti ou transexual?
E seu nome deve ser mudado (ou não) porque ele é travesti,
ou porque ele é transexual?
Travesti ou transexual.
Com efeito, da leitura do parecer do Ministério Público se pode
ver que diversas áreas da ciência tentam fazer distinções e categorizar as
diferenças entre travesti e transexual pelos mais diversos critérios. Ora por
critérios biológicos, ora por critérios sociais.
Sobre o tema, vale a pena trazer um trecho do voto do Juiz
Federal
Roger
Raupp
2001.71.00.026279-9/RS,
Rios
no julgamento
da apelação cível nº
onde é feita uma abordagem acerca
da
transexualidade sob os dois aspectos, o biomédico e o social.
(...).
A abordagem biomédica da transexualidade
A partir de uma perspectiva biomédica, a
transexualidade pode ser descrita como distúrbio
de identidade sexual, no qual o indivíduo
necessita alterar a designação sexual que lhe foi
assinada, sob pena de graves conseqüências
para sua vida, dentre as quais se destaca intenso
sofrimento, chegando a gerar, muitas vezes, no
caso dos homens, à auto-mutilação genital e, no
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caso das mulheres, à auto-mutilação dos seios;
em ambos, ao suicídio.
Conforme explica o Prof. Edvaldo Souza Couto,
"existem diferentes conceitos de transexualidade.
Eles têm em comum a incompatibilidade da
conformação genital com a identidade psicológica
no mesmo indivíduo. O transexual é aquele que
recusa totalmente o sexo que lhe foi atribuído
civilmente. Identifica-se psicologicamente com o
sexo oposto, embora biologicamente não seja
portador de nenhuma anomalia. Geralmente
possui genitália perfeita, interna e externa, de um
único sexo mas a nível psicológico responde a
estímulos de outro. Costumam considerar-se um
'erro da natureza'. Segundo a Associação Paulista
de Medicina, transexual é o indivíduo com
identidade psicossexual oposta a seus órgãos
genitais externos, com o desejo compulsivo de
mudança destes. Neste quadro, as principais
características da transexualidade são: a) a
convicção de pertencer a outro sexo; b) aversão
pelos atributos genitais dados pela natureza e c) o
interesse pela adequação dos genitais."
(Transexualidade - o corpo em mutação,
Salvador: Editora GGB, 1999, p. 26).
Assim descrita, a transexualidade é considerada
doença pela Organização Mundial de Saúde e
está enquadrada no Código Internacional de
Doenças.
Ainda no campo biomédico, diversamente do que
ocorria com as formas de intersexualidade
fisiológica (caso do hermafroditismo) e com a
homossexualidade (entendida como desordem
psíquica - a chamada homossexualidade egodistônica ou como uma variação legítima da
orientação sexual), a transexualidade ganha
estatuto médico autônomo a partir dos anos 1950,
hipótese onde a intervenção médica tem o efeito
de reparar uma situação de desarmonia entre o
corpo real e sua representação psicológica, donde
a noção de cirurgia de redesignação sexual
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(sobre a
história
da
compreensão da
transexualidade, Pierre-Henri Castel, 'Algumas
reflexões para estabelecer a cronologia do
'fenômeno transexual' (1910-1995)', Revista
Brasileira de História, SP: ANPUH, vol. 21, nº 41,
2001). Nesta abordagem, é aos profissionais da
medicina, portanto, que incumbe corrigir um "erro
da natureza" ou, dito de outra forma, de tornar o
corpo conforme a verdadeira personalidade (ver
Denis Salas, Sujet de chair et sujet de droit: la
justice face au transsexualisme, Paris: Presses
Universitaires de France, 1994, p. 35-39).
A abordagem biomédica é, historicamente,
predominante neste campo. Todavia, como será
visto logo a seguir, ela não é a única perspectiva
existente; é imperiosa a consideração de uma
perspectiva social (que diz respeito ao conteúdo
e à forma das relações sociais, cujo
desvendamento só se tornou posssível a partir da
noção de gênero), sob pena de emprestar-se
solução
jurídica
incorreta
quanto
à
interpretação sistemática do direito e à força
normativa da Constituição. Com efeito, a força
normativa da Constituição, como método próprio
de interpretação constitucional, exige do juiz, ao
resolver uma questão de direitos fundamentais,
adotar a solução que propicie a maior eficácia
jurídica possível das normas constitucionais,
conforme lição de Konrad Hesse (Elementos de
Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha, Porto Alegre: SAF, 1998). É, portanto,
diante
deste
princípio
de
hermenêutica
constitucional que se revela imprescindível a
consideração de uma abordagem social da
transexualidade, ao lado da biomédica, a fim de
que
se
alcance
uma
solução
jurídica
constitucionalmente adequada para este litígio.
A abordagem social da transexualidade
A análise da controvérsia pode ser efetuada a
partir de duas perspectivas, concorrentes e
juridicamente não-conflitantes: via direito à saúde
32
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e via direito à auto-determinação da identidade
sexual, esta última informada pelos direitos
fundamentais da liberdade, da igualdade e da
proteção à dignidade humana.
Do ponto de vista da teoria e da dogmática
dos direitos fundamentais, a dianteira de uma
ou outra perspectiva não é irrelevante. Ao
contrário, a força normativa da Constituição e o
conseqüente dever de adotar a compreensão que
maior eficácia empreste aos direitos fundamentais
requer a prevalência da interpretação que
concretize o direito à saúde a partir da
perspectiva da liberdade, da igualdade e da
proteção da dignidade humana. Não se trata de
hierarquizar direitos fundamentais, privilegiando
direitos de liberdade negativa sobre direitos
prestacionais positivos. O que está em jogo é
como dar concretude à noção da indivisibilidade e
da interdependência entre os vários direitos
humanos fundamentais, de modo a alcançar a
maior eficácia jurídica de todos os direitos
fundamentais.
O fenômeno da transexualidade é emblemático
para se demonstrar esta dinâmica entre os vários
direitos fundamentais. Isto porque, como acima
relatei, a medicalização é a abordagem que
predomina quando o assunto é transexualidade,
donde a ênfase no debate sobre o direito à
intervenção cirúrgica, instrumento apto a reparar o
"erro da natureza". Na realidade, à esta
perspectiva biomédica subjaz o chamado
"binarismo de gênero", vale dizer, a concepção
segundo a qual as identidades sexuais masculina
e feminina correspondem a certos padrões prédeterminados, resultantes de uma série de
elementos e características. Quem define esta
combinação
é,
basicamente,
a
atuação
combinada de duas ordens de saber e de
crenças: o poder que detêm os profissionais da
saúde (vistos como guardiões do saber
biomédico) de definir "cientificamente" quem é
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homem e quem é mulher e, a seu lado, a
prevalência
de
determinadas
percepções,
socialmente dominantes, sobre o que é ser
masculino e o que é ser feminino. Tanto é
verdade, que, para a apropriação médica da
transexualidade como algo reservado à atuação e
ao saber médicos, foi necessário separar os
"verdadeiros"
transexuais
(mediante
a
enumeração de sintomas determinados, acima
referidos) dos "falsos" transexuais.
(...)
Por aqui já se vê que não há ainda um conceito uno entre as
diversas áreas das ciências que estudam o tema.
Mas há mais. Segundo Elizabeth Zambrano:
(...).
O senso comum considera que uma pessoa, ao
ser classificada como homem ou mulher (sexo
biológico), terá, naturalmente, o sentimento e o
comportamento
masculino
ou
feminino
(identidade/papel de gênero) e o seu desejo
sexual será dirigido para pessoas do sexo e/ou
gênero
diferente
do
seu
(orientação
heterossexual). Esses três elementos - sexo,
gênero e orientação - são pensados, em nossa
cultura, como estando sempre combinados de
uma mesma maneira - homem masculino
heterossexual ou mulher feminina heterossexual.
É possível, entretanto, inúmeras combinações
entre eles.
Uma delas é a homossexualidade, termo
referente a pessoas que praticam sexo com
pessoas do mesmo sexo. Essas pessoas têm
orientação sexual diferente da esperada para o
seu
sexo
e
gênero,
mas
isso, não
necessariamente, indica uma mudança de
'identidade de gênero'. Elas não se percebem
nem são percebidas pelos outros como de um
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gênero (masculino ou feminino) diferente do seu
sexo (homem ou mulher), mesmo com
comportamentos considerados ambíguos (homem
afeminado ou mulher masculinizada).
Já homens que fazem uso de roupas e
modificações corporais para se parecer com uma
mulher, sem buscar uma troca de sexo cirúrgica
são considerados travestis. Travestis, aceitando
seu corpo biológico de homem (embora
modificado, às vezes, pelo uso de hormônios
femininos e/ou implantes de silicone) e se
percebendo como mulheres, reivindicam a
manutenção
dessa
ambigüidade
corporal,
considerando-se, simultaneamente, homens e
mulheres; ou se vêem 'entre os dois sexos' nem
homens, nem mulheres. Todos, porém, se
percebem como tendo uma identidade de gênero
feminina.
Outra combinação possível diz respeito aos
transexuais, pessoas que afirmam ser de um sexo
diferente do seu sexo corporal e fazem demanda
de 'mudança de sexo' dirigida ao sistema médico
e judiciário.
É muito comum homossexuais, travestis e
transexuais serem percebidos como fazendo
parte de um mesmo grupo, numa confusão entre
a
orientação
sexual
(homossexualidade,
heterossexualidade,
bissexualidade)
e
as
'identidades de gênero' (homens masculinos,
mulheres
femininas,
travestis,
transexuais
femininos e masculinos, entre outras).
Todos os indivíduos que reivindicam um gênero
que não apoiado no seu sexo podem ser
chamados de 'transgênero'. Estariam incluídos aí,
além de transexuais que realizaram cirurgia de
troca de sexo, travestis que reconhecem seu sexo
biológico, mas têm o seu gênero identificado
como feminino; travestis que dizem pertencer a
ambos
os
sexos/gêneros
e
transexuais
masculinos e femininos que se percebem como
homens ou mulheres mas não querem fazer
cirurgia. A classificação de suas práticas sexuais
como homo ou heterossexuais estará na
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dependência da categoria que estiver sendo
considerada pelo indivíduo como a definidora de
sua identidade (o sexo ou o gênero).
(in Lima, Antônio Carlos de Souza (org.),
Antropologia e Direito: Bases Para um Diálogo
Interdisciplinar; Brasília, Associação Brasileira de
Antropologia, 2007, no prelo).
Como se vê, as possibilidades são diversas. As combinações
entre gênero e sexualidade abrem um amplo espaço para discutir conceitos
e classificações.
Por isso, estou em que o real fundamento, o motivo pelo qual
efetivamente se deve atender ao pedido de ARTUR não está voltado ao
reconhecimento de sua condição de transexual ou de travesti.
Com efeito, não se pode perder de vista que o papel da ciência
do direito nesses casos não é o de delinear tais conceitos. Ao direito não
cumpre definir o que é um transexual ou um travesti.
Tais categorias fazem parte sim da esfera de atuação das
demais ciências sociais, como a sociologia e a antropologia.
Aliás, em pesquisas que fiz junto a trabalhos realizados nessas
áreas, ficou claro o quão avançados encontram-se tais ramos das ciências
sociais no que diz com o presente tema.
Nesse contexto, para que se possa atender ao pedido de
ARTUR deve-se olhar não para critérios diferenciadores, mas para a aqueles
que igualam a todos e permitem o pleno exercício da sua condição de
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pessoa humana. E esses critérios estão no reconhecimento do direito à
liberdade e à dignidade humanas.
Liberdade, igualdade e dignidade e a alteração do nome.
O cerne do princípio da igualdade está na proibição do
tratamento discriminatório. Ou seja, são vedadas as que visem a prejudicar,
restringir ou mesmo acabar com o exercício de direitos e liberdades
fundamentais, em razão de sexo, raça, etnia, cor, idade, origem, religião.
É inegável que, no exercício da sua liberdade, ARTUR tem o
direito de buscar a qualidade de vida através da satisfação dos seus
anseios, concretizando assim o seu direito à liberdade e à dignidade.
E aqui a satisfação de ARTUR está representada na alteração
do seu nome. Ele quer sentir-se bem e conformado com a sua condição
social expressada através do nome e tudo o que ele representa coletiva e
individualmente.
Não há negar que a identidade social e psicológica é base para
essa busca.
A insatisfação com a própria identidade, representada pelo
nome, o descompasso entre o que se é de fato e o que vem representado
através do nome, impede a pessoa de viver com dignidade e fomenta um
sentimento de total inadaptação.
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É por isso que nessa “perspectiva jusfundamental, o que se
tem que evitar é, para o fim de superar a disforia sexual, afirmar que só é
masculino e só é feminino quem atender a uma determinada, rígida, fixa e
excludente combinação de características, impostas pelas convicções
sociais da maioria ou pela pretensão de um saber médico neutro e objetivo.
Tal percepção, intransigente e inflexível, gera violações de direitos
fundamentais e é fruto do fechar dos olhos à realidade: a sexualidade e a
vida humana não se deixam enquadrar em padrões historicamente definidos
por profissionais da saúde ou por representantes da opinião da maioria. A
vida humana e suas manifestações são um "continuum", que não se deixam
aprisionar em polaridades opostas e compartimentos estanques. No campo
da sexualidade, a demonstração mais famosa desta realidade, com enorme
impacto científico, social e cultural, veio com o clássico Sexual Behavior in
the Human Male, do biólogo Alfred Kinsey, publicado em 1948 e baseado
em exaustivo estudo estatístico.” (Roger Raupp Rios, apelação cível nº
2001.71.00.026279-9/RS).
Logo, desimporta aqui a apuração da verdade sobre a
sexualidade ou o gênero ao qual ARTUR pertence. Não é necessário
categorizá-lo como travesti ou transexual para reconhecer a sua condição de
ser humano e digno.
É inútil, e até indigna, a categorização das pessoas pelo sexo,
como condição para que se possa atribuir-lhe uma conformação social entre
o nome e sua aparência.
As ações, modo de vida, e a própria opção pessoal de cada um
são os motivos suficientes para determinar a verdadeira identidade e não
podem servir para discriminar.
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Novamente aqui convém trazer um excerto do voto na
apelação supracitada da lavra do Juiz Federal Roger Raupp Rios, onde ele
diz que adotando-se o binarismo sexual,
(...) estar-se-á reforçando a rigidez e a
determinação por terceiros (os detentores do
saber médico e as crenças majoritárias sobre o
que ser verdadeiramente feminino e masculino)
acerca da identidade sexual e de gênero que
cada indivíduo experimenta e desenvolve em sua
vida; o que se estará enfraquecendo, quando
não compremetendo mortalmente, é o
conteúdo jurídico dos direitos de liberdade, de
igualdade, de não-discriminação e do respeito
à dignidade humana.
Neste contexto, onde a autonomia e a igualdade,
que são os valores básicos do constitucionalismo
democrático, serão eclipsadas pelo poder alheio
da medicalização e de opiniões socialmente
dominantes, só restará uma alternativa aos seres
humanos: deixar-se enquadrar no processo
classificatório imposto por estas forças, onde o
ser homem e o ser mulher, o ser masculino e o
ser feminino, dependerão sempre do atestado
alheio, que exige e impõe o enquadramento
segundo um processo classificatório heterônomo,
onde um conjunto de características é avaliado,
abrangendo fatores genético, gonadal, endócrino,
genital e psíquico.
(...)
De fato, para os direitos das mulheres, uma
solução orientada por tal binarismo rígido reforça
dinâmicas históricas de subordinação feminina,
reproduzindo situações e ideologias onde às
mulheres são reservados o domínio do lar e um
papel secundário na vida pública, social e
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econômica. Isto porque o reforço do binarismo de
gênero tende a compactuar com diferencialismos
sexuais que diminuem o espaço de construção de
novas relações entre homens e mulheres,
capazes de romper com privilégios e dominação
masculinos. Num dos exemplos mais gritantes,
repercussões jurídicas deste padrão chegaram,
até bem pouco tempo atrás, a alimentar
argumentos jurídicos que justificavam o estupro
doméstico de esposas por maridos a pretexto de
cumprimento de deveres conjugais, o assassinato
de esposas por maridos em nome da legítima
defesa da honra e a não caracterização do
estupro como crime hediondo quando não
houvesse violência ou grave ameaça, como se
fosse possível estuprar uma mulher sem violência
grave.
Com relação à homossexualidade, uma
perspectiva que reforce o binarismo de gênero é
devastadora. De fato, no horizonte desta dinâmica
binária, a atração ou a conduta sexuais de alguém
em direção a indivíduo do mesmo sexo são
consideradas anormais e intoleráveis. Tanto que a
proposta daqueles a quem mais incomoda e os
quais menos toleram a diversidade sexual (que é
o oposto do binarismo) é, pura e simplesmente, a
eliminação da homossexualidade mediante a sua
cura, através da inclusão de tratamentos médicos
ou de rituais e práticas religiosas comunitárias, a
serem inclusive disponibilizados ou custeados
pelo SUS e por outros órgãos do Poder Público,
quando não a criminalização.
Para os direitos das travestis, o reforço do
binarismo de gênero é ainda mais violento. As
travestis, encarnando quiçá a experiência mais
radical da autonomia individual diante das
convenções sociais sobre o que é padronizado
como "natural" quanto ao sexo e sobre o que é
tolerável pelos padrões tradicionais e dominantes
de convívio entre homens e mulheres, ousam
inventar um novo modo de ser em termos de
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gênero,
transitando
verdadeiramente
nas
"fronteiras do gênero" (para usar a expressão de
Maria Luiza Heilborn, 'Gênero e Sexo dos
Travestis', Sexualidade, Gênero e Sociedade, Rio
de Janeiro: IMS-UERJ, nº 7-8). Trata-se de uma
construção de si peculiar e original, onde, do
ponto de vista do gênero, os indivíduos travestis
se constroem pelo feminino. Nas palavras de
Marcos Benedetti, "o feminino travesti", onde, "ao
mesmo
tempo
em
que
produzem
meticulosamente traços e formas femininas no
corpo, estão construindo e recriando seus valores
de gênero, tanto no que concerne ao feminino
como ao masculino. A ingestão de hormônios, as
aplicações de silicone, as roupas e os acessórios,
o acuendar a neca, as depilações são momentos
de um processo que é maior e que tem por
resultado a própria travesti e o universo que ela
cria e habita."(Toda Feita - o corpo e o gênero das
travestis, Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p.
131). Como alertei logo acima, o reforço do
binarismo de gênero em face das travestis
incentiva todo o tipo de violência contra estes
indivíduos: desde a desqualificação moral mais
intensa até o freqüente assassinato, as travestis
são
vítimas
número
um
da
violência
discriminatória.
(...)
Com efeito, embora o nome apresente-se como um elemento
de diferenciação do indivíduo perante a coletividade, o seu maior atributo
não está no coletivo, mas no individual.
É através do nome que todo e qualquer indivíduo se identifica,
se vê como um ser dotado das características que aquele signo representa
para si.
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É claro que a forma como o indivíduo é visto socialmente
também importa para a conformação do nome. Mas a importância dessa
visão social e coletiva do indivíduo volta-se muito mais para o próprio
indivíduo em respeito à sua dignidade, em atenção à forma como esse
indivíduo sente-se ao ser visto dessa ou daquela forma pelo coletivo.
Esta
certo
que
ARTUR
não
só
apresenta-se
com
características físicas e psíquicas femininas, como também deixa certo que
o nome que melhor lhe identifica e que satisfaz os seus anseios é o nome
com tais características. Basta olhar as fotos de fls. 12/15 e ser verá que
ARTUR efetivamente se apresenta como uma mulher.
Dito isso, desimporta se, ao fim e ao cabo, ARTUR é um
transexual ou um travesti. Desimporta se ele fez ou fará cirurgia de
transgenitalização, se sua orientação sexual é pelo mesmo sexo ou pelo
sexo oposto, por homem ou por mulher.
Todos esses fatores não modificam a forma como ARTUR se
vê e é visto por todos. Como uma mulher.
Tal como dito por Berenice Bento “Os ‘normais’ negam-se a
reconhecer a presença da margem no centro como elemento estruturante e
indispensável. Daí eliminá-la obsessivamente pelos insultos, leis, castigos,
no assassinato ritualizado de uma transexual que precisa morrer cem vezes
na ponta afiada de uma faca que se nega a parar mesmo diante do corpo
moribundo. Quem estava sendo morto? A margem? Não seria o medo de o
centro admitir que ela (a transexual/a margem) me habita e me apavora?
Antes de matá-la. Antes de agir em nome da norma, da lei e fazer a
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assepsia que garantirá o bom funcionamento e regulação das normas. Outra
solução ‘mais eficaz’ é confinar os ‘seres abjetos’ aos compêndios médicos e
trazê-los à vida humana por uma aguilhada que marca um código abrasado
a cada relatório médico que diagnostica um ‘transtorno’.” (BENTO, Berenice.
O que é transexualidade. p. 38-39. Ed. Brasiliense.)
Enfim, de qualquer forma que se aborde o assunto, a solução
não pode ser outra que não o atendimento do pedido da autora.
PREQUESTIONAMENTO.
O apelante prequestionou o artigo 109 e §1º da lei 6.015/73;
artigo 83, I do Código de Processo Civil; artigo 1º, II, III e artigo 102, III, a, da
Constituição da República.
Mas a presente decisão não negou vigência aos citados
dispositivos legais, bem como aos demais artigos referidos pelo recorrente
em suas razões recursais.
ANTE O EXPOSTO, nego provimento ao apelo.
DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA (REVISOR) - De acordo.
DES. JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE - De acordo.
DES. RUI PORTANOVA - Presidente - Apelação Cível nº 70022504849,
Comarca de Caxias do Sul: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME."
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Julgador(a) de 1º Grau: MARIA ALINE FONSECA BRUTTOMESSO
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