Revista dos Formandos da UFBA 2007.2

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REVISTA JURÍDICA DOS
FORMANDOS EM DIREITO
2007.2 UFBA
Diretor da Faculdade de Direito da UFBA
Prof. Dr. Jonhson Meira dos Santos
Coordenador do Curso de Graduação
Prof. Douglas White
Chefe do Departamento de Direito Público
Prof. Fernando Santana Rocha
Chefe do Departamento de Direito Privado
Profª.Drª. Roxana Cardoso Brasileiro Borges
Relação de professores da Faculdade de Direito da UFBA
Antonio Augusto Brandão de Aras - Arivaldo Gandarela Gomes – Carlos Alberto
Araponga Doria - Celso Luiz Braga de Castro - César de Faria Junior - Douglas White
- Edvaldo Pereira de Brito - Elsior Moreira Alves - Fernando Santana Rocha - Francisco
Fontes Hupsel – Fredie Souza Didier Júnior - Gamil Föppel El Hireche - Geisa de Assis
Rodrigues - Helcônio de Souza Almeida - Heron José de Santana - Jairo Lins de
Albuquerque Sento-Sé - João Carlos Macêdo Monteiro - João Glicério de Oliveira Filho
- Johnson Barbosa Nogueira - Jonhson Meira Santos - José Antonio Cezar Santos - José
Raymundo Almeida de Sant’Anna - Laíse Maria Guimarães Santos - Luiz Salomão
Amaral Viana - Manoel Jorge e Silva Neto - Marcio Flavio Mafra Leal - Marco Aurélio de
Castro Júnior - Maria Auxiliadora de A. Minahim - Marilia Muricy Machado Pinto - Mário
Jorge Philocreon de Castro Lima - Mônica Neves Aguiar da Silva - Nilza Maria Costa dos
Reis - Olindo Herculano de Menezes - Pablo Stolze Gagliano - Paulo Cesar Santos
Bezerra - Paulo Eduardo Garrido Modesto - Paulo Roberto Lyrio Pimenta - Raimundo
Dias Viana - Ricardo Maurício Freire Soares - Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho Roxana Cardoso Brasileiro Borges - Samuel Santana Vida - Sara da Nova Quadros
Côrtes - Saulo José Casali Bahia – Sebastian B. de Albuquerque Mello - Selma Pereira
de Santana - Sérgio Alexandre M. Habib – Wilson Alves de Souza
Relação dos Servidores da Faculdade de Direito da UFBA
Agnaldo Nascimento Júnior – Agnaldo Negreiro – Ângela Requião – Antônio Carlos
Sena – Carlos Carvalho – Carlos Miguez – Elon Costa – Eliece Araújo – Jarbas
Linhares – Jomar Melo – Jovino Ferreira – Maria Ângela Simões – Maria Angélica
Santana – Maria Milsa Brasil – Maria das Graças Sacramento – Maria de Lourdes
Santana – Maria de Lourdes Stranch – Maria Regina Machado – Marivaldo Santana
– Mércia Mendonça – Mirian Azevedo – Natan Cruz – Noecy Nunes – Pedro
Calmon – Sônia Santos – Simone Guimarães – Terezinha Moura – Roniel Barreto –
Ramanita Albuquerque – Valnei Silva
Relação dos Funcionários e Colaboradores da Faculdade de Direito da UFBA:
Alexsandro Pereira – Mário Sérgio Bonfim – Eliomar Ribeiro – Maria Coutinho Matos Roberto Bonfim – Cláudio Araújo – Jonas Santos – Jorge Machado – Marcos Sanches
– Daiane America – Elielson Sousa – Gildete Néri – Letícia Santos – Leide Mota –
Janielson Sousa – Pedro Amaro – Francisco José – Maria Leida – Rosélia Nunes –
Lúcio Flávio – Raimundo Mendes – Nelson dos Santos – Sophia Prata – Vaneson
Silva – Renilson Santiago – Genilson Souza – Robério Luz – Antônio Carlos.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
REVISTA JURÍDICA DOS
FORMANDOS EM DIREITO
2007.2 UFBA
SALVADOR - BA
2007
 2007, by Faculdade de Direito da UFBA.
OS CONCEITOS EMITIDOS NOS ARTIGOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE
SEUS AUTORES.
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Editor responsável
Tagore Trajano de Almeida Silva
Capa
Carol Cruz
Projeto Gráfico e Editoração eletrônica
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Revisão dos textos
Realizada pelos próprios autores.
Bibliotecária Responsável
Simone Guimarães
Conselho Editorial
Milton Pereira Junior, Rafael Ferreira e Tagore Trajano de Almeida Silva
Biblioteca Teixeira de Freitas
Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA. – Vol. 7, n.11 (jul/dez. 2007). –
Salvador: UFBA, 1996-2007 Semestral
ISSN: 1414-0101
1. Direito-Periódicos I.Faculdade de Direito da UFBA
“Que nossos esforços desafiem as impossibilidades.
Lembrai-vos que as grandes proezas da história foram
conquistadas do que parecia impossível”.
Charles Chaplin
Agradecimentos
É com imensa alegria e satisfação que apresentamos a toda comunidade jurídica
baiana e nacional a 11ª edição da Revista Jurídica dos Formandos da Faculdade de
Direito da UFBA. O propósito deste importante trabalho é compartilhar uma parte
da produção acadêmica de nossa Escola, e trazer ao amplo conhecimento o que
há de melhor e mais novo no ensino jurídico desta casa.
Esta Revista conta com a participação de alguns dos mais queridos e
competentes professores da casa, de muitos dos talentosos e prósperos
formandos do semestre 2007.2, e de ilustres juristas estrangeiros, todos
contribuindo de forma singular com artigos e trabalhos de excelente qualidade.
Gostaríamos de deixar registrados nossos mais sinceros agradecimentos
a todos aqueles que, ao longo desses cinco anos de graduação, contribuíram
de alguma forma para a busca e formação do verdadeiro espírito acadêmico,
sempre tão valorizado nos corredores de nossa Escola e muito bem
representado na presente coletânea.
Assim, a realização desta revista só foi possível graças à participação da
Câmara de Vereadores de Salvador, presidida pelo vereador Valdenor
Cardoso e da Comissão de Planejamento Urbano e Meio Ambiente,
especialmente ao vereador Paulo Câmara e sua secretária: Paula; todos eles
estiveram à disposição para auxiliar a comissão editorial e estabelecer uma
relação nunca antes vista entre o Poder Legislativo de Salvador e a Faculdade
de Direito da UFBA; que esta parceria continue gerando frutos ainda mais
duradouros para o futuro da pesquisa na Bahia.
Esta boa produção científica não poderia estar completa sem a ajuda da 3º
Grau e Layout convites, principalmente, a Carol Cruz pela capa. Um muito
obrigado a Lúcia Sokolowicz pela diagramação, a Simone Guimarães pela
catalogação desta revista e a Milton Fontes da EGBA pelo apoio e paciência.
Um agradecimento especial à comissão de formandos 2007.2 que apoiou esta
empreitada e colaborou com a divulgação, obtenção de patrocínio e sugestões.
Por fim, restam-nos os votos de que novas edições da Revista Jurídica
dos Formandos em Direito da UFBA e de outras tantas coletâneas preparadas
por atuais e futuras gerações de alunos e professores da nossa Universidade
possam ser sempre produzidas, dando continuidade, assim, a uma sólida
tradição acadêmica.
Salvador/BA, final de curso, em novembro de 2007.
Comissão Editorial
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Professor Doutor Heron José de Santana
13
DOUTRINA INTERNACIONAL
A REPRESENTAÇÃO METANORMATIVA DO(S) DISCURSO(S)
DO JUIZ : O «TESTEMUNHO» CRÍTICO DE UM «DIFERENDO»?
José Manuel Aroso Linhares
17
DEPOIS DA ONDA: MUDANÇA DE REGIME?
Winston P. Nagan
67
DOUTRINA NACIONAL
ARTIGOS E ENSAIOS DOS PROFESSORES/ ARTIGOS DOS FORMANDOS
ARTIGOS
CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESLEGITIMAÇÃO DO DIREITO
PENAL ECONÔMICO
Gamil Föppel El Hireche
77
DIREITO AO SILÊNCIO NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
(ARTS. 347, CPC, E 229, CC)
Fredie Didier Jr
117
A METODOLOGIA DO DIREITO
Johnson Barbosa Nogueira
131
DIREITO À INTIMIDADE GENÉTICA EM FACE DO ART.232 DO
CÓDIGO CIVIL E SUA DEFESA PELA CRIAÇÃO DE UM HABEAS
GENOMA
Mônica Aguiar
153
DIREITO DO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
161
PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPP)
Paulo Modesto
185
REFLEXÕES SOBRE O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO
Ricardo Maurício Freire Soares
205
COMO ESCREVER UM PROJETO DE PESQUISA?
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
233
O MERCOSUL E SUAS RELAÇÕES COM A ALCA E A UNIÃO
EUROPÉIA
Saulo José Casali Bahia
269
NOTAS PARA UMA TEORIA HERMENÊUTICO-JURÍDICA
Willis Santiago Guerra Filho
281
ACESSO À JUSTIÇA E O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
Wilson Alves de Souza
301
ENSAIOS
JEAN CHARLES DE MENEZES E O PROCESSO PENAL DO AMIGO
César de Faria Júnior
331
VEGETARIANISMO COMO AÇÃO POLÍTICA
Heron Santana
337
O DIREITO DO TRABALHO NO SÉCULO XXI
Rodolfo Pamplona Filho
341
DOUTRINA ESTUDANTIL
ARTIGOS DOS FORMANDOS
A INTERRUPÇÃO ÚNICA DO PRAZO PRESCRICIONAL NO
NOVO CÓDIGO CIVIL
Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes
347
A INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DISCIPLINAR
DIFERENCIADO
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
367
O CONCEITO DE “DÍVIDA” EMPREGADO NO INCISO LXVII
DO ART. 5.º DA CF/88 E A PRISÃO CIVIL COMO MEDIDA
COERCITIVA INOMINADA
Bruno Garcia
389
REVISITANDO A DIALÉTICA GESELLSCHAFT UND
GEMEINSCHAFT TÖNNIESIANA
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira
409
A SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS NO CASAMENTO DO
MAIOR DE SESSENTA ANOS
Ciro de Lopes e Barbuda
427
A QUESTÃO DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NOS CRIMES
TRIBUTÁRIOS E OS ASPECTOS HISTÓRICOS DE POLÍTICA
CRIMINAL
Daniele Andrade/ Claudiane Cunha
443
A POSSIBILIDADE DO CASAMENTO ESPÍRITA COM EFEITO CIVIL
Dejair dos Anjos Santana Júnior
455
VOTO SECRETO DO PARLAMENTAR: DA CRÍTICA À
LEGITIMAÇÃO
Eduardo José Suzart Filho/ Fernando B. de Oliveira Lima
471
PONDERAÇÕES SOBRE O EMPREGO DE ALGEMAS
Fabio Serravalle Franco
493
AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO RELAÇÃO DE TRABALHO X RELAÇÃO DE CONSUMO
Fernando Gomes de Almeida
515
BREVES NOTAS SOBRE A EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE GREVE
NO SERVIÇO PÚBLICO
Felipe Rondinele Nascimento Rocha
531
RESPONSABILIDADE CIVIL PELA GUARDA DE CÃES PERIGOSOS
Isabelle Virgínia Melo Fernandes Batista
563
A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA: CONCEITO, CONSIDERAÇÕES,
INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO
Joana Bonfim Machado
575
ANTECIPAÇÃO LIMINAR DA TUTELA (DE LEGE FERENDA):
HIPÓTESE DE PROCEDÊNCIA PRIMA FACIE?
Leonardo de Moura Landulfo Jorge
597
HIPÓTESES DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO
PRO MISERO COMO REGRA DE DECISÃO: ANALOGIA
IURIS TRABALHISTA
Lucas de Andrade Cerqueira Monteiro
613
DIREITO DO TRABALHO E SUA FLEXIBILIZAÇÃO
Mariana Costa Barbosa
629
A RESPONSABILIDADE CIVIL NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES
FAMILIARES
Milton Pereira da Silva Júnior
637
A ESTABILIDADE PROVISÓRIA DA EMPREGADA GESTANTE
Natália Cerqueira de Castro
655
DA NECESSIDADE DE UM NOVO TIPO PENAL: CRIME DE
TRÁFICO DE ANIMAIS
Nicolle Neves Nobre
669
A CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 285-A (IMPROCEDÊNCIA PRIMA FACIE DAS DEMANDAS REPETITIVAS)
Pedro José Costa Melo
683
UMA ANÁLISE GERAL SOBRE A EXCEÇÃO DE NÃO-EXECUTIVIDADE
E ALGUMAS PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O INSTITUTO,
APÓS A NOVA REFORMA PROCESSUAL CIVIL
Rafael Silva Ferreira
703
A CRISE ADMINISTRATIVA DOS ESTADOS OCIDENTAIS, O
MODELO REGULATÓRIO E A RELATIVIZAÇÃO DE INSTITUTOS
CONSTITUCIONAIS
Rafael Nascimento Vieira/ Tiago Amaral de Castro
727
O ASSÉDIO SEXUAL NA PERSPECTIVA DO DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO
Ramon Moura Ribeiro
739
PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA, DISTRIBUIÇÃO DISFARÇADA
DE LUCROS – DDL E VALORAÇÃO ADUANEIRA: DISTINÇÕES
NECESSÁRIAS
Raphael Moura Passos
759
EXECUÇÃO PROVISÓRIA: UM CAMINHO A EFETIVAÇÃO DA
TUTELA JURISDICIONAL
Renato Kalil
769
A INSUFICIÊNCIA PARADIGMÁTICA DO CONCEITO AMBIENTAL
DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Savigny Machado
779
APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS DURANTE O CARNAVAL DE SALVADOR (SSA), BAHIA, BRASIL
Tagore Trajano de A. Silva/ Arivaldo S. de Souza
801
PROCESSANDO JESUS POR PUBLICIDADE ENGANOSA:
BREVES NOTAS SOBRE A “RESTITUIÇÃO DE DOAÇÃO RELIGIOSA” NO DIREITO BRASILEIRO
Thiago Pires Oliveira
825
O POSITIVISMO DO TUPINIQUIM E SEUS EFEITOS
COLATERAIS NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Vinicius Conceição
845
APRESENTAÇÃO
Professor Doutor Heron José de Santana
Professor Adjunto dos programas de graduação e pós-graduação da UFBA, mestre em Direito pela UFBA, Mestre em Sociologia pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPE, coordenador do
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Direito
Ambiental e Direito Animal (NIPEDA) - www.nipeda.direito.ufba.br,
fundador da Revista Brasileira de Direito Animal e presidente do
Instituto Abolicionista Animal – www.abolicionismoanimal.org.br.
É com muita alegria que felicito aos acadêmicos da Faculdade
de Direito da UFBA que irão colar grau no segundo semestre de
2007, por mais uma edição desta Revista dos Formandos,
publicação que, desde o ano de 2001, vem divulgando artigos
científicos de professores e alunos desta faculdade.
Nada senhores... nada é mais importante no mundo acadêmico que
a produção científica de seu corpo docente e discente, e tenho certeza
que iniciativas como esta só fazem engrandecer a nossa instituição.
De fato, quando a universidade foi criada por monges cristãos,
há mais de oito séculos, nas cidades de Bolonha e Paris, ele tinha
como objetivo fomentar o conhecimento e a produção
desinteressada de novas idéias, o que acabou por constituí-la em
uma das mais importantes instituições da história da humanidade.
Vejam só! Quando Newton desvendou o segredo do arco-íris
ao decompô-lo num prisma, o poeta romântico John Keats o acusou
de haver destruído o encanto do fenômeno, num típico exemplo
de má poesia científica e charlantanismo, muito comum nas
universidades e que exercem uma péssima influência sobre as
novas gerações, fomentando dogmas e preconceitos incompatíveis
com o mundo científico.
Noutra oportunidade, durante uma sessão plenária da
Associação Britânica para o Progresso da Ciência, realizada em
13
30 de junho de 1860, em Oxford, Inglaterra, o professor Samuel
Wilberforce perguntou a Thomas Henry Huxley, um dos principais
discípulos de Darwin e especialista em símios, se ele descendia
do macaco por parte de pai ou de mãe, tendo Huxley respondido
que se tivesse de escolher o pai entre um ser ignóbil, que usa
suas faculdade mentais para obscurecer a verdade, e um pequeno
e valente macaco, preferia esse último.
Não esqueçamos as sábias palavras de Boaventura de Souza
Santos ao destacar a atual crise universitária como crise de hegemonia,
que a faz buscar meios alternativos para suprir sua incapacidade em
desempenhar efetivamente suas funções; crise de legitimidade,
decorrente do risco de mediocrização e descaracterização pela
inclusão democrática de grupos sociais historicamente dela excluídos;
e crise institucional, que a faz adotar modelos organizativos de outras
instituições, consideradas mais eficientes.
Seja como for, não podemos esquecer que esta crise somente
poderá ser superada se unirmos nossos esforços, pensando a
longo prazo os problemas da nação, produzindo conhecimentos
para além das exigências do mercado e divulgando idéias que
contribuam para a edificação de uma ponte segura entre o presente
e o futuro do país.
A tradição dos formandos de publicar uma revista como essa é
uma clara demonstração de que estamos apurando o nosso
habitus científico, que, dirá Pierre Bourdieu, é uma espécie de jogo
acadêmico que faz com que façamos o que é preciso fazer no
momento próprio.
Não se iludam, a escolha livre de temas de investigação ainda
se constitui na mais importante marca ideológica de uma
universidade que se pretenda digna desse nome, a despeito dos
que ainda insistem em transformá-la em um mero centro de formação
profissional.
14
Apresentação
DOUTRINA INTERNACIONAL
A REPRESENTAÇÃO METANORMATIVA DO(S)
DISCURSO(S) DO JUIZ : O «TESTEMUNHO»
CRÍTICO DE UM «DIFERENDO»? *
José Manuel Aroso Linhares
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, professor convidado do Departamento de Direito
da Universidade Lusófona do Porto.
I
Dirigirmo-nosà jurisdição como intenção de realização e como
discurso — reconhecendo explicitamente as «situações institucionais» que constituem (ou podem constituir) o modus
operandi deste discurso e o(s) «projectos» ou exigências de sentido
que iluminam (ou que devem iluminar) aquela intenção1 — é hoje
enfrentar uma diversidade sem precedentes de representações
possíveis. Espectro cujo problema gostaria aqui e agora expressamente de considerar. Sem esquecer que este problema é menos
o da diversidade de representações enquanto tal — inscrita numa
pluralidade (não menos complexa) de concepções do direito —
do que o da possibilidade e o da exigência de a testemunhar — e
então e assim também o de encontrar o caminho e o idioma indispensáveis2.
Um problema no qual importa imediatamente mergulhar, ainda
que apenas para surpreender as vozes (mais significativas) desse
espectro. Admitindo que esta primeira tentativa de reconhecimentomapping possa socorrer-se já de um filtro de inteligibilidade
plausível (entre muitos outros mobilizáveis). Um filtro de
inteligibilidade capaz de iluminar o espectro em causa sem reduzir
a extensão das possibilidades (mais ou menos contingentes) com
que este se nos oferece e sem impor a estas possibilidades
17
territórios estanques… mas então também capaz de respeitar a
«estrutura» heterotópica que os diversos discursos e os diversos
projectos — e todos eles como sujeitos-partes num sentido
absoluto — compõem3. Um filtro de inteligibilidade que as nossas
preocupações presentes possam imediatamente reconhecer (com
o qual estas inevitavelmente se cruzem)…
Que filtro de inteligibilidade? Atrevo-me a propor aquele que
mobiliza o contraponto sociedade / comunidade (societas /
communitas, Gesellschaft / Gemeinschaf). Um contraponto que
nos remete decerto para a «distribuição» consagrada por TÖNNIES,
mas que nos remete sobretudo para o debate plural que as teorias
(políticas) da justiça autonomizaram (e que hoje se nos tornou
implacavelmente presente)4. Tratando-se de resto aqui e agora
menos de convocar os interlocutores deste debate (e as «soluções»
individualistas e comunitaristas que os seus tempos específicos
nos permitem reconhecer) do que de submeter as representações
internas da jurisdição — e os modelos ou «imagens» do juiz que
estas constroem — a uma organização-demarcação justificada
por exigências e por recursos de integração (mas também por
tipos de racionalidade) inconfundíveis — precisamente aqueles que
os referidos pólos justificam (ou atraem).
Que esta organização está longe de reduzir as possibilidades
do espectro interpelado, é o que poderemos confirmar identificando os caminhos que ela nos oferece e levando a sério a
distribuição correspondente.
1. Tratando-se desde logo de experimentar o horizonte da
societas-artefacto e (ou) de identificar assim três planos ou níveis
de objectivação (e a sobreposição-overlapping que os articula).
[á] Aquele que, permanecendo fiel à narrativa de uma criação ex
nihilo e ao homem desvinculado («independente de toda e qualquer
tradição»5) que por ela se responsabiliza — se não mesmo ao status
naturalis e (ou) à original position (universalmente representados),
18
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
que a tornam possível —, nos incita simultaneamente a descobrir
na emancipação lograda dos interesses e na equivalência dos
fins — mas também na redução dos referentes (e dos critérios)
materiais a um acervo de afirmações de preferência
(subjectivamente experimentadas) — as coordenadas decisivas do
seu problema (e da ordem que o assimila)6.
[â] Ainda aquele que, encontrando no eixo da episteme e nas
«inferências» que este legitima o reservatório-círculo dos
procedimentos metódicos permitidos, submete este mesmo eixo
a um processo-movimento de transformação — capaz de
acompanhar os projectos interpretativos da comunidade dos
cientistas (e os códigos de relevância e de comprovaçãofalsificação que estes mobilizem)… mas também capaz de
institucionalizar diversos equilíbrios (que o reformulem sob as
máscaras de uma episteme-techné… e de uma techné-episteme,
abrindo-o a outros tantos discursos de razões).
[ã] Sem esquecer aquele que, num traçado paralelo,
responsabiliza as abstracções condutoras da ratio-voluntas e dos
interesses emancipados — se não já a herança da reine praktische
Vernunft e as diversas reformulações do principle of utility (os
«argumentos» de KANT e os «argumentos» de BENTHAM)7 — por
uma tensão constitutiva irredutível e um pluralismo interno
iniliminável, precipitados em outros tantos modelos de equilíbrio
(as an appeal to one out of several conceptions of universalizability
or to one out of equally multifarious conceptions of utility8).
Tratando-se então de experimentar o horizonte da societasartefacto… expondo-o numa (ou como uma) sucessão-continuum
de formas e de processos de associação — formas e processos
que exigem palcos distintos.
Palcos que hão-de corresponder a outras tantas possibilidades
da «sociedade aberta» moderno-iluminista, na mesma medida
em que consagram distintos «estatutos» universais de
José Aroso Linhares
19
cidadania — dominados pela garantia da compossibilidade dos
arbítrios, pela efectividade da expansão-generalização dos
benefícios ou pelo equilíbrio da auto-diferenciação sistémica
(autopoieticamente concebida) 9 … mas também e muito
significativamente expostos às finalidades contrapostas de um
market mimicking (POSN E R) e de um paradigma
«comunicacional» (HABERMAS).
Bastando-nos aludir a esta sobreposição-overlapping de
exigências (e à sua difícil distribuição interna) para perceber que a
identidade da jurisdição interrogada na perspectiva da societas
se determina reconhecendo as possibilidades de uma relação
orgânica: relação orgânica com a unidade-ordem (politicosocialmente construída) e com o status adventitius que a
institucionaliza, mas também e muito especialmente com a «vontade
unificadora» (globalmente promulgada) que a representa. e então
e assim também com a lex e com o legislador — com aquela lex e
com aquele legislador que uma certa «revolução»-acontecimento
(als Revolution [eines] geistreichen Volks10) tornou afinal possíveis.
Sem esquecer que esta mesma determinação se cumpre
unilateralmente: levando a sério as possibilidades de sentido desta
prescrição-lex e (ou) reconhecendo as condições funcionais que
a especificam ou experimentam — como norma, como imperativo
ou como regra11, mas também e muito significativamente como
programa (condicional, final ou relacional12). O que é ainda poder
reconhecer três grandes discursos em alternativa (e uma
multiplicidade de especificações possíveis): aqueles (e aquelas)
que as racionalidades lógico-dedutiva, instrumental-estratégica e
prático-(se não já pragmático-)-procedimental nos permitem
reconhecer. De tal modo que darmo-nos conta daquela
sobreposição-overlapping (e dos caminhos que esta distingue)
signifique também reconhecer (distribuir… e relacionar) os lugares
que as diversas representações do juiz da societas nos autorizam
afinal a frequentar. Partindo do juge bouche de la loi do «paradigma
20
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
da aplicação»13 — ou da máscara orgânico-funcional que o protege
(e que o consuma como juge arbitre14) —… para reconhecer o
juge entraîneur e a passagem da «judicatura à magistratura» (le
modèle de justice normative-technocratique) justificados pela
intervenção do Estado Providência15 — se não já a «jurisdição de
tipo sociológico» a que nos entrega a etapa de l’Âge de l’hommeforme contemporaine (e esta como sociedade da segurança e
dos seguros, que é também da solidariedade)16. Antes porventura
de exigir que o juiz político do grande consenso constitucional
(táctico comprometido com uma grande estratégia material)17 se
distinga do juiz-«centro do sistema» (justificado pela reformalização
pós-instrumental)18. Sem esquecer a «fuga para frente» da social
engineering e o projecto-território do teleologismo tecnológico
que a torna possível19: enquanto e na medida em que transforma a
decisão judicial num degrau equivalente ao da execução
administrativa.
Como se apenas uma «diferença de grau» (e não uma «diferença
essencial») separasse estes dois problemas (inevitavelmente
confundidos nos seus processos de decisão e nos exercícios de
«fantasia prática» que justificam) daquele que corresponde à
construção (-determinação) da estratégia legislativa. Uma estratégia
que a social engineering em causa reconstitui à luz de um princípio
epistemológico de experimentação crítica (e dos princípios-ponte
que o especificam20).
O que nos conduz também à (singular) concertação de free
market conservantism e de recusant substantial pragmatism
(alimentada por uma profissão de fé nas virtudes do trial and error
e da rule of law) que distingue o juiz da economic analysis21 —
muito especialmente aquele que interpreta o «interesse público» à
luz de um objectivo de «maximização da riqueza (wealth
maximization is not only a guide in fact to common law judging,
but also a genuine social value and the only one judges are in
José Aroso Linhares
21
good position to promote22). O que nos conduz ainda a novas e
surpreendentes combinações de argumentos formalistas e
instrumentais (se não, insista-se, das heranças ou de certas
heranças de KANT e de BENTHAM): aquelas que a institutional
theory of law (MACCORMICK23) por um lado e o new textualism
(VERMEULE24) por outro lado nos ensinam a reconhecer.
Sem esquecer por fim as margens. Aquela em que a relação
legislador estratega / juiz táctico se nos impõe «perturbada» pela
interferência de «estratégias» alternativas — estratégias que só
uma distinta compreensão da societas e da relação teoria/ praxis,
se não da ciência como «ontologia do ser social» (alimentada pelas
possibilidades-frentes de reinvenção do holismo crítico-dialéctico)
estará afinal em condições de assumir25. Ou ainda aquela que
invoca a condição pós-moderna de uma societas «em rede»
(sustentada numa pluralidade de níveis de poder e numa desordem
dominada de processos de transformação) para nos submeter à
exigência de um direito «líquido» (intersticial) : o direito que um
certo juiz Hermes estará em condições de reconhecer e de
experimentar26.
2. Dificuldades de determinação (e de reconhecimento de
fronteiras) que estão longe de se reduzir… se quisermos descobrir
o julgador comprometido com o regresso da comunidade.
Ainda aqui o ponto de partida admite reconstituir-se como uma
posição ou como uma frente partilhada.
[á] Aquela que reduz a experiência da societas e a identidade
colectiva que esta explora (como totalidade e como artifício) a
uma dimensão-modelo (se não a uma «tradição» interpretativa) entre
outras possíveis (como tal acompanhada de um catálogo selectivo
de virtudes e de uma representação-experiência do humano)27.
[â] Ainda e muito especialmente aquela que se propõe reinventar
a communitas na plenitude dos seus atributos simbólico-culturais:
rejeitando todos os caminhos que no-la exponham a uma
22
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
determinação-«corroboração» de elementos ontológicos
indisponíveis (ou de dimensões antropológicas naturais)… e então
e assim levando a sério a possibilidade de a assumir na
historicidade constitutiva do seu processo de realização.
O que é decerto descobrir neste processo (e na ordemordinans que lhe corresponde ou no mundo prático que esta
constrói) um iniludível (ainda que permanentemente renovado)
«sentido de continuidade» — um «sentido» que nenhuma
associação de interesses (de sujeitos individuais ou de grupos)
estará por si mesma em condições de transformar28.
[ã] Eventualmente também aquela que (numa especificação
lograda das anteriores) vincula a communitas à «tradição» de
uma praxis-prattein autónoma (logistikon bouleuesthain to
praktikon dianoètikon) e às virtudes intelectuais que a distinguem
— à actividade-energeia da phronesis e ao movimento-kinésis da
poiesis-techné —, na mesma medida em que liberta estas virtudes
(e os discursos racionais que estas geram) do horizonte de
inteligibilidade de uma ordem necessária — daquela ordem que só
a «contemplação» iluminada pela sophia (enquanto exigência de
experimentar a articulação telos / êthos como uma energeia
autónoma, cumprida como bios e como mimesis) estaria afinal em
condições de garantir 29.
Que dizer no entanto das respostas que assumem esta frente e
os seus desafios? Mais do que um overlapping de intenções
distintas (alimentadas por uma herança comum) — com o alcance
que a procura do juiz da societas (na sua inteligibilidade
macroscópico-funcional) nos permitiu descobrir — , dir-se-ia com
efeito que estas respostas — e os processos de desenvolvimento
que elas asseguram — nos impõem antes um elenco de
possibilidades alternativas (cada uma delas com diversos caminhos).
Um elenco-espectro de possibilidades ferido transversalmente
por desafios recorrentes e pelas respostas positivas e negativas
José Aroso Linhares
23
que estes exigem — aqueles que (na sua polaridade exemplar) nos
incitam a descobrir o juiz da comunidade dos princípios e o juiz
narrador (urdidor permanente de narrativas singulares e das palavras
últimas que as fecham). Um elenco-espectro de possibilidades
que não obstante confere a estes desafios (e não apenas às
respostas que os enfrentam) sentidos e representações
incomensuráveis.
Bastando-nos aqui e agora reconhecer que a reinvenção da
jurisdictio comprometida com o veio auto-subsistente de uma
philosophia practica (assim mesmo preocupada com a autonomia
constitutiva da phronesis e com a racionalidade sujeito / sujeito
que a distingue) — ela própria distribuída (quando não fragmentada)
pelos pólos–exigências da recontextualização hermenêutica e da
problematização retórico-argumentativa30 — constitui apenas um
dos eixos a ter em conta. Um eixo decerto muito complexo — capaz
de acolher discursos de fundamentação material e de determinação
procedimental… e de assumir (mas também de ignorar) uma
preocupação condutora com a autonomia do direito (ou com a
especificidade do seu logos) —… e que não obstante importa
distinguir em bloco daquele outro eixo a que a discussão da
alternativa comunitarista nos vincula (e do holismo ético-prático,
se não da abordagem macroscópica a que, independentemente
das suas modalidades, esta nos expõe31).
Sem esquecer que outros eixos nos comprometem já, em
contrapartida, com as exigências de uma comunidade-promessa
e com a experiência microscópica que a determina, se não com a
inevitabilidade de um continuum prático (um continuum prático
que sendo energeia não o seja menos kinésis e aisthesis, e que
assim mesmo nos condene a renunciar a uma phronesis
autónoma): decerto porque estes outros eixos expõem a
representação do sentido (e as possibilidades da vocação
integradora que o alimenta, se não a ordem-ordinans que o traduz)
24
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
às seduções (concertadas ou divididas) de uma moralidade política,
de uma estética do sublime e de uma ética da alteridade — a
primeira preocupada com o encontro tentacular dos efeitos de
poder e de resistência e com o «entrincheiramento de hierarquias»
que suspende (ou vai suspendendo) o seu movimento perpétuo
(mas também e muito especialmente com a possibilidade de o
inverter)32, a segunda a mobilizar a experiência do juízo ao qual
«só o particular é dado» para reconhecer a singularidade irrepetível
de um momento de sensação aisthesis e exigir um discurso que
liberte a phronesis do pensamento prático (de um pensamento
prático sustentado numa validade normativamente vinculante)33, a
última a reconhecer que o contexto-correlato da procura da relação
singular (na unicidade e incomparabilidade do seu dizer) se
descobre enfim na perspectiva (determinante) de um «Eu de
responsabilidade infinita»34.
Alusão que nos basta para perceber que os juízes
comprometidos com o regresso da comunidade podem ser
aqueles que, assumindo a prioridade radical do texto, nos vinculam
às intentiones operis (exemplarmente contrapostas) da nova
hermenêutica e da desconstração (a estas apenas como atitudes
prático-existenciais… ou a estas também como métodos
possíveis)35. Como podem também ser aqueles que, levando a
sério a prioridade da perspectiva do caso, nos entregam às
possibilidades (inconfundíveis) de uma tópico-retórica
procedimental e de uma dialéctica sistema / problema materialmente
assumida36. Ou ainda aqueles que, convocando a prioridade
absoluta do Outro se expõem às lições (não menos exemplarmente
contrapostas) de uma jurisprudence of principles (iluminada por
uma filosofia do limite ) e de uma justiça-dike (precipitada numa
experiência momentânea da justiça)37. E porque não aqueles que
partindo de um certo literary turn (ou do cruzamento criícoreflexivamente assumido das experiências do direito e da literatura)
José Aroso Linhares
25
nos expõem tanto ao narrativismo wertrational de um communal
lawyer (traduzido numa intentio lectoris)38 e de um literary judicious
spectator (capaz de justificar uma poetic justice)39, quanto ao
narrativismo emancipatório de uma gender consciousness40 ou
de uma race consciousness41, se não já ao pathos (selectivamente
reconstruído) de uma «realização»-performance42? Sem esquecer
decerto aquele que (agindo como se fosse um advogado) nos
incita a defender uma ordem de preferências «altruísta»43. Ou ainda
aquele que (levando a sério um determinado equilíbrio com a
societas dos direitos) assume o seu horizonte wertrational (e a
exigência de integrity que o traduz) afivelando a máscara de um
Hércules44.
3. Poderíamos continuar, mas importa ficar por aqui.
Acrescentando apenas duas notas, notas que este primeiro
mergulho no diferendo nos autoriza a reconhecer. Notas decerto
indispensáveis, se tivermos presente que o problema que nos
ocupa é menos o da pluralidade de «representações» do que o
do seu testemunho (ou o do testemunho hoje exigível).
A primeira nota restitui esta diversidade (e a crise que ela indicia)
a um dos seus factores decisivos— à circunstância de um
pensamento que sendo discurso e prática (acervo de discursos e
de práticas) perdeu (superou) o seu paradigma (sem o ter
substituído por outro!)… —, na mesma medida em que insite na
perturbante discussão de fronteiras (se não colonização de
territórios) que acompanha esta «ausência». Tratando-se muito
claramente de reconhecer que a superação-dissolução do
paradigma do Método Jurídico (e outros rule formalisms) — e o
repúdio da pretendida autonomia jurídica da sua abordagem —
nos condenaram a uma explosão de modelos (e de filtros de
relevância) estranhos à experiência do direito (com discussões
sobre as fronteiras e a demarcação interior/ exterior tão exemplares
como aquelas que o neoconstitucionalismo e a Law and
26
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
Economics por um lado, as deconstructive jurisprudences e os
os narrativismos comunitaristas por outro lado nos obrigam a
travar45).
A segunda nota acentua por sua vez alguns dos perigos (se
não paradoxos) desta discussão e das vozes heterogéneas (ou
dos estímulos extrajurídicos) que esta introduz. Reconhecendo que
tais vozes — em si mesmas, mas sobretudo nos (e através dos)
dissídios que estabelecem umas com as outras… — ferem as
«práticas constitutivas da juridicidade» — e o «pensamento» que
as determina (se não já a «unidade» de «incindível circularidade»
que vincula direito e pensamento jurídico)46 — com uma ameaça
permanente de indeterminação (ou com o topos reflexivo que a
justifica).
Uma ameaça que afecta o desempenho normal destas práticas
— permitindo que o domínio dos «materiais» vigentes (princípios,
programas-standards, critérios-rules, com diversos graus de
abstracção-concretização) se abra a um espectro sem precedentes
de possibilidades de realização (e outros tantos contextos) —, na
mesma medida em que compromete a inteligibilidade-unidade do
projecto do direito e da procura que este justifica (se não dos
cânones que institucionalizam profissionalmente esta procura).
Uma ameaça no entanto que se cumpre evitando os problemas
dessas práticas (e as respostas que estes exigem); na medida em
que inscreve as vozes em causa (e a legal scholarship que as
traduz) numa espécie de vertigem auto-referencial e na cadeia de
discursos e metadiscursos que alimentam esta — com o alcance
que o diagnóstico (conjunto) de LEVINSON e de BALKIN nos
ensina a reconhecer 47. Como outras tantas pretensões de
racionalização que, dirigindo-se ou pretendendo dirigir-se (as
conclusions-claims) às práticas (de realização) do direito, só
conseguem enfrentar-assimilar os problemas dessas práticas
indirectamente, enquanto se interpelam umas às outras como
José Aroso Linhares
27
discursos ou enquanto desconstroem reciprocamente os
argumentos que as sustentam (enquanto renunciam, mais ou menos
explicitamente, à vocação-destino de uma reflexão práticonormativa). Como se se tratasse afinal de preservar uma intenção
conformadora ou de optar por uma das modalidades de
determinação (normativa ou desconstrutiva) que esta oferece, sem
descobrir no entanto o caminho que a(s) possa projectar
directamente nas práticas-alvo (e na law in action que lhes
corresponde). Ao ponto de o sucesso obtido por este espectro
de vozes inconciliáveis se reduzir paradoxalmente a um efeito de
multiplicação de possibilidades equivalentes. Um efeito que nos
expõe aos riscos do esoterismo (e da incomunicabilidade, se não
impotência) dos discursos teoréticos, na mesma medida em que
entrega estes — enquanto desfazem e refazem a urdidura-trama
que os outros engendram — a um implacável jogo de Penélope. O
jogo que Duncan KENNEDY denuncia enquanto surpreende o
movimento perpétuo dos discursos que recriam (positivamente) a
pretensão de neutralidade do julgador (how judges can and should
be neutral48)…
É certo que só compreenderemos a ironia desta reconstituição
(-interpelação!) se tivermos presente a posição de KENNEDY
(e a celebração de um juiz polticamente comprometido que a
distingue)… e se identificarmos também a crítica de formalismo
que os Critical Scholars dirigem aos discursos em causa (e às
theories of neutrality que eles defendem): é esta posição
(iluminada por aquela crítica) que leva KENNEDY a confessarse «admirador» deste jogo (e dos argumentos que nele se
esgrimem). Não decerto porque concorde com qualquer das
imagens do juiz (e da neutralidade do juiz) que nele se defendem…
mas porque lhe interessa o modo exemplar como estas
«imagens» se constroem (anulando-se reciprocamente).
Mais do que a ironia, importa- nos no entanto o diagnóstico que
a sustenta… e o sinal-rasto com que este nos fere. Mostrandonos e enquanto nos mostra que corremos o risco de mobilizar
28
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
discursos (e intenções conformadoras)… que se alimentam
menos dos problemas que pretendem enfrentar (ou converter)
do que das críticas que dirigem aos outros discursos. Sinal
que, independentemente da intensidade e da extensão com que
se nos exponha (e da maior ou menor justeza com que
corresponda à nossa situação presente!), nos basta decerto
para fazer soar uma campainha de alarme!
II
Reconhecidos os lugares/ não lugares do diferendo (e as
conexões perigosas que os sustentam), urge no entanto perguntar
se estamos em condições de o testemunhar — melhor dizendo,
de procurar o idioma (ou a sucessão de idiomas) que no-lo tornem
inteligível… e de institucionalizar esta procura (ou a mediação que
a assegure). Pergunta que nos leva a reconhecer um certo patamar
transdogmático e os desafios reflexivos que este acolhe… mas
então também a dever ter presente um percurso ele próprio muito
complexo. Um percurso que aqui e agora me atrevo a simplificar
(se não a surpreender, num flash único) invocando um contraponto
muito especial (um contraponto por movimento contrário!) e os
dois tempos que (enquanto tempos de reflexão metadogmática)
este nos autoriza a distinguir. Tratando-se de confiar uma das vozes
deste contraponto oblíquo à nossa circunstância presente ,
exigindo que a outra voz se confunda com aquela outra
circunstância a que uma certa Allgemeine Rechtslehre ou
Prinzipienlehre procurou responder,
Se o pensamento jurídico herdeiro dos Historiker — preocupado
com a autonomia de uma perspectiva interna ([als] Erkenntnis
des Rechtlichen aus rein Rechtlichen49) — nos confrontou, no último
quartel do século XIX, com a exigência de interpelar o direito
vigente a partir de um patamar metadogmático ou transdogmático
— um patamar que, pressupondo consumado o processo de autoracionalização da dogmática (enquanto «ciência do direito
José Aroso Linhares
29
dogmática» ou «ciência do direito em sentido estrito»50), admitisse
enfim «experimentar» a relação juridicidade / cientificidade /
Método e discutir a concepção do direito que a torna possível —
, o pensamento jurídico do nosso tempo e a circunstância que o
determina — enquanto prolongamento implacável de um outro fin
de siècle —, esses expõem-nos à urgência de um desafio paralelo
(também ele dominado por uma problematização da autonomia )
— mas agora para exigir que o patamar em causa e que a reflexão
crítica interna que o torna possível se ocupem prioritariamente com
o testemunho-mapping de um diferendo (alimentado por práticas
discursivas heterogéneas).
Se invoco agora este contraponto é decerto porque este nos
permite opor dois tempos exemplares… e ambos como tempos da
«teoria» do direito ( se não de um maximum de «teoria» do direito!)
: o tempo da consagração-experimentação de um discurso
dominante (als naturhistorische Anschauungsweise des Rechts51)
— e da operatória (Handwerkzeug) que o sustenta e que se diz
Método Jurídico — e o tempo da reacção-resposta à superação
irreversível deste domínio — que é também o da experimentação
crítica de uma pluralidade de práticas e de discursos possíveis (se
não o da impossibilidade de reconstruir um paradigma alternativo).
Uma oposição que nos importa… não tanto porventura para
insistir na identidade dos seus pólos e nos traços fortes que estes
justificam [1.] quanto para surpreender a conexão-vínculo que
relaciona os seus tempos de «teoria» a e o processo-provação
(se não a «estrutura» em arco) em que estes se integram [2.]
1. Insistir naquela acentuação significa decerto reconhecer
(iluminar!) o que no primeiro destes tempos corresponde à
concertação feliz (unidimensionalmente consumada) de
determinados desafios de institucionalização: daqueles desafios
a que o normativismo iluminista por um lado e a assimilação-
30
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
«domesticação» da herança dos Historiker por outro lado expõem
a relação direito / pensamento jurídico.
Antes porventura de, num exercício de acentuação de
convergências (e de frentes partilhadas), convocar o percursoesforço (e as aquisições-resultados) dos legal formalisms (e
outros rule conceptualisms) anglo-saxónicos… e de permitir
assim que à lição da Theorie der juristischen Technik do
«primeiro» J HER ING se associe a síntese metódica de
LANGDELL (as a project of structuring law into a system of
classification)52.
Para que o segundo tempo se ofereça à sua teoria do direito (e
deva ser reconstituído por esta) com a auto-subsistência (não
menos luminosa) de uma institucionalização «modelar» (que se
quer e que se diz pós-postivista).
Aquela que (entre muitas outras representações possíveis) OST
nos ensina a reconhecer enquanto evoca a «temporalidade
metamórfica» (o tempo da conversão progressiva das
identidades-instituições) da nossa circunstância presente53 e o
«mundo em rede» (reseau) que lhe corresponde54. Na mesma
medida em que, reconhecendo que as «fronteiras» interior /
exterior se tornaram definitivamente «porosas» e «reversíveis»55,
permite que aquela teoria56 se nos imponha (ou seja garantida)
com uma inteligibilidade inconfundível ¯ uma inteligibilidade ela
própria alimentada pela reconciliação dialéctica compreensão /
explicação ou pela perspectiva externa (moderada) que a
traduz57 (se não directamente por um paradigma de jogo58).
2. Reconhecer a vinculação que relaciona estes dois tempos e
surpreender a «estrutura» em arco (certamente muito complexa)
em que estes participam — sem esquecer evidentemente a lição
de transparência que a primeira acentuação nos proporciona (e
o esclarecimento indispensável que esta representa!) — significa
em contrapartida estar em condições de acompanhar a dialéctica
de «ordem» e de «aventura» que, nos últimos cem anos — em
nome de possíveis teoria(s) do direito (retocando ou substituindo
José Aroso Linhares
31
as máscaras que estas exigem) — o pensamento jurídico tem
vindo a assumir.
Mas então acompanhar uma tal dialéctica… descobrindo nos
projectos fundadores de MERKEL, de BERGBOHM e de
BIERLING — e nas diferenças exemplares com que estes
alimentam a exigência comum de uma allgemeine Rechtslehre ou
Prinzipienlehre (e esta como parte integrante, se não como núcleo
motor, de uma nova filosofia do direito positivo) — menos o culminar
de um «ciclo» (que certamente também representam!) do que o
entreabrir (mais ou menos perturbador) de uma porta. Uma porta
que nunca mais voltará a ser fechada, cujos (perigosos) limiares
não tardarão de resto a ser ultrapassados.
Bastando-nos aqui e agora perceber que o estímulo que
determina o novo patamar reflexivo ([als eine] Rechstlehre (…)
die juristisch durch und durch (…) ist59) — e que o obriga a
distinguir-se tanto do processo de objectivação-revelação dos
dogmata confiado à ciência do direito (als dogmatische
Rechtwissenschaft) quanto do «piso térreo» legitimado pelo
esforço percursor da Analytical School of Jurisprudence
(reconduzível a uma pura «teoria de conceitos gerais»60)… mas
também a distanciar-se da «filosofia do direito tradicional» (se não
a eliminar toadas as sobrevivências do jusnaturalismo) 61 — é afinal
a oportunidade de interrogar a herança pluridimensional da Escola
Histórica e (ou) a divisa de assimilação-superação que lhe faz
justiça: «durch die Historische Schule, aber über die Historische
Schule hinaus!»62. Uma oportunidade determinada pela exigência
de alargar a perspectiva metódica aos domínios (aparentemente
mais perigosos) das «instituições públicas»? Antes uma
oportunidade provocada por indiscutíveis sinais de crise (e outras
tantas resistências internas). Que outros sinais (e resistências)
senão aqueles que encontram na acentuação pragmática (mais ou
menos explicitamente integrada) do «segundo» JHERING e na
32
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
auto-denúncia que esta compõe (ainda que porventura já não na
viragem exterior que esta estimula) os seus exemplos-limite63?
Tratando-se muito claramente de reconhecer que a especificação
puramente dogmática do Método (enquanto determinação lógicoestruturante do Inbegriff «sistema», submetida à auto-subsistência
de uma representação normativista) — na medida precisamente
em que se mostra por si só incapaz de respeitar o equilíbrio lógica
/tempo, sistema / história exigido pela herança de SAVIGNY —
corre o risco de se degradar num mero «domínio cognitivo de
prescrições legislativas» (eine bloße Gesetzeskunde64). O que é
também e ainda exigir uma instância de reflexão diferente, capaz
de recuperar a importância do método histórico (e com esta o
equilíbrio perdido com os métodos sistemático e dogmático stricto
sensu)65.
Uma instância que reaja a uma das consumações inevitáveis da
ciência do direito dogmática: aquela que reduz a compreensão
da «história» (als historische Betrachtungsweise) a um mero
correlato (ou condição de inteligibilidade) do sistema jurídico.
De um sistema no qual a máscara da unidade-axioma
(excedendo as suas possibilidades originariamente expositivas)
se sobrepôs definitivamente à máscara do organismo66.
Como se se tratasse afinal de concluir que é à interrogação
filosófica —purificada como episteme ou como episteme-nous
(libertada da matriz especulativa que a dominara durante séculos)
e simultaneamente «rejuvenescida» pelo contributo prometedor das
allgemeinen Lehre dos juristas (se não dos juristas-filósofos)67 —
que compete enfim tematizar a relação sistemático / histórico. De
tal modo que seja possível submeter a determinação-explicitação
destes dois pólos (e a representação das tensões que, na sua
irredutibilidade, estes impõem) a um novo patamar-sujeito de
preocupações sistemáticas (que sendo científicas não sejam
menos transdogmáticas). Tematizar a relação sistemático/ histórico
reconhecendo a (plena) autonomia do segundo pólo… e esta
José Aroso Linhares
33
iluminada pelo Prinzip der notwendige Geschichtlichkeit des
ganzes Prozesses68? Podemos dizer que sim. De tal modo que o
problema condutor possa ser agora o da representação do
Entwicklungsprozeß na sua dinâmica específica — na relatividade
e contingência (se não materialidade empírica) dos seus
fenómenos. Melhor dizendo, o de exigir uma teoria do direito ([als]
realistische Philosophie des positiven Rechts69) e no limite também
um conceito de direito (indutivamente justificado), nos quais a
conexão com a realidade (e com a Zusammenleben des
Menschen70) apareça como um elemento nuclear (se não como
uma differentia specifica). O que é já ocupar uma posição efectiva
(especialíssima embora!) no percurso-trend da «viragem finalista».
Como se as decisões de relevância que convertem o princípio da
historicidade do direito (ou a «ligação necessária e interior» que
este reflecte) num ob-jectum meta-dogmaticamente determinável
devessem afinal — sem prejuízo da intenção sistemático-filosófica
que globalmente se lhe dirige (e do cognitivismo estrito que esta
professa) — ser confiadas a uma conjunção-convergência de
intenções heterogéneas… Mas então também como se — sem
rupturas ou soluções de continuidade aparentes (prescindindo pelo
menos da tematização que as justificaria)… — se tratasse afinal de
reconhecer (de «delimitar») aquela «ligação» (de acumular os
elementos-recursos que no-la revelam) passando de uma
«explicação» psicológica para uma compreensão prático-cultural…
da exigência de uma decomposição analítica para a oportunidade
de uma experimentação pragmática… do confronto com ordens
contingentes de fins para a convocação integradora de um
horizonte de valores ético-comunitariamente reconhecido71. Sem
esquecer a mediação (pluralmente determinada) da alltägliche
Erfahrung e uma transação contínua entre especificações
microscópicas e representações estruturantes. Sem esquecer por
fim que a reinvenção lograda da historische Seite se cumpre
34
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
respeitando a systematische-anatomische Betrachtung
(redesenhando as fronteiras de relevância correspondentes e o
equilíbrio que estas garantem)72…
O que é seguramente abrir portas… — fazer corresponder a
representação da «realidade» do direito a um continuum de
possibilidades com uma extensão incomparável73 —, sem dispor no
entanto dos recursos indispensáveis para distinguir as intenções
envolvidas e (ou) para tematizar as possíveis soluções de
continuidade. Dificuldades que comprometem a «delimitação»
projectada? Importa reconhecê-lo. Dificuldades no entanto também
que incitam o pensamento jurídico a ultrapassar o limiar destas portas.
E a ultrapassá-los sem regresso. Ao ponto de podermos dizer
que para além destas portas todas as tentativas de determinar a
unidade e a nitidez da «província» metadogmática se cumprem já
sob o signo do confronto (se não diferendo). Aquele confronto
desde logo que — em nome de uma discussão das possibilidades
de uma certa sociologia do direito ou desta como eigene
Wissenschaft, alimentada por um conceito de direito autosubsistente (se não pela categoria lebendes Recht) —, vai opor o
cognitivismo normativista de KELSEN ao cognitivismo empírico de
EHRLICH74. Mas também aquele confronto que, acompanhando
as diversas etapas de um certo Positivismusstreit, nos obriga a
problematizar estes dois cognitivismos e as linhas de desenvolvimento
que eles abrem, mesmo quando alimentadas por novos fôlegos (os
fôlegos que hoje reconhecemos no analytical linguistic turn e na
reinvenção epistemológica do kritischer Rationalismus, mas também
no cruzamento logrado com a herança do american pragmatism)75:
a problemtizar tais cognitivismos, entenda-se, a denunciar a
compreensão «tradicional» da ciência que os sustenta; o que aqui e
agora significa submeter a província da teoria do direito (e esta como
kritische Theorie) ao «impulso ético» de uma dialéctica aberta e ao
projecto de uma filosofia concreta… e com estas às possibilidades-
José Aroso Linhares
35
exigências de um «compromisso de participação» (se não de uma
promessa de transformação-«emancipação» da praxis)76. Sem
ficarmos por aqui.. Porque há decerto ainda dois outros grandes
caminhos a ter em conta (responsáveis por outros tantos confrontos).
Caminhos decerto paralelos: enquanto e na medida em que
renunciam a iluminar a perspectiva transdogmática com uma
pretensão exclusiva de ciência (ainda que já «ontologia do Ser
social»). Caminhos não obstante inconfundíveis pelos horizontes
que assimilam. Porque se um deles nos incita a reconhecer as
possibilidades auto-reflexivas abertas pela «reabilitação da filosofia
prática» — se não mesmo a levar a sério o desafio de uma neue
Hinwendung zur Rhetorik (capaz de ocupar o nosso degrau com
uma rhetorische Rechtstheorie)77 —, o outro assume-se explicitamente
como um discurso da singularidade e da diferença — contrapondo
às pretensões da universalidade científica (e às seduções de uma
tradução holística) as expectativas de organização de um saber ou
de uma trama de saberes locais (microscopicamente determinados),
saberes que uma organização narrativa (eticamente sustentada)
deverá enfim mobilizar como parte integrante de uma atitude crítica
(e da promessa que a ilumina)78.
3. Alusão que nos basta para reconhecer uma perturbante
circularidade. Para perceber que a província metadogmática que a
allgemeine Rechtslehre abriu —enquanto patamar de interpelação
do direito (e do pensamento que dogmaticamente o assume) %
nos aparece hoje disputada pelas mesmas grandes perspectivas
condutoras que alimentam (ou que pelo menos afectam) as
«situações instutucionais» desse direito e (ou) dos discursos que
o constituem. Como se a perspectiva interrogante — aquela que
insistentemente onerámos com a responsabilidade de um
testemunho — acabasse afinal por prolongar (num outro plano) o
diferendo que constitui o seu «alvo». O que significa decerto
36
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
reconhecer a insuficiência da mediação cognitiva — a
impossibilidade de descobrirmos nesta a perspectiva integrante,
não obstante as informações preciosas que os seus diversos
planos (analítico, empírico-explicativo ou compreensivo) nos
proporcionam — , reconhecendo também a impossibilidade de
um degrau meta-discursivo (e renunciando assim à equidistância,
se não neutralidade, que este poderia garantir). Resignando-nos
com a inevitabilidade de iluminar mais um degrau na vertigem
interdiscursiva… ou de acrescentar mais um fio na urdidura de
Penélope? Antes exigindo a procura de um idioma… e uma procura
que (assumindo embora uma preocupação condutora e o
compromisso que a traduz) possa resistir a este resultado.
III
Sendo certo que o primeiro passo na procura deste idioma é
decerto aquele que problematiza a possibilidade e a necessidade
do testemunho. Um passo que estaremos em condições de
cumprir enfrentando a exemplar posição de FISH e esta como um
reconhecimento frontal de que é impossível garantir um patamar
de interrogação unívoco e produtivo79. Para o Autor de Doing What
Comes Naturally trata-se como sabemos de denunciar a
improdutividade da teoria ou de uma certa teoria, se não cálculo
teorético.
Entendendo-se por esta (ou este) a prática discursiva — e o
projecto interpretativo, mas também o acervo de «situações
institucionais» (mais ou menos partilhadas) — que tenha por
objectivo (e por horizonte de relevância) dirigir-se a outra prática.
Dirigir-se a outra prática para a delimitar como um objecto —
correlato plausível de uma intenção de conhecimento — … mas
também para a reconhecer (e filtrar) como alvo logrado de uma
conformação possível (com exigências de reconstituição ou de
transformação mais ou menos explícitas) — correlato agora de
um espectro de intenções de racionalização (que poderão ir da
desconstrução à reconstrução prático-normativa, passando
José Aroso Linhares
37
pelas intervenções da social engineering e pelas possibilidades
da regulação procedimental).
Só que se trata também de confirmar o «êxito» das «situações
institucionais» que as práticas do direito vão construindo… e a
autonomia-distinctiveness, se não felicidade (pragmaticamente
inabalável), do jogo (do desempenho) que estas prosseguem —
ou porventura mais do que isso, de reconhecer que este jogo se
distingue por uma pretensão de autonomia formal e pela eficácia
com que tal pretensão é (retorico-politicamente) defendida perante
os seus auditórios potenciais80.
Reconhecimento que condena o cálculo teorético às aporias de
um lugar / não lugar e à pretensão de exterioridade que as traduz.
Mostrando-nos que tal cálculo se constitui referindo-se a uma
outra prática — entenda-se, esgotando a sua doable activity
(institucionalmente reconhecível) no account de um «jogo»-alvo…—
, na mesma medida no entanto em que assume (explícita ou
implicitamente) uma pretensão reflexiva de suspensão ou de ruptura
% precisamente aquela que o há-de libertar das regras de um tal
«jogo» e da inteligibilidade imanente do seu processo de realização
(as an algorithmic formulation that guides or governs practice
from a position outside any particular conception of practice81).
Reconhecimento também que desvaloriza os sinais de
fragmentação e de colonização exterior que ameaçam a autonomia
do jogo do direito. Pelo menos enquanto duvida da força e da
eficácia com que os factores correspondentes se concertam… e
então e assim da sua capacidade para gerar práticas alternativas
— práticas que de alguma forma possam dizer-se qualificadas para
desempenhar as tarefas prosseguidas pelas primeiras (e imprimirlhes um sentido novo)82. O que é ainda et pour cause reconhecer
que o diferendo a que nos expusemos desde o início é afinal mais
inofensivo do que parece: tanto mais inofensivo quanto fechado
38
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
no território dos discursos académicos e incapaz de se projectar
com êxito na dogmática vigente.
Diagnóstico que nos condenaria a uma celebração da nossa
circunstância presente… se não nos abrisse também a porta para
considerar a inevitabilidade de uma certa reflexão interior (e a
legitimidade do degrau de auto-consciência ou de crítica que a
sustenta). Como se se tratasse afinal de reconhecer uma
intensificação lograda da «atenção» — não apenas compossível
com o exercício das práticas enquanto tal mas também exigida
por este ou pelos efeitos que lhe correspondem (as a heightened
degree of attention while performing in the practice)83.
Porta cujo limiar também nos importa ultrapassar. Mas agora
decerto já sem a companhia dos argumentos de FISH, antes
quebrando o voto de silêncio que estes argumentos nos impõem.
Quebrando estes votos… para admitir com resignação que
estamos condenados a participar na (se não a agravar a) vertigem
do diferendo? Seguramente que não. Antes, e em contrapartida,
para reconhecer que o compromisso a assumir por uma
fenomenologia do diferendo — por uma fenomenologia das
práticas-discursos em diferendo que se pretenda construir como
parte integrante (e eventualmente como núcleo) da teoria do direito
(ou da teoria do direito exigida pela nossa circunstância presente)
— só pode ser aquele que resulta de uma preocupação efectiva
com o problema da autonomia — autonomia do direito decerto,
mas também e indissociavelmente autonomia do pensamento
jurídico. Exigência que nos permite também perceber que o
compromisso em causa, organizando a relevância dos saberes
pluralmente mobilizáveis (e constituindo assim um filtro de
determinação indispensável), deva simultaneamente impor-se-nos
como um fundamentum relationis reconhecível — capaz de iluminarorientar os diversos confrontos e muito especialmente de justificar
José Aroso Linhares
39
os exercícios de simplificação-redução dos interlocutores (e de
concertação-distribuição das propostas) que a tradução de tais
confrontos terá que pressupor84. Um fundamentum relationis
reconhecível? Certamente. Ora reconhecível (praticocomunitariamente reconhecível) porque alimentado por uma
perspectiva interna e pela auto-reflexão (especificamente jurídica)
que esta exige.
O que é decerto retomar o desafio de FISH … mas para percorrer
caminhos diametralmente opostos. Caminhos que nos permitam
antes de mais associar autonomia e sentido e perceber que este
sentido (na sua identidade prático-civilizacional) corresponde à
continuidade (se não iterabilidade) de uma experiência de
«demarcação» humano/inumano e à procura (persistentemente
renovada) que a traduz: uma procura que responsabiliza
directamente uma forma de vida ou uma sequência de formas de
vida — se não ciclos ou etapas — … e que se determina (positiva e
negativamente) pelos rastos que estes ciclos vão desenhando e
pelas aquisições que assim se reconhecem. Rastos e aquisições
que constróem um grande projecto interpretativo enquanto refazem
a comunidade (ou a conjugação de comunidades) que o lê (e o
campo de possibilidades que esta sulca). Que forma de vida ou
que sequência de formas de vida… e que projecto interpretativo
integrador (de múltiplos projectos interpretativos)? Aquelas e
aquele que souberam inventar (e que continuam a inventar) o homo
humanus da autonomia-liberdade e da responsabilidade
comunitária… reconhecendo neste — e na felicitous performance
da sua projecção histórico-social e prático-existencial (e então
também nas soluções de integração intencional e teleologicamente
inconfundíveis que o assimilam e especificam) — o tertium
comparationis de um processo de «tematização» e de «medida»85:
que outro processo (de «comparação de incomparáveis») senão
aquele que (experimentando embora diversas representações do
40
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
equilíbrio suum / commune e da sua dialéctica) soube afinal
converter um problema necessário de partilha do mundo num
problema (prático-culturalmente auto-subsistente e como tal
também civilizacionalmente inconfundível) de suum cuique
tribuere86?
Uma autonomia e um sentido iluminados por uma vinculação
civilizacional? Importa repeti-lo. Tendo presente que tal vinculação
é aquela que, convocando as heranças polarizadas de Atenas e
de Jerusalém — e recriando permanentemente os deveres de
fidelidade (aos filósofos e aos profetas) com que estas
(irredutivelmente) nos oneram87 —, nos remete para os fogos
criadores da civitas romana e da respublica christiana. Antes de
reconhecer as aquisições irrenunciáveis da reinvenção modernoiluminista… mas também os processos de superação ou de
«reescrita» a que esta e a sua raison raisonnante incessantemente
se submetem. Aquela vinculação civilizacional que nos permite
descobrir no direito um «pormenor» decisivo de uma certa «ideia
da Europa»88? Certamente. Um pormenor culturalmente frágil
(ameaçado por uma crise de identidade profunda)… mas nem por
isso menos decisivo.
Decisivo apenas porque o seu homo humanus se nos oferece
como um «pormenor» partilhado — compossível com o
«mosaico» das «pluralidades linguística, cultural e social» que
iluminam o território desta mesma Europa e com os
«pormenores» a que estas pluralidades nos expõem? Decerto
também porque a institucionalização lograda deste homo
humanus e da procura que o reinventa (na identidade material
do seu projecto) nos proporciona a condição por excelência
dessa pluralidade ou da santificação-sancire que esta exige (a
oportunidade, se quisermos, de resistir à «avidez da
uniformidade»… e à «onda detersiva» que a propaga)89.
Mas não só nem principalmente. Decisivo também e ainda porque
esta procura e a experiência do homem-pessoa que ela renova
— e que leva a sério como uma «aquisição axiológica»
José Aroso Linhares
41
(emancipando-o de qualquer pré-determinação ontológica
universalizável)90 — continuam a interpelar-nos como um dos
eixos-interlocutores indispensáveis da nossa circunstância
presente (e do processo ou promessa de «demarcação»
humano/inumano que lhe responde). Como uma procura que
não se consumou — nem ficou prisioneira (de qualquer um) dos
ciclos de intellegere-inventio que a foram construindo —… e
que assim mesmo confronta a nossa circunstância com a
possibilidade-exigência de reinventar uma intenção condutora.
Retomar o desafio de FISH (confirmando a inevitabilidade de uma
auto-reflexão interna)… para percorrer caminhos diametralmente
opostos? Importa acentuá-lo. E acentuá-lo, insistindo no contraponto
que opõe à pretensão de autonomia que acabámos de identificar
¯ e à promessa de demarcação humano / inumano que a
responsabiliza ¯ a pretensão de autonomia-distinctiveness que
(enquanto exigência de distinção ou de determinação de traços
específicos) reconhecemos na leitura de FISH.
Compreender a primeira destas exigências é invocar
directamente um projecto interpretativo e discutir a plausibilidade
prático-cultural deste e do commune que ele constrói.
Um commune que o projecto em causa descobre na
experiência imediata da controvérsia singular — enquanto ilumina
a «interrupção» prático-mundanal que relativiza os sujeitos
envolvidos (e reconhece a trama dos direitos e deveres que
permite compará-los)… mas sobretudo enquanto «sanciona» a
possibilidade-promessa da mediação de um terceiro (e o
processo de reintegração-tratamento que este assegura). Um
commune que a representação auto-reflectida deste projecto
(se não do confronto distanciador que a pretensão de suum
cuique tribuere lhe impõe) estará por sua vez em condições de
assumir e de determinar (mas também de interpelar positiva e
negativamente): sob os traços inconfundíveis de um certo homo
humanus e da luta pelo reconhecimento que o inventa (e que o
diz pessoa)… mas então e muito significativamente como uma
ordem-ordinans de validade.
42
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
Responder à pretensão de autonomia-distinctiveness é, em
contrapartida, pensar o direito apenas como um conjunto de tarefas
de regulação socialmente eficazes ¯ tarefas que uma representação
pragmático-funcional (e esta tratada como um cruzamento de
expectativas verificáveis) pudesse distinguir de outras tarefas
sociais… e beneficiar com uma presunção de adequação
([recognizing] that a certain set of activities is appropriate to a
certain field (…), presenting the enterprise, both to the outside
world and to its members, as uniquely qualified to perform a
specific task91).
Não se tratando assim tanto de ignorar aquela luta pelo
reconhecimento e as experiências de sentido que lhe
correspondem — e que asseguram a continuidade do seu
projecto — quanto de resistir à possibilidade de «isolar» tais
experiências ou de lhes conferir uma identidade plena (ou uma
intencionalidade condutora). O que significa evidentemente
equipará-las a outras experiências, igualmente plausíveis
(sustentadas em provas de persuasão paralelas). Antes
porventura de as remeter para o interior de uma perturbante
caixa negra ou para o doing what comes naturally que protege
tal caixa… e que nos impede de a explorar.
Sem ficarmos evidentemente por aqui. Confrontar a auto-reflexão
inscrita no doing do direito e a «intensificação da atenção» que
ela exige — nos termos em que FISH no-las apresenta — com a
auto-reflexão que uma situação de crise profunda impõe hoje ao
compromisso jurídico da humanitas (assumido na sua específica
«intencionalidade à validade»92) é com efeito também identificar
dois tratamentos exemplarmente distintos do problema da
apropriação dos materiais exteriores (e das representações que o
sustentam, se não das perguntas que permitem pensá-lo): problema
que a segunda das reflexões deve levar a sério como um desafio
capital (ao ponto de se abrir a um autêntico testemunho do
diferendo)… e que a primeira proscreve (impondo um muro de
José Aroso Linhares
43
silêncios ou condenando a pergunta correspondente aos paradoxos
do theoretical calculus). Significa isto que a auto-reflexão normal
reconhecida por FISH nos obriga a confiar no êxito do processo
de apropriação desencadeado pelas práticas jurídicas — e na
eficácia da intenção condutora com que este supera as ameaças
de «colonização» —, na mesma medida em que nos obriga a
confundir o pathos de uma pretensão de autonomia juridicamente
relevante com a defesa de um «formalismo» eficaz. Sendo
seguramente outra a auto-reflexão que a nossa circunstância
espera dos discursos do direito. Uma auto-reflexão que nos mostre
desde logo que a coincidência das pretensões de autonomia
intencional e de «existência formal», longe de se impor como um
dos traços distintivos (e muito menos como uma condição de
possibilidade) do projecto interpretativo do direito, se reconduz
afinal a uma representação (historicamente contingente) do
pensamento jurídico (e deste como ciência do direito sistemática
tendencialmente «imune») — uma representação dominante no
discurso do Método Jurídico, mas que hoje se nos expõe superada
como paradigma, apenas sobrevivendo como uma concepção entre
outras possíveis. Mas então também e muito especialmente uma
auto-reflexão que, ainda num confronto directo com a primeira,
nos obrigue a celebrar uma circunstância única e a pluralidade que
a distingue… e então e assim a testemunhar o diferendo (e a teia
de Penélope dos discursos não jurídicos que nele se impõe).
Por um lado para reconstitutir criticamente o campo de
possibilidades deste diferendo e (ou) desenhar as constelações
que distribuem os recursos nele mobilizados: distinguindo as
categorias de inteligibilidade e os modelos metódicos
compossíveis com o compromisso material do direito e com a
inventio que lhe corresponde… e identificando aqueles que lhes
resistem, no significado prático-cultural das transformações que
impõem. Sem deixar assim de recriar plataformas de sobreposição
44
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
possíveis (e os critérios que as justificam). E de reconhecer outras
tantas «margens», dificilmente assimiláveis…
Por outro lado para levar a sério a especificidade prático-cultural
de um tal compromisso. Um compromisso que a societas dos
nossos dias tem cada vez mais dificuldades em identificar, enquanto
e na medida em que confunde um certo direito com o direito tout
court… mas também enquanto condena este direito (como produto
de uma civilização e do cânone que esta justifica) a uma
participação reguladora meramente instrumental. Um
compromisso que urge assim submeter a uma interrogação radical.
Uma interrogação que assuma (sem equívocos) a fragilidade
prático-cultural das “aquisições” do direito — na mesma medida
em que reconhece as “alternativas” que as desafiam93 (que as
rejeitam, mas que também as assimilam… e transformam). Mas
então também uma interrogação que possa dirigir-se a este direito
— enquanto sentido e enquanto prática, enquanto experiência
diferenciadora e enquanto ordem material —… para descobrir nele
um eixo-interlocutor indispensável da nossa circunstância presente
e (ou) da Erschütterung com que esta nos fere. Daquela
Erschütterung que nos obriga a desvelar (denunciar) os intérpretesdefensores do inumano: e então e assim a prometer-assumir um
novo patamar de humanidade.
Será isto retomar o desafio de uma auto-reflexão interna?
Admitamos que é. Reconhecendo no entanto que (em confronto
com a porta aberta por FISH) se trata aqui e agora de admitir
estímulos e exigências que estão longe de poder corresponder
às expectativas de uma «situação institucionalizada ou às rotinas
que a cumprem.. Estímulos e exigências que nos comprometem
com uma «aventura» permanente e que assim mesmo nos remetem
para as fronteiras da interpelação filosófica. Uma interpelação
«situada» (livre das aporias do não lugar)? Importa reconhecê-lo.
Que outra reflexão senão aquela que (sem garantias de «êxito»,
José Aroso Linhares
45
admitindo precisamente a possibilidade de uma resposta negativa)
… expõe a nossa circunstância presente — e esta como uma
situação histórico-existencial irrepetível (dominada pela
fragmentação e pela heterogeneidade dos discursos, se não pela
hipertrofia da discursividade) — à urgência de discutir-reinventar
uma vocação integradora?
Mas então retomar o desafio de uma auto-reflexão interna, vendo
nesta — e no testemunho do diferendo que ela estará em condições
de cumprir — menos a reconstituição de um espectro de discursos
do que a experimentação indispensável de uma situação
problemática (às quais esses discursos hão de conferir
inteligibilidades distintas, na mesma medida em que iluminam
factores e circunstâncias que os outros não estão em condições
de descobrir). Como se se tratasse afinal de respeitar a pluralidade
e as diferenças no espectro das celebrações que as prescrevem
(e dos pensamentos que as assumem), mas também, e sem
soluções de continuidade, no espectro (permanentemente
renovado) das suas manifestações problemáticas —reconhecendo
estas para além dos discursos e das capacidades de assimilação
que estes mobilizam. Não decerto para garantir a contenção de
um puro «saber local» (alla FISH) — que pudesse ser (naturalmente)
mobilizado pelo cumprimento de uma tarefa (ou pela operatória
que a orienta) —, antes para submeter a representação das situações
institucionais (em todas as instâncias da realização do direito) aos
desafios permanentes tanto de um diagnóstico de diferenças
quanto de um projecto interpretativo integrador (capaz de
experimentar internamente estas diferenças). Desafios estes que
(conjugados!) nos impedem decerto de confundir a identidade
dogmática do pensamento jurídico com a sobrevivência de uma
representação formalista (mais ou menos habilmente assimilada
pelas rotinas do seu doing) — e de assumir os silêncios
correspondentes! — mas que nos impedem também de transformar
46
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
a celebração da pluralidade num exercício de indiferenciação, que
nos entregasse às possibilidades aparentemente infinitas de um
discurso metadogmático fragmentado e à equivalência (hipertélica)
de outros tantos projectos interpretativos (se não à equidistância
dos lugares ou dos não lugares em que estes se fecham). Uma
equivalência e uma equidistância que só será evitada se (em nome
de uma teoria do direito interna, crítico-reflexivamente assumida)
admitirmos traçar um mapa e iluminar cuidadosamente
(diferentemente) os seus percursos. Sem excluir os contributos
das reflexões externas e das posturas críticas que estas autorizam
(antes tornando-os implacavelmente presentes nas suas diferenças
). Mas então impondo um projecto interpretativo que, ao oferecer
à reflexão filosófica um patamar de experimentação indispensável,
possa simultaneamente proporcionar a cada um dos projectosinterlocutores envolvidos (e muito especialmente às reflexões
metodológicas que os distinguem) um horizonte ou um quadro de
integração possível — um horizonte-quadro capaz de reconstituir
a teia dos potenciais interlocutores (ou de oferecer os sinais ou
os rastos que os iluminam)… mas sobretudo capaz de estabelecer
um diagnóstico de problemas — daqueles problemas que as
diversas concepções asseguradas por estes interlocutores (e pelos
seus jogos) exemplarmente identificam. Como se se tratasse de
reconstruir a «grande» teoria de asystatae controversiae que o
nosso complexo locus argumentativo afinal exige. Sempre
provisoriamente e em termos negativos: excluindo caminhos,
contabilizando «erros»... Numa palavra, reconhecendo o «preço»
das nossas escolhas culturalmente possíveis.
Conclusão-desafio que nos autoriza a voltar ao ponto de partida.
Responsabilizando a jurisdictio por uma forma de vida específica
e pela procura da humanitas (enquanto validade comunitária) que
esta institucionaliza)? Responsabilizando-a também pelo exercício
de um contra-poder (e dizêmo-lo com CASTANHEIRA NEVES) :
José Aroso Linhares
47
aquele contra-poder que, reconhecendo o seu interlocutor
imprescindível no «poder de programação politicamente
constituinte» e na lex que este impõe (se não na societas que
este(s) reinventa(m)), se dirige a tal poder (e às suas mediações
ou às situações institucionais que estas geram) com uma voz
autónoma — a única voz que está em condições de «postular a
validade do direito e de ser convocada exclusivamente à sua
realização» (na mesma medida em que leva a sério a dimensão
metodológica desta validade)94. Sem esquecer decerto que uma
tal procura se cumpre assimilando controvérsias situadas
(mobilizando condições institucionais e enfrentando obstáculos
ou constrangimentos exteriores) — se não respondendo (mais
habitualmente do que se pensa) a questões de fronteira (boundary
questions [which] are simultaneously inside and outside the
law95 ). Condições e obstáculos que por sua vez reforçam a
identidade desta procura e da sua intenção de realização, na mesma
medida em que a inscrevem (ou projectam) num mundo prático
continuamente reinventado. Condições e obstáculos que —
enquanto dimensões indissociáveis da nossa circunstância presente
e das preocupações que esta assume — exigem um diagnóstico
logrado dos problemas (dos problemas que tais condições
assimilam ou que tais obstáculos impõem). Aquele diagnóstico
que o testemunho do diferendo — se e na medida em que o
levarmos a sério como um diálogo plural — poderá (deverá)
eventualmente abrir.
Notas
* O presente estudo serviu de base à comunicação apresentada nas Conferências
Jurídicas 2007 da Universidade Lusófona do Porto (Departamento de Direito) no
dia 31 de Março de 2006 (I Conferência: Filosofia do direito, Teoria do direito e
Metodologia Jurídica) e a um seminário integrado num Curso (de Mestrado e
Doutoramento) de Teoria e Filosofia do Direito promovido pela Faculdade de Direito
da Universidade Federal da Bahia (Salvador, 24, 27 e 28 de Agosto de 2007).
Compreende-se assim a sua dupla publicação: no presente volume e num dos
48
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
próximos números da revista Reflexões - Revista Científica da Universidade Lusófona
do Porto.
1
«Situações instutucionais» associadas ao desempenho autónomo de uma prática
: com um alcance que a caracterização das comunidades interpretativas assumida
por FISH — muito especialmente em Professional Correctness. Literary Studies and
Political Change (Oxford Clarendon Lectures, 1993), Harvard, Harvard University
Press, 1999, pp. 19 e ss. («Distinctiveness and Its Costs») — nos ajuda a experimentar. Mas então «situações institucionais» que nos importam menos na sua projecção
estrutural (e nas opções externas que contingentemente lhes vão respondendo) do
que na sua inteligibilidade interna. Uma inteligibilidade interna que — já para além
das possibilidades que a proposta de FISH nos oferece (se não explicitamente
contra os limites que tal proposta nos impõe) — queremos vincular a um autêntico
problema metodológico de realização do direito (e à reflexão que este suscita). Para
uma autonomização do problema da jurisdição como problema intencional ou interno («o problema da intencionalidade material da própria jurisdição como jurisdição e
o sentido que ela assume e realiza»)— em confronto com os problemas estruturais ou
externos associados ao «fazer jurisdicional» («que consideram o poder, a organização, a responsabilidade e o modo desse exercício») —, ver CASTANHEIRA NEVES,
«Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”
— os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito», Boletim
da Faculdade de Direito LXXIV, 1998, pp. 3-4. Para uma acentuação da importância
deste problema do poder-função judicial — enquanto problema de sentido (o problema da «jurisdição» no seu «compromisso ao direito» e «na autónoma responsabilidade da sua histórico-concreta realização») —, ver ainda CASTANHEIRA NEVES,
«Introdução ao Colóquio “O poder (função) judicial e o direito” » (21 de Abril de 2006),
publicada em Reflexões - Revista científica da Universidade Lusófona do Porto, ano
1, nº1, 1º semestre 2006, pp. 314-315. «[N]ão está em causa, nem a sociologia — os
pressupostos, as condições e os efeitos sociais —, nem o sistema funcional — a
estrutura organizatória, a funcionalidade e a eficiência —, e sim o próprio sentido do
poder-função judicial enquanto jurisdição (…). Não o contexto (a possibilidade e as
consequências), nem o como funcional (a estrutura e o funcionamento), mas o que
(sentido e tarefa) esses poder-função é chamado a realizar nas condições contextuais
e mediante aquela funcionalidade…» (Ibidem, p. 314).
2
Se os termos pluralidade, diferendo, testemunho, procura do idioma (recorrentemente mobilizados no texto) nos remetem para a experimentação das «instâncias da
linguagem» assumida por LYOTARD, importa ver nesta convocação um mero recurso
expressivo — inteiramente desvinculado das representações da heterogeneidade e
da incomensurabilidade que singularizam a «procura filosófica» do autor de Le
différend. Para uma tradução exemplar das exigências desta procura (e dos pressupostos que a condicionam) ver LYOTARD, Peregrinations. Law, Form, Event, Columbia,
Columbia University Press, 1988, cit. na tradução ( reconstituição) francesa do próprio Autor Pérégrinations. Loi, forme, évènement, Paris, Éditions Galilée, 1990, pp. 26
e ss., 61-87 («Brèches»).
José Aroso Linhares
49
3
É ainda o universo linguístico de Le différend… corrigido embora pela mediação
exemplar de WELSCH e pelas sugestões que esta nos oferece. Assim em Unsere
postmoderne Moderne (1987), Weinheim, Acta Humaniora, 31991, pp. 227 e ss
(todo o capítulo VIII, intitulado precisamente «Der Widerstreit oder eine postmoderne
Gerechtigkeitskonzeption»), muito especialmente pp. 251-256 («Kritik des Autonomieund Heterogenitäts-Theorems»).
4
Para uma síntese reconstrutiva das possibilidades deste debate— que é também e
sobretudo uma tentativa de encontrar um caminho possível, um caminho que culmina na representação de uma concepção pós-tradicional de comunidade (dominada
pela reinvenção das exigências da solidariedade, se não pela reciprocidade de uma
celebração «afectiva» da «singularidade individual da outra pessoa») —, ver Axel
HONNETH, «Posttraditionale Gemeinschaften. Ein konzeptueller Vorschlag», in Das
Andere der Gerechtigkeit. Aufsätze zur praktischen Philosophie, Frankfurt, Suhrkamp
Verlag, 2000, pp. 328 e ss.
5
«[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate
themselves from the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely
universal, tradition-independent norms was and is not only, and not principally, a
project of philosophers. It was and is the project of modern liberal, individualist
society…» (MACINTYRE, Whose Justice? Which Rationality?, London, Duckworth,
1988, p. 335)
6
«[N]unca até então os interesses, na sua radical expressão económica, se tinham
reconhecido como autónoma dimensão humana — ou melhor, como dimensão humana socialmente autónoma…» (CASTANHEIRA NEVES, «A imagem do homem no
universo prático», Digesta – escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da
sua metodologia e outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume I, pp. 327-328)
7
MACINTYRE, Whose Justice? Which Rationality?, cit., p. 353 («the Enlightnment
invoked the arguments of Kant or Bentham…»).
8
Ibidem, p. 334.
9
Sublinhando a institucionalização do paradigma moderno-iluminista que corresponde
ao ciclo da «formalização» e as experiências de «crise» desse mesmo paradigma que
correspondem à «neomaterialização» do Welfare State e à «formalização e
reprocessualização» pós-instrumentais, ver por todos CASTANHEIRA NEVES, O
problema actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, Coimbra-Lisboa 1997,
polic., pp. 15-52.
10
KANT, Der Streit der Fakultäten (1798), zweiter Abschnitt (Der Streit der
philosophischen Facultät mit der juristischen), cit. na compilação de textos de KANT
proposta por Manfred RIEDEL sob o título Schriften zur Geschichtsphilosophie ,
Stuttgart 1974, reedição de 1985, Reclam Universal-Bibliothek (nº 9694), Philipp
Reclam jun. GmbH & Co., reimpressão de 2004, pp. 190 e ss (6. «Von einer Begebenheit
unserer Zeit, welche diese moralische Tendenz des Menschengeschlechts beweiset»)
50
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
11
Com o alcance que CASTANHEIRA NEVES nos ensina a reconhecer: « “Norma”
em sentido estrito implica uma intencional e constitutiva racionalidade – norma é
ratio, uma ratio que a sua normatividade assimilaria e ela exprimiria. (…) Imperativo
implica um poder e imputa a exigência ou imposição de um determinado comportamento, que a sua prescrição enuncia, à voluntas de uma potestas (…). Por sua vez,
“regra” é uma directiva para a acção, qualquer tipo de acção, que nem se funda
numa específica racionalidade ou a exprime (como a norma), nem é imposta por um
poder (como o imperativo), mas traduz uma mera convencionalidade, [esgotandose] na prescritividade dela resultante…» [ Teoria do direito. Lições proferidas no ano
lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra 1998, (versão em fascículos) pp. 77, 83,
87, (versão em A4) pp. 42, 46, 48].
12
Trata-se evidentemente de o dizer com TEUBNER, invocando o conhecido
diagnóstico de «Reflexives Recht. Entwicklungesmodelle des Rechts in vergleichender
Perspektive», Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, volume 68, 1982, pp.13 e ss.
13
Ver a reconstituição-síntese deste paradigma proposta por CASTANHEIRA NEVES na Teoria do direito…, cit., (versão em fascículos) pp. 103-110, (versão em A4)
pp. 57-60.
14
Para o dizermos invocando o modelo de justice légaliste-libérale autonomizado por
François OST, «Juge-pacificateur, juge-arbitre, juge-entraîneur. Trois modèles de
justice», in GÉRARD /KERCHOVE / OST (ed. ) Fonction de juger et pouvoir judiciaire,
Transformations et déplacements, Bruxelles,Presse des Facultés Universitaires SaintLouis, 1983, pp. 1 e ss, 37-38, 57-58.
15
Ainda segundo o mesmo diagnóstico e os tipos ideais que este autonomiza:
ibidem, pp.11-15, 20-21, 23-25, 38-44, 45-57, 58 e ss.
16
Para o dizermos agora com François EWALD: cfr. Foucault, la Norme et Le Droit,
Paris, Gallimard, 1980, cit. na versão portuguesa Foucault, a norma e o direito,
Lisboa, Vega, 1993, pp. 88-98, 106 e ss, L’État-Providence, Paris 1986, pp. 141 e ss
(Livre II, Le risque), 171 e ss («Un art des combinaissons»), 433 e ss («Droit social»),
577-600.
17
Para uma reconstituição crítica desta proposta de juiz político (enquanto «conversão» da teleologia mobilizável aos «compromissos e ao espírito do sistema políticonormativo constitucional») ver CASTANHEIRA NEVES: Teoria do direito…, cit., (versão em fascículos) pp. 227-234, (versão em A4) pp.121-124 e «A redução política do
pensamento metodológico-jurídico», Digesta, cit., volume II, pp. 404-409.
18
Com o alcance defendido por LUHMANN em Das Recht der Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1993, pp. 338 e ss, 387 e ss.
19
De acordo com a proposta justificada por Hans ALBERT: cfr. exemplarmente os
desenvolvimentos propostos em «Das Problem der sozialen Steueurung und die Idee
einer rationalen Jurisprudenz», capítulo III do Traktat über rationale Praxis, Tübingen,
José Aroso Linhares
51
Mohr Siebeck, 1978, pp. 60 e ss, Rechtswissenshaft als Realwissenschaft. Die Recht
als Sozialtatsache und die Aufgabe der Jurisprudenz , Baden-Baden, Nomos
Verlagsgesellschaft, 1993, passim, e «Werturteil, Recht und soziale Ordnung: zur Kritik
der Normativismus und der reinen Jurisprudenz», Kritisher Rationalismus. Vier Kapitel
zur Kritik illusionären Denkens, Tübingen, Mohr Siebeck, 2000, pp. 41 e ss.
20
Traktat über rationale Praxis, cit., pp.150-155, 171-182.
21
Com o alcance que pudemos reconstituir em «A unidade dos problemas da jurisdição ou as exigências e limites de uma pragmática custo/benefício. Um diálogo com
a Law & Economics Scholarship», Boletim da Faculdade de Direito LXXVIII, Coimbra,
Coimbra Editora, 2002, pp. 65 e ss., 141-160 (5.3.).
22
POSNER, The Problems of Jurisprudence, Harvard,Harvard University Press, 1990,
p. 360. «The economic analysis of legislation implies that fields of law left to the
judges to elaborate, such as the common law fields, must be the ones in which
interest-group pressures are to weak to deflect the legislature from pursuing goals
that are in the general interest. Prosperity (…), which wealth-maximization measures
more sensitively than purely monetary measures (…), is one of these goals, and the
one that judges are especially well equipped to promote…» (Ibidem, p.359).
23
Cfr. a exploração dos diversos tipos de racionalidade proposta em Legal Reasoning
and Legal Theory, Oxford, Oxford University Press, 1978, cit. na reimpressão de 1997
(da versão revista de 1994), pp. 53 e ss. («Deductive Justification — Pressuppositions
and Limits»), 100 e ss. («Second-Order Justification), 128 e ss («Consequentialist
Arguments»), 265-274 («Law, Morality, and the Limits of Practical Reason»).
24
Cfr. a justificação empírico-estratégica do textualismo formalista (ou da decisão
que o assume como proposta interpretativa) defendida por Adrian VERMEULE em
«Interpretative Choice», New York University Law Review , volume 75 nº 1, 2000, pp.
74-149.
25
Referimo-nos às teorias críticas do direito explicitamente inscritas na herança da
Escola de Frankfurt. Como um exemplo possível, invoque-se a construção (relativamente heterogénea) proposta por Luiz Fernando COELHO em Teoria Crítica do
Direito, Porto Alegre 1991, passim. Para uma reconstituição das «imagens» do juiz
comprometidas com estratégias alternativas (distinguindo as experiências do uso
alternativo del diritto e dos jueces para la democracia do chamado «direito alternativo brasileiro»), ver por todos Lédio Rosa de Andrade, Introdução ao direito alternativo brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1996, pp. 105 e ss («História do
Direito Alternativo Brasileiro»), 186 e ss. («Jurisprudência alternativa»), 235-297 («Identidades e diferenças com os Europeus»).
26
Com o alcance que mais uma vez OST nos permite reconhecer, agora em «Jupiter,
Hercules, Hèrmes: Trois Modelés du Juge», in Pierre BOURETZ (org.), La Force du
Droit. Panorama des débats contemporains, Paris, Esprit, 1991, cit. na tradução
52
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
castelhana «Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez», Doxa, nº 14, 1993,
pags. 169 e ss., 182-194 («Hermes, la red y el banco de datos»).
27
Com o alcance que o diálogo com o narrativismo comunitarista nos permitiu defender em « Humanitas , singularidade étnico-genealógica e universalidade cívicoterritorial. O “pormenor” do Direito na “ideia” da Europa das nações: um diálogo com
o narrativismo comunitarista», Dereito. Revista xurídica da Universidade de Santiago de Compostela, volume 15, número 1, 2006, pp. 34 e ss. (3.4), 41 e ss (3.5).
28
Ainda que uma tal associação determine um acontecimento ou desenvolvimento
«traumático». Decerto porque este acontecimento terá que ser colectivamente experimentado e (como tal) internamente assimilado. As transformações (se ocorrerem)
serão aquelas que a assimilação prático-comunitária «legitimar». Neste sentido, cfr.
«Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial…»,
cit., pp.21-22 (1.).
29
Trata-se evidentemente de pressupor o «equilíbrio» autonomizado no livro VI da
Ética a Nicómaco, assumindo simultaneamente a exigência de o superar (e de o
superar convocando um outro sentido da prática e o horizonte de inteligibilidade que
lhe dá sentido). Para uma reconstituição da compreensão aristotélica, convoquemse as mediações imprescindíveis de Pierre AUBENQUE, La prudence chez Aristote,
Paris 1963, cit. na tradução castelhana La prudencia en Aristóteles, Barcelona,
Crítica, 1999, pp.43 e ss. (toda a segunda parte) e de Joseph DUNNE, Back to thr
Rough Ground. Practical Judgment and the Lure of Technique, Notre Dame (Indiana), University of Notre Dame Press, 1997, cit. na reimpressão de 2001, pp. 237 e ss.
(«Theory, Techne, and Phronesis: Distinctions and Relations»), 275 e ss. («The Circle
between Knowledge and Virtuous Character: Phronesis as a Form of Experience»).
30
Cfr. a síntese proposta por CASTANHEIRA NEVES na Metodologia Jurídica.
Problemas fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora,1993, pp.70-78.
31
Cfr.a síntese destas «modalidades» ensaiada por Kurt SEELMANN em
Rechtsphilosophie , München, Beck, 3ª edição (ampliada), 2004, pp. 193 e ss.
(«Kommunitaristische Gerechtigkeitstheorien»).
32
Trata-se de invocar a herança de FOUCAULT assimilada (selectivamente) pelos
Critical Legal Scholars. Para um desenvolvimento crítico das possibilidades deste
«cruzamento», ver Ana Margarida GAUDÊNCIO, Entre o centro e a periferia : a
perspectivação ideológico-política da dogmática jurídica e da decisão judicial no Critical
Legal Studies Movement (Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Filosóficas),
Coimbra, polic., 2004 (a publicar em breve), pp. 39 e ss (2.2.3.), 190 e ss (4.3.).
33
O caminho é agora a «reconversão» lyotardiana da estética kantiana do sublime,
na tradução expressamente assumida por WE LSCH (que algumas linhas das
Postmodern Jurisprudences virão a assimilar). Para uma reconstituição das possibilidades deste caminho (e do horizonte que este impõe à «interpretação», se não
«reescrita», do livro VI da Ética a Nicómaco) veja-se o nosso Entre a reescrita pós-
José Aroso Linhares
53
moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença…, Coimbra, Coimbra
Editora, 2001, pp. 241-265, 481 e ss., 495-507.
34
Com o alcance que explorámos em «O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos
com Levinas e Derrida», in CANOTILHO / STRECK (org.), Entre discursos e culturas
jurídicas, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp. 181 e ss.
35
Para uma síntese das duas concepções da intentio operis aqui em confronto ver
Manuel Alexandre JÚNIOR, Hermenêutica Retórica. Da retórica antiga à nova
hermenêutica do texto literário, Lisboa, Livraria Espanhola, 2004, pp.164 e ss.
(«Facetas de uma estratégia hermenêutica global»). Sem esquecer os textos
exemplares que integram Diane P. MICHELFELDER/ Richard E. PALMER (ed.),
Dialogue and Deconstruction. The Gadamer-Derrida Encounter , New York, State
University of New York Press, 1989, passim.
Para uma reconstituição crítica das exigências da hermenêutica compreensiva como
«filosofia prática» e como «método» (nos seus cruzamentos exemplares com o discurso jurídico), ver CASTANHEIRA NEVES, O actual problema metodológico da interpretação juridica, I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 46-107, 362 e ss., 378 e ss.
e A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia. Tópicos
para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação, Coimbra, Coimbra Editora, 2003,
pp. 58-68.
Já a discussão das máscaras do desconstrutivismo «pós-estruturalista» ( la
Déconstruction, the Deconstruction with a capital “D”) enquanto reflexão «filosófica»
e enquanto proposta «metódica» — na sua relação decisiva com os Critical Legal
Studies (se não mesmo com uma etapa-geração específica destes «estudos») —
leva-nos a convocar três impressivas sínteses de BALKIN: «Deconstructive Practice
and Legal Theory», Yale Law Journal, volume 96, 1987, 743 e ss., «Deconstruction»,
in D. PATTERSON (ed.), A Companion to the Philosophy of Law and Legal Theory,
London, 1996 e «Deconstruction’s Legal Career» (1998), on line text [todos disponíveis na Jack Balkin Home Page, http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin]. Veja-se
também a reconstituição que propusemos em «Autotranscendentalidade,
desconstrução e responsabilidade infinita. Os enigmas de “Force de loi”», Ars Iudicandi.
Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves, número especial
do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (a publicar em
breve), pontos 1. (notas 3-11) e 3.1.
36
Para reconhecer estes dois pólos de compreensão da prioridade do caso (e da
perspectiva que o assume), ver o diálogo crítico que CASTANHEIRA NEVES desenvolve com a racionalidade tópico-argumentativa (enquanto convoca o eixo validade
/ dogmática / sistema e a autonomia irredutível que lhe corresponde, na sua dialéctica
constitutiva com o problema): Metodologia jurídica, cit., pp.72-74 [ááá)], 78-81[äää)].
37
Trata-se de confrontar as propostas de Drucilla CORNELL (The Philosophy of
Limit, New York/London, 1992) e de Costas DOUZINAS / Ronnie WARRINGTON
(Justice Miscarried. Ethics, Aesthetics and the Law, New York/London/…, Harvester
Wheatsheaf, 1994). Para uma reconstituição do núcleo destes dois discursos, veja-
54
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
se o nosso «Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita…», cit., (respectivamente) pontos 5.2.4.3. e 5.2.4.1.
38
É a proposta de James BOYD WHITE (de Heracles’Bow. Essays on the Rhetoric
and Poetics of the Law, Madison, The University of Winsconsin Press, 1985 a The
Edge of Meaning, Chicago, The University of Chicago Press, 2001), com a qual nos
temos também recorrentemente ocupado: cfr. Entre a reescrita pós-moderna da
juridicidade e o tratamento narrativo da diferença…, cit., pp. 679 e ss, «O logos da
juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a
literatura (law as literature, literature as law) à analogia com uma poiesis-techné de
realização (law as performance)» Boletim da Faculdade de Direito LXXX, Coimbra,
2004, pp. 66-84. , « Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade
cívico-territorial…», cit., pp.53-59 (3.6.), 60-62.
39
Trata-se de convocar Martha NUSSBAUM e a proposta explícita de Poetic
Justice.Tthe Literary Imagination and Public Life , Boston, Beacon Press Books,
1995, pp. 72 e ss («The Judicious Spectator»), 86-90 («Judicial Neutrality»), 99 e ss
(«Poetic Judging»).
40
Para uma reconstrução-síntese do universo plural da Feminist Legal Analysis, ver
Gary MINDA, Postmodern Legal Movements. Law and Jurisprudence at Century’s
End, New York /London, New York University Press, 1995, pp. 128-148. Para uma
consideração específica da proposta de Robin WEST (num confronto directo com a
compreensão do homem assumida por POSNER, ver ainda Ana Margarida
GAUDÊNCIO, «Às portas da lei (?): reflexos do diálogo divergente entre West e
Posner sobre as possíveis leituras de Kafka na perspectivação do homem perante
o direito» (a publicar brevemente em Reflexões - Revista Científica da Universidade
Lusófona do Porto).
41
O discurso é agora o dos Critical Race Scholars: ver por todos Richard DELGADO
/ Jean STEFANCIC, Critical Race Theory: an Introduction, New York /London, New
York University Press, 2001, pp. 37 e ss. («Legal Storytelling and Narrative Analysis»).
42
Com o alcance que as propostas conjuntas de Sanford LEVINSON e Jack BALKIN
nos autorizam a considerar (Law as performance) e que procuramos reconstituir em
«O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos…» , cit., pp. 84
- 132 (3.), mas também em «Recht als dramatische und musikalische Aufführung:
eine fruchtbare Analogie?», in Erich SCHWEIGHOFER, Doris LIEBWALD, Mathias
DRACHSLER, Anton GEIST (Hrsg.), E-Staat und e-Wirtschaft aus rechtlicher Sicht.
Aktuelle Fragen der Rechtsinformatik , Tagungsband des 9. Internationalen
Rechtsinformatik Symposions IRIS Wien 2006, Stuttgart/ München/…, Richard
Boorberg Verlag, 2006, pp. 468-475.
43
O juiz que Duncan KENNEDY nos ensina a reconhecer: menos porventura no
fundamental A Critique of Addjudication (Fin de siècle) , Cambridge Massachusetts,
Harvard University Press, 1998, passim, do que em «Form and Substance in Private
Law Adjudication», Harvard Law Review, volume 89, 1976, pp. 1685 e ss., e muito
José Aroso Linhares
55
especialmente em «Freedom and Constraint in Adjudication: a Critical
Phenomenology» (1986), in BOYLE (ed.), Critical Legal Studies, Dartmouth, 1992, pp.
45 e ss. Para uma consideração das diversas fases da ultra-theory de KENNEDY
(e da renúncia aos binómios que especificam a «contradição fundamental»), ver Ana
Margarida GAUDÊNCIO, Entre o centro e a periferia…, cit., pp. 98 e ss. (3.2.2.2.).
44
Aquele decerto com que DWORKIN nos interpela: bastando-nos ter presentes os
desafios capitais de «Hard Cases» (1975), Taking Rights Seriously (1977), reimpressão
de 1984, Cambridge Massachusetts, Duckworth, 1984, pp. 81 e ss, 105-130 e de
Law’s Empire, Oxford, 1998, pp. 206 e ss., 239-258, 327 e ss, 410-413 e ss., combinados com a tentativa de responder ao dilema «Judges must be philosophers, but
judges can’t and perhaps shouldn’t be philosophers», impressivamente assumida
em «Must Our Judges Be Philosophers? Can They Be Philosophers?», New York
Council for the Humanities / Scholar of the Year Lecture (2000), http://
www.nyhumanities.org/soylecture2000.html (extraído em 31-07-2001). Para uma
«experimentação» do equilíbrio entre a community of principles e a society of rights,
importa no entanto ter presente a lição de Sovereign Virtue. The Theory and Practice
of Equality, Cambridge Massachusetts / London, Harvard University Press, pp. 211
e ss («Liberal Community»), 237 e ss. («Equality and Good Life»).
45
Ver exemplarmente David HOWARTH, «On the Question “What Is Law?”», Res
Publica, nº 6, 2000, pp.264-275 («Boundary disputes and Concepts of Law»).
46
Com o alcance que CASTANHEIRA NEVES nos ensina a reconhecer, enquanto
nos dá conta de que o «objecto» da uma teoria do direito hoje possível (assumida
como uma teoria crítico-reflexiva, com um alcance que ainda viremos ter em conta)
não pode ser «o direito, como que hipostasiado num em si e por si, mas as concepções práticas que o manifestam e os pensamentos que o pensam»: «[A] uma “teoria
do direito” compreendêmo-la hoje sobretudo como a determinação crítico-reflexivamente metanormativa do direito, i. é, das concepções e das práticas constitutivas da
juridicidade (…) e dos pensamentos que (…) pensam (…) o direito. (…) [P]ois só na
unidade histórico-cultural entre aquelas e estes o direito vem à sua existência, à sua
objectivação real e pode, já por isso, ser “objecto” de uma reflexão teórica que nessa
objectivação o queira compreender…» [Teoria do direito. Lições proferidas no ano
lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra 1998, (versão em fascículos) pp. 50-51,
(versão em A4) p. 28].
47
«[There is an] increasing amount of scholarship, especially in the elite journals, that
is about other legal scholarship, rather than about primary legal materials like statutes
and cases. Legal scholarship becomes an increasingly self-contained, self-referential
discipline, which is “about itself” as much as it is about the legal world outside, either
law on the books or law in action. As interdisciplinary movements like law and
economics or law and literature spring up, they begin to focus not on their relationship
to the work of lawyers and judges, but to their own internal coherence and justification.
Legal interpretation is replaced by legal theory, which is replaced by meta-theory,
56
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
which is replaced by meta-meta theory, and so on…» (Sanford LEVINSON,/Jack
BALKIN, «Law, Music and Other Performing Arts» (1991), University of Pennsylvania.
Law Review, volume 139, 1991, p.1652).
48
«There is no extant theory that threatens to end the current ideological conflict abut
method by compelling a consensus about how judges can and should be neutral.
Indeed, the current multiplicity of contradictory theories of neutrality seems a powerful,
though of course not conclusive refutation of all of them. I am an admirer of their work
of mutual critique. I endorse Dworkin’s critique of Richard Posner along with Andrew
Altman’s critique of Dworkin and Fiss’s doubtless forthcoming critique of Altman, and
Posner’s critique of Fiss (if there is one) and on around the circle. This is not musical
chairs but more like a game of “Penelope”, in which each writer simultaneously
weaves his own and unweaves other’s work…» [Duncan KENNEDY, A Critique of
Adjudication (fin de siècle), cit., p. 91, itálicos nossos].
49
Para o dizermos com Roland DUBISCHAR, Einführung in die Rechtstheorie,
Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983, pp. 24 e ss. («Das Programm
der dogmatische-positivistischen Rechtstheorie: Erkenntnis des Rechtlichen aus rein
Rechtlichen»).
50
Para o dizermos mobilizando a conhecida sistematização de Nikolaus FALK
(Rechtwissenschaft im weiteren Sinne als Gesammtheit der juristischen Disziplinen /
Rechtwissenschaft im engeren Sinne als Rechtsdogmatik / Rechtwissenschaft im
Sinne von «allgemeiner Theorie des Rechts») , tal como a vemos reconstituída por
Annette BROCKMÖLLER, Die Entstehung der Rechtstheorie im 19.Jahrhundert in
Deurschland, Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1997, pp. 68 e ss. («Zur
„Allgemeinen Rechtstheorie” Falcks»), 76 e ss. («Rechtswissenschaft, Rechtsdogmatik
und „Allgemeine Rechtslehre”»).
51
A formulação é já evidentemente aquela que JHERING mobiliza para identificar o
momento culminante da juristische Construction (a terceira das operações fundamentais da juristische Technik que, ao ser assumida pela höhere Jurisprudenz ,
corresponde já em pleno a uma tarefa simultaneamente «científica e jurídica», capaz
de distinguir a ciência do direito «de todas as outras ciências»): assim no § 41 do
Geist des römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung,
zweiter Teil, zweite Abteilung, 8ª edição (reimpressão da edição de 1883), Basel,
Benno Schwabe § Co, pp. 357 e ss («Die juristische Construktion»). «Um zu construieren
muß [die Jurisprudenz] erst interpretieren; die niedere Jurisprudenz ist die notwendige
Vorstufe der höheren. Aber sie ist nur eine Vorstufe, und die Jurisprudenz soll nicht
länger auf ihr verweifen als nötig ist. Erst auf der höheren Stufe wird ihre Aufgabe
und Methode eine specifisch juristische, erst hier gewinnt sie ihren eigentümlichen
wissenschafllichen Charakter , der sie von allen andern Wissenschaften
unterscheidet…» (Ibidem, p. 359, itálicos nossos).
52
Para uma reconstituição da conceptual jurisprudence de LANGDELL, ver MINDA,
Postmodern Legal Movements, cit., pp.13 e ss..
José Aroso Linhares
57
53
OST, «Temps et contrat. Critique du pacte faustien», in Annales de droit de Louvain,
1999, p. 17 e ss., cit. na tradução castelhana «Tiempo y contrato: crítica del pacto
faústico», Doxa, nº 25, 2002 , pp. 597 e ss., pp. 624-626.
54
Cfr. OST / KERCHOVE, De la pyramide au réseau? Pour une théorie dialectique
du droit, Bruxelles, Presses des Facultés Universitaires Saint Louis, 2002, passim.
55
«Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez», cit., p. 186.
56
Não obstante a máscara de théorie générale (critique, gradualiste, relativiste et
dialectique) que esta continua a afivelar: ver muito especialmente «Pour une théorie
ludique du droit», Droit et Société, nºs 20-21, 1992, pp. 89 e ss., 95-98 (B.). Sem
esquecer o «manifesto» (significativamente mais desenvolvido) proposto por OST e
KERCHOVE em «Le jeu: un paradigme fécond pour la théorioe du droit?», Droit et
Société, nºs 17-18, 1992, pp. 173-205.
57
«Il s’agit donc de ce qu’on pourrait appeler un „point de vue externe modéré” qui
articule, de façon pardoxale,l’interne et l’externe…» («Pour une théorie ludique du
droit»,cit., p.95).
58
OST / KERCHOVE (dir.), Le jeu : un paradigme pour le droit, Paris , L.G.D.J., 1992,
passim.
59
Karl BERGBOHM, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie. Kritische Abhandlung,
volume I (Einleitung / Erste Abhandlung: Das Naturrecht der Gegenwart), Leipzig
1892, cit.na reimpressão da Verlag Detlev Auvermann, Glashütten im Taunus, 1973,
p. 15. Importa esclarecer que BERGBOHM utiliza esta expressão para caracterizar
a Analytical Jurisprudence (a «Analytische Schule» der englischen Juristen): trata-se
no entanto de sublinhar uma intenção decisiva de «pureza jurídica» (e de «pureza
jurídica» conjugada com uma exigência de «cientificidade», livre da «fantasia» idealista), que o autor de Jurisprudenz und Rechtsphilosophie entende dever ser preservada, se não constitutivamente assumida (também «deste lado do canal»), pelo
projecto da neue realistische Philosophie des positiven Rechts —não obstante as
diferenças de concepção que separam (e devem separar) tal projecto do seu ilustre
percursor inglês [Ibidem, pp. 15-17].
60
«[Die Engländer] brechen überall die Fragestellung zu früh ab und lassen die
letzen Probleme so gleichmütig auf sich beruhen, als wenn diese Fragen gar nicht
aufgeworfen zu werden verdienten oder bereits außerhalb der Peripherie aller
Wissenschaften lägen. (…) Die Engländer lassen sich gleichsam an dem Fundament
(…) und dem Erdgeschoß (…) genugen, getrauen sich aber nicht, die materielle
Rechtsphilosophie als ein weiteres Stockwerk draufzusetzen.…» (Ibidem, 14, 15) .
61
Trata-se de assumir uma «luta» contra a Rectsphilosophie alten Styls, denunciando
o perigo de dissolução (na tradição do(s) Natur-, Vernunft- e Idealrecht(e)) que ameaça o discurso jurídico não dogmático (e as tentativas de o institucionalizar) [Neste
sentido cfr.Adolf MERKEL, «Besprechung von Dr K. Bergbohm „Jurisprudenz und
58
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
Rechtsphilosophie”» (1893), in Gesammelte Abhandlungen aus dem Gebiet der
allgemeinen Rechtslehre und des Strafrechts , zweiter Hälfte, Straßburg, Verlag von
Karl T. Trübner, 1899, pp. 727 e ss.].. Sem esquecer os contributos de «segundo»
JHERING e de BIERLING, importa ter presente que o extenso primeiro volume de
Jurisprudenz und Rechtsphilosophie (o único que, em conjunto com a Introdução,
BERGBOHM chegou a completar) se intitula precisamente Das Naturrecht der
Gegenwart [Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, cit., pp.109 e ss]. Para BERGBOHM
trata-se com efeito de descobrir (-interpelar) o «objecto» nicht positives Recht. Ou mais
rigorosamente, de partir de um «conceito de direito natural» latissimo sensu (als Inbegriff
aller nichtpositiven Recht und Rechtselemente) [Ibidem, p. 130] — quando não da
representação deste como um nomen appelativum [Ibidem, p. 485] — para levar a
cabo uma reconstrução sistemática de todas as propostas que em pleno século XIX
assumem como referência objectiva «um direito não positivo ou elementos deste»
[MERKEL, «Besprechung von Dr K. Bergbohm „Jurisprudenz und Rechtsphilosophie”»,
cit., p. 727]. «[A]ls Recht ist jedes Recht außer dem positiven schlecthin ein Nonsens…»
(BERGBOHM, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, cit., p. 479).
62
Esta divisa assumida por BERGBOHM é uma paráfrase explícita da famosa
divisa de JHERING «Durch das römische Recht, aber über desselbe hinaus!»:
«DieseVariation einesbekannten Wortes v. Jhering möchte ich die Rechtsphilosophie
sich zur Devise wählen sehen. Sie allein, von den Juristen selbst bei allen
Fundamentallehre ihrer Wissenschaft durchgeführt, kann die letzere vor einer
abermaligen Invasion der in alle Brechen eindiringenden Naturrechtslhrei
bewahren…» (Ibidem , p.25).
63
Para uma referência explícita ao «segundo» JHERING (como um argumento decisivo para pensar a complementaridade indispensável da formelle e da materielle
Rechtsphilosophie), ver MERKEL, «Besprechung von Dr K. Bergbohm „Jurisprudenz
und Rechtsphilosophie”», cit., pp. 731-732. Sem esquecer a posição distinta de
BERGBOHM (também ela a convocar o «segundo» JHERING… e não obstante a
denunciar as dificuldades da materielle Rechtsphilosophie ): Jurisprudenz und
Rechtsphilosophie, cit., pp. 544-546 (nota 9).
64
BERGBOHM, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, cit., p. 23. Veja-se também a
reexposição-síntese proposta nas páginas finais da longa «Introdução», ibidem, pp.
102-106. «Dem System der juristischen Wissenschaften haftet ein schwere Mangel
an, wenn der Kreise derselben nicht durch eine philosophische Rechtslehre, die
allen einzelnen Teilen,aber keinem besonderes angehöt, zusammengehalten wird…»
(Ibidem, p.102)
65
Sem deixar assim de exigir uma Neubegründung, que possa integrar os «conceitos e os princípios mais gerais» — de todos os domínios do direito, se não de todas
as «partes da ciência do direito» — num sistema posível : «[als] Neubegründung eines
Lehrgebäudes (…), das in sich die allgemeinsten Begriffen und Prinzipen aller Teilen
der Rechtwissenschaft zu vereinigen dürfte…» (Ibidem, p. 18)
José Aroso Linhares
59
66
Para uma acentuação do contraponto Organismus / System (e deste projectado
no Rechtsquellenstreit), cfr as reconstuições da proposta de SAVIGNY desenvolvidas por CASTANHEIRA NEVES [«As fontes de direito e o problema da positividade
jurídica», Boletim da Faculdade de Direito LI, Coimbra 1975, pp. 149-157 (1.) e
«Escola Histórica do Direito» (1984), Digesta, cit., volume II, pp. 203 e ss., 207-209
(2)), 211—214] e por Annette BROCKMÖLLER [Die Entstehung der Rechtstheorie
im 19.Jahrhundert in Deurschland, cit., pp. 83 e ss. («Recht und Rechtswissenschaft
bei Savigny»), 99-107 (b) e c)), 108-111 («Wissenschaftlichkeit der Rechtwissenschaft
oder: Das Verhältnis von Organismus und System») ].
67
BERGBOHM, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie , cit., pp. 25 e ss («Neueste
Bestrebungen der deutschen Juristen»)..
68
Ibidem , p.551. Ver todo o § 17 («Die ungeschichtliche und die geschichtliche
Rechtstheorie»).
69
Ibidem, pp. 548-549, nota 12.
70
Ibidem, p. 547.
71
Se as duas primeiras tensões nos aparecem «partilhadas» (com resultados diferentes embora) por BERGBOHM, BIERLING e MERKEL, a última impõe-se-nos
autonomamente apenas com MERKEL, enquanto e na medida em que considera
que a a conexão com a realidade se pode impor também directamente através do
problema do valor (als Wert der Rechtnormen) [MERKEL, Juristische Encyclopädie,
Berlin / Leipzig, Verlag von Guttentag, 1885, pp. 6-7 (§§ 6-12), 13-26 (§§ 24-4),
«Elemente der allgemeinen Rechtslehre», in Gesammelte Abhandlungen aus dem
Gebiet der allgemeinen Rechtslehre und des Strafrechts , zweiter Hälfte,, cit., pp.
588-589 (§7, «Recht und Macht»), 608-613 (§14, «Der Begriff des Gerechtens») ].
Tratando-se, com efeito, de distinguir dois tipos de vinculação material: (a) o primeiro
— dominado pela perspectiva-«valor» da finalidade ([ als] Zweckmäßigkeit ) — a
corresponder à relação que os critérios-normas (enquanto meios) estabelecem com
as «necessidades» e os «interesses» sociais — se não directamente com os fins
«públicos» que generalizam estes interesses); (b) o segundo — associado à perspectiva-«valor» da eticidade ([als] ethischer Wert) — a considerar já os limites que as
concepções ético-comunitárias vigentes (ethische Volksanschauungen) — muito
especialmente aquelas que exprimem uma determinada compreensão do justo —
impõem a tais critérios-normas: «Der Inhalt des Rechts unterliegt aber zugleich einem
Einfluß in der Richtung einer Herstellung oder Wahrung seiner Übereinstimmung mit
herrschenden ethischen Anschauungen über das Gerechte, und nimmt überall neben
der Eigenschaft der Zweckmäßigkeit diejenige der Gerechtigkeit für sich in
Anspruch…» [Juristische Encyclopädie , cit., p. 13 (§ 25)]. Dois tipos de vinculação
que MERKEL quer inconfundíveis enquanto perspectivas … e que não obstante
(em nome da sua estratégia de «luta» contra a «filosofia tradicional») acaba por
considerar prioritariamente na sua «convergência» — enquanto «modos» ou «maneiras» de uma vigência prática historicamente construída.
60
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
72
Assim também quando a conexão com a realidade aparece associada a uma
exigência explícita de adesão prática ou de reconhecimento-Anerkennung (MERKEL,
BIERLING)…e de tal modo que a exigência em causa se nos exponha na sua
autonomia: independentemente da inteligibillidade da norma-ratio (ou da característica de generalidade que o seu texto constitui); independentemente ainda da legitimidade político-institucional do imperativo (e da volonté générale que esta legitimidade pressupõe).
Autonomia (auto-subsistência) que MERKEL defende sem renunciar a uma compreensão orgânico-institucional: enquanto restitui a experiência do reconhecimento a um
território de fronteira — marcado pelo cruzamento das intenções da ética e do direito
(se não pela «concordância do direito» com específicos «factores morais» e com a
«força» que estes autonomamente exercem); e então e assim enquanto assume tal
experiência como um «momento» indispensável da exigência de «obrigatoriedade»
(verpflichtende Kraft) , que a determinação categorial correspondente deverá
autonomizar [MERKEL, Juristische Encyclopädie, cit., pp. 30-33 (§ 49)].
Auto-subsistência que BIERLING defende por sua vez enquanto rompe com o
«discurso do organismo»… mas então também enquanto (assumindo o contraponto
reconhecimento directo/ reconhecimento indirecto) articula dois eixos distintos. O
primeiro dominado pela experiência de um «comportamento» ou pela tradução
empírico-explicativa (psicológica) que a consagra— se não já pelo modelo de determinação-comprovação que lhe corresponde (e que culmina numa hipótese de reconhecimento efectivo ou directo) [«Die Anerkennung, die das Recht (…) zum Recht
macht (…), ist (…) nicht ein vorübergehender Akt, sondern ein dauerndes, habituelles
Verhalten in Beziehung auf die Bettreffenden (d. H., die anerkannten)
Rechtsgrundsätze…» (Ermst Rudolf BIERLING, Zur Kritik der juristischen
Grundbegriffe, reimpressão da edição de Gotha (1887-1883), Aalen, Scientia Verlag
Aalen, 1965, Teil I., pp.6-7(3))]. O segundo constituído pela representação de um
sistema jurídico em degraus, entenda-se, pela determinação das relações (verticais)
de «subordinação» e de «subsunção» que (para além dos vínculos de «coordenação» horizontalmente experimentáveis) sustentam o edifício-estrutura das
Rechtssätzen-Normen e dos comandos- Anordnungen: representação por sua vez
que culmina no isolamento de um círculo fundante de proposições constitucionais,
se não já na pressuposição (lógico-constitutiva) de uma Norm-Anordnung fundamental [Ibidem, pp. 105-138 (IX.)].
73
Reconstituição que não podemos cumprir aqui, cujos «argumentos» esperamos no
entanto retomar em breve, a propósito deste especialíssimo tempo de teoria do
direito (e do contraponto que ele oferece ao nosso).
74
As expressões mobilizadas no texto são de resto extraídas do ensaio de KELSEN
que desencadeou a famosa polémica: «Eine Grundlegung der Rechtssoziologie»,
Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik , 39. Band, 1915, pp. 839 e ss.
«Dasjenige, was Ehrlich als „lebendesRecht” bezeichnet, ist (…) zwar keine juristische
Kategorie (…). Rechtsoziologie ist im grunde genommene gar keine eigene
José Aroso Linhares
61
Wissenschaft; es ist ein vom Standpunkte soziologischer Erkenntnis durchhaus
willkührlicher Ausschnitt aus einer allgemeinen, das soziale Leben betrachtenden
und erklärenden Wissenschaft.denn die abgrenzung dieser Rechtssoziologie muß
durch einen Begriff vollzogen werden, dessen Bestimmung von einem ganz anderen
Standpunkte auserfolgt,alsder einen exolikativen Soziologie ist, nämlich durch den
normativen Rechtsbegriff (…) Der Versuch Ehrlichs, für die Soziologie des Rechts
eine Grundlegung zu schaffen, muß als völlig gescheitert gelten: vor allem infolge
des gänzliches Mangels einer klaren Problemstellung und einer präzisen Methode…»
(Ibidem , pp. 875-876)
75
Cfr. a reconstituição exemplar de todas estas frentes (e etapas de confronto)
proposta por Hans-Joachim DAHMS
em Positivismusstreit. Die
Auseinandersetzungen der Frankfurter Schule mit dem logischen Positivismus, dem
amerikanischem Pragmatismus und dem kritischen Rationalismus , Frankfurt,
Suhrkamp Verlag, 1994, passim.
76
Ver supra, nota 25.
77
Referimo-nos evidentemente à proposta de VIEHWEG e ao modo como esta
assume-«interpreta» as possibilidades da teoria do direito num horizonte de
Rehabilitierung der praktische Philosophie: cfr. a colectânea Rechtsphilosophie und
Rhetorische Rechtstheorie. Gesammelte kleine Schriften. Baden-Baden, Nomos
Verlagsgesellschaft, 1995, passim.
78
A «linha» de reflexão em causa — crítico-genealógica (cratológica), estético-reflexiva e ética — é aquela que se expõe às seduções (concertadas ou divididas) a que
aludimos supra (de uma moralidade política, de uma estética do sublime e de uma
ética da alteridade): ver notas 32-34.
79
Para um desenvolvimento dos argumentos que a seguir se convocam (e uma
consideração dos pressupostos que estes mobilizam), veja-se o diálogo com FISH
que propus em Constelação de discursos ou sobreposição de comunidades
interpretativas? A caixa negra do pensamento jurídico contemporâneo, Porto, Edição do Instituto da Conferência, 2007, passim (estudo de cujas formulações o presente ensaio explicitamente se socorre).
80
Ver muito especialmente Stanley FISH, «The Law Wishes to Have a Formal
Existence», in Aram VEESER (ed.), The Stanley Fish Reader, Malden/Oxford 1999,
pp. 165-203, Professional Correctness, cit., pp. 19 e ss. (Lecture II), 71 e ss. (Lecture
IV), 93 e ss. ( Lecture V ) e «Theory Minimalism» (Panel on Jurisprudence at the
January 2000 Association of American Law Schools Conference: An Exchange on
the Nature of Legal Theory), San Diego Law Review, volume 37 nº3 2000, pp. 761776. Sem esquecer ainda os ensaios integrados em Doing What Comes Naturally,
Durham/London 1989, There’s No Such Thing As Free Speech And It´s a Good
Thing,Too, Oxford 1994, e The Trouble With Principle, Harvard 1999.
81
62
«Dennis Martinez and the Use of Theory», Doing What Comes Naturally, cit., p. 378.
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
82
Ver exemplarmente «Play of Surfaces: Theory and the Law», There’s No Such
Thing As Free Speech…, cit., pp.180-199.
83
«Insofar as one is ever critically reflective, one is critically reflective within the
routines of a practice. (…) What most people want from critical reflectiveness is
precisely a distance on the practice rather than what we might call a heightened
degree of attention while performing in the practice. (…) Insofar as critical selfconsciousness is a possible human achievement, it requires no special ability and
cannot be cultivated as an independent value apart from particular situations: it’s
simply being normally reflective. It’s not an abnormal, special — that is, theoretical —
capacity…» [«Fish Tales: A Conversation with “The Contemporary Sophist”» (entrevista concedida por FISH a Gary OLSON) “, JAC Online (12-02-1992), http://
www.cas.usf.edu/JAC/122/olson.html (extraído em 11-04-2003)].
84
É neste sentido que, assumindo as possibilidades-desafios de uma teoria críticoreflexiva,, CASTANHEIRA NEVES distignue três grandes perspectivas actuais de
compreensão da juridicidade: o normativismo, o funcionalismo e o jurisprudencialismo.
Cfr. Teoria do direito, cit., (versão em fascículos) pp. 50 e ss., (versão em A4) pp.28 e ss.
85
«Tematização» no sentido consagrado por LEVINAS (indissociavelmente ligado à
«interrupção do terceiro»). Ver muito especialmente Autrement qu’être ou au-delà de
l’essence, La Haye, 1978, Paris, edição de bolso Kluwer Academic, 2004, pp. 239253 («Du dire au Dit ou la Sagesse du Désir»), 253 e ss. («Sens et il y a»), 256 e ss.
(«Scepticisme et raison»).
86
A «alternativa humana» (enquanto resposta apenas culturalmente possível para
um problema necessário) que CASTANHEIRA NEVES nos ensina a reconhecer: cfr.
muito especialmente «O princípio da legalidade criminal», Digesta , Coimbra, Coimbra
Editora, 1995, vol 1º, pp. 413 419, «O direito como alternativa humana. Notas de
reflexão sobre o problema actual do direito», ibidem , pp. 287-310, Metodologia
jurídica, cit., pp. 231-234, «Pessoa, direito e responsabilidade», Revista Portuguesa
de Ciência Criminal, nº 6, 1996, pp. 38-40, «O problema da autonomia do direito no
actual problema da juridicidade», in PINTO RIBEIRO (coord.), O Homem e o Tempo.
Liber Amicorum para Miguel Baptista Pereira , Porto, Fundação Eng. António de
Almeida, 1999, pp. 88 e ss., «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema
universal do direito — ou as condições da emergência do direito como direito»,
Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, volume II, Coimbra,, 2002, pp. 837 e ss.., O direito hoje e com que sentido ? O problema
actual da autonomia do direito, cit., 2002, 53 e ss. (IV).
87
É ainda a lição de LEVINAS: ver muito especialmente Autrement qu’être, cit., pp.
233 e ss., (“Témoignage et prophétisme”).
88
Permita-se-nos esta paráfrase, que convoca explicitamente Georges STEINER,
The Idea of Europe , cit. na trad. portuguesa A ideia da Europa, Lisboa, Gradiva,
3
2006, pp. 48-55. Para um desenvolvimento, veja-se o nosso «Humanitas, singulari-
José Aroso Linhares
63
dade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial. O “pormenor” do Direito
na “ideia” da Europa das nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista»,
Dereito. Revista xurídica da Universidade de Santiago de Compostela, volume 15,
número 1, 2006,
89
As expressões citadas neste parágrafo são todas elas de STEINER,: A ideia da
Europa, cit., pp. 49-50.
90
«[Para] acedermos da individualidade à pessoa temos de passar do plano simplesmente antropológico para o mundo da coexistência ética, pois a pessoa não é
uma categoria ontológica, é uma categoria ética — numa outra palavra, a primeira é
uma entidade antropológica, a segunda uma aquisição axiológica…» (CASTANHEIRA NEVES, «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito —
ou as condições da emergência do direito como direito», cit., pp. 863-864).
91
Stanley FISH, Professional Correctness, cit., p.19.
92
CASTANHEIRA NEVES, A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise
global da filosofia, cit., 2003, p. 146.
93
Cfr. textos cits. supra, nota 86. Para CASTANHEIRA NEVES, trata-se com efeito
de contrapor a ordem de validade do direito à ordem de necessidade do poder e à
ordem de possibilidade da ciência (tecno-ciência) mas também à ordem de finalidade da política… reconhecendo nestas outras tantas respostas (culturalmente) possíveis. Alternativas às quais importará porventura acrescentar uma quarta : aquela
que se nos impõe com as tentativas de reconhecer uma ética nova (e com os
degraus de universalidade que esta ambiciona). Para uma alusão a esta “ameaça”
de continuum prático, ver os nossos “A ética do continuum das espécies e a resposta
civilizacional do direito. Breves reflexões”, Boletim da Faculdade de Direito LXXIX,
Coimbra, 2003, pp. 197 segs., 214-215 e “O logos da juridicidade sob o fogo cruzado
do ethos e do pathos… » , cit., pp. 65-66, 132-135.
94
«[A] índole política (comprometidamente política) da função legislativa há-de ter o
seu contra-pólo na índole jurídica (autonomamente jurídica) da função jurisdicional.
O compromisso político que corresponde hoje à lei, a fazer dela um instrumento
jurídico-político de governo, não pode deixar de implicar para a sua normatividade a
parcialidade e mesmo a partidarização que são próprias do compromisso político
numa sociedade dividida e plural (...). [Se] a evolução do sentido da lei é forçosa, ela
própria convoca, e com o mesmo carácter forçoso, um contrapeso, um poder chamado a garantir o respeito pelos valores fundamentais da ordem jurídica e do direito. (...)
[As] funções legislativa e jurisdicional, no actual sistema político-jurídico, não só
continuam a não ser análogas, como voltam a ser contrárias: e se igualmente não
são contraditórias, pois uma não nega a validade e a autonomia específica da outra,
o certo é também que deixaram de ser simplesmente complementares nos termos
em que o eram no sistema moderno-iluminista (a complementaridade da criação
genérica e da aplicação particular de um direito-norma geral ), para serem antes
64
A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz ...
concorrentes, como duas dimensões, intencional e institucionalmente contrapostas,
de uma dialéctica entre um poder de programação politicamente constituinte e um
contra-poder que postula a validade do direito e é convocado unicamente à sua
realização...» (O instituto dos «Assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais,
Coimbra, Coimbra Editora, 1983, pp. 604, 605, 611). Para uma caracterização do
«juízo jurídico da jurisdição» e a problematização do sentido da função jurisdicional
como «elemento institucional da comunidade política» (e de uma comunidade política organizada num Estado que se quer legislativo-jurisdicional), caracterização que
insiste assim numa especificação da exigência de «representação comunitária» —
dominada pelo contraponto político/política (e pelos desafios da institucionalização
de um poder que não sendo «apolítico» também não desempenha decerto «uma
função de intenção e de natureza políticas») —, cfr. o mesmo O instituto dos
«Assentos»…, cit., pp. 418 e ss., 429-475, 596-611.
95
HOWARTH, «On the Question “What Is Law?”», cit., pp. 282-283.
José Aroso Linhares
65
DEPOIS DA ONDA: MUDANÇA DE REGIME?
(Entendendo a Crise no Iraque)1
Winston P. Nagan
Professor de Direito da Universidade da Flórida-EUA (Levin
College of Law), Diretor do Instituto para Direitos Humanos,
Paz e Desenvolvimento, Ministro em exercício da Suprema
Corte da África do Sul, Professor Honorário da Universidade
da Cidade do Cabo-RSA, Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA.
O Presidente Bush determinou que os EUA deveriam aumentar
as tropas no território iraquiano. Ele está convencido de que pode
fazê-lo se puder limpar Bagdá dos cruéis insurgentes, com o Iraque
ganhando fôlego para o governo da unidade nacional finalmente
se estabelecer como um governo com algum efetivo controle sobre
o seu povo, território, instituições governativas e com capacidade
de atuar mesmo que modestamente no ambiente internacional.
Nós normalmente destacamos estas qualidades para um país
quando nós consideramos que ele reúne condições para seu
reconhecimento internacional como Estado. Dita iniciativa é de fato
não uma estratégia, mas um mero lance, e a questão crucial é se
esta tática tem algum valor estratégico que justifique o investimento
da reputação da Nação pela Administração Bush, dos recursos
do Tesouro e, o mais importante dentre tudo, das vidas e do bem
estar do seu pessoal militar.
O mais óbvio a respeito do conflito no Iraque é que ele é
indiscutivelmente considerado sectário. Pode ser que alguns
considerem o conflito sectário diferente do conflito étnico. Isto,
contudo, não é sustentável. A fundamental conjectura que a maioria
dos agentes políticos fazem sobre o conflito étnico é a seguinte:
o conflito é incompreensível; as partes lutam por razões
67
completamente irracionais; uma terceira parte imparcial não
consegue atribuir qualquer racionalidade para a conduta das partes
envolvidas; e, deste modo, é impossível entender o conflito em
termos de princípios ou reivindicações negociadas ou racionais.
Em tal contexto, agentes políticos que sejam prudentes não irão
intervir porque a intervenção seria fútil. Se há intervenção, agentes
políticos que sejam ajuizados procurarão limitar esta intervenção
porque as perdas envolvidas não podem ser justificadas em bases
racionais. O que uma sábia política não deve fazer é expandir a
intervenção até o ponto em que seja completamente
incompreensível do ponto de vista do protagonista étnico.
Isto é pensado para ser uma idéia básica sobre a natureza de
conflitos étnicos e os limites da intervenção. Se o termo sectário
pode ser usado para enfraquecer a caracterização do conflito, a
fim de permitir continuados e custosos compromissos, é uma
questão que deve ser seriamente considerada. O conflito no Iraque
possui todas as características de um conflito étnico.
Quer denominemos o conflito como étnico ou como sectário,
há um fato universal que se impõe. Os sunitas do Iraque não
gostam da intervenção americana. Os americanos são seus
inimigos. Daí, as tropas americanas mais propriamente do que
serem mediadoras são as inimigas dos sunitas. Sadam Hussein,
que foi recentemente executado, e cujo irmão foi executado um
tanto de maneira bárbara, era sunita. Estas execuções apenas
exacerbaram o ódio dos sunitas tanto contra os EUA quanto contra
o governo controlado pelos shiitas.
Os shiitas são o outro setor de grupo étnico. É apropriado
distinguir entre o governo nacional (cuja maioria é shiita) e as milícias
shiitas sustentadas pelo seu partido. Entretanto, os shiitas sabem
que darão as cartas quando os americanos se forem, e irão querer
ter todas as cartas que possam ter à sua disposição para se proteger
dos adversários sunitas. Os shiitas irão sem dúvida se recordar de
68
Depois da Onda: Mudança de Regime? (Entendendo a Crise no Iraque)
como o Presidente Bush, o pai, deixou-os expostos como uma
oferenda de sacrifício para Sadam Hussein, depois que as potências
aliadas deixaram Sadam Hussein no poder com o seu exército Baath.
Eles sobreviveram por causa dos shiitas do Irã. Em verdade, os
shiitas também apoiam os shiitas do Líbano que se levantaram contra
os israelenses recentemente. Os shiitas sabem que os EUA não
são seus amigos, e que a mudança de orientação política da
Administração Bush teve menos a ver com a democracia no Iraque
do que com as preocupações de Israel relativas às ameaças de
longo prazo tanto de um Iraque dominado por sunitas sob Sadam
quanto por um grande Iran shiita sob os aiatolás. Em suma, os
americanos são o alvo legítimo no Iraque dos shiitas.
O Presidente Bush procura expandir o avanço das tropas em
um conflito étnico-sectário onde ambos os lados vêem as forças
americanas como alvos de ocasião. Ninguém pode imaginar pior
cenário tático no qual atuam as tropas americanas. Se isto é correto,
poderia existir apenas uma razão para este extravagante sacrifício
do sangue americano e de verbas do Tesouro, e esta consiste em
que a Administração Bush está ainda confiante de que se
remanescer no Iraque tempo suficiente, isto será capaz de gerar
um conflito real diretamente com o Irã. Um conflito com o Iraque,
da perspectiva da doutrina Bush, terá como propósito mudar o
regime iraniano por força. Naturalmente, Bush irá precisar de um
incidente para iniciar o ataque.
A questão crítica sobre estas doutrinas de segurança nacional
é que quer elas emanem de um partido político ou de outro, elas
pretenderam representar o crucial interesse nacional como um todo.
O uso de uma tal doutrina, entretanto, poderia ter não somente um
dupla finalidade, mas também um objetivo duplo e radicalmente
partidário. Este objetivo poderia ser aumentar o envolvimento
americano em conflitos globais como meio de influenciar a próxima
eleição presidencial americana. Se isto é verdade, isto bem pode
Winston P. Nagan
69
ser o último e desesperado lance da Administração Bush para
continuar decisivamente influenciando as eleições de 2008. Se
isto é correto, então Bush irá querer manter a dispendiosa presença
militar no Iraque tempo o suficiente para ser crucial para a dinâmica
eleitoral. Tempo é um fator crítico. Se o momento é adequado, a
Administração Bush terá de achar uma desculpa para atacar o Irã.
Indubitavelmente, o volúvel líder atual do Irã bem pode fazer isto
mais fácil para a Administração Bush com a sua excessiva retórica.
Em caso de conflagração, o partido do Presidente Bush terá
vantagens eleitorais significativas. Um conflito expandido e
selvagens ameaças compreendendo arsenais nucleares irão sem
dúvida explorar a dinâmica da insegurança pessoal no eleitorado
doméstico americano. O discurso político será controlado
largamente por quem dirigir as instituições de segurança nacional.
O Congresso será marginalizado. A imprensa será emudecida. A
opinião crítico-política responsável será acusada como usual de
enfraquecer a segurança nacional. A oposição política será acusada
de ser impatriótica, e não desejosa de apoiar as tropas. O objetivo
será silenciar o próprio debate político.
Em conseqüência disto, líderes de opinião neste país,
especialmente as lideranças parlamentares, observam criticamente
e com muito mais cuidado como a Administração Bush irá se
conduzir entre agora e 2008. Em particular, o público precisa saber
se a Doutrina Bush e seu compromisso de mudança de regime
em todo o Oriente Médio, pelo uso da força, continua a ser a
doutrina de segurança nacional da Nação. É crucial para os
americanos saber quais são os reais objetivos estratégicos da
Administração Bush e se estes objetivos correspondem realmente
ao interesse nacional. A Administração Bush tem sido lembrada
recentemente de que os EUA tem vários meios de promover os
interesses americanos, e de que uma excessiva confiança no uso
da força pode bem ser contraproducente.
70
Depois da Onda: Mudança de Regime? (Entendendo a Crise no Iraque)
Notas
1
Artigo traduzido do inglês por Saulo José Casali Bahia, professor de Direito Constitucional e de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da UFBA.
Winston P. Nagan
71
DOUTRINA NACIONAL
ARTIGOS E ENSAIOS DOS PROFESSORES
ARTIGOS DOS FORMANDOS
ARTIGOS
CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESLEGITIMAÇÃO DO
DIREITO PENAL ECONÔMICO
Gamil Föppel El Hireche1
1
Doutorando em Direito Penal Econômico pela UFPE, Mestre em direito Público pela UFBA, e Especialista em Ciências
Criminais (IELF/Juspodivm). Além da advocacia, é figura ativa no meio acadêmico, sendo diretor da Faculdade Baiana
de Direito, Coordenador do curso de especialização em Ciências Criminais do Juspodivm, Professor dos cursos Juspodivm
(BA), Praetorium (MG), IDAJ (PE), Espaço Jurídico (PE), Professor da Graduação e Especialização da UFBA e da Especialização da UFPA, e professor da ESA/SP e ESAD/BA.
Endereço postal e eletrônico: Av. Tancredo Neves, nº. 1283,
Edf. Empresarial Ômega, sala 302, Caminho das Árvores, CEP:
41.820-021, Salvador, Bahia. [email protected]
Sumário: 1. À guisa de introdução. A (des)legitmação da intervenção penal
na economia e o posicionamento de Hassemer. Primeiras linhas em defesa
do Direito da Intervenção. 2. Os (novos?) problemas e o surgimento do
Direito Penal Econômico. 2.1. Breve escorço histórico. 2.2. A propósito de
um conceito de Direito Penal Econômico. Primeiras perplexidades... 2.3.
Características do Direito Penal Econômico. Especificidades. Flexibilização
de garantias? 3. Propostas conciliatórias: o Aparecimento do Direito Penal
da Intervenção e a contribuição de Winfried Hassemer. 3.1. Fundamentos do
Direito da Intervenção. Em que consiste, direito, conceito. 3.2. Zaffaroni,
reação aos Direitos Penais Paralelos: Crítica ao Direito da Intervenção? 4.
Considerações Finais. 5. Referências Bibliográficas.
Resumo: Pretende-se expor as preocupações com a deslegitimação do
direito penal econômico, a sua desnecessidade e a sua exclusiva serventia
para um discurso demagógico, simbólico. Por conta disso, tratar-se-á do
aparecimento do direito penal econômico, suas características, disfunções e,
em seguida, apresentar-se-á, mediante um viés crítico, o chamado direito da
intervenção, como bem defendido pela escola de Frankfurt.
Palavras Chave: Direito, Penal, Econômico, Deslegitimação, Intervenção.
77
1. À guisa de introdução. A (des)legitmação da
intervenção penal na economia e o posicionamento
de Hassemer. Primeiras linhas em defesa do Direito
da Intervenção
Sobretudo no Direito Penal ambiental e no Direito Penal
econômico é, entretanto, publicamente evidente que os
tradicionais pressupostos de imputação do Direito Penal podem
ser inteiramente impeditivos de uma política criminal eficiente.
Aqui se entende, por exemplo, que a imputação individual, como
a tradição do Direito Penal, pode impedir a atuação dos meios
penais (a qual, aliás, sempre foi a sua tarefa!). Por conseguinte,
faz-se a exigência de que em determinados setores do Direito
se devam enterrar as sutilezas de uma imputação individual. No
mesmo contexto, pode-se mencionar o aumento das
cominações penais, bem como as tendências que levam a uma
difusão do injusto (que no Direito Penal ambiental por exemplo,
através do princípio da acessoriedade administrativa, somente
as autoridades administrativas estipulam onde começa o limiar
do injusto criminal). Tudo isso leva finalmente a uma perda dos
tradicionais pressupostos de imputação, os quais não poderiam
deixar o Direito Penal passar, de modo algum, sem prejuízos.2
A angústia supra transcrita se refere a um dos maiores pensadores da política criminal da atualidade: Winfried Hassemer.
Neste presente ensaio, pretende-se expor as preocupações com
a deslegitimação do Direito Penal Econômico, a sua
desnecessidade e a sua exclusiva serventia para um discurso
demagógico, simbólico. Por conta disso, trataremos do
aparecimento do Direito Penal Econômico, suas características,
suas disfunções e, em seguida, apresentar-se-á, mediante um viés
crítico, o chamado Direito da Intervenção, como bem defendido
pela Escola de Frankfurt.
Desde o século passado, o Direito Penal Econômico vem se
expandindo. Com a bi-polarização econômica, surgindo dois
78
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
modelos de produção, o mundo assistiu à proliferação das normas
penais em matéria econômica. Surgiu uma nova necessidade para
as pessoas, e esta nova necessidade refletiu e vem refletindo em
matéria penal.
Efetivamente, por um lado, torna-se visível a criação de novos
bens que demandam proteção. Atualmente, as pessoas não se
preocupam mais apenas e tão somente com os seus patrimônios,
com as suas honras, com as suas vidas. Existe uma preocupação
em proteger a normalidade do mercado financeiro, o bom
funcionamento das bolsas de valores, a economia popular, a ordem
tributária e previdenciária, as relações de consumo, enfim, os novos
bens, desta nova sociedade, são coletivos. Não se discute que o
ordenamento jurídico precisa proteger e tutelar esta nova realidade.
Resta saber se esta proteção poderia ser feita por meio do Direito
Penal ou não.
Sucede, porém, que, a ordem econômica não representaria um
bem tradicionalmente jurídico-penal. Trata-se de uma nova forma
de intervenção penal, que, consoante se analisará, é marcada por
flexibilizações às garantias, mormente à da legalidade, haja vista
que, para tratar destes novos bens, são usadas normas penais em
branco, tipos de mera conduta, repletos de elementos normativos,
de perigo abstrato, o que se afasta, também, do princípio da
legalidade e da ofensividade.
Além disso, percebe-se que, na realidade, as normas de Direito
Penal Econômico representam, uma vez mais, uma manifestação
simbólica da intervenção penal. Procura se justificar a intervenção
penal em nome de uma pseudo-segurança, quando, verdadeiramente, as normas não punem quem quer que seja, deixando a
sociedade à mercê dos interesses de particulares.
O presente trabalho pretende, sobretudo, analisar, como embrião
da tese que se apresentará à UFPE, as contribuições de Winfried
Hassemer a respeito do Direito da Intervenção. Seria, grosso modo,
Gamil Föppel El Hireche
79
uma terceira via, entre o Direito Penal e o Direito Administrativo,
que pretenderia conciliar, a um só tempo, as garantias e direitos
fundamentais com a necessidade de resguardar novos bens. A
opção por Hassemer se justifica por ser um dos autores mais
respeitados em política criminal, por procurar conciliar as ciências
penais, sem exageros herméticos de um dogmatismo estéril.
Este será, pois, o grande problema deste trabalho, é dizer, a
principal pergunta a que se pretende responder: é legítima a
intervenção penal em matéria econômica ou seria mais interessante
buscar uma outra alternativa, possivelmente o Direito da Intervenção,
como proposto por Hassemer?
2. Os (novos?) problemas e o surgimento do Direito
Penal Econômico
2.1. Breve escorço histórico
Primeiramente, deve-se tratar do surgimento do Direito Penal
Econômico e de alguns de seus aspectos históricos, bem como
dos principais modelos existentes no mundo. A necessidade de
criar normas penais econômicas fica adiante evidenciada por
Manoel Pedro Pimentel:
Novas relações entre o capital e o trabalho, a revolução dos
meios de comunicação e de transporte, o nascimento das
empresas, com investidores anônimos, as novas posições do
mercado financeiro, a complexa interação dos fatores do
mercado econômico, do trabalho e do mercado financeiro, dos
preços e das rendas, tudo isso tornou necessária a ajuda do
Estado com medidas de proteção, surgindo paulatinamente a
intervenção estatal no domínio econômico.3
Há quem, a despeito das manifestações recentes do Direito
Penal Econômico, entenda que ele sempre existiu, em todas as
sociedades. Esta é a opinião de Martos Nunes4, que, citando Muñoz
80
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
Conde, evidencia que, desde a idade média, manifestações há de
Direito Penal Econômico.5
Em apertada síntese, a relação do Direito Penal com a economia
passa a ser necessária sempre que se entendeu pertinente a defesa
da economia, e as manifestações do Direito Penal Econômico irão
variar a partir do modelo de estado, de política econômica e de
política criminal. Veja-se, com acerto, que há autores que identificam
o aparecimento do Direito Penal Econômico com o dirigismo e o
controle estatal sobre a economia. Neste passo, Martos Nuñes:
que un derecho penal económico, en sentido propio, sólo
comienza a existir cuando aparece una economia dirigida y
centralizada, pues mientras existan condiciones que otorguen a
los operadores económicos plena libertad para desarrollar
relaciones económicas, el Estado carece de interés para
interferirse en el mantenimiento del orden económico.6
A necessidade de aparecimento do Direito Penal Econômico
surge, pois, quando uma instituição, o Estado, resolve dirigir a
economia. Neste passo, uma vez mais, Martos Nuñes:
La necesidad surge cuando una institución pública establece
planes económicos, vigila su ejecución y determina las
coordenadas de la organización del mercado.7
Analisados os elementos históricos, passa-se a analisar, neste
ponto do trabalho, o conceito do Direito Penal Econômico.
2.2. A propósito de um conceito de Direito Penal
Econômico. Primeiras perplexidades...
Veja-se a seguinte preocupação com o conceito de Direito Penal
Econômico:
Los términos que se utilizan para designar la materia no están
bien precisados. Así, se habla de derecho penal financiero,
derecho penal comercial o derecho penal de los negocios.[...].La
Gamil Föppel El Hireche
81
locución Derecho penal económico cubre más ampliamente
todos los aspectos de esta rama del Derecho, tanto los aspectos
dirigistas como los aspectos liberales. Sabido es que desde
esta última perspectiva, el Estado no debe intervenir en la
actividad económica más que para proteger la libertad
contractual y la libertad de comercio e industria: el Estado se
limita a asegurar el funcionamiento del sistema capitalista
atacando los abusos que destruyen la libertad,
consecuentemente el Derecho penal económico liberal aspira a
ser únicamente un Derecho de protección.8
A referência a Martos Nuñes supra transcrita releva a confusão
de termos empregados para definir este novo ramo do Direito Penal
que intercede na economia. Por ser a expressão mais ampla, que
abrange mais elementos, fez-se a escolha, neste projeto, e na futura
tese que se apresentará à UFPE, de empregar a denominação
Direito Penal Econômico.
Uma definição mais direta pode ser colhida em Martos Nuñes:
“El conjunto de normas jurídico-penales que protegen el sistema
económico constitucional”.9
Semelhante posição, em um conceito mais elástico, vazado no
bem jurídico que é tutelado, é a sustentada por Bajo e Bacigalupo.
Assim, a despeito de os autores não conceituarem – e isso seria
improvável – de forma uníssona, percebe-se sempre uma
preocupação em atrelar o Direito Penal Econômico à política de
produção de bens do Estado. Transcreva-se:
Podemos definir el Derecho Penal Económico como el conjunto
de normas jurídicopenales que protegen el orden económico.
La clave para desentrañar en toda su profundidad el sentido y
alcance de esta definición estriba en el objeto de protección: el
orden económico .10
Buján-Pérez, em seu trabalho específico sobre o tema,11 adverte
que inicia o seu trabalho pelo conceito. Para ele, existe um conceito
amplo e um outro restrito do Direito Penal Econômico, distinção
82
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
que se funda no projeto alternativo alemão. Passa a conceituar os
delitos econômicos de forma ampla e de forma estrita.
À esta mesma divisão se refere Martos Nuñes12, que sugere a
existência de um direito penal em sentido amplo e um outro, em
sentido estrito. Este seria permeado pela intervenção, pelo
dirigismo estatal na economia; aquele, da regulação, produção e
distribuição de bens. A diferença, pois, está no fato de o Direito
Penal Econômico em sentido estrito referir-se à intervenção estatal.
Registre-se, ademais, que Martos Nuñes sustenta, no conceito
amplo de Direito Penal Econômico, estarem os crimes patrimoniais
com vítimas certas e determinadas.13
Importa, assim, consignar a importância em se separar o Direito
Penal Econômico em sentido amplo do sentido estrito. Sem que
se faça a separação, as terminologias passariam a ser ambíguas,
imprecisas, imprestáveis.
Consoante Buján-Pérez, em sentido estrito, o Direito Penal
econômico deve representar o “Direito Penal Administrativo
Econômico”, que cuida da atividade interventiva e reguladora do
Estado na Economia. 14 No início, inclusive, esta era a única
manifestação do Direito Penal Econômico. Já o conceito amplo
parte da análise de condutas que ofendem a coletividade, os bens
supraindividuais, sem que representem uma mácula à regulação e
à intervenção da economia.
À guisa de arremate para este ponto, chamem-se as lições de
Bajo e Bacigalupo, dando as definições em sentido amplo e em
sentido estrito de Direito Penal Econômico. Observe-se:
Derecho Penal Económico en sentido estrito es el conjunto de
normas jurídico-penales que protegen el orden económico
entendido como regulación jurídica del intervencionismo estatal
en la economia.15
Para conceituar o Crime Econômico, Esteban Rigui, por sua
vez, menciona que se trata de um ato lesivo ao interesse do Estado
Gamil Föppel El Hireche
83
pela integridade e conservação do sistema econômico.16 Encerrase este tópico, antes de passar às especificidades, singularidades
e características do Direito Penal Econômico, com Rigui:
el derecho penal econômico fue definido como conjunto de
normas jurídico penales que protegem el ordem econômico
entendido como regulación jurídica de la produción, distribuición
y consumo de bienes y servicios.17
Assim, pode-se ver que existe uma manifestação ampla e outra
restrita do Direito Penal Econômico. Em sentido amplo,
representaria toda e qualquer manifestação das normas penais
referentes à produção de riqueza, em sentido estrito, seriam normas
penais que se referem à estruturação econômica de uma
determinada nação.
Fixado o conceito, importante consignar o Direito Penal
Econômico tem características próprias, sobremaneira importantes
para a tese que se apresentará. Neste instante, importante fazer
estas distinções entre as características do Direito Penal
Econômico e o Direito Penal tradicional ou nuclear, bem como se
tratar das (dis)funções político-criminais referentes à intervenção
penal na economia.
Quanto às características, impende ressaltar, com Buján-Pérez,
que o Direito Penal Econômico em sentido estrito possui autonomia
em relação ao Direito Penal comum.18 O estudo da matéria,
inclusive, deveria ser separado do Direito Penal comum. As
especificidades perpassam a questão do bem jurídico, do
processo penal, da figura criminológica do criminoso econômico
e, finalmente, a questão referente à responsabilidade penal da
pessoa jurídica. É pelas características que se poderá identificar o
Direito Penal Econômico, e, a partir daí, conceituá-lo e analisar a
existência ou não de autonomia.
O estudo destas especificidades termina por desbordar na
criação de uma legislação penal especial, outro dos pontos de
84
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
tensão relacionado a esta matéria. Com efeito, discute-se se seria
necessário criar leis especiais - que teriam como maior virtude a
adequação da tutela para cada grupo de crimes em espécie- ou
se seria melhor tratar do Direito Penal econômico no próprio
Código Penal comum, preservando a facilidade de os cidadãos
tomarem conhecimento do injusto.
A dificuldade em definir o Direito Penal Econômico passa,
inicialmente, pelo seu caráter de novidade, de proteção a bens novos.
Com efeito, trata-se de uma nova manifestação de comportamentos
lesivos à sociedade, que diferem dos crimes comuns.
Assim, Buján-Pérez coloca dois tipos de Direito Penal: um que
ele chama de clássico e outro que ele chama de nuclear.19 Releva
notar que, malgrado defenda a sua autonomia, Buján-Pérez sustenta
que o Direito Penal Econômico tem os mesmos princípios do Direito
Penal Tradicional. Veja-se:
Por consiguinte, el intitulado “Derecho Penal Econômico” se
halla regido por los mismos princípios jurídico-penales que el
Derecho Penal Comum.20
Mas o autor adverte que não se podem transladar acriticamente,
sem as modificações necessárias, as regras do Direito Penal Para
o Direito Penal Econômico.21 Na área econômica, o direito penal
passa a ter características próprias, qualidades diferentes do direito
penal comum, sendo que tais diferenças são necessárias porque
se tratarão de bens jurídicos novos, bens que não são
tradicionalmente os penais. Para o autor, são delitos que “no
pertencem ao núcleo tradicional del derecho penal comum”.22
2.3. Características do Direito Penal Econômico.
Especificidades. Flexibilização de garantias?
Como mencionado, o Direito Penal em relação à economia passa
a intervir em uma área que, tradicionalmente, não é a sua, são
necessárias certas flexibilizações à garantia da legalidade estrita,
Gamil Föppel El Hireche
85
mormente em relação à tipicidade. Tais garantias são mitigadas
em razão de a sociedade exigir que se protejam estes novos bens,
a demonstrar, cada vez mais, a “antecipação de tutela em matéria
penal”, expressão difundida e já consagrada em matéria penal
econômica. Por conta disso, são empregadas normas penais em
branco, é dizer, normas que demandam complemento. A este
respeito, Tiedemann:
En el ámbito de la tipicidad es característico del Derecho penal
económico el uso de normas penales en blanco, es decir, normas
“abiertas” total o parcialmente que se remiten para ser
completadas y complementadas a normas con rango inferior a
la ley (normas penales en blanco en sentido estricto) o a otras
leyes (normas penales en blanco en sentido amplio).23
Assim, quando se versa sobre os bens jurídicos tradicionais,
não é necessário, verbi gratia, definir o conceito da palavra alguém,
mas, nos crimes econômicos, pela nova realidade da intervenção
penal, é imprescindível que se conceituem certos institutos, como,
por exemplo, o tipo penal explicativo, definindo instituição financeira,
previsto na Lei 7492/86.
Para além disso, os bens são tão importantes que o legislador,
impaciente, não aguarda a ocorrência de uma lesão concreta para
poder punir. Por conta disso, a fim de resguardar a sociedade, fazse um uso cada vez mais freqüente de tipos de perigo abstrato ou
presumido, de questionável constitucionalidade. Sobre perigo
abstrato, mais uma vez, Tiedemann:
Para evitar estos problemas de determinación y de prueba
procesal el legislador, sobre todo en materia económica (y del
medio ambiente), ha introducido tipos que renuncian a cualquier
clase de resultado o lesión: los delitos de peligro abstracto que
incriminan ya una determinada acción considerada peligrosa por
el legislador (como el caso de los medicamentos del art. 343 bis
C.P.) o de las sustancias nocivas a la salud en el caso del art.
341 C.P. donde ya es suficiente la aptitud para dañar).24
86
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
A “necessidade” da utilização de crimes de perigo abstrato vem
da importância dos bens jurídicos que neles são resguardados.
Com efeito, os bens são tão importantes que o legislador não
aguarda a ocorrência de uma lesão para que possa intervir. O
desafio, porém, é de legitimar estes crimes, porquanto, em casos
tais, a intervenção penal poderia estar se afastando da lesividade
e da ofensividade que a norteiam.
Uma outra peculiaridade do Direito Penal Econômico é que nele
os crimes são todos vagos, é dizer, ofendem a coletividade, não
têm como vítimas pessoas certas e determinadas. Por
conseqüência disso, consoante se investigará, dificilmente se
aceitará a aplicação do princípio da insignificância, bem como das
regras do consentimento do ofendido.
Um outro marco de especial relevância diz respeito à construção
dos tipos por meio de elementos normativos, vale dizer, aqueles
que demandam valoração no tempo e no espaço. Com efeito,
além dos elementos puramente descritivos ou objetivos, as normas
de penal econômico são marcadas pela presença freqüente dos
chamados tipos anormais. Sobre isto, Martos Nuñes:
A tenor de los complejos fenómenos y regulaciones de la vida
económica presente, es imposible prescindir de elementos
normativos y cláusulas generales a la hora de describir los tipos
penales económicos. En efecto, junto a las exactas descripciones
de los tipos, es necesario admitir, aunque sea cuidadosamente,
los conceptos jurídicos indeterminados y las cláusulas generales,
sobre la base, dominante en la doctrina y Jurisprudencia, de que
los elementos normativos y las cláusulas generales en Derecho
penal únicamente pueden fundamentar una declaración de
responsabilidad criminal, si se trata de valoraciones reconocidas
y seguras, es decir, si se trata del núcleo propiamente dicho de
esos conceptos jurídicos indeterminables.25
Além dos tipos anormais, outra característica marcante do Direito
Penal Econômico é relacionada com a responsabilidade penal da
Gamil Föppel El Hireche
87
pessoa jurídica, que ganha corpo em matéria econômica. Registrese que este não é o ponto da pesquisa – que justificaria uma tese
de doutoramento – será abordado apenas como característica do
Direito Penal Econômico.
Uma contribuição por demais significativa em relação às
características nos dá Martos Nuñes, a partir do magistério de
García-Pablos. Define este autor que a delinqüência econômica
esta sujeita à complexa estrutura organizada, além de, por ter um
distanciamento entre o autor e a vítima, exista um anonimato das
infrações. Outra relevante marca é o uso cada vez mais freqüente
de mecanismos avançados de tecnologia.26
Em resumo e dito mais claramente: por tratar de uma área não
exclusivamente penal, que não versa dos bens tradicionais, é
necessário que se recorra a elementos extra-penais, daí a utilização
de normas em branco, tipos de perigo abstrato, anormais, abertos,
etc. Os novos bens violados são supra individuais, criando-se,
pois, tipos penais vagos. Sobre os bens jurídicos referentes ao
Direito Penal Econômico, indispensável é a transcrição verbum ad
verbum de Hassemer:
A isso corresponde que os bens jurídicos, para os quais deve
haver proteção, não são bens jurídicos individuais, mas bens
jurídicos universais. E é certo que o legislador penal formula
esses bens jurídicos universais de modo muito vago e trivial (a
proteção à saúde do povo, proteção à função dos meios de
subversão, etc.). Deste modo, o moderno Direito Penal afastase das suas tradições em um duplo sentido. Ali se girava em
torno da proteção dos bens jurídicos individuais, os quais eram
determinados do modo mais concreto e preciso possível. Os
bens jurídicos, os quais o Direito Penal pode designar para a
legitimação das cominações legais, não são mais discriminados.
E existem apenas alguns tipos de comportamento humano, que
hoje se deveriam descriminalizar com a invocação do princípio
da proteção dos bens jurídicos.27
88
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
Na tese que se apresentará à UFPE, além das características
do Direito Penal Econômico, mister se faz tratar da questão atinente
ao bem jurídico resguardado. Bujan Pérez defende que, no Direito
Penal Econômico está uma das manifestações mais difíceis do
Bem Jurídico.28 Com efeito, tratam-se de bens jurídicos novos,
com marcante característica supra-individual. Neste passo, convém
chamar à colação as lições de Tiedemann:
En el seno de las relaciones entre Derecho constitucional y
Derecho penal corresponde al Derecho Penal económico un
papel importante, ya que esta nueva rama del Derecho guarda
una particular y estrecha relación con la política económica y
social del Estado. Por ello se reconocen nuevos y
supraindividuales bienes jurídicos, aparecen expresos mandatos
constitucionales dirigidos al legislador penal económico y
también se plantean nuevos problemas de orden técnico para la
aplicación del derecho, incluso en relación a principios bien
tradicionales como el de legalidad, derivados del empleo de
técnicas legislativas especiales propias de esta materia
económica y por las numerosas remisiones a normas
extrapenales que los nuevos tipos delictivos necesariamente
incorporan.29
Vê-se, pois, que a questão do bem jurídico será determinante
para outras tantas, mormente para a (des)legitimação, mas ainda
repercutirá no aspecto da autonomia. Bujan Perez, analisando de
forma singular o bem jurídico em matéria penal econômica, faz
uma distinção entre o bem jurídico imediato (que pode ser chamado
de específico ou de diretamente tutelado) e o bem mediato. O
bem jurídico imediato é o único que se incorpora ao tipo de injusto,
sendo indispensável na parte objetiva de qualquer tipo, razão por
que a violação ao bem jurídico imediato também precisará contar
com a tipicidade subjetiva do agente.30 É a partir do bem imediato
que se tem como analisar a função interpretativa das normas de
direito penal econômico. O bem mediato não integra o tipo, a ele
Gamil Föppel El Hireche
89
não se incorpora e em nada se relaciona com a função interpretativa.
O bem mediato é imaterial, intangível. O bem mediato, no penal
econômico, é sempre supra-individual; o imediato, pode ser
individual ou coletivo.31
Todos estes elementos – características, bens jurídicos,
(dis)funções – seguramente conduziriam a uma necessidade de
criar regras próprias de teoria do crime e das conseqüências
jurídicas do delito. Com efeito, detidamente analisadas as
características do Direito Penal Econômico – normas penais em
branco, excesso de tipos anormais, tipos abertos, de perigo
abstrato, de mera atividade, com novos bens jurídicos, impende
se analisar a criação de uma parte geral própria para o Direito
Penal Econômico, haja vista que estas qualidades demandam novo
tratamento jurídico.
Esta é uma das primeiras preocupações esboçada pela doutrina
e, em particular, por Buján Perez. Verdadeiramente, para ele, a
primeira necessidade é a de estabelecer uma parte geral do Direito
Penal Econômico. Menciona que a realização de uma parte especial
do Direito Penal Econômico não é tarefa das mais valiosas. Como
se trata de um novo ramo do Direito, com novas características,
sustenta que deve haver regras próprias de teoria do delito e de
teoria das conseqüências jurídicas do injusto. Em relação ao objeto
da sua pesquisa, menciona Pérez:
Por tanto, con este volumen que ahora ve la luz yo pretendia
anteponer al examen particularizado de los diferentes delitos
uma investigacion básica que no solo conceptuase el setor del
Derecho penal Econômico, delimitando sus contornos e fijando
los critérios de identificacion del mismo, sino que además
abordase el análisis de las cuestiones que son comunes al estúdio
de dichos delitos. Era, pues, si se prefere, uma espécie de “Parte
General”del Derecho Penal Econômico que, sobre poseer um
carácter propedédutico com respecto al examen de su segunda
parte o “Parte Especial”, perseguia evitar también estériles
90
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
repeticiones em el comentario de las concretas figuras
delictivas.32
As novas características imporão regras próprias de teoria do
delito e de teoria da pena. Por conta disso, será necessário analisar
a questão da tipicidade, da ilicitude, da culpabilidade, regras
atinentes ao erro, ao concurso de pessoas, à reprimenda penal,
tudo isso de forma autônoma do direito penal comum, pois não
se pode tratar de um novo ramo com as mesmas (e antigas)
soluções do Direito Penal Nuclear.
Registre-se que as diferenças entre o direito penal econômico e
o nuclear não param nas importantíssimas referências à parte geral.
Modificam-se, pois, os elementos referentes à tipicidade objetiva.
Tiedemann, escrevendo sobre a tipicidade nos crimes econômicos,
justifica o motivo de os tipos serem tão fluídos, tão flexíveis.
Consoante leciona, a razão está na necessidade de o Direito Penal
acompanhar a economia, com suas mutações constantes. Veja-se:
Otra particularidad en el ámbito de la tipicidad en Derecho penal
económico radica en que los frecuentes cambios de intereses
de la vida económica y de la política económica conducen a un
cambio relativamente frecuente de las normas de Derecho
económico.33
Em relação ao tipo objetivo, força é convir em que,
frequentemente, se empregam elementos extra-penais, a fim de
adequar a tutela às novas realidades. Neste passo, Basoco:
En Derecho penal de la empresa es continuada la utilización de
elementos típicos normativos y la remisión a otros preceptos
extrapenales. Si bien la ley penal se reserva a fijar la conducta
incriminada y la sanción, lo cierto es que la constatación de
aquélla requieren múltiples ocasiones la previa comprobación,
como elemento integrante de la misma, de infracciones definidas
en normas de diverso origen (mercantil, laboral, fiscal, etc…),
hasta el punto de que el valor descriptivo del texto penal queda
reducido a muy poco.34
Gamil Föppel El Hireche
91
Um dos principais pontos a merecer a nossa análise será
da tipicidade frente à garantia da legalidade. Com efeito, um tipo
objetivo perpassado com tamanha fluidez poderá, efetivamente,
violar a noção da legalidade. Significativamente, a transposição
do Direito Penal nuclear para o Direito Penal Econômico terminará
por flexibilizar garantias expostas há séculos, como, por exemplo,
a da legalidade. A histeria com a segurança simbólica das normas
penais transforma o direito penal, que deixa de olhar para o
passado, passando a tutelar futuras (e supostas) lesões. Neste
passo, uma vez mais, invoca-se Hassemer:
Com isso, relaciona-se a já mencionada tendência de que o
legislador penal compreende este instrumento não como ultima,
mas como sola ou prima ratio e que, ao contrário, insere aí,
prontamente, o princípio da subsidiariedade, com o uso do qual
seria possível obter um proveito político. Estas inovações, por
outro lado, relacionam-se com a nova função de satisfazer o
interesse de efetivação das conseqüências também por
intermédio do Direito Penal. A característica clássica da reação
penal, de ser distanciada e proporcionalmente uniforme, passa
para o segundo plano. Em vez de chegar a uma resposta a um
injusto e à compensação por meio da reação justa, leva agora à
prevenção dos futuros injustos ou até mesmo ao vencimento de
futuras desordens. Em outras palavras, de agora em diante,
também no Direito Penal não se trata mais de dar uma resposta
apropriada ao passado, mas da dominação do futuro. As
estruturas do pensamento e da atuação do Direito Penal
desenvolvem-se desde padrões normativos até padrões
empíricos.35
Analisadas estas características, impende tratar das finalidades
declaradas do Direito Penal Econômico. Uma primeira função que
se pode atribuir ao Direito Penal Econômico é a de manter a ordem
econômica eleita, escolhida pelo Estado. Uma vez mais, o Direito
Penal cumpre a sua missão sancionadora de bens jurídicos, de
tutelar aquilo que já vem tutelado por outros ramos. Neste sentido,
Martos Nuñes:
92
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
Sólo a partir de este instante, a un Derecho Penal autónomo en
materia económica corresponde la importante función social de
garantizar, por medio de sanciones penales, el mantenimiento
de un orden económico creado y vigilado por el Estado.36
Mais uma função que se pode atribuir ao Direito Penal
Econômico é, com efeito, assegurar a isonomia das normas
penais.37 Do contrário, o Direito Penal somente estaria a intervir
nas camadas mais humildes da população. Esclarecendo: se não
forem punidos os atos que atentam contra a economia, a parcela
mais abastada da população não estaria, em regra, sujeita às
normas penais. Assim, Martos Nuñes:
la delincuencia socio-económica amenaza la estructura del
Estado, pues ataca la confianza del público en el sistema
financiero, económico y social. A este argumento utilitario hay
que añadir un imperativo de justicia, pues, en efecto, el Derecho
Penal debe castigar eficazmente todo tipo de delincuencia: tanto
las grandes estafas financieras como los pequeños robos.38
Uma outra função, que seria por demais importante, é a de
resguardar, de proteger bens jurídicos reputados importantes, neste
caso, o bom funcionamento e a credibilidade em relação à
economia. Veja-se com Bacigalupo:
El Derecho penal económico se define en relación con un objeto
de carácter político-criminal: la prevención de la criminalidad
económica. La criminalidad económica constituye un fenómeno
complejo que requiere el conocimiento de aspectos que no son
jurídico-penales en sentido estrito. En ese sentido, el desarrollo
de las sociedades modernas ha producido no sólo una elevación
de la criminalidad tradicional frente a la propiedad y el patrimonio
(hurtos, robos, estafas), sino también una multiplicación de las
formas de delincuencia posibles.39
Enfim, a finalidade declarada do Direito Penal Econômico está
intimamente ligada com a finalidade da intervenção do Estado na
Economia. Sobre este assunto, lapidar é o magistério de Bajo e
Bacigalupo:
Gamil Föppel El Hireche
93
La finalidad y la función del Derecho Penal Económico no son
otra cosa que la sublimación de finalidad y la función del
intervencionismo: cumplir las exigencias de una valoración
diferente del imperativo de Justicia en orden a las relaciones
sociales y económicas. Estas nuevas exigencias se plasman en
la necesidad que hoy se siente de proteger la Economía en su
conjunto, el orden económico, la Economía Nacional puesta al
amparo del nuevo intervencionismo estatal, como intereses
distintos a los particulares de propiedad, patrimonio y fe
contratual.40
Interessante notar, vistas as funções, as (dis)funções do Direito
Penal Econômico. Com efeito, como salienta Bujan-Pérez, deve-se
observar a Escola de Frankfurt (de que são partidários Winfried
Hassemer, Cornelius Prittwitz, Felix Herzog, Wolfgang Naucke, PeterAlexis Albrecht)41 que duramente critica a expansão do Direito Penal
para a área econômica.42 As críticas feitas pela Escola de Frankfurt
passam pela inidoneidade do Direito Penal para interceder na ordem
econômica, a sua deslegitimidade para interferir num âmbito que
não é o seu, a conseqüente e indesejável perda de garantias em
relação às normas de direito penal econômico e, finalmente,
demonstrar o caráter puramente simbólico da intervenção penal na
economia, deixando a sociedade verdadeiramente desprotegida. Em
verdade, a proteção penal na economia seria uma espécie de
embuste: vende-se uma imagem de controle, de segurança, imagem
fraudada, ardilosa, que serviria para justificar, para as camadas
dominadas, a existência de uma pseudo-isonomia. Esta preocupação
também não escapou a Hassemer:
De um lado, la ciencia del Derecho penal (incluida la Criminología)
debe conocer com precisión las posibilidades de solución de
problemas que tiene el sistema de Derecho penal, marcando las
fronteras de tales posibilidades. La defensa frente a exigências
desmesuradas e injustificadas por parte de la Política Criminal
comienza con un análisis exacto de las capacidades del sistema
de Derecho penal.
94
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
Y, de outro, la ciencia del Derecho penal (comprendiendo también
a la Criminología) debe fundamentar si el Derecho penal tiene un
potencial simbólico y, em su caso, qué posibilidades cabe
asignalarle en tal sentido. Este discurso acaba de comenzar y,
basándose en la experiencia, sigiere que la amenaza penal e la
ejecución tambien tienen efectos simbólicos. Asinismo, pone
encima de las mesa el problema de las relaciones (de los fines
simbólicos e instrumentales en el Derecho penal) que em pírica y
normativamente pueden atribuirsele.43
Registre-se que o assunto relacionado com as (dis)funções do
Direito Penal Econômico servirá de fundamento para o elemento
mais importante da tese: a deslegitimação do Direito Penal
Econômico. Com efeito, devem ser abordadas as funções de
prevenção, com todos os seus desdobramentos (prevenção geral
e especial, positiva e negativa); teorias absolutas ou da retribuição;
as teorias ecléticas, com ênfase para a Teoria dialética Unificadora
e, finalmente, as teorias deslegitimadoras, que criticam o direito
penal e, com mais razão, o Direito Penal Econômico.
Expostos os aspectos tradicionais do Direito Penal Econômico
– até como pressuposto para o desenvolvimento da tese, máxime
porque não se pode deslegitimar aquilo que não se conhece, terá
início o desenvolvimento do ponto de vista de que o Direito Penal
não é instrumento legítimo para interferir na ordem econômica. Vejase o posicionamento de Alberto da Silva Franco:
O Direito, que vem sempre atrás de mudanças, aguardando
que elas se concretizem e se consolidem, para formular o
discurso jurídico, vê-se atropelando pela rapidez do processo
transformador. Foi ele, sem dúvida, apanhado de surpresa e o
seu equipamento conceitual revela-se inadequado,
despreparado e, em algumas situações, até mesmo superado,
para apreender e regular os problemas propostos pela
globalização e a conseqüente criminalidade transnacional. Essa
defasagem engendra posições dissonantes entre a sociedade
em mutação e o direito, quando não um vazio legal extremamente
Gamil Föppel El Hireche
95
perigoso. Diante desse quadro, o apelo à intervenção do
mecanismo penal para o enfrentamento dos grandes desafios
dos tempos modernos surge, de pronto, com um
posicionamento alternativo: ou o direito penal deve ajustar os
seus instrumentos ou garantias ao moderno desenvolvimento
tecnológico ou devem buscar-se outros instrumentos jurídicos
que possam responder melhor a esse desenvolvimento do que
o Direito penal´.44
Vê-se, pois, que o Direito Penal, para satisfazer os interesses
daqueles que estão ávidos para que exista sua intervenção na
economia, acaba por macular garantias conquistadas há séculos.
Com efeito, legalidade estrita, ofensividade, lesividade,
responsabilidade subjetiva, dentre outras tantas, tornam-se nulas
com a multiplicação de tipos penais extravagantes, repletos de
elementos normativos, de normas penais em branco, configurando
tipos de mera atividade e de perigo abstrato.
Por conta disso, na atualidade, defende-se uma restrição do
Direito Penal aos casos de absoluta e manifesta necessidade,
casos que, seguramente, não contemplariam a intervenção na
economia. Neste passo, convém invocar Cornelius Prittwitz45:
[...] mediante el Derecho Penal se consiguen pocas cosas
positivas y se producen, en cambio, muchos perjuicios. De ser
cierto, solo parece entonces consecuente pretender el menos
derecho penal posible.
Vê-se que, além de quebrar as garantias penais, estas
manifestações de Direito Penal Econômico têm outro inconveniente:
representam apenas uma interferência simbólica, não efetiva, do
Direito Penal. É dizer, não se protege a sociedade, não se
resguardam os bens que se declaram como protegidos. Veja-se o
que sustenta Olga Gaitán:
O direito penal moderno tende a refugiar-se em encargos
meramente simbólicos, como instrumento para a sensibilização
social, para satisfazer demandas por atuação, para mostrar um
96
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
Estado forte, etc. mas o simbólico não é neutro, no sentido
crítico em que o tratadista alemão Hassemer dá ao termo, pois
deve ser associado com engano, na medida em que existe uma
oposição entre o que realmente se quer e o que de fato se
aplica. Engano porque se parte de uma aparência falsa de
efetividade e instrumentalidade e, com isso, legitima-se o
endurecimento das sanções, a extensão do controle penal e a
necessidade de recorrer a este instrumento em primeira e última
instância. Direito penal simbólico significa que as funções latentes
das normas predominam sobre suas funções manifestas; é então
de se esperar que com elas e sua aplicação realiza-se algo
diferente do disposto na mesma lei.46
Em verdade, pode-se dizer que existem dois discursos do direito
penal em matéria econômica: um, declarado, de que o Direito
serviria para proteger bens jurídicos, e um outro discurso, real, não
declarado, de que, em verdade, o Direito Penal serviria para proteger
os interesses de certas classes sociais. O Direito Penal seria usado
como sistema de controle da sociedade, a fim de resguardar os
interesses da elite dominante. As normas de Direito Penal
Econômico cumprem seu papel neste contexto, pois, a despeito
de parecer paradoxal, pode-se perceber que as normas de Direito
Penal Econômico foram feitas para não funcionar, é dizer, elas
servem como uma manifestação simbólica para demonstrar a
isonomia inexistente, para demonstrar que existe criminalidade de
colarinho branco, que os ricos também podem ser presos, mas,
na verdade, tudo não passa de manifestação desprovida de
eficácia, ficando a sociedade verdadeiramente desprotegida.
Veja-se, portanto, que é possível que, sob todos os aspetos, a
intervenção penal em matéria econômica seja perniciosa, quer seja
por violar garantias fundamentais quer seja pela existência de uma
finalidade não declarada do Direito Penal, que seria a de,
efetivamente, não punir. De qualquer sorte, é fato que as normas
penais não têm o poder de proteger a sociedade, como bem
evidencia Prittwitz:
Gamil Föppel El Hireche
97
Porque quem quer usar o direito penal – colocando-o desta
forma ou não – principalmente para reprimir, vai receber de bom
grado um direito penal mais rígido e mais abrangente,
considerando-o, numa aliança peculiar, da mesma forma legítimo
que aqueles que, ao contrário, querem atingir, com o direito
penal, os poderosos da economia e da política. Mas mudará de
opinião quando perceber que “mais direito penal” promete
menos efeito, puramente por motivos de efetividade – coisa que
sempre volta a ocorrer e às vezes também é vista.47
O quê fazer, então, para proteger de forma efetiva a sociedade,
sem renunciar às garantias penais individuais?
No trabalho a ser desenvolvido com tese, desenvolver-se-á o
problema exposto neste ensaio, pretende-se sistematizar e
desenvolver a criação de um novo ramo do Direito, que cuidaria
destas novas lesões a estes bens que surgiram e que não têm
íntima relação com o Direito Penal. Urge, pois, a adoção de um
Direito da Intervenção, que representaria uma região intermediária
entre o Direito Penal e o Direito Administrativo. Trata-se de um
Direito Punitivo, com sanções graves, a cumprir a função de
prevenção geral e de tutela de bens jurídicos, que, por não ter
pena de privação da liberdade, pode comportar menos garantias
que o Direito Penal. Uma semelhante preocupação incomoda
Figueiredo Dias:
O único caminho apontado neste campo parece ter alguma
coisa por si é, assim, o da preconizada transferência da função
de tutela jurídico-penal para o âmbito do direito administrativo,
nele incluído o direito administrativo sancionatório, porventura
sob uma forma reforçada como a que é hoje preconizada –
embora eu deva que não vejo ainda com um mínimo de clareza a
definição de sue âmbito, de sua extensão e de seus
instrumentos.48
Segue esta mesma linha Miguel Reale Júnior, uma vez que prevê a
criação de uma terceira via jurídica competente para tratar do fenômeno
em comento, desde que atrelada a alguns princípios já consagrados
98
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
no Ordenamento, tais como legalidade, retroatividade da lei nova mais
benéfica e proibição da analogia in malam partem, in literis:
Desse modo, pode-se avançar na construção de uma terceira
via, que dote o Ordenamento de um instrumento mais ágil que,
sem deixar de atender a alguns princípios garantistas do Direito
Penal, supere os óbices que tornam este último ineficiente,
fazendo atuar, por outro meio e de modo eficaz, os fins de
prevenção e retribuição na defesa de bens jurídicos essenciais,
fracamente protegidos pela lei penal, que se revela dispicienda.49
Assim, a tese a ser apresentada tratará de analisar a
deslegitimação do Direito Penal Econômico e, por conseqüência,
o aparecimento do chamado Direito da Intervenção para uma tal
finalidade. Veja-se que, com o Direito da Intervenção, o âmbito do
ilícito pode ser mais fluido, sem a garantia intransigente da
legalidade estrita, sendo possível proteger bens, adequando-se
às alterações e modificações da sociedade, sem que se viole a
proteção penal. Veja-se, como exemplo disto, as manifestações já
existentes, no Brasil, previstas na Lei de Improbidade
Administrativa.
A supracitada tese se contrapõe à construção teórica de Lenio
Streck que sustenta ser possível a “relegitimação do direito penal
adaptando-o aos ditames do novo modelo de Direito estabelecido
pelo Estado Democrático de Direito” 50. Entretanto, conforme já foi
exposto, a nova demanda enseja a criação de um ramo autônomo,
o chamado Direito da Intervenção. Isto, pois os novos bens jurídicos
revelam características próprias, fator que implica a adoção de meios
de tutela peculiares, incompatíveis com o Direito Penal, sobretudo
no que tange à necessidade de flexibilização de garantias.
Esta linha de argumentação – transferência da matéria penal
econômica para o âmbito do Direito da Intervenção – já encontra
respaldo também na doutrina estrangeira. Vejam-se as lições de
Elena Gorriz Nuñez:51
Gamil Föppel El Hireche
99
Algunos autores han evolucionado hasta realizar propuestas
intermedias en cuanto que también tratarían de reducir la
intervención punitiva, pero creando un Derecho de intervención
(Interventionsrecht) a caballo entre el Derecho Penal nuclear y el
Derecho Administrativo Sancionador (Rect. Der
Ordnungswidrigkeiten). En esta línea se situa en Alemania la
propuesta de Hassemer quien (…) postula crear un sistema
jurídico al margen del código penal, pero regido por criterios
penales y que aglutine preceptos relativos a la delincuencia
económica, a la mediombiental o em materia de drogas. En este
Derecho da Intervención, se flexibilizarián las garantias materiales
y procesales y no se recurriría a la pena privativa de liberdad.
Na tese, pois, de que este artigo, elaborado no curso de História
das Idéias Penais pretende ser um capítulo, intenciona-se, a partir
das críticas feitas à intervenção penal em matéria econômica,
apresentar os fundamentos do Direito da Intervenção, como
proposto por Hassemer,52 evidenciando as suas diferenças em
relação ao Direito Penal, bem como a sua idoneidade para tratar
de assuntos que o Direito Penal, pelas limitações de sua própria
natureza, não poderia tratar.
Será, portanto, procurada uma forma de resolver conflitos, a fim
de equilibrar a tensão existente pela necessidade de proteger bens
jurídicos sem violar as garantias fundamentais, como adverte Renato
Silveira:
Uma coisa é certa: como os interesses difusos abordam os
sentidos plurais do Direito Penal de forma diferente do Direito
Penal clássico, é evidente que o âmbito criminal quanto a eles
deva ser diverso, quando e se preciso. Portanto, imprescindível
parece ser uma descriminalização, deixando-se, aos demais
ramos do Direito, a busca por uma solução melhor dos conflitos
supra-individuais. Reale Júnior considera necessário um
enveredar para uma terceira via, administrativo-penal, em que se
dote o ordenamento de instrumentos mais ágeis, os quais, sem
deixar de atender a alguns princípios garantistas do Direito Penal,
superem os óbices que tornam, este último, obsoleto e
ineficiente.53 (grifo nosso).
100
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
Feitas estas considerações iniciais em relação ao Direito Penal
Econômico, pautada em um viés crítico, deve-se, doravante, expor,
na mesma linha de raciocínio, uma forma melhor de resguardar a
economia: o Direito da Intervenção, da escola de Frankfurt.
3. Propostas conciliatórias: o Aparecimento do
Direito Penal da Intervenção e a contribuição de
Winfried Hassemer
De maior importância é que os problemas que mais recentemente
forma introduzidos no Direito Penal sejam mais afastados dele. O
Direito dos ilícitos administrativos, o Direito Civil, o Direito Público
e também o mercado e as próprias precauções da vitima são
setores nos quais muitos problemas, que o moderno Direito Penal
atraiu para si, estariam essencialmente mais bem tutelados.
Recomenda-se regular aqueles problemas da sociedade moderna,
que levaram à modernização do Direito Penal, particularmente, por
um “Direito de Intervenção”, que esteja localizado entre o Direito
Penal e o Direito dos ilícitos administrativos, entre o Direito Civil e
o Direito Público, que na verdade disponha de garantias e
regulações processuais menos exigentes que o Direito Penal, mas
que, para isso, inclusive, seja equipado com sanções menos
intensas aos indivíduos. Tal Direito “moderno” seria não só menos
normativamente grave, como seria também faticamente mais
adequado para acolher os problemas especiais da sociedade
moderna.54
Deve-se proteger a economia, como se devem proteger todos os
bens de interesse para a sociedade. Mas, seguramente, como já se
demonstrou, a intervenção penal é antiquada, inapropriada, ultrapassada.
Quid Juris? Como proteger a economia sem se valer de normas penais?
Isto que se pretende apresentar nas linhas seguintes.
Vistas todas as críticas contundentes feitas ao Direito Penal
Econômico, podemos, neste instante, fazer duas conclusões
Gamil Föppel El Hireche
101
iniciais: 1) seguramente, o Direito Penal Tradicional ou nuclear é
inconciliável com a dinâmica da economia, a menos que se macule
de forma irreparável a noção da legalidade estrita; 2) é necessário
proteger a economia dos abusos de alguns setores. Esta
preocupação é sintetizada pelo próprio Hassemer:55
O Direito Penal, nos últimos tempos, tem ampliado de modo
significativo suas capacidades e assim tem deixado cair a
bagagem democrática, a qual é um obstáculo na realização de
novas tarefas.
Como, então, fazer isso? Proteger a ordem econômica sem ser
por meio do Direito Penal?
É incontroverso que a economia fica sujeita a alterações muito
rápidas, bastante voláteis. O direito penal, por suas características
tradicionais de garantias, não pode, a menos que estas sejam
quebradas, ocupar-se de uma realidade tão dinâmica. Deve-se
desnudar o véu da persistência equivocada, da insistência em um
instrumento inidôneo, para buscar uma tutela adequada, que
consiga, a um só tempo, salvaguardar e proteger a sociedade,
sem fazer letra morta das garantias fundamentais.
O Direito faz parte do mundo cultural e, portanto, fica sujeito às
transformações do tempo e às variações do espaço. Se o Direito
não acompanhar o tempo se tornará um instrumento esclerosado,
perdendo a sua finalidade de preservação da paz social. Por conta
disso, para resguardar estas novas infrações, evidentemente
descompassadas com o Direito Penal clássico, necessário se faz
reconhecer a impossibilidade de o direito penal tradicional tutelar
estes bens, transferindo-os para um novo ramo, este sim, próprio,
adequado, idôneo à tutela dos bens jurídicos. Esta é uma evidência
feita por Hassemer:
Para começar, precisamos libertar o direito penal de tarefas
preventivas, para as quais não está vocacionado. Mais
concretamente, devemos extirpar do direito penal tudo aquilo
102
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
que só possa ser conseguido com apelo para a acessoriedade
administrativa..56
A Escola de Frankfurt, assim, propõe um direito intermediário,
um meio termo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo,
que se chama de Direito da Intervenção. Ora, fica patente, assim,
que, se o Direito Penal não pode resguardar, nada impediria que
se transferisse esta tutela para um novo ramo do direito, de que se
tratará agora.
3.1. Fundamentos do Direito da Intervenção. Em que
consiste, direito, conceito
Há muitas razões para se supor que os problemas “modernos”
de nossa sociedade causarão o surgimento e desenvolvimento
de um Direito interventivo correspondentemente “moderno” na
zona fronteiriça entre o Direito administrativo, o Direito penal e a
responsabilidade civil por atos ilícitos. Certamente terá em conta
as leis do mercado e as possibilidades de um sutil controle
estatal, sem problemas de imputação, sem pressupostos da
culpabilidade, sem um processo meticuloso - mas, então,
também, sem a imposição de penas criminais.57
O Direito da Intervenção surge como alternativa para a um só
tempo resguardar a sociedade, sem desprestigiar as garantias
fundamentais dos cidadãos. Trata-se de um direito verdadeiramente
punitivo, consigne-se, com sanções graves, com respostas mais
céleres, num procedimento mais rápido, entretanto, com menos
garantias que o Direito Penal. Apenas não haveria pena de privação
da liberdade. Com isso, registre-se que não se trata de um discurso
de liberalidades, de proteção exclusiva às pessoas. Propugna-se,
efetivamente, por uma tutela verdadeira, não simbólica da
sociedade.
Com isso, passaria a existir uma nova separação dos diversos
ramos do direito punitivo, englobadas neste direito da intervenção,
consoante estabelece o próprio Hassemer:
Gamil Föppel El Hireche
103
Este novo ramo de direito deveria condensar os seguintes
elementos: a) Direito penal; b) Fatos ilícitos civis; c)
Contravenções (Überschreitungen); d) Direito de Polícia
(Polizeirecht); e) Direito fiscal; f) Medidas de matriz econômico e
financeiro; g)Planejamento do território; h) Proteção da natureza;
i) Direito municipal (Kommunalrecht)..58
Hassemer ainda evidencia que este novo ramo do direito não é
repressivo como o Direito Penal, o que representaria mais uma
grande virtude do Direito da Intervenção. Com efeito, a resposta
do Direito Penal é consequencial, menos que perfeita, ele só
intervém quando o bem já foi ofendido. O Direito da Intervenção,
por sua vez, teria a grande virtude de antecipar a proteção, sem
representar a antecipação de tutela em matéria penal. Neste passo,
repita-se uma nova citação para comprovar o pensamento do autor:
O direito de intervenção deverá ser concebido de molde a poder
atuar previamente à consumação de riscos. Ou seja, deverá ser
pensado como um direito de caráter preventivo, ao contrário
do direito penal, que é direito repressivo..59
Ao tratar dos fundamentos que caracterizam o Direito da
Intervenção, Miguel Reale Júnior, apesar de harmônico com as idéias
preconizadas por Hassemer, critica a terminologia escolhida, com
fulcro nos seguintes argumentos:
Concordando com estas sugestões opomo-nos, todavia, à
denominação “Direito de Intervenção”, que pouco designa, uma
vez que intervenção não será a característica desse novo ramo,
mesmo porque não há direito repressivo que não realize uma
intervenção. A característica fundamental a ser retida é que as
infrações são administrativas e não penais, sendo julgadas por
um tribunal administrativo como, por exemplo, o Cade. Todavia,
revestem-se de algumas garantias e limitações próprias do Direito
Penal, o que significa dizer que contém, simbioticamente,
qualidades de infração administrativa quanto penal.60
A controvérsia sobre a nomenclatura adequada, entretanto,
resta irrelevante diante da preocupação maior em definir os
104
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
elementos caracterizadores do Direito interventivo, bem como
os meios necessários ao seu estabelecimento enquanto ramo
autônomo do direito.
Como se afirmou, anteriormente, o Direito da Intervenção tem
menos garantias que o Direito Penal, e que, em compensação,
não teria pena de prisão. Por conta disso, poderia ocorrer
responsabilidade coletiva de natureza objetiva, sem se perquirir a
culpa, pedra angular do Direito Penal. Isto teria a grande virtude de
fazer cessar a existência de denúncias genéricas, mormente nos
crimes societários, um abuso do poder de acusar que fere,
letalmente, o princípio da plena defesa. Com o Direito da
Intervenção – que não tem prisão – um tal problema deixaria de
existir. Confira-se com a lição do próprio Hassemer:
O direito de intervenção deverá dispensar os mecanismos de
imputação individual de responsabilidades. Isto significa que a
imputação de responsabilidades coletivas deverá ser admitida,
contanto que as penas privativas de liberdade não venham a
integrar o rol das sanções aplicáveis. Este novo ramo de direito
deverá dispor de um catálogo de sanções rigorosas.
Desigualmente, deverá poder decretar a dissolução de entes
coletivos, encerrar as empresas poluidoras, suspender as
respectivas atividades ou setores de atividade, entre outras
medidas. O direito de intervenção deverá estar preparado para
atuar globalmente, e não apenas estar destinado a resolver os
casos isolados..61
O Direito da Intervenção, assim, poderia resguardar a economia,
com sanções graves, cumprindo a sua missão de prevenção geral,
com procedimento célere, tutelando os bens novos, mesmo
flexibilizando garantias, sem que, contudo, exista pena privativa de
liberdade. Seria, então, uma forma de compatibilizar uma proteção
verdadeira a bens jurídicos, sem renunciar às garantias fundamentais.
Alguns autores confundem, porém, a necessidade de
flexibilização de garantias com a supressão das mesmas. A adoção
Gamil Föppel El Hireche
105
do Direito da Intervenção objetiva não só a preservação dos
princípios legitimadores do Direito Penal – uma vez que uma
adaptação forçosa à tutela das novas lesões em debate acabaria
por desnaturá-lo – como também a aplicação de garantias no Direito
interventivo, desde que respeitando as particularidades dos bens
jurídicos que marcam este fenômeno. Não se trata, pois, de
manobra política arbitrária, mas de legítima aplicação de medida
idônea de combate a tais lesões. Equivoca-se, portanto, Celso
Eduardo Coracini ao tecer a seguinte crítica ao Direito da
Intervenção:
Poderia ser a busca de uma solução.Entretanto, analisada de
perto, a mencionada proposição representa um aumento de
poderes do Estado, em detrimento das liberdades individuais,
sem justificativas ou critérios claros e plausíveis.62
Em Portugal, chama-se de Direito das Contra-Ordenações aquilo
que Hassemer denominou de Direito da Intervenção. As diferenças
– entre o Direito da Intervenção e o Penal comum – são muito
bem definidas a seguir:
Parte Goldschimidt de uma contraposição entre as normas do
Direito de Justiça (justizstrafrecht), que considera o homem como
ser individual e, conseqüentemente, a tipicidade está voltada
para descrição dos direitos juridicamente relevantes, gerando
efeitos na ordem jurídica (Rechtsfolgen) das meras normas
penais administrativas (Verwaltungsstranfrecht), que tutelam os
planos sociais do Estado, considerando os indivíduos no seio
social, com ordenamentos ou regulamentos administrativos
(Verwaltungsvorschriften), dando causa a atuação do EstadoAdministração.
O critério diferenciador entre amos os direitos deve ser buscado
na maior ou menos ameaça ou lesão aos bens jurídicos tutelados
por normas de direito penal ou por decretos penais
administrativos. Portanto, há que se considerar o direito penal
administrativo sob o prisma das infrações de política
(Polizeistrafrecht) em termos de autonomia material e qualitativa
106
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
destes direcionados contra o ordenamento do EstadoAdminstração”. 63
Mas será que o Direito da Intervenção seria assim mesmo tão
bom? Não estaria ele sujeito a críticas? Ver-se-á isto no próximo
tópico.
3.2. Zaffaroni, reação aos Direitos Penais Paralelos:
Crítica ao Direito da Intervenção?
Zaffaroni, em livro recente, menciona a existência de um fenômeno
que a um leitor menos avisado poderia soar como uma crítica ao
Direito da Intervenção. Zaffaroni, trata, em verdade, do que ele
convencionou chamar de Direitos Penais Paralelos, criticando-os
ferrenhamente.
Com efeito.
Segundo Zaffaroni, a sanha punitiva do Estado está desbordando
o Direito Penal e atingindo outras áreas. O Estado policialesco
estaria passando, por exemplo, para dentro do direito
administrativo, sem que, contudo, se fizesse acompanhar das
mínimas garantias do Direito Penal.
Exemplifica, sustentando que, ut upta, os órgãos de classe hoje
têm poder para impor decisões mais graves que um juiz criminal.
Efetivamente, a OAB, por exemplo, pode expulsar, em caráter
perpétuo, de seus quadros, um advogado, já que lá não vige o
princípio da não perpetuação das penas. Disso trata Zaffaroni,
verbum ad verbum:
Parece estranho que a teoria jurídico-penal não tenha destacada
a analogia que estas formas de exercício do poder mantêm com
o sistema penal formal, ainda que isto constitua efeito direto da
metodologia que insistem em manter fora de foco os dados da
realidade que o legislado não incorpora, ou em considerar que
sua incorporação é um ato valorativo que só o legislador pode
empreender, como se fora ele o único a enxergar o mundo.
Gamil Föppel El Hireche
107
Deve-se aqui avaliar, outra vez, o efeito do narcisismo do discurso
penal, gravemente ferido quando se adverte de que não está
programando - como pretende - o exercício do poder punitivo e
que, além disso, nem sequer se refere à totalidade do mesmo, o
que destrói sua proclamação discursiva do monopólio dele por
parte do estado. Este impedimento tem conseqüências graves,
pois implica uma renúncia a disputar a incorporação desses
âmbitos do poder punitivo a seu discurso e, com isso, a exercer
qualquer papel limitador a respeito deles. A preservação do
discurso tradicional tem, pois, o efeito de reduzir o âmbito do
conhecimento e da aspiração ao exercício do poder. E mais: é
comum o discurso penal legitimar esses sistemas penais
paralelos como alheios ao direito penal (elementos negativos
do discurso), com o que acaba sendo o único discurso de
programação do exercício de u poder cuja estratégia implica
reduzi-lo, na contramão do que buscam todos os discursos de
poder e todas as corporações existentes.64
A crítica de Zaffaroni é extremamente pertinente, mas não se
aplica ao Direito da Intervenção.
De fato, o Direito da Intervenção é um direito sistematizado, em
que não se pode falar em um sem-número de infrações soltas.
Malgrado tenha menos garantias que o Direito Penal, ele conserva
as garantias fundamentais. E, mais importante do que tudo isso, o
Direito da Intervenção não usurpa, do Direito Penal, os bens que
lhe são próprios. Para os bens tradicionais – vida, patrimônio, honra,
costumes – as garantias tradicionais. Para os novos bens, que
escapam à seara penal, as novas determinações do Direito da
Intervenção. Hassemer não defende nem nunca defendeu a
existência de Direitos Penais Paralelos. Com efeito, a importância
que ele dá ao Direito Penal pode ser verificada em:
O quinto aspecto, que merece especial referência, consiste no
reconhecimento de que o direito penal ainda deverá jogar um
papel neste novo contexto. Todavia, para o direito penal ainda
deverá ficar reservada apenas uma função ancilar, de caráter
flanqueador, destinada a dar cobertura a determinadas mediadas
108
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
de proteção ambiental. Mas com aqueloutra função de proteção
de bens jurídicos, porque agora se trata apenas de garantir o
cumprimento dos deveres impostos pela Administração.65
Semelhantemente:
O direito penal administrativo assume uma função dinâmica e
impulsionadora da atividade do homem em sociedade, não
permitindo que este seja omisso ou socialmente descuidado; o
direito penal de justiça permanece em sua função garantidora e
mantenedora dos direitos individuais do homem, assumindo um
papel conservador e estático.66
Abordados estes pontos, passa-se às considerações finais, não
sem antes advertir ao leitor que o Direito da Intervenção ainda é
uma novidade no Brasil, malgrado existam exemplos evidentes da
intervenção entre nós, como no caso da Lei de Improbidade
Administrativa, que se pretende, com este trabalho e com seu
desenvolvimento na tese de doutoramento, desenvolver para
apresentar à sociedade.
4. Considerações Finais
Diante de tudo que se expôs, pode-se asseverar que:
A. A intervenção penal na economia é um fenômeno
relativamente recente, que, desde o nascedouro, tem um
caráter eminentemente político;
B. A economia é um ramo bastante volátil, cheio de mutações, e o
direito penal nuclear, de primeira velocidade, não consegue
acompanhar sem que haja grandes prejuízos às garantias fundamentais, mormente aquelas relacionadas com a legalidade;
C. Para acompanhar as mutações na ordem econômica, o
Direito Penal passa a fazer uso de uma legislação esparsa,
descodificada, com excessivo número de tipos abertos,
normas em branco, de perigo abstrato ou presumido,
recheadas de elementos normativos;
Gamil Föppel El Hireche
109
D. Todas estas deficiências do direito penal, em busca de uma
ilusória eficácia de segurança, deve-se ao fato de ele ser
verdadeiramente disfuncional, é dizer, ele atende a finalidades
outras de não proteção a bens jurídicos, nem de resguardo
da sociedade. É algo que funciona bem na exata medida
em que funciona mal;
E. Por conta disso, surge o direito da intervenção, meio termo
entre o Direito Administrativo e o Direito Penal, não
prescindindo deste. O Direito da Intervenção, qual proposto
pela Escola de Frankfurt, terá sanções graves, pesadas, num
processo mais célere, com menos recursos, menos garantias,
porém sem privação da liberdade;
F. As críticas feitas por Zaffaroni aos Direitos Penais Paralelos
não se aplicam ao Direito da Intervenção.
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de Estudos Criminais: Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais da PUCRS, p. 62-63.
3
PIMENTEL, Manuel Pedro. Direito Penal Econômico. São Paulo: RT, p. 6-7.
4
NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial
Montecorvo, 1987, p. 111.
112
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
5
Id; Ibid, p. 111-112.
6
NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial
Montecorvo, 1987, p. 113.
7
Id. Ibid, p. 114.
8
Id. Ibid, p. 125.
9
Id. Ibid, p. 130.
10
BAJO, Manuel; BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 2001, p. 11.
11
PEREZ, Bujan; MARTINEZ, Carlos. Derecho Penal Económico. Parte General.
Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998.
12
NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial
Montecorvo, 1987, p. 128.
13
Ver, neste passo, NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico.
Madrid: Editorial Montecorvo, 1987, p. 129.
14
BUJAN PEREZ, CARLOS MARTINEZ. Derecho Penal Económico. Parte General.
Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 33.
15
BAJO, Manuel; BACIGALUPO, SIlvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 2001, p. 13.
16
RIGHI, Esteban. Los Delitos Económicos. Buenos Aires, 2000, p. 29.
17
Id. Ibid, p. 100.
18
BUJAN PEREZ, Carlos Martinez. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 58.
19
Id. Ibid, p. 20.
20
Id. Ibid, p. 21.
21
Id. Ibid, p. 28.
22
Id. Ibid, p. 30.
23
TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Barcelona: PPU,
1993, p. 158.
24
TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Barcelona: PPU,
1993, p. 123.
25
NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial
Montecorvo, 1987, p. 243.
Gamil Föppel El Hireche
113
26
NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial
Montecorvo, 1987, p. 174-175.
27
HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal, in Revista
de Estudos Criminais: Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais da PUCRS, p. 60.
28
BUJAN PEREZ, Carlos Martinez. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 36.
29
TIEDMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Barcelona: PPU,
1993, p. 123.
30
BUJAN PEREZ, Carlos Martinez. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 90.
31
BUJAN PEREZ, CARLOS MARTINEZ. Derecho Penal Económico. Parte General.
Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 97.
32
Id. Ibid, p. 13.
33
TIEDMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico . Barcelona: PPU,
1993, p.161.
34
BASOCO, Juann Terradillos “et alli” Derecho penal de la empresa. Madrid: Editorial
Trotta, 1995 , p.36
35
HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal, in Revista
de Estudos Criminais: Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais da PUCRS, p. 61.
36
NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico . Madrid: Editorial
Montecorvo, 1987, p. 114.
37
BUJAN PEREZ, CARLOS MARTINEZ. Derecho Penal Econômico . Parte General.
Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 27.
38
NUÑES, Juan Antonio Martos. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial
Montecorvo, 1987, p. 120-121.
39
BACIGALUPO, Enrique “et alli” Derecho Penal Econômico. Buenos Aires: Editorial
Hamurabi, 2004 p.29.
40
BAJO, Manuel, BACIGALUPO, SIlvina. Derecho Penal Económico . Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, 2001, p. 13.
41
Por todos, ver a coletânea de trabalhos: CASABONA, Carlos Maria Romeo (coordenador). La insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt, 2000.
42
BUJAN PEREZ, Carlos Martinez. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia, Tirant Lo Blanc, 1998, p. 22-23.
114
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
43
HASSEMER, Winfried. Perspectivas del Derecho penal futuro, in Revista Penal,
ano 1, n° 1, Traducción de Enrique Anarte Borrallo. Editorial Praxis, p. 40.
44
FRANCO. Alberto Silva. Globalização e Criminalidade dos Poderosos. In: Revista
Portuguesa de Ciência Criminal. ano 10, fasc. 2.º. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 216.
45
PRITTWITZ, Cornelius. El Derecho Penal Alemán: Fragmentario? Subsidiario? Ultima
Ratio? Reflexiones sobre la razón y limites de los principios limitadores del Derecho
Penal. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo (coordenador). La insostenible situación
del Derecho Penal. Granada: Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt, 2000.
46
GARCÍA, Olga Lucia Gaitán. Direito Penal Contemporâneo: da Tutela Penal a uma
Lesão à Proteção de Riscos. In: Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade.
ano 7, n. 12, 2º semestre de 2002. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 48.
47
PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre Direito Penal do Risco e Direito Penal
do Inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal . In: Revista do
IBCCrim. São Paulo: março-abril de 2004, nº 47. p. 36.48 DIAS, Jorge de Figueiredo.
Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 2001.
49
REALE JÚNIOR, Miguel. Despenalização no Direito Penal Econômico: uma terceira via entre o crime e a infração administrativa? In: Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo: outubro-dezembro de 1999, n° 28. p. 128.
50
STRECK, Lenio Luiz. Crise (s) Paradigmática (s) no Direito e na Dogmática Jurídica:
dos conflitos interindividuais aos conflitos transindividuais – A encruzilhada do direito penal e as possibilidades da justiça consensual. In: Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo: outubro-dezembro de 1999, n° 28. p. 115.
51
NUÑES, Elena Gorriz. Posibilidades y Limites del Derecho Penal de dos Velocidades. In:BASOCO, Juan Terradillos e SANCHÉZ, Maria Acalé (coord).
Temas de Derecho Penal Económico. III Encontro Hispano Italiano de Derecho
Penal Econômico. Madrid: Editorial Trota, 2004, p. 341-342.
52
Neste sentido: HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado de Direito. In:
Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 2, n. 5. e, ainda,
HASSEMER, Winfried. A preservação do meio ambiente através do direito penal
. Conferência proferida no I Congresso Internacional de Direito do Ambiente, adaptada para publicação por Paulo de Sousa Mendes. Lusíada – Rev. C. C. Direito n°
Especial, 1996.
53
SILVEIRA, Renato Mello Jorge. Direito Penal Supra-individual: Interesses Difusos.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 203.
54
HASSEMER, Winfried. Características e crises do moderno direito penal, in Revista
de Estudos Criminais: Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais da PUCRS, p. 65-66.
Gamil Föppel El Hireche
115
55
HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direito Penal. In Revista de Estudos Criminais. Edição Oficial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS. Número 08, p. 59.
56
HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in
Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de
Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 33.
57
HASSEMER, Winfried. Três Temas de Direito Penal. Escola Superior do Ministério
Publico: Porto Alegre, 1993. p. 59.
58
HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in
Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de
Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 33-34.
59
HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in
Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de
Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 34.
60
REALE JÚNIOR, Miguel. Despenalização no Direito Penal Econômico: uma terceira via entre o crime e a infração administrativa? In: Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo: outubro-dezembro de 1999, n° 28. p. 125.
61
HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in
Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de
Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 34.
62
CORACINI, Celso Eduardo Faria. Os Movimentos de Descriminalização: em busca
de uma racionalidade para a intervenção jurídico-penal. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais. São Paulo: setembro-outubro de 2004 n° 50. p. 266.
63
COUTINHO, Heliana Maria de Azevedo. O direito de mera ordenação social no
sistema jurídico-penal alemão. In: Revista Brasileira de Ciência Criminais. Ano 2, n.7,
com trechos de Goldschimidt, verwaltungsstrafrecht, Berlin, Carl Heymans, 1902,
citados pela autora.
64
ZAFFARONI, E.Raúl, BATISTA, Nilo, et alli. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume
– Teoria Geral do Direito Penal. 2ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 69-70.
65
HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal, in
Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n° 22, abril-junho, 1998, tradução de
Carlos Eduardo Vasconcelos, p. 34.
66
COUTINHO, Heliana Maria de Azevedo. O direito de mera ordenação social no
sistema jurídico-penal alemão. In: Revista Brasileira de Ciência Criminais. Ano 2, n.7,
com trechos de Eric Wolf, Die Stellung der Verwaltunsdelikte im Strafrechtssystem
Frank –Festgabe, Band 2, s.516 ff. Deutschla 1930, citados pela autora.
116
Considerações sobre a deslegitimação do Direito Penal Econômico.
DIREITO AO SILÊNCIO NO PROCESSO CIVIL
BRASILEIRO (ARTS. 347, CPC, E 229, CC)1
Fredie Didier Jr
Professor-coordenador do curso de graduação em Direito da
Faculdade Baiana de Direito. Professor-adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (graduação,
mestrado e doutorado). Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP).
Advogado e consultor jurídico. www.frediedidier.com.br
Sumário: 1. Noção. 2. Generalidades sobre o depoimento da parte. 3. A
recusa lícita de depor: o direito ao silêncio. 3.1. Noção. 3.2. Direito ou dever
de silêncio. 3.3. Direito ao silêncio em relação a fatos criminosos ou torpes.
3.4. Direito ao silêncio sobre fatos relacionados à vida familiar ou à atividade
profissional. 3.5. Outras hipóteses expressas, em que se reconhece o direito
ao silêncio, previstas no Código Civil (art. 229). 3.6. Regra geral de escusa.
1. Noção
O direito ao silêncio é um dos temas mais interessantes e,
curiosamente, ao mesmo tempo, menos estudados pela dogmática
do direito processual civil. Bem diferente é a situação em relação
à dogmática do direito processual penal, em que há inúmeros
trabalhos, seja da doutrina brasileira seja da doutrina estrangeira,
sobre o princípio do nemo tenetur se detegere.
As regras sobre o direito ao silêncio estão previstas no CPC
(art. 345, 347 e 406) e no CC (art. 229). Essa constatação
fundamenta a escolha desse tema para compor a coletânea em
homenagem ao querido amigo e mestre Arruda Alvim, jurista que
se destaca com igual maestria tanto no direito privado quanto no
direito processual civil.
As regras legais mencionadas valem tanto para o depoimento
da parte quanto para o testemunho de terceiro. Cuidaremos do
117
direito ao silêncio da parte. As considerações servem, mutatis
mutandis, para o direito ao silêncio da testemunha (art. 406, CPC2).
2. Generalidades sobre o depoimento da parte
O sistema brasileiro seguiu o modelo italiano: há duas espécies
de depoimento da parte, o depoimento por provocação e o
interrogatório.
Há o depoimento da parte por provocação, requerido pela parte
adversária, realizado na audiência de instrução e julgamento e
determinado sob pena de confissão ficta (art. 343, § 1º, CPC),
acaso a parte se recuse3 ou não compareça para depor (art. 343, §
2º, CPC): tomar-se-ão por confessados os fatos afirmados em
desfavor da parte que deveria ter-se apresentado para depor. A
confissão ficta, neste caso, embora tenha natureza jurídica de sanção,
será valorada pelo magistrado como se confissão real fosse (sobre
a possibilidade de valoração judicial da confissão, ver o capítulo
sobre a confissão, neste livro), inclusive podendo afastá-la, acaso
os fatos fictamente confessados sejam inverossímeis4.
A parte deve ser intimada pessoalmente, com expressa menção,
no mandado, à pena de confissão ficta, sob pena de nulidade do
ato que aplicar essa sanção5.
A parte não pode requerer o seu próprio depoimento. As
declarações de uma parte, contudo, podem servir como meio de
prova em seu favor, na medida em que reforcem a convicção do
magistrado6. O interrogatório, no processo penal, é encarado como
um meio de defesa do acusado7, o que reforça a argumentação de
que as declarações do depoente podem beneficiar-lhe. No
processo penal, porém, há o direito ao silêncio, com todo o
conteúdo da cláusula do nemo tenetur se detegere (ninguém é
obrigado a manifestar-se), conduta que lá não pode implicar prejuízo
ao réu8. No direito processual civil também há o direito ao silêncio,
que torna lícita a recusa de depor, em hipóteses adiante examinadas.
118
Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1.
Há, também, o interrogatório, determinado ex officio pelo
magistrado, em qualquer estágio do processo, inclusive em
instância recursal9, não sendo possível, neste caso, entretanto,
cominar a pena de confissão ficta para o caso de nãocomparecimento ou recusa (art. 342, CPC)10. A doutrina costuma
não considerar o interrogatório como um meio de prova
propriamente dito, mas, na verdade, um instituto cujo objetivo é o
de esclarecer o magistrado sobre fatos da causa. Porém, convém
apontar, “é sempre possível que dele extraia o juiz algum elemento
de prova, a ser usado para formar sua convicção sobre os fatos
articulados no processo”11.
Admite-se mais de uma convocação da parte ao interrogatório,
bem como, por não visar à confissão, se permite a convocação de
incapaz para depor. Como o interrogatório visa ao esclarecimento
dos fatos, a princípio não há utilidade na ouvida, nesta condição,
de representantes ou presentantes de pessoa jurídica, que não
tenha conhecimento dos fatos12.
Em ambos os casos, a confissão provocada pode surgir, e é
sempre essa a razão de ser última de qualquer depoimento da
parte. A diferença é que, no interrogatório, a confissão não pode
ser prevista como sanção ao não-comparecimento ou à recusa a
depor, condutas que podem ser avaliadas como abusivas, ficando
a parte suscetível de punição por litigância de má-fé (art. 17 do
CPC) e, para alguns autores, até mesmo a pena por crime de
desobediência (desrespeito ao art. 340, I, CPC)13.
3. A recusa lícita de depor: o direito ao silêncio
3.1. Noção
A recusa de depor tanto pode caracterizar-se pela negativa direta
e frontal, como pela simples omissão em responder ou pelo recurso
a evasivas. Nestes casos, cabe ao órgão judicial verificar se a
Fredie Didier Jr.
119
atitude da parte há de ser considerada como recusa, devendo
esclarecer na sentença as suas razões (art. 345 do CPC)14 e, assim,
aplicar a sanção da confissão ficta.
Há, contudo, situações em que é lícita a recusa de depor: são
hipóteses em que se admite a escusa de depor.
O sistema prevê as hipóteses que legitimam a recusa de duas
maneiras: há uma regra geral de atipicidade da escusa de depor
(art. 345), exigindo como pressuposto apenas a justiça do motivo,
e há situações específicas, já qualificadas pelo legislador como
justas para autorizar o silêncio (art. 347, CPC, e art. 229, CC).
Cabe ao magistrado o controle da licitude da recusa, que
examinará o preenchimento dos pressupostos legais que a
autorizam.
3.2. Direito ou dever de silêncio
O direito ao silêncio (direito de recusar-se a depor sobre
determinados fatos e direito de não ser interrogado sobre eles) é,
em certas situações, um dever: nas hipóteses em que o direito ao
silêncio decorre da proteção constitucional e penal ao sigilo
profissional, o depoente não tem apenas o direito de recusar-se a
depor: tem o dever de fazê-lo.
Nos demais casos (relações de família e amizade), o depoente
pode abrir mão do seu direito de escusa15.
É preciso anotar, porém, que, abrindo mão do seu direito de
calar, não pode o depoente mentir, conduta desleal inadmissível16.
O dever de dizer a verdade (art. 14, I, CPC) convive com o direito
de calar, mas é incompatível, obviamente, com o direito de mentir.
A parte tem o direito de calar, mas não tem o direito de mentir. A
mentira em juízo é ilícito processual civil (litigância de má-fé, art.
17, II, CPC). Trata-se de conduta vedada, que pode ser punida
com multa, conforme o art. 18 do CPC. Não é, porém, conduta
120
Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1.
criminosa, pois inexiste o crime de perjúrio, salvo se afetar terceiro,
o que configuraria outro crime, como a denunciação caluniosa
(art. 339 do Código Penal). Não se pode confundir essa conduta
com a do crime de falso testemunho (art. 342 do Código Penal),
que não pode ser cometido pela parte.
3.3. Direito ao silêncio em relação a fatos criminosos ou
torpes
A parte não é obrigada a depor: a) sobre fatos criminosos ou
torpes que lhe são imputados; b) a cujo respeito, por estado ou
profissão, deva guardar sigilo -— essa última ressalva não se aplica
às ações de filiação, de separação, divórcio e de anulação de
casamento (art. 347 do CPC)17. Trata-se de regras que prestigiam
o direito à autopreservação.
Note que, à semelhança do que acontece no âmbito penal, é
direito da parte silenciar sobre fatos tidos por criminosos que lhe
sejam imputados (direito ao silêncio) no âmbito cível. Trata-se do
conhecido direito contra a auto-incriminação (nemo tenetur se
ipsum accusare, ninguém é obrigado a acusar a si mesmo; nemo
contra se edere tenetur, ninguém é obrigado a se denunciar; nemo
testis contra se ipsum, ninguém testemunhe contra si mesmo).
“...o princípio nemo tenetur se ipsum accusare passou a ter
significados distintos, relacionados entre si: a) um direito genérico
a não se auto-incriminar (privilege against self-incrimination); b)
um direito de não ser interrogado pelo juiz (right not to be
questioned); e c) um direito de, quando interrogado, se manter em
silêncio (right to silence)”18.
LUIGI FERRAJOLI, quando examina o assunto no direito processual
penal, identifica como conteúdo desta garantia (que ele prefere
denominar de nemo tenetur se detegere, ninguém é obrigado a se
manifestar, mais abrangente que as outras designações) os
Fredie Didier Jr.
121
seguintes direitos, dentre outros que neste momento não
interessam, pois mais afeitos ao processo penal: a) direito ao
silêncio; b) proibição de tortura e de utilização de técnicas de
manipulação da psique (drogas ou hipnose) para a obtenção da
confissão; c) direito a ser acompanhado por um advogado durante
o depoimento19.
No processo civil, garante-se, pois, também o direito ao silêncio
em relação a fatos tidos por criminosos (art. 347 do CPC e art.
229 do CC).
O direito ao silêncio sobre fatos criminosos tem natureza de direito
fundamental (art. 5º, LXIII, CF/88). Está previsto, também, na
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José
da Costa Rica): Art. 8º. Garantias judiciais, § 2º, “g”: “direito de não
ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”.
Há quem veja na antiga regra hebraica dos dois testemunhos (testis
unus, testis nullus,20 mínimo exigido para fundamentar uma decisão
condenatória) a origem remota deste direito21.
Sucede que essas previsões restringem-se ao âmbito do
processo penal. No direito brasileiro, o direito ao silêncio sobre
fatos criminosos no âmbito civil está previsto apenas no nível
infraconstitucional22. Essa constatação, porém, não diminui sua
importância: estendê-lo ao âmbito cível parece corolário inevitável
da garantia constitucional, pois, de fato, não faria muito sentido
permitir que, no cível, o sujeito fosse obrigado a depor sobre fatos
havidos como criminosos, conduta que certamente teria alguma
influência na formação do convencimento do juízo penal.
É importante frisar, ainda, que o direito ao silêncio sobre fatos
criminosos abrange não só os fatos constitutivos da demanda,
mas também fatos simples ou secundários. É o que acontece
quando a pessoa, inquirida sobre um fato qualquer, para dizer a
verdade precisa afirmar a existência de um fato criminoso, como
acontece quando alguém, perguntado sobre a sua profissão, deva
122
Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1.
declarar, por ser a verdade, que lida com trabalho ilícito (agiotagem,
rufianismo etc.)23
Há, ainda, o direito ao silêncio sobre fatos torpes (nemo tenetur
detegere propriam turpitudinem, ninguém é obrigado a manifestarse sobre a própria torpeza), que, à semelhança do primeiro, tem
origem remota, podendo ser encontrado nas Ordenações
Manuelinas e Filipinas (Liv. III, Tít. LIII, 11), bem como no
Regulamento n. 737/1850 (art. 208, § 1º).
3.4. Direito ao silêncio sobre fatos relacionados à vida
familiar ou à atividade profissional
Como no juízo cível é possível a discussão de um sem-número
de fatos, muitos deles não-criminosos, foi preciso regrar o direito
ao silêncio em relação a esses últimos. Em juízo de ponderação, o
legislador entendeu por bem reconhecer o direito ao silêncio, no
âmbito cível, apenas em certas situações, relacionadas, ou à
proteção da intimidade, da vida e do patrimônio do depoente, ou
à natureza da sua profissão.
Reputa-se legítima a recusa de depor quando se tratar de fato
que diga respeito ao sigilo profissional, ou que envolva situação
relacionada ao estado da pessoa (salvo em ações de filiação,
separação, divórcio ou anulação de casamento).
Embora a ressalva em relação às ações de família esteja no
parágrafo único do art. 347, o que poderia conduzir à interpretação
de que se refere à totalidade do art. 347, a melhor interpretação é
aquela que o relaciona apenas aos fatos relacionados ao estado
da pessoa, mais especificamente às ações de família.
O segredo profissional é bem jurídico de alta relevância (inclusive
penal: art. 154 do Código Penal). A proteção do sigilo é, ainda,
direito fundamental (art. 5º, XIV, CF/88)24. Essa proteção visa
proteger o equilíbrio das relações sociais, notadamente o valor
confiança, indispensável à ética dessas mesmas relações. É o
Fredie Didier Jr.
123
caso do médico, advogado (art. 7º da Lei Federal n. 8.906/1994),
jornalista, padre, juiz, membro do Ministério Público, enfermeiro,
psicólogo etc.25 Bem examinado o problema, a recusa de depor,
neste caso, antes de um direito é um dever do depoente26. Tratase de tutela civil de um bem jurídico penal e de um direito
fundamental.
Convém anotar que é crime de responsabilidade “revelar
negócios políticos ou militares, que devam ser mantidos secretos
a bem da defesa da segurança externa ou dos interesses da Nação”
(art. 5º, n. 4, Lei Federal n. 1.079/1950). Trata-se de hipótese em
que também é legítima a recusa de depor, que no caso também se
apresenta como um dever do depoente.
Como todo direito fundamental, o direito à proteção do sigilo
profissional pode, em certas situações, ceder a outro direito
fundamental, aplicado o princípio da proporcionalidade. Admitese, por exemplo, a quebra do sigilo médico para revelação de
maus-tratos a menores (protegidos constitucionalmente: art. 227
da CF/88) ou para favorecer o próprio paciente (entrega do seu
prontuário para que se tomem providências com o objetivo de
salvar-lhe a vida)27.
Aliás, o próprio texto do Código Penal permite a revelação do
sigilo havendo justa causa, que será examinada pelo magistrado
no caso concreto.
Dispensa-se o sigilo, também, quando o beneficiário do segredo
libera o profissional de seu dever, permitindo a sua revelação28.
3.5. Outras hipóteses expressas, em que se reconhece o
direito ao silêncio, previstas no Código Civil (art. 229)
O art. 229 do Código Civil traz outras hipóteses em que se
considera a priori como legítima a recusa de depor:
“Art. 229. Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I - a
cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo;
124
Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1.
II - a que não possa responder sem desonra própria, de seu
cônjuge, parente em grau sucessível, ou amigo íntimo; III - que o
exponha, ou às pessoas referidas no inciso antecedente, a perigo
de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato”.
Note que o inciso I repete a hipótese já prevista no inciso II do
art. 347 do CPC.
O inciso II do art. 229 do Código Civil é hipótese nova, em que
o legislador, considerando a proteção da honra do depoente, ou
de pessoas que lhe são próximas, permite a escusa de depor.
Perceba que o CPC já permitia a recusa de depor em relação a
fatos torpes imputados ao depoente. A redação do CC é mais
abrangente por referir-se a “desonra”, que tem sentido mais amplo
do que “torpe”, além de permitir a recusa para a proteção da honra
de terceiros.
Há precedente semelhante no inciso I do art. 406 do CPC, que
cuida da recusa de depor como testemunha, que não prevê, porém,
a recusa em razão da amizade e restringe o parentesco em linha
colateral até o segundo grau29. Neste ponto, a legislação processual
foi revogada pela legislação civil, que, como lei posterior, substitui
a anterior. “É para evitar uma autêntica desumanidade – quer por
revelar uma mazela moral, quer por induzir a testemunha a não
desvendar a verdade – é que, quanto está em jogo a honra do
depoente ou das pessoas que lhe são caras, a lei o dispensa de
testemunhar”30.
O inciso III do art. 229 do Código Civil também inova, ampliando
o direito ao silêncio: agora, é lícita a negativa de depor quando o
depoimento puder expor o depoente, parente em grau sucessível,
cônjuge ou amigo íntimo a perigo de vida, demanda ou dano
patrimonial imediato.
A inovação, como se vê, aparece em dois aspectos.
Em primeiro lugar, amplia o rol das pessoas protegidas pelo
silêncio. Pela redação do CPC, protege-se a pessoa do depoente;
Fredie Didier Jr.
125
pelo texto do Código Civil, a recusa de depor justifica-se como
forma de proteção de qualquer parente em grau sucessível
(ascendentes, descendentes e colaterais até o quarto grau), cônjuge
(e, por conseqüência, companheiro31) ou amigo íntimo.
Em segundo lugar, permite-se a negativa se o depoimento puder
expor qualquer destes sujeitos a perigo de vida, demanda ou dano
patrimonial imediato. Se a proteção à vida justifica-se, é difícil
compreender a razão da dispensa nas outras hipóteses.
“Evidentemente, em toda demanda patrimonial, a parte corre o
risco de sofrer dano patrimonial imediato, já que esta é a finalidade
da demanda”32. Assim, em todo processo cujo objeto litigioso
envolve direito patrimonial, a escusa de depor seria legítima. Mas
não é só. Como em todo processo, patrimonial ou não-patrimonial
a relação jurídica discutida, sempre há a possibilidade de a parte
vencida ser condenada a arcar com as despesas processuais e
honorários advocatícios, sempre haveria a possibilidade de um
dano patrimonial imediato, a autorizar a recusa de depor.
É por isso que a doutrina já sugeriu a interpretação temperada
do art. 229 do Código Civil, que somente poderia ser “aplicado
quando o magistrado verificar que seria desarrazoado exigir do
sujeito o depoimento (como parte ou como testemunha), pois isto
o colocaria em situação de especial sacrifício, inexigível da
comunidade Em casos outros, a regra não merece aplicação”33.
De todo modo, é preciso anotar que as regras que permitem a
recusa de depor estão imbuídas de forte conotação ética, porque
visam tutelar a confiança, inerente em diversas relações profissionais
e nas relações de família e amizade. São, ainda, regras que
compõem a proteção da dignidade da pessoa humana34.
3.6. Regra geral de escusa
O art. 345 do CPC prevê uma regra geral de escusa de depor,
ao permitir, a contrario sensu, que a parte possa negar-se a depor
126
Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1.
por motivo justo, a ser avaliado pelo magistrado35. Trata-se, como
se vê, de um conceito jurídico indeterminado, cuja concretização
será investigada pelo magistrado no caso concreto.
Assim, além das expressas hipóteses em que é garantido
(definidas a priori como autorizantes da recusa pelo art. 347 do
CPC e pelo art. 229 do CC), o silêncio também é permitido em
qualquer situação considerada pelo magistrado como legítima,
como, por exemplo, em relação a fatos impertinentes/irrelevantes
(que não podem ser objeto de prova)36. Cria-se uma regra de
atipicidade das razões da recusa, que devem ser identificadas a
posteriori pelo magistrado. O pressuposto geral para a recusa é o
de que ela seja considerada justa pelo órgão jurisdicional37.
4. Notas
1
Escrito em homenagem ao Prof. José Manoel de Arruda Alvim Netto, Titular da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
2
Art. 406 do CPC: ”A testemunha não é obrigada a depor de fatos: I - que lhe
acarretem grave dano, bem como ao seu cônjuge e aos seus parentes consangüíneos ou afins, em linha reta, ou na colateral em segundo grau; II - a cujo respeito,
por estado ou profissão, deva guardar sigilo”.
3
“A recusa de depor tanto pode caracterizar-se pela negativa direta e frontal, como
pela simples omissão em responder ou pelo recurso a evasivas, sem motivo justificado”. (MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil Brasileiro. 23ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005, p. 58.)
4
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo
Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, t. 4, p. 310.
5
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil Brasileiro. 23ª ed., cit., p. 58.
6
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo
Civil, 3ª ed., t. 4, cit., p. 304.
7
Ver, por exemplo, dentre outros, LOPES Jr., Aury. Introdução crítica ao processo
penal (fundamentos da instrumentalidade garantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 231; OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 3ª ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 379 e segs; DUCLERC, Elmir. Curso Básico de Direito
Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, v. 2, p. 252 e segs.
Fredie Didier Jr.
127
8
Art. 186 do Código de Processo Penal: “Depois de devidamente qualificado e
cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes
de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder
perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único . O silêncio, que não importará
em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.
9
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo
Civil, 3ª ed., t. 4, cit., p. 304. Sobre a produção de provas em tribunal, ver item
específico sobre o tema no v. 3 deste Curso.
10
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil Brasileiro. 23ª ed., cit., p. 58;
LOPES, João Batista. “O depoimento pessoal e o interrogatório livre no processo civil
brasileiro e estrangeiro”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1979, n. 13, p. 97-98;
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de
Processo Civil. 2ª ed. São Paulo: RT, 2005, v. 5, t. 2, p. 36. Em sentido contrário,
admitindo a fixação da pena de confesso no interrogatório, MIRANDA, Francisco
Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, 3ª ed., t. 4, cit., p. 305.
11
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de
Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 35.
12
Sobre todas essas questões, MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio
Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 40-41.
13
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de
Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 37.
14
Art. 345 do CPC: ”Quando a parte, sem motivo justificado, deixar de responder ao
que lhe for perguntado, ou empregar evasivas, o juiz, apreciando as demais circunstâncias e elementos de prova, declarará, na sentença, se houve recusa de depor”.
15
LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 591;
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de
Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 96-97.
16
No processo penal, há quem reconheça o direito de o depoente (acusado) mentir,
como conteúdo da cláusula nemo tenetur se detegere (FERRAJOLI, Luigi. Direito e
razão – teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 486; LOPES Jr., Aury.
Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade garantista).
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 233).
17
Art. 347 do CPC: “A parte não é obrigada a depor de fatos: I - criminosos ou torpes,
que lhe forem imputados; II - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar
sigilo. Parágrafo único. Esta disposição não se aplica às ações de filiação, de
desquite e de anulação de casamento”.
18
COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São
Paulo: RT, 2004, p. 262.
128
Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1.
19
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. São Paulo: RT,
2002, p. 486.
20
Livro de Deuteronômio, 19, 15: “Uma única testemunha não é suficiente contra
alguém, em qualquer caso de iniqüidade ou de pecado que haja cometido. A causa
será estabelecida pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas”.
21
Sobre esta percepção, sem concordar ao que parece com ela, trazendo amplas
referências, COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: RT, 2004, p. 30-32. Entendia-se que nem todo testemunho era apto
a servir como prova para condenar alguém; proibia-se o testemunho de parentes.
Dizia-se, então, que o acusado era seu próprio parente, e que, por tal razão, sua
confissão não poderia ser aceita. Afirmava-se, ainda, que, como a vida de um
homem pertence a Deus, “confessar um crime seria o equivalente a dispor de uma
propriedade – o corpo – que não pertence ao acusado, e, no caso de crimes
capitais, o habilitaria a cometer uma forma de suicídio”. (COUCEIRO, João Cláudio. A
garantia constitucional do direito ao silêncio, cit., p. 30, nota 4.) Justificava-se também a regra, segundo alguns, como forma de desestimular a tortura (WEINTRAUB,
Melissa. “The Bar against Self-Incrimination as a Protection against Torture in Jewish
and American Law”, disponível em http://www.rhr-na.org/torture/
ainadammesim_short.pdf, p. 2-3, com amplas referências, consultado em 19.11.2006,
às 14h41), tendo sido esta a principal razão, ao que parece, de seu acolhimento pela
doutrinas liberais que propagavam as garantias processuais individuais a partir do
século XVIII. De acordo com o panorama histórico traçado por João Couceiro, tendo
por base a lição de Leonard Levy, a evolução do direito ao silêncio na Inglaterra, país
em que teria sido consagrado primeiramente esse right, está relacionada à proteção
das liberdades religiosa e de expressão, visto que era exercido nas acusações de
heresia, cisma ou traição, fazendo parte do contexto de luta pelo reconhecimento de
limitações ao poder Real e da Igreja (COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio, cit., p. 67-68, nota 87.)
22
COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São
Paulo: RT, 2004, p. 262.
23
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de
Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 90. Arrematam os autores: “Neste caso, não se
imputa à pessoa a prática de fato ilícito – não havendo, portanto, a incidência da
regra do art. 347, I – mas a resposta a ser dada (em função do dever de veracidade
e completude) certamente indicará a prática, pelo depoente, de atividade ilícita e
sujeita a sanção criminal”. (cit., p. 90, nota 114)
24
“XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da
fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
25
Assim, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina
Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República.
Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v. 1, p. 480.
Fredie Didier Jr.
129
26
Assim, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina
Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v.
1, cit., p. 481.
27
Para os exemplos, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES,
Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da
República, v. 1, cit., p. 483.
28
THEODORO Jr., Humberto. Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense,
2003, v. 3, t. 2, p. 555.
29
Art. 406 do CPC: ”A testemunha não é obrigada a depor de fatos: I - que lhe
acarretem grave dano, bem como ao seu cônjuge e aos seus parentes consangüíneos ou afins, em linha reta, ou na colateral em segundo grau”.
30
THEODORO Jr., Humberto. Comentários ao Código Civil, v. 3, t. 2, cit., p. 556.
31
Neste sentido, também, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena,
MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a
Constituição da República, v. 1, cit., p. 483.
32
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de
Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 101.
33
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de
Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 101.
34
Assim, TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina
Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República.
Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v. 1, p. 479; LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 590-591.
35
Art. 345 do CPC: ”Quando a parte, sem motivo justificado, deixar de responder ao
que lhe for perguntado, ou empregar evasivas, o juiz, apreciando as demais circunstâncias e elementos de prova, declarará, na sentença, se houve recusa de depor”.
36
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de
Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 90.
37
“Confrontando o teor deste artigo com o dos dois incisos do art. 347 conclui-se que
motivos justificados não são apenas os indicados neste último, mas também outros,
a ele estranhos. Se o intérprete dessas normas fizer de uma (345) conseqüência da
outra (347), a primeira ficará inócua, o que não se pode admitir no corpo da lei.
Qualquer motivo que ao juiz se afigure justificado, afora os referidos no outro dispositivo, poderá autorizar o litigante a calar-se”. (ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz. Exegese
do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: AIDE, s/a, v. 4, t. 1, p. 152.) No mesmo
sentido, MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed., v. 5, t. 2, cit., p. 74-75.
130
Direito ao silêncio no processo civil brasileiro (arts. 347, CPC, e 229, CC)1.
A METODOLOGIA DO DIREITO
Johnson Barbosa Nogueira1
1
Professor adjunto IV da FDufba, mestre em direito econômico e doutorando em direito público pela FDufba.
Sumário: 1. Introdução 2. Breve escorço histórico da Justiça ( e da
metodologia do direito). 3. Pensar problemático ou pensar dogmático? 4. A
valoração jurídica. 5. Metodismo ou ametodismo? ¨. Bibliografia.
Resumo: A superação da Hermenêutica normativista é fruto de várias reações,
cujo pluralismo pode bem ser denominado de pós-positivismo. As várias
correntes do pós-positivismo têm algumas raízes comuns, entre as quais a
inserção dos valores, com destaque dos princípios jurídicos, na tarefa
hermenêutica. Daí, a retomada da Justiça, como questão crucial para se
conhecer o direito, bem como a preocupação de se buscar uma lógica
adequada aos valores e princípios jurídicos.
Palavras-Chave: Hermenêutica. Pós-positivismo. Justiça. Lógica de valores.
1. Introdução
A metodologia da pesquisa jurídica ressente-se de uma definição
prévia a respeito da própria metodologia do direito. É certo que
sendo o direito um fenômeno social, a metodologia de sua
pesquisa tende a se desenhar pelo modelo da metodologia das
ciências sociais.
Contudo, o fenômeno jurídico tem sua especificidade, a exigir
um tratamento especial para se adequar às peculiaridades do
direito. Daí porque a concepção ontológica do direito faz pressupor
a opção metodológica. Como a concepção ontológica do direito
vem variando ao longo do tempo, ora tomando o direito como um
fenômeno social, ora como um fenômeno normativo, ora como um
fenômeno axiológico, é natural que as opções metodológicas
venham disputando sua prelazia na filosofia e na doutrina do direito.
131
Estas variantes ontológicas e, consequentemente, metodológicas podem ser melhor visualizadas por meio do papel
destinado à Justiça em cada escola ou corrente do Direito. A
resposta à pergunta (Qual é o papel da Justiça no Direito?) define
a linha metodológica a ser seguida. Equivale a responder à questão:
Qual o método adequado para se conhecer o direito? Há uma
verdade jurídica? Como se chega a ela?
Uma breve resenha histórica do tratamento dado à Justiça
clarificará o problema metodológico do direito.
2. Breve escorço histórico da justiça (e da metodologia
do direito)
A idéia de Justiça no Direito representa a inserção do axiológico
na compreensão do fenômeno jurídico. Por isso mesmo, o
positivismo jurídico, que pugna pelo depuramento valorativo do
direito, expele a idéia de Justiça para os domínios da moral. Por
outro lado, a inserção da Justiça no labor dos juristas ficou muito
tempo vinculada ao Direito Natural e, por conseguinte, a uma
concepção metafísica da Justiça e dos valores jurídicos. Este
consórcio entre Justiça e direito natural se revelou improdutivo e
anti-científico, razão pela qual o pós-positivismo abomina a idéia
do Direito Natural e acata a idéia de Justiça, por força da
contribuição da moderna Axiologia Jurídica, que possibilita tratar
os valores e princípios jurídicos sem apelar para concepções
metafísicas.
2.1. A Justiça na Antiguidade
É natural que a influência da religião sobre o direito antigo
deslocasse a questão da Justiça para a alçada divina. A Justiça
provém dos deuses. Essa concepção divina da Justiça, apoiada
na mitologia, influenciou Sócrates e até mesmo Platão.
132
A Metodologia do Direito
A partir de Sócrates, o pensamento grego firmou a exigência de
simetria entre o justo agir e o reto pensar.
Platão erigiu todo o seu sistema político à base da temática da
Justiça, correlacionando a justa ordenação da cidade com a correta
colocação dos homens em seus lugares sociais. Para Kelsen, a
justiça é o problema central de toda a filosofia platônica. Para
solucionar esse problema, Platão criou a Teoria das Idéias. As
idéias são essências transcendentes que existem em outros
mundos, não acessível aos nossos sentidos, que representam
valores que devem ser realizados no mundo dos sentidos, mas
jamais plenamente. A idéia principal, da qual todas as demais
retiram sua validade, é a idéia do Bem absoluto que tem o papel,
na filosofia platônica, semelhante ao de Deus na teologia.
O Bem contém em si a idéia de Justiça, o belo, o bom e o
supremo conhecimento. A idéia do bem é causadora de todo o
justo e de todo o bom. Faz uma correlação da Justiça com a
felicidade, ensinando que apenas o justo é feliz ou que temos a
conduzir os homens a crer em tal.
Ao longo de sua obra, Platão sempre tratou da questão da Justiça,
mas não concluía sua definição. Na sua última obra (Leis) se encontra
ainda uma tentativa de identificar a justiça à igualdade, da qual ele
distingue a igualdade mecânica, aritmética, ou seja, a igualdade
segundo uma medida, peso ou número, e a igualdade proporcional,
na qual nem todos recebem o mesmo, cada um sendo tratado
segundo o que merece e o que lhe é devido. E no final confessa:
“No entanto, a única igualdade verdadeira – e a melhor – não se
apresenta tão facilmente cognoscível a todos. Isso porque o juízo cabe
aí a Zeus, e aos homens ele sempre se comunica em pequena medida”.2
No Críton, faz a apologia do direito positivo, do caráter divino
das leis, que devem ser obedecidas, pois Sócrates está convencido
de que obedece à divindade quando se submete às leis.3
Johnson Barbosa Nogueira
133
Na sua investigação filosófica sobre a justiça e a injustiça,
Aristóteles propões indagar quais são as espécies de ações a
que se correlacionam, que espécie de meio termo é a justiça e
entre que extremos o ato justo é o meio termo.
Provisoriamente, adota a definição de que a Justiça é a disposição
da alma, graças à qual ela se dispõe a fazer, agir e desejar o que é
justo. E o que seria o justo? Responde que o justo é “aquilo que é
conforme a lei e correto, e o injusto é o ilegal e o iníquo”.
Tomada como virtude, a Justiça é a excelência moral perfeita.
Socorre-se da Elegias de Têognis, verso 147, para expressar que
“na justiça se resume toda a excelência”4. Mas ao lado dessa
concepção de Justiça como virtude-síntese, resumo de várias
virtudes, Aristóteles procura desenvolver o sentido da justiça
como virtude particular, assimilando-a à igualdade e à
proporcionalidade, distinguindo a justiça distributiva e a justiça
corretiva.
Mas, retornando, ao seu postulado inicial, conhecido como a
teoria do mesotes, que se vulgarizou com a parêmia virtus in medio,
o Estagirita concebe a justiça ao lado dos extremos de injustiça,
por falta e por excesso. No ato injusto, ter muito pouco é ser tratado
injustamente e ter demais é agir injustamente.
Aristóteles distingue a justiça natural da justiça legal,
convencional. Seriam partes da justiça política. São naturais as
coisas que têm a mesma força em todos os lugares,
independentemente de as aceitarmos ou não. Neste ponto,
Aristóteles é tido como um precursor do direito natural.
Por fim, contribui o filósofo grego para a distinção entre justiça
e equidade. “A justiça e a equidade são, portanto a mesma coisa,
embora a equidade seja melhor. O que cria o problema é o fato de
o eqüitativo ser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um
corretivo da justiça legal”.5
134
A Metodologia do Direito
Com certeza, Aristóteles é o primeiro filósofo a tratar
sistematizadamente do problema da justiça, levantando questões
que até hoje nos mobiliza a consultar a Ética a Nicômacos.
A definição da Justiça como “constans et perpetua voluntas jus suum
cuique tribuendi” é a mais tradicional entre os romanos (Dig., 1, 1.10).
Segundo Alf Ross, a fórmula pela qual os juristas romanos
expressaram a Justiça foi suum cuique tribuere, neminem laedere,
honeste vivere, que foi amiúde repetida com insistência como se
tratasse da quintessência da sabedoria, mas que se trata de pura
ilusão que atinge a aparência de algo óbvio porque nada diz.6
2.2 A Justiça e o direito natural
O jusnaturalismo é a corrente do pensamento jurídico que se
apropriou da noção de Justiça, confundindo-a com o próprio direito
natural – uma impropriedade que é fonte de muitos equívocos e
confusões. Assim, afirmar a existência do Direito Natural é afirmar
a existência da Justiça. Negar a existência do direito natural é negar
a possibilidade da idéia de Justiça.
As mudanças ocorridas na concepção do direito natural
importam mutações da Justiça. Assim temos, correspectivamente,
uma Justiça Divina, uma Justiça Racional, uma Justiça históricocondicionada.
Os gregos tinham nítida diferenciação entre o “justo por natureza”
(physei/physikon dikaion) em oposição ao “direito posto” (nomo/
nomikon dikaion). Esta dualidade veio convivendo historicamente
desde Aristóteles até o Positivismo Jurídico que representa o antidireito natural, pela afirmação exclusiva do direito positivo. No
Decreto de Graciano (cerca de 1140), o direito natural se sobrepôs
ao direito positivo, mas normalmente, salvo na Idade Média, o
direito positivo prefere ao direito natural, conforme observou
Noberto Bobbio.
Johnson Barbosa Nogueira
135
Diante dos “estados injustos”, a idéia do direito natural é sempre
acalentadora. Por isso, o direito natural constitui-se numa verdadeira
“fênix jurídica”, porque se agarra à noção de Justiça, tentando dela
fazer um indevido monopólio e tábua de salvação. Assim é que,
após a 2ª Guerra Mundial, observa-se a tentativa de sua restauração,
por meio de documentos internacionais (Carta do Atlântico de
1941, a Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas
de 1948) e por meio do prestígio dos acórdãos do Tribunal Federal
Constitucional alemão.7 A formulação da teoria dos direitos
humanos ou fundamentais, como manifestações pré e suprapositivas acalenta uma nova ressurreição da fênix, sob a concepção
de um direito natural crítico.
2.3. O positivismo jurídico
Uma das idéias centrais do positivismo jurídico fulcra-se na crítica
da idéia de Justiça. Não vamos fazer um panorama histórico do
positivismo jurídico, mas centrar em algumas posições básicas
do positivismo acerca da Justiça, a partir de alguns dos seus
representantes mais emblemáticos.
Numa primeira posição, encontramos autores positivistas que
aceitam alguns princípios de justiça. Hobbes, “que é considerado
o pai do moderno positivismo jurídico e de Estado”, desenvolve
uma série de leis naturais que, junto com o princípio do bem comum
(salus populi suprema lex), servem à fundamentação moral e
valoração concreta da ordem do Direito e do Estado. Outros dois
representantes do positivismo jurídico britânico Bentham e Austin,
chegam a defender uma crítica suprapositiva do Direito e do Estado.
Outro filósofo da tradição positivista, Herbert Hart, confessa-se
adepto de alguns princípios de justiça e até admite um direito
natural mínimo.8
Numa segunda posição está Hans Kelsen que, na formulação
de sua Teoria Pura do Direito, põe, em suas bases epistemológicas,
136
A Metodologia do Direito
“o fundamento para expulsar, do campo da ciência do Direito, o
problema da justiça, resguardando-lhe, todavia, o estatuto próprio,
no terreno da filosofia e da política, como questão de natureza
ética”.9
Para Kelsen, a justiça é uma qualidade, uma virtude dos
indivíduos e, como tal, a justiça é uma qualidade moral e nessa
medida, pertence ao domínio da moral. Esta virtude ou qualidade
se exterioriza na conduta do indivíduo em face do outro, isto é,
na sua conduta social. Esta conduta será justa se conformar-se a
uma norma positiva, que constitui o valor justiça e, neste sentido,
é justa. Esta norma positiva pode ser designada como norma da
justiça. “Como as normas da moral são normas sociais, isto é,
normas que regulam a conduta de indivíduos em face de outros
indivíduos, a norma da justiça é uma norma moral, e assim,
também sob este aspecto o conceito da justiça se enquadra no
conceito da moral”.10 Temos que nos contentar com uma justiça
terrena, positiva e, pois, relativa. A justiça absoluta é o engodo
desta eterna ilusão.
Numa terceira posição, situa-se o positivismo que absorve a
noção de justiça, descaracterizando-a como uma simples exigência
de racionalidade e regularidade. Nesta posição, situa-se Alf Ross,
para quem “a justiça é aplicação correta de uma norma, como
coisa oposta à arbitrariedade”.11 Não pode ser um padrão jurídicopolítico ou um critério para julgar uma norma. A ideologia da justiça
não cabe, pois, num exame racional do valor das normas. Mas
admite que há uma conexão entre o direito vigente e a idéia de
justiça. Dentro desta idéia, distingue Ross dois pontos: 1º) a
exigência de que haja uma norma como fundamento de uma
decisão; 2º) a exigência de que a decisão seja uma aplicação
correta de uma norma.
Sem um mínimo de racionalidade (possibilidade, regularidade)
seria impossível falar em ordem jurídica. “Nesta medida, a idéia de
Johnson Barbosa Nogueira
137
justiça – no sentido de racionalidade e regularidade – pode ser
qualificada como constitutiva do conceito do direito”.12
Tal como Kelsen, Ross desmistifica a igualdade como exigência
suprapositiva de justiça. A exigência de que todos devem ser
tratados de maneira igual apenas significa que o tratamento dado
a cada pessoa deve seguir as regras gerais.13
Uma quarta posição pode ser simbolizada pelo
procedimentalismo de Luhmann. Diversamente de Kelsen, ele
incorpora o problema da justiça “como elemento do sistema
jurídico autopoiético, retirando-lhe o significado ético para
emprestar-lhe o papel de unidade operacional do sistema,
obediente às suas regras internas e destinada a atuar como fórmula
de contingência, cuja função é assegurar consistência às
decisões”.14
Uma quinta posição, com aspectos similares à primeira, terceira
e quarta posição é a de juristas que, como John Rawls, sem acenos
ao jusnaturalismo, intentam construir um sistema de princípios de
justiça, racionalmente fundamentados, que poderiam servir de base
para instituições consideradas justas. Os princípios da justiça de
Rawls são escolhidos sob um véu de ignorância, como resultado
de um consenso ou ajuste eqüitativo.15
Provisoriamente, Rawls formulou os dois princípios da justiça
nos seguintes termos:
“Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais
abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível
com um sistema semelhante de liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser
ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a)
consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do
razoável e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos”.16
Mais adiante, Rawls fornece-nos, em nome da completude, uma
formulação final:
138
A Metodologia do Direito
Primeiro Princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível
com o sistema semelhante de liberdade para todos.
Segundo Princípio
As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas
de tal modo que, ao mesmo tempo:
(a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos
obedecendo as restrições do princípio da poupança justa, e
(b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em
condições de igualdade eqüitativa de oportunidades.
Primeira Regra de Prioridade (a prioridade da liberdade)
Os princípios da justiça devem ser classificados em ordem lexical
e portanto as liberdades básicas só podem ser restringidas em
nome da liberdade.
Existem dois casos:
(a) uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total
das liberdades partilhadas por todos;
(b) uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que
têm liberdade menor.
Segunda Regra de Prioridade(A Prioridade da Justiça sobre
a Eficiência e sobre o Bem Estar)
O segundo princípio da justiça é lexicalmente anterior ao princípio
da eficiência e ao princípio da maximização da soma de
vantagens; e a igualdade eqüitativa de oportunidades é anterior
ao princípio da diferença. Existem dois casos:
(a) uma desigualdade de oportunidades deve aumentar as
oportunidades daqueles que têm uma oportunidade menor;
(b) uma taxa excessiva de poupança deve, avaliados todos os
fatores, tudo é somado, mitigar as dificuldades dos que
carregam esse fardo.17
Em obra posterior, RAWLS proclama que sua teoria da justiça
como equidade é apenas “política” e afirma o abandono do
Johnson Barbosa Nogueira
139
conceito restrito de racionalidade que utiliza no Uma Teoria da
Justiça e novamente define os dois princípios da justiça nos
seguintes termos:
(1) Cada pessoa tem o direito igual a um sistema plenamente
adequado de liberdades e de direitos básicos iguais para todos,
compatíveis com um mesmo sistema para todos.
(2) As desigualdades sociais e econômicas devem preencher
duas condições: em primeiro lugar, devem estar ligadas as
funções e posições abertas a todos em condições de justa
(fair) igualdade de oportunidade; em segundo lugar, devem
proporcionar a maior vantagem para os membros mais
desfavorecidos da sociedade.18
Em todas as posições, sobressai uma marca significativa: o
esforço para encontrar a solução do problema da justiça por meio
da racionalidade, com desprezo ou desimportância para o enfoque
axiológico.
2.4. Pós-positivismo
Caracterizamos a justiça pós-positivista como uma concepção
do Direito e da Justiça que se nega a ficar ilhada no racionalismo
ou no irracionalismo, nem tampouco quer fazer uma opção
exclusivista entre o sistemático e o problemático. É uma justiça
que não faz ouvido mouco ao pluralismo e à complexidade da
sociedade moderna. Por isso mesmo, reconhece o axiológico no
sistema jurídico, devendo providenciar o raciocínio adequado a
esta introdução.
A Justiça pós-positivista reflete, pois, a crítica ao positivismo
jurídico, mas sem se render aos encantos da solução jusnaturalista.
Para se tratar de valores no campo do Direito, não se tem que ser
necessariamente jusnaturalista.
A compreensão do direito como experiência cultural, que se
utiliza da normatividade, mas impregnada de valores, demanda uma
140
A Metodologia do Direito
revisão da teoria hermenêutica, reivindicando o papel fundamental
dos princípios enunciadores de valores no sistema jurídico.
A compreensão da justiça pós-positivista acolhe a idéia da
justiça, ordenada por princípios valorativos (e não apenas preceitos
lógicos), mas sem ficar presa às malhas do racionalismo, nem cair
nos desvãos do irracionalismo ou do voluntarismo amorfo.
São os autores da linha culturalista que resgatam o aspecto
valorativo do direito, sem descurar do seu aspecto normativo e
fático. Os avanços da Axiologia Jurídica e da Hermenêutica Jurídica,
da Semiótica, da busca de novas lógicas, como a Lógica do
Razoável, a Nova Retórica e o ressurgimento da Tópica, apetrecham
os juristas para novos rasgos de compreensão do fenômeno
jurídico e do problema da Justiça.
Nesta crítica, despontam os trabalhos do tridimensionalismo
jurídico (Recaséns Siches, Miguel Reale, Eduardo Garcia Mainez),
do egologismo (Carlos Cossio), dos dogmáticos culturalistas de
matizes diversos, como Larenz, Canaris e outros.
Merece especial registro os autores que criticam o positivismo
pelo seu caráter sistemático, pleiteando novas lógicas e o enfoque
problemático do direito, a exemplo de Chaïm Perelman, com sua
Nova Retórica, e Theodor Viehweg, com seu trabalho de
ressurgimento da Tópica.
3. Pensar problemático ou pensar dogmático?
A crítica à aplicação da lógica formal do direito foi desenvolvida
no século passado por três grandes pensadores: Recaséns Siches,
Chaïm Perelman e Theodor Viehweg.
A idéia da lógica do razoável parte da colocação inicial de que
estas lógicas tradicionais não são toda a lógica, não constituem a
lógica inteira. O campo do logos é muitíssimo mais extenso do que
a área da lógica pura tradicional, pois compreende outras regiões, a
exemplo da razão histórica apontada por Dilthey, da razão vital e
Johnson Barbosa Nogueira
141
histórica mostrada por Ortega y Gasset, a da experiência prática
desenvolvida por Dewei e a lógica do humano ou do razoável,
que o próprio Recaséns Siches começou a desenvolver, pois
considerava incorreta a aplicação da lógica tradicional no conteúdo
das normas jurídicas, uma vez que o problema da interpretação do
direito é um problema de lógica material. A esta mesma conclusão
chegava Carlos Cossio na Argentina.
Os atos humanos, ainda que tenham causas e produzam efeitos,
diferem dimensionalmente do mundo da natureza, porque possuem
sentido e significação. Frente aos atos e obras humanas, o homem
se encontra com algo que é expressão da vida humana, como
algo que é homogêneo a ele, com o qual pode ser entendido e
compreendido. Este é o mundo da liberdade, do livre arbítrio; aquele
é o mundo da necessidade. Estas diferenças demonstram que
aos fatos e obras humanas (o mundo da cultura) não é adequada
à aplicação da lógica formal. Só a lógica do razoável é capaz de
compreender este mundo de valorações, de meios e fins.
A lógica do razoável é regida por razoes de congruência e de
adequação:
1) Entre a realidade social e os valores: (quais valores são
apropriados para a ordenação de uma determinada realidade
social).
2) Entre os valores e os fins ou objetivos (quais são os
objetivos valiosos).
3) Entre os objetivos e a realidade social concreta (quais
são os propósitos de possível e conveniente realização).
4) Entre os fins ou objetivos e os meios (enquanto à
adequação dos meios para os fins).
5) Entre os fins e os meios (a respeito da correção ética dos meios).
6) Entre os fins e os meios (quanto à eficácia dos meios).
A respeito do pensamento problemático, Recaséns Siches
considera úteis os estudos sobre a tópica, a retórica e a dialética
142
A Metodologia do Direito
da Antiguidade Clássica, porque contribuíram para esclarecer um
tipo de pensamento jurídico de importância e relevo nas funções
do legislador e do juiz. Contudo, considera que as menções
principais e aceitáveis, deste tipo de pensamento sobre o conteúdo
das regras jurídicas são as pertinentes à dialética clássica,
entendida esta como deliberação e argumentação. Mas
considera anacrônico qualquer intento de fazer reviver as tópicas
empregadas na Antiguidade e na Idade Média.
A retórica dialética, diferentemente do método sistemático,
toma como ponto de partida o senso comum, o qual vai abrindo
caminho no terreno das verossimilhanças, guiado pela prudência
humana.
Conclui o mestre mexicano sobre o pensamento problemático,
afirmando que o seu espírito radica na penetrante visão de que o
jurista inevitavelmente se encontra com questões abertas, isto é,
não resolvidas expressa ou implicitamente. É a visão de que os
problemas humanos não podem encontrar solução no cárcere de
um sistema dogmático. Por isso, de vez em quando sente a urgência
de evadir-se do cárcere sistemático.19
Há uma semelhança muito grande entre a lógica do razoável de
Recaséns Siches e a Nova Retórica de Chaïm Perelman.
Ambos partem do ponto de vista de que a lógica aplicável aos
valores não é a lógica formal, devendo se dar prevalência ao
razoável em vez do racional. Ambos se convencem de que é
preciso construir uma lógica material para discutir o conteúdo das
normas jurídicas que, por ser valorativo, demanda uma lógica capaz
de raciocinar sobre valores. O lógico francês Edmond Goblot
publicou em 1927 uma lógica dos juízos de valor que apenas
logrou uma análise interessante dos valores instrumentais. Em dez
anos de trabalho conjunto com a Senhora L. Olbrechts-Tyteca, diz
Perelman que suas pesquisas não o conduziram a uma lógica dos
juízos de valor, mas a uma lógica menosprezada há muito tempo e
Johnson Barbosa Nogueira
143
esquecida pelas lógicas contemporâneas, que fora desenvolvida
nos tratados de retórica e nos tópicos. Trata-se do estudo das
provas, que Aristóteles denominava de dialéticas por oposição às
provas analíticas. Esses estudos levaram à formulação de uma
teoria da argumentação, que foi denominada Nova Retórica.20
Razoável é a argumentação que procura convencer o auditório
formado por todos os homens normais e competentes (auditório
universal). O argumento forte é o embasado no precedente.
Perelman dá destaque ao senso comum. É a tradição clássica da
filosofia ocidental se mostra contrário ao senso comum. É tradição
do racionalismo. Mas o interesse pelo senso comum aumentou na
filosofia contemporânea em conseqüência da valorização da língua
natural, instrumento por excelência do senso comum, e da influência
exercida por G. Moore e L. Wyttgenstein, cujas concepções filosóficas
se afastam da tradição clássica em filosofia.
O razoável é vinculado ao senso comum, ao que é aceitável
pela comunidade. Perelamn opõe o razoável ao racional: o racional
é ligado à idéia de verdade, portanto de unicidade: o razoável é
uma noção mais vaga, socialmente condicionada, que não leva a
uma única solução, mas a uma pluralidade de soluções aceitáveis
em dado meio social e em dado momento histórico.
Daí resulta que uma teoria da Justiça, como qualquer teoria
filosófica ou teoria jurídica, na medida que sua construção envolve
juízos (explícitos ou implícitos) de valor, é sempre historicamente
situada e é, ao mesmo tempo, uma concepção que não vale para
sempre para toda a sociedade, mas depende do senso comum,
de lugares comuns, de uma determinada sociedade.
A tópica de Viehweg “é uma técnica de pensar por problemas,
desenvolvida pela retórica”.
Uma característica desta retórica é o que se chama tópica de 2º
grau, ou seja, os catálogos dos tópicos (topói) que ajudam e dão
segurança no desenvolvimento da argumentação.
144
A Metodologia do Direito
Como pensamento problemático, a tópica se opõe à idéia de
sistema.21
Parece-nos que tanto a lógica do razoável, como a Nova Retórica
e a Tópica são filhas do mesmo ventre e constituem teorias da
argumentação, que se mostram como o estilo próprio de raciocinar
sobre juízos de valor. Todas são lógicas do razoável e expressões
do pensamento problemático, mas a lógica do razoável e a Nova
Retórica se mostram mais genéricas em sua pretensão de se
constituírem uma lógica material para resolver o problema da
Justiça.
4. A valoração jurídica
A concepção cultural do Direito e da Justiça parte de que a
realidade jurídica é composta de uma experiência valorativa, não
de valores etéreos, ahistóricos, irracionais ou racionais, mas de
valores que se determinam na intersubjetividade , seja ela tomada
como senso comum, tradição, entendimento societário, ou
auditório universal ou contrato social, razão comunicativa ou
simplesmente consenso. E esta intersubjetividade dos valores
expressa-se na escolha de valores, que se cristalizam nos princípios
jurídicos, os quais, como fontes do direito, são utilizados na
construção das normas da convivência social.
Os valores jurídicos e, consequentemente, os princípios deles
decorrentes, antes de ter um caráter arbitrário, são construídos,
conquistados intersubjetivamente, pela tradição, consenso ou
entendimento societário. Cabe aos filósofos e juristas desvelar
estes valores, e seus princípios jurídicos constituem elementos
do sistema jurídico.
O equívoco em tratar valores com lógica formal levou à conclusão
de sua arbitrariedade, culminando com 1) a sua depuração do
direito ao 2) sua colocação num plano etéreo ou 3) sua estreiteza
em pretensa racionalidade.
Johnson Barbosa Nogueira
145
A lógica do razoável, que é também uma teoria argumentativa, a
Nova Retórica é, em grau excepcional, a Tópica, apresentam-se
como solução para compreendermos os valores e racionarmos
com os princípios jurídicos.
Como trabalhar com valores e seus princípios? Ou por outra:
como se realiza a valoração jurídica?
Sem valoração jurídica não logramos compreender o problema
da Justiça ou da equidade (e mesmo da interpretação jurídica com
sua babel metodológica e de concepções – escolas).
Com razão, diz Perelman que todo sistema de justiça constitui
apenas o desenvolvimento de um ou de vários valores, cujo caráter
arbitrário é vinculado à própria natureza deles. Isso permite
compreender porque não existe um único sistema de justiça, pois
podem existir tantos quantos os valores (ou sistemas de valores)
diferentes houver. E mais adiante arremata:
É apenas quando há acordo dobre os valores desenvolvidos
por um sistema normativo, que se pode procurar justificar a
regras, que é possível eliminar tudo que favorece ou desfavorece
arbitrariamente os membros de certa categoria essencial.
Quando o acordo sobre os valores permite o desenvolvimento
racional de um sistema normativo, a arbitrariedade consistirá na
introdução de regras alheias ao sistema; essas regras poderão
ser atacadas como injustas, porque arbitrárias e não
fundamentadas.22
Desde os gregos, os filósofos do direito se põem diante do
dilema: A justiça é um dentre os valores, ou é o valor síntese de
todos os valores jurídicos? Qualquer que seja a resposta, não
se elimina a idéia de que há um sistema de valores jurídicos que
envolve valores diversos e mesmo discordantes. A justiça ou é
este valor-síntese, ou é um dentre outros valores. Diz Perelman
que, em sua obra, Platão escolheu a primeira alternativa, enquanto
Aristóteles demonstrou nítida preferência pela segunda.23
Entretanto, não se consegue dar um conteúdo material à Justiça,
senão com o cruzamento e ponderação de vários valores,
146
A Metodologia do Direito
notadamente as várias espécies de igualdade, proporcionalidade,
verdade, equidade, segurança, ordem, etc.
O problema da Justiça tende a colocar a Justiça como valorsíntese do sistema jurídico. A depender do caso, ressaltam-se
valores diversos na construção da regra justa ou da decisão justa.
Na América Latina, Carlos Cossio24 empreendeu a construção de uma
axiologia jurídica que tem a Justiça como valor-síntese, formando um
plexo de valores jurídicos, onde se alternam valores de autonomia e de
heteronomia, em que os valores são distribuídos em três grupos:
1º) A coexistência enquanto circunstância (mundo):
Ordem e Segurança
2º) A coexistência enquanto pessoas:
Poder e Paz
3º) A coexistência enquanto sociedade:
Cooperação e Solidariedade
Em cada grupo, há os valores da autonomia (que convertem
seus signos axiológicos por decréscimo mas não pro crescimento),
e da heteronomia (que convertem seus signos axiológicos por
crescimento e por decréscimo).
Os valores da autonomia têm no seu decréscimo sua negação:
Segurança!Insegurança
Paz!Discórdia
Solidariedade!Estranheidade
Já os valores da heteronomia têm sua negação tanto no
decréscimo, quanto no acréscimo:
Desordem!Ordem!Ritualismo
Impotência!Poder!Opressão
Minoração!Cooperação!Massificação.
Definidos e selecionados os valores jurídicos do sistema, a
valoração jurídica já começa na escolha dos valores que melhor
vivenciarão a justiça do caso e na sua concretização dentre as
regras do sistema ou mesmo excepcionalmente, fora do sistema,
Johnson Barbosa Nogueira
147
por meio da equidade. A concretização dos princípios jurídicos é
operação indispensável da valoração jurídica; seu instrumento, sua
regra e compasso, é a lógica do razoável, a lógica argumentativa.
A valoração jurídica é o exercício dialético, mediante uma lógica
argumentativa, que visa construir a fundamentação jurídica
da
decisão, por meio principalmente de princípios, que, embora
dispensem justificação, são passíveis de uma harmonização por
meio da lógica do razoável.
A Justiça é o valor-síntese do sistema jurídico, mas o valor
primordial, o valor-fonte, é a dignidade da pessoa humana. Este é
o valor referencial das ideologias, para a realização do bem
individual e do bem, comum, isto é, da Justiça. O valor da pessoa
humana é “qualificado como “valor-fonte”, ou seja, aquele do qual
emerge todos os valores, os quais somente não perdem sua força
imperativa e sua eficácia enquanto não se desligam da raiz de que
promanam.25
5. Metodismo ou ametodismo?
À guisa de conclusão, fica claro que a metódica jurídica atual
está conscientizada de que a lógica formal não é o instrumento
adequado para tratar da realidade valorativa do direito, devendo
buscar uma lógica própria para raciocinar com valores e princípios
jurídicos. Três caminhos se esboçaram para resolver esta questão:
1) a utilização de teorias argumentativas, como a Tópica e outras
retóricas, como a Nova Retórica de Perelman; 2) o desenvolvimento
de uma lógica própria dos valores, como a Lógica do Razoável de
Recaséns Siches; e 3) a utilização de sobreprincípios, como o
princípio da razoabilidade, da proporcionalidade e devido processo
legal formal e substancial, para o balanceamento de valores e de
bens na tarefa hermenêutica.
Este desafio de resolver a questão de como trabalhar com
valores não deve desaguar numa proposta de ametodismo, com
148
A Metodologia do Direito
verniz gadameriano ou pós-modernista, mas na construção de uma
metódica pós-positivista, axiológica e pluralista, tal como se
desenha nas propostas da Hermenêutica Constitucional.
A utilização do pensamento problemático não significa a
repulsa ao pensamento dogmático ou sistêmico. A metodologia
do direito não pode desprezar toda a herança e utilidade do
pensamento sistemático, mas apenas dosá-lo de pensamento
problemático, quando se faz necessário o balanceamento de
valores, bens e princípios jurídicos. Esta coexistência da zetética e
da dogmática é o belo desafio por que passa a construção do
método jurídico pós-positivista.
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7. Notas
2
Conf. A Ilusão da Justiça, ps. 497 (Leis, 757).
3
Conf. A Ilusão da Justiça, ps. 518 e 519.
4
Cons. Ética a Nicômacos. Trad. de Mário da Gama Kury. 3ª edição. Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 1999, p. 93.
5
Idem, ibidem, p.109.
6
Op. cit., p. 321.
7
Conf. OTFRIED HÖFFE, op. cit., ps.71 a 83.
8
Idem, ibidem, p.91.
9
MURICY, Marília.Racionalidade do direito, justiça e interpretação. Diálogo entre a
teoria pura e a concepção do direito como sistema autocrítico. In Hermenêutica
Plural. Org. Carlos Edmundo Abreu Bouclont e José Rodrigues. 2ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, ps. 119 e 120.
10
A Justiça e o Direito Natural, ps. 1 e 2.
11
Op. cit., p. 326.
12
Op. cit., p. 327.
13
Op. cit., p. 331.
14
Cons. Marília Muricy. Ob. cit., p. 120.
15
Uma Teoria da Justiça, p. 13.
16
Idem, ibidem, p. 64.
17
Idem, ibidem, ps. 333 e 334.
18
RAWLS, John. Justiça e Democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo:
Martins Fontes, 2000, ps. 207 e 208.
19
Introduccion al Estudio del Derecho. 4ª edição. México: Editorial Porrûa S.A., 1977,
ps. 258 a 262.
Johnson Barbosa Nogueira
151
20
Esta teoria foi publicada no Brasil com o título de “Tratado da Argumentação: A
Nova Retórica”, em 1996 pela Editora Martins Fontes.
21
Conf. VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio
Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.
22
Op. cit., ps. 59 e 60.
23
Op. cit., p.247.
24
La Teoria Egológica del Derecho y el Concepto Jurídico de Liberdad. 2ª edição.
Buenos Aires:Abeledo-Perrot, 1964, p. 613.
25
REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e Conflito das Ideologias. 3ª ed.
Rev. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 100.
152
A Metodologia do Direito
DIREITO À INTIMIDADE GENÉTICA EM FACE DO
ART.232 DO CÓDIGO CIVIL E SUA DEFESA PELA
CRIAÇÃO DE UM HABEAS GENOMA
Mônica Aguiar1
1
Mestre em Direito Econômico pela UFBa. Doutora em Direito Civil pela PUC/SP. Professora de Direito Civil e Bioética
dos Programas de Graduação e Pós-graduação da UFBa.
Professora de Direito Civil da Escola de Magistratura da Bahia
e da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Juíza
Federal. Autora. Palestrante.
Sumário: 1. Introdução. 2. Direito à intimidade genética. 3. Proteção
processual da intimidade genética: o habeas genoma. 4. Limites ao exercício
do direito à intimidade genética. 5.Conclusão. 6. Bibliografia.
1. Introdução
É adequado afirmar, em consonância com os adeptos da
corrente historicista, que os direitos não surgem todos ao mesmo
tempo. Ao revés, nascem à medida que se torna necessário
proteger-se determinado bem jurídico.
Assim ocorre, em especial, com os direitos da personalidade
quando adotada a teoria tipificadora, pela qual pode ser fracionado
esse instituto jurídico em vários direitos de acordo com os variados
atributos decorrentes da personalidade.
O direito à intimidade genética não foge a esse esquema.
Com efeito. Somente a partir do momento em que James Watson
e Francis Crick identificaram, em 1953, a estrutura moleculardo
ácido desoxirribonucléico (DNA) é que foi colocada a possibilidade
de invasão das informações do genoma pessoal de cada indivíduo
e surgiu, destarte, a necessidade de proteger-se, como bem jurídico
essas informações.
153
Inicialmente, sem sequer adotar-se a denominação de intimidade
genética, já se garantia o sigilo aos dados genótipos das pessoas.
Tome-se como exemplo a decisão exarada pelo Supremo
Tribunal Federal em 1994 no Habeas Corpus 71373-4/RS. O voto
vencedor, proferido pelo Ministro Marco Aurélio de Melo, e aqueles
exarados pelos ministros que seguiram a divergência, em nenhum
momento fundamentam o direito a não condução sob vara para
realização do chamado exame de DNA no direito à intimidade
genética, mas, sim, na dignidade humana ou no direito à
intangibilidade do corpo humano, quando, em verdade, a violação
pode ocorrer mesmo que não seja extraído material do corpo
humano, mas utilizado algum já descartado pela pessoa, como se
verá nos exemplos citados a seguir.
Urge, entretanto, esquadrinhar-se, adequadamente, a existência
de um tal direito, apartado do direito à intimidade, reconhecido
expressamente pelo ordenamento positivo no art. 5º, X da
Constituição Federal, para, então, examinar a freqüente colisão
entre ele e o direito à identidade pessoal daqueles que pretendem,
judicialmente, ver reconhecido vínculo de filiação não assumido
voluntariamente.
2. Direito à intimidade genética
O que vem a ser um tal direito e qual o conteúdo jurídico que se
lhe pode atribuir são questões respondidas ainda de forma
incipiente pela doutrina brasileira.
Convém anotar, do direito espanhol, a corrente engendrada por
Carlos Ruiz Miguel2 para quem o direito à intimidade genética deve
ser visto sob tríplice aspecto: subjetivo, objetivo e axiológico. No
primeiro, poderia o titular exigir do Estado lhe fosse assegurado o
direito de não ter seus dados genéticos acessados por ninguém a
não ser quando expressamente consentido; no segundo, deve ser
disponibilizado procedimento processual adequado para essa
154
Direito à Intimidade Genética em face do art.232 do Código Civil...
defesa, o que poderia ser conseguido através de um Habeas
Genoma; no terceiro, do fato de que o genoma humano é algo
que nos define como pertencentes à espécie humana, decorre uma
dimensão valorativa de natureza cientifica.
Impõe-se, assim, responder às indagações postas anteriormente.
De inicio, convém anotar, que o direito á intimidade previsto no
nosso ordenamento positivo não é idêntico àquele aqui estudado.
A intimidade, assim sem adjetivos, refere-se ao direito de manter,
apartado do conhecimento alheio, a nudez, a saúde, as convicções
religiosas, a orientação sexual da pessoa. Não se coaduna, pois,
com o conteúdo do direito à intimidade genética que se refere,
exclusivamente, ao genoma de cada um.
É ele o direito de consentir o acesso à informação genética do
titular. Constitui, no aspecto objetivo, o genoma humano e,
obliquamente, qualquer tecido ou parte do corpo humano a partir
do qual essa informação possa ser obtida.
Dessa assertiva decorre que, mesmo quando autorizada pela
pessoa uma intervenção corporal, não é licito o acesso aos dados
genótipos sem expressa autorização para esse fim.
3. Proteção processual da intimidade genética: o
habeas genoma
Outrossim, há que ressaltar que a informação genética é única,
singular, haja vista que todo individuo é geneticamente irrepetível.
Os dados genótipos são inalteráveis.
A necessidade de proteção desses dados encontra-se
reconhecida, expressamente, na Declaração Internacional sobre os
Dados Genéticos Humanos, a qual, em seu art.12 determina:
“Quando são recolhidos dados genéticos humanos ou dados
proteómicos humanos para fins de medicina legal ou de
processos civis ou penais ou outras ações legais, incluindo
testes de paternidade, a colheita de amostras biológicas in vivo
Mônica Aguiar
155
ou post mortem só deverá ter lugar nas condições previstas
pelo direito interno, em conformidade com o direito internacional
relativo aos direitos humanos.”
A proteção desse direito há de ser garantida pela construção
de um instrumento processual próprio intitulado Habeas Genoma
que deve ser preferencialmente preventivo para assegurar que não
ocorra o acesso ilícito aos dados pessoais do genoma humano.
4. Limites ao exercício do direito à intimidade
genética
Conforme assinalado, anteriormente, a intimidade genética é
direito reconhecido expressamente em documentos internacionais.
Em nosso sistema positivo, acha-se acobertado pelo comando
do §2º do art.5º da Constituição Federal, segundo o qual, ainda
quando não expressamente garantidos, podem outros direitos ser
assegurados com escopo em princípios, sejam implícitos ou
explícitos do ordenamento jurídico.
No caso em apreço, é importante anotar que o art.5º, inciso “c”
da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos
Humanos expressa que se deva respeitar o direito de toda pessoa
a decidir que se lhe informe ou não os resultados de um exame
genético e suas conseqüências.
O acesso de terceiros a esses dados constitui inequívoca
violação a um direito personalíssimo, podendo afetar a vida privada
do titular.
Sendo assim, deve esse direito ser preservado.
Buscou-se a solução mediante a utilização de Habeas Corpus
para garantir a liberdade do individuo de ir e vir, e, destarte, não ser
conduzido debaixo de vara, solução instrumental esta aceita pelo
Supremo Tribunal Federal no caso paradigmático tratado no
mencionado Habeas Corpus 71.373-4/RS. A solução mais
156
Direito à Intimidade Genética em face do art.232 do Código Civil...
adequada, não obstante, resultaria na criação de um novo
instrumento jurídico como adiantado.
Nenhum direito é, entretanto, absoluto.
Tal ocorre, também, com o direito à intimidade genética que
pode vir a ceder espaço quando, em cotejo com outro, de igual
natureza, tiver que ser afastado no exame do caso concreto.
Tome-se, como exemplo, o direito à identidade pessoal, no qual
acha-se incluído o direito de conhecer a ancestralidade.
Essa figura jurídica, resguardada, expressamente, pela
Constituição Portuguesa em seu art.26, traz como característica a
possibilidade de alcançar-se o conhecimento real da descendência
da pessoa. Seria então, possível, havendo colisão entre eles, decidirse favoravelmente ao segundo. Ocorre que o direito positivo
brasileiro não alberga a possibilidade de condução debaixo de
Vara para fins de realização de exame genético, em face do teor
do art. 232 do Código Civil em comento. E, nesse ponto, atendido
o requisito do art.12 da DUGDH, não se deve decidir contra legem.
De qualquer sorte, ainda com a existência de norma legal
expressa e de entendimento jurisprudencial consubstanciado na
súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça3 da qual não discrepa
a decisão antes referida do Supremo Tribunal Federal, seria possível
extrair-se entendimento diverso, nos casos em que houvesse risco
coletivo a ser considerado ou necessidade de garantir-se imposição
ou cumprimento de sanção penal.
Essas exceções não se coadunam com o choque aparente entre
o direito da pessoa nascida de conhecer sua ancestralidade e o
direito à intimidade genética de seu suposto ancestral.
É que, embora na ação de investigação de paternidade não esteja
em jogo apenas direitos patrimoniais, o certo é que a verdade real
que se busca está lastreada em uma presunção comum do
investigante de quem seja seu pai, no caso a pessoa que apontou
Mônica Aguiar
157
como réu na ação. Se a tal convicção própria do autor vem a se
juntar, por sua vez, a declaração judicial reconhecendo a presunção,
em decorrência de omissão da parte contrária, não pode o autor,
legitimamente, considerar que a verdade não esteja estabelecida.4
São idênticas as hipóteses ocorridas de fato nos seguintes
casos: a) exame feito a partir de secreção nasal contida em lenço
de papel descartado pelo investigado, para corroborar
desconfiança de determinado jornal de que o filho mais novo do
Príncipe Charles, da Inglaterra, era fruto de uma relação
extraconjugal; b) utilização de bagas de cigarro deixadas em um
cinzeiro em delegacia de polícia por vítima de suposto crime de
rapto para comprovação de que a investigada não era filha da
acusada.
Em ambas as hipóteses, houve violação ao direito à intimidade
genética.
No primeiro caso, havia mera curiosidade em comprovar-se,
contra a vontade da pessoa, sua ancestralidade. No segundo, violase esse direito para comprovar-se a existência de um crime, cuja
punibilidade já se encontrava extinta pela prescrição.
Deveria seguir, pois, íntegro o direito à intimidade genética, por
não ser a hipótese de colisão em que devesse ele ser afastado.
O que se perquire, destarte, no entendimento sobre a matéria e
que ganha relevância é saber se o que deve preponderar na
investigação de paternidade é o direito da pessoa de conhecer
sua real identidade, e não apenas a presumida, ou se o do suposto
pai à intimidade genética.
A perspectiva, pois, que se coloca não é simplesmente de afastar
o direito à intangibilidade física do investigado como disputam os
julgadores e doutrinadores em tema discutido de forma ainda
incipiente, pois, conforme alinhado acima, não é somente esse o
direito que deve ser respeitado - apesar de, no campo da prova,
se deva ter em mente o comando legal antes referido - mas o
158
Direito à Intimidade Genética em face do art.232 do Código Civil...
direito mais amplo de intimidade genética, ou seja, ainda com
relação ao material que já foi descartado tem seu titular o poder
de obstar a realização do exame.
Assim, se mesmo com material já descartado ele pode dissentir
da prova, ainda mais poderá no caso em que a prova que
pretendem dependa da coleta direta sobre seu próprio corpo do
material necessário à pesquisa.
Destarte, seria o mesmo que dizer que, se o réu reconhece no
curso da ação, independentemente da realização do exame que
não pretende fazer, a paternidade, ainda assim o autor não se
satisfaz e exige que o suposto pai faça o exame para ter a certeza
do vínculo. Ora, em tempo de consagração ampla na doutrina da
chamada filiação sócio-afetiva é, no mínimo, um contra senso, que
tal se exiga. E nem se diga que o interesse aí é diverso, pois, a
perfilhação pode ocorrer mesmo que o réu não seja o genitor.
5. Conclusão
Não é direito ao próprio corpo ou à intangibilidade física o que
se pretende resguardar com a presunção tratada no art.232 do
Código Civil quando necessária a realização de prova pericial
especifica para confirmar-se o vinculo de filiação entre autor e réu.
A hipótese é de direito à intimidade genética, o qual compreende
o direito de manter intacto os dados genéticos da pessoa.
Como todo direito subjetivo não é ele absoluto, pois, pode ceder
lugar a outro ou outros quando cotejado, no caso concreto, com
direito de idêntica natureza ou que tenha interesse coletivo a ser
resguardado.
O direito à identidade pessoal tem a mesma natureza do direito
à intimidade genética, mas não é violado quando a ancestralidade
é tomada por via presuntiva, pois, se a presunção é desfavorável
ao titular da intimidade genética que não autoriza seja desvendada,
não se pode esquecer que será ela tomada contra o réu que teria,
Mônica Aguiar
159
então, todo o interesse em realizar a prova para se desfazer do
ônus não querido e cuja única possibilidade então de afastar seria
pela perícia que não permitiu.
6. Bibliografia
MIGUEL, Carlos Ruiz. Los datos sobre características genéticas:
Libertad, Intimidad y No discriminación. In Genética y derecho.
Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2001.
7. Notas
2
MIGUEL, Carlos Ruiz. Los datos sobre características genéticas: libertad, intimidad
y no discriminación. In Genética y derecho. A.A.V.V. Madrid: Consejo General del
Poder Judicial, 2001. p. 31
3
Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA
induz presunção juris tantum de paternidade.
4
160
Voto do Ministro Octavio Gallotti exarado no HC 713734/RS.
Direito à Intimidade Genética em face do art.232 do Código Civil...
DIREITO DO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho, Mestre em
Direito Privado pela UFBA e doutorando pela UFPR, Professor da Faculdade de Ruy Barbosa. Membro do Instituto
Baiano de Direito do Trabalho – IBDT e da Associação de
Advogados de Trabalhadores Rurais – AATR-BA.
[email protected].
Sumário: 1. Introdução. 2. Gênese. 3. Ontologia Trabalhista. 4. A crise do
Direito do Trabalho. 5. Reafirmando o Princípio da Proteção. 6. Proteção
versus Regulação. 7. Referências
Resumo: Objetiva discutir quais as perspectivas emancipatórias para o
juslaboralismo no cenário de crise do emprego, flexibilização, terceirização e
precarização. Inicia contextualizando o cenário de crise no Direito do Trabalho
para revisitar sua gênese, em busca de extrair sua ontologia emancipatória
que é definida pelo seu caráter protetivo. Desenvolve dialeticamente a relação
entre a proteção legal e emancipação, para a identificação de novas propostas
emancipatórias para o Direito do Trabalho.
1. Introdução
Dizia Lacordaire “entre o forte e o fraco, entre o pobre e o rico, é
a liberdade que escraviza, é a lei que liberta.”(apud SUSSEKIND,
1981, p. 32). Esta frase, muito conhecida na seara do juslaboralismo,
sinaliza um viés emancipatório articulado sobre a proteção legalestatal. Indaga-se, então, o Direito do Trabalho e o seu caráter tutelar
ao tempo que prega uma proteção-emancipação não termina por
praticar uma dominação reguladora de uma efetiva emancipação?
Este ensaio objetiva percorrer esta indagação sem qualquer
pretensão de resposta definitiva ou acabada. Pretende, em verdade,
pontuar idéias e balizas que podem ajudar no caminho para a resposta.
Por dever acadêmico, cumpre, desde já, desvelar a précompreensão que envolve o ensaio, inclusive para publicizar os
161
pré-juízos a fim de se evitar arbitrariedades (GADAMER, 2005). O
olhar que construiu as idéias analisadas foi o olhar dialético
materialista que considera a realidade em constante transformação
e contraditória em si. Para a dialética, o conhecimento e a atividade
humana estão inseridos num processo de totalização (MARX,
1996), que nunca alcança uma etapa definitiva, perfeita e acabada,
estando em constante transformação. Talvez só a dialética possa
assumir a dicotomia (contradição) emancipação-regulação inerente
ao Direito do Trabalho.
O caminho seguido pelo ensaio perpassa a gênese do Direito
Laboral com o fito de identificar a sua ontologia. Adiante, analisarse-á o contexto contemporâneo, em síntese apertada, para entender
a crise do Direito do Trabalho. No cenário de crise, tratou-se de
reafirmar uma posição protecionista. Ao final, cuidou dos pontos
contraditórios do juslaboralismo e suas vertentes de regulação/
conservação e emancipação, anotando algumas direções.
2. Gênese
No estudo da gênese da disciplina laboral, acolhe-se a premissa
de Mário De La Cueva, que vincula intrínseca e inseparavelmente o
Direito do Trabalho à dignidade humana.
A história do Direito do Trabalho é um dos episódios na luta do
homem pela liberdade, pela dignidade pessoal e social e pela
conquista de um mínimo bem-estar, que, ao mesmo tempo
dignifique a vida da pessoa humana, facilite e fomente o
desenvolvimento da razão e da consciência. (DE LA CUEVA,
1969, p. 21)
O modo de produção capitalista difere substancialmente das
demais e anteriores formas de organização da produção, pois nele
há separação entre aqueles que detêm os meios de produção dos
outros que, somente tendo sua força de trabalho, sujeitam-se a
vendê-la em troca de remuneração, a qual é muito aquém em relação
162
Direito do trabalho e emancipação
à riqueza produzida pelo trabalho humano. Tem-se a divisão social
do trabalho e a alienação. (MARX, 1978, p. 24)
A doutrina juslaboralista vincula essencialmente o surgimento
do Direito do Trabalho ao movimento cunhado pela história como
Revolução Industrial, iniciado pelo advento da máquina a vapor.
Nesta linha, temos Orlando Gomes e Élson Gottschalk (2005),
Rodrigues Pinto (2005), entre outros. Martins Catharino destoa
ao afirmar que a origem do Direito do Trabalho não se limita à
Revolução Industrial, mas à conjunção desta com o fenômeno
chamado de questão social (hipossuficiência e consciência de
classe). Poder-se-ia associar o surgimento deste ramo jurídico com
a conjugação de três elementos: Revolução Industrial; Liberalismo;
Consciência de Classe.
A Revolução Industrial implicou estruturais mudanças na forma
de organizar a produção, engendrando uma categoria de
trabalhadores que venderiam sua força de trabalho. A filosofia
liberalista incentivava a total liberdade nas relações privadas, sem
qualquer intervenção estatal. Nas relações de trabalho, a autonomia
da vontade acarretou contratos leoninos e atentatórios à dignidade
do trabalhador, posto que este – tendo no trabalho seu meio de
sobrevivência – não estaria em condições de negociar os termos
do contrato de trabalho, relegando ao empregador a definição do
seu conteúdo. Isto foi denominado por Alfredo Palacios como
Liberdade Liberticida. (SUSSEKIND, 2004, p.15).
Frente a essa situação, a concentração das massas de
trabalhadores produziu, pela similitude das condições de vida, uma
consciência coletiva, uma consciência de classe. As péssimas
condições de trabalho conclamavam os trabalhadores à luta, eis
que nada tinham a perder perante a dificuldade que viviam. “O
Direito do Trabalho é obra desses homens que se perderam, por
já não terem o que perder” (VIANA, 2004, p. 261). Então, a partir
da organização coletiva, a luta reivindicatória consorciada com a
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
163
utilização do máximo instrumento de pressão dos trabalhadores –
a greve – ocasionou um processo de conquistas, normativizações
no plano coletivo. Posteriormente, a influência da Igreja Católica
simbolizada na encíclica Rerum Novarum, aliada a concepções
humanistas, ensejaram o sentimento da questão social,
estabelecendo o esteio para a atuação legislativa do Estado,
mediante intervenção nas relações de trabalho com
regulamentações protetivas dos hipossuficientes.
Não obstante o Direito Laboral ter surgido como conquista da
ação organizada dos trabalhadores na Europa, suas características
no Brasil são bastante distintas, uma vez que, no sistema brasileiro,
a iniciativa estatal predominou, configurando um modelo de
normatização autoritário corporativo (GODINHO, 2004, p. 120).
Todavia, deve-se lembrar que o seu início foi demarcado por uma
incipiente organização sindical, sob inspiração da ideologia
anarquista proveniente da formação política dos imigrantes
europeus que compunham parte considerável dos trabalhadores
no Brasil. Logo, a afirmação de que o Direito do Trabalho no Brasil
representou uma dádiva da lei não pode ser propalada, uma vez
que não se coaduna, de forma fidedigna, com a história.
Já se disse não sem certa razão, que nosso Direito do Trabalho
tem sido uma dádiva da lei, uma criação de cima para baixo, em
sentido vertical. Em muitos casos tem sido assim realmente.
Todavia, não se deve olvidar que em outros, mesmo antes da
Revolução de 1930, o nosso incipiente Direito do Trabalho
conheceu sua fase de auto-afirmação, numa inequívoca
demonstração histórica de uma consciência de classe, que já se
delineava, desde o início deste século. Ainda aqui temos a
confirmação histórica da prioridade cronológica do direito
coletivo sobre o individual do trabalho. (G OM E S e
GOTTSCHALK, 2005, p. 6).
A era Vargas implementa, nas relações de trabalho, uma nova
política, intrinsecamente intervencionista e protetiva, assegurando,
164
Direito do trabalho e emancipação
inquestionavelmente, uma série importante de direitos e vantagens,
nas relações de emprego, aos trabalhadores individualmente
considerados. Em contrapartida, implementou uma estratégia de
atrelamento da organização coletiva dos trabalhadores ao Estado,
importando sua cooptação e dominação, ao controlar da criação
até a extinção dos sindicatos, ao definir seus objetivos,
administração, receitas e eleições. A época, o controle estatal era
tão intenso ao ponto da doutrina trabalhista imputar ao sindicato
uma nova natureza jurídica: ente de Direito Público, eis que inserto
no modelo corporativista autoritário.
Infere-se que o trabalhismo de Vargas inicialmente garantiu aos
trabalhadores uma proteção trabalhista inimaginável para a época,
considerando a capacidade de organização e conquista do
movimento sindical. No entanto, seu preço foi indubitavelmente
alto, posto que causou a aniquilação do potencial emancipatório
da ação coletiva dos trabalhadores, produzindo o chamado
“sindicalismo pelego”.
3. Ontologia Trabalhista
Desta breve gênese, pode-se extrair que o Direito do Trabalho,
em termos gerais, representa o regramento das relações de
trabalho entre partes desiguais, com a finalidade de atenuar ou
diminuir esta hipossuficiência, mediante um sistema jurídico
protetivo. A condição de inferioridade frente ao empregador foi
delineada classicamente por Cesarino Junior, quando caracterizou
de hipossuficentes aquelas pessoas não-proprietárias, que
dependem da sua força de trabalho para lograr sua sobrevivência
e de sua família:
Aos não proprietários, que só possuem sua força de trabalho,
denominamos hipossuficentes. Aos proprietários de capitais,
imóveis, mercadorias, maquinaria, terras, chamamos de
hipersuficientes. Os hipossuficientes estão, em relação aos auto-
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
165
suficientes, numa situação de hipossuficiência absoluta, pois
dependem, para viver e fazer viver sua família, do produto do seu
trabalho. Ora, quem lhes oferece oportunidade de trabalho são
justamente os auto-suficientes [...]. (JUNIOR, 1980, p. 44-45).
Sua ontos reside na situação fática que a prestação de trabalho
é indissociável da condição humana, ensejando uma feição que é,
no mínimo, pessoal (trabalho autônomo) e, no máximo,
personalíssima (trabalho subordinado).
A natureza personalíssima da relação de trabalho subordinado
decorre do fato da impossibilidade de separação entre o trabalho
e a pessoa do trabalhador, ou mesmo sua confusão. Neste sentido,
a regulação das relações de trabalho não se deve orientar por
cânones civilistas, atinentes ao direito das coisas (res), uma vez
que se está regulando diretamente a própria condição humana.
Esta circunstância – impossibilidade da separação entre o
trabalhador e o trabalho por ele prestado – engendra uma
singularidade no Direito Laboral. “A especial singularidade do
trabalho como objeto de uma relação jurídica consiste em que,
não confundindo-se (sic) com a pessoa que o executa, é no entanto
algo pessoal e íntimo, uma emanação, por assim dizer, da
personalidade do trabalhador”. (OLEA, 1969, p. 142)
Ensinam Orlando Gomes e Élson Gottschalk que o Direito do
Trabalho lida diretamente com a condição humana, manifestada
na prestação do labor, pois no “contrato de trabalho apanha a
própria pessoa, envolvendo-a na sua essência humana. (GOMES
e GOTTSCHALK, 2005, p. 12).
Deparando-se, como fora observado na gênese, com situações
de excessiva exploração do trabalho humano e diretamente do
próprio homem, a ontologia juslaboral foi criada almejando rejeitar
a exploração do homem pelo homem, seja por sua atenuação
(reformismo cristão), limitação (socialismo útopico) ou mesmo a
supressão (comunismo). Independentemente dos graus de
166
Direito do trabalho e emancipação
tolerância da exploração, resta clarividente o compromisso
ontológico do Direito do Trabalho em questionar a desigualdade
entre o patrão (tomador dos serviços) e o trabalhador (prestador
dos serviços), ou melhor, em contestar a hipossuficiência nas
relações laborais. A desigualdade apontada é a motivadora para
o caráter protetivo, segundo Pinho Pedreira:
O motivo dessa proteção é a inferioridade do contratante amparado
em face do outro, cuja superioridade lhe permite, ou a um organismo
que lhe represente, impor unilateralmente as cláusulas do contrato,
que o primeiro não tem a possibilidade de discutir, cabendo-lhe
aceitá-las ou recusá-las em bloco. (SILVA, 1999, p. 22).
É a hipossuficiência que clama por proteção ao trabalhador perante
o poderio econômico do seu empregador. Destarte, o fundamento
de proteção ao trabalho é a própria proteção à pessoa humana e
sua dignidade, posto que não há como se separar o trabalho de
seu prestador. “Sendo impossível separar o trabalho das pessoas,
concretamente considerada, a disciplina inspira-se num personalismo
real, humanista e socializante.”(CATHARINO, 1982, p. 32)
Assim, as relações de trabalho prestadas a outrem têm como
pressuposto, em regra, uma disparidade. Perante a necessidade de
sobrevivência, o obreiro não pode livremente estipular as condições
contratuais com o tomador de serviços, carece ele, de forma
imprescindível, do trabalho. Na lei da oferta e da procura definida ao
sabor do mercado, o trabalhador – que não detém os meios de
produção, termina por aceitar a subordinação e, especialmente em
um contexto de alto desemprego, acolhe o ajuste das condições
de trabalho e de remuneração pelo tomador dos serviços, de maneira
quase que unilateral. “Se fosse realmente livre para vender (ou não)
a sua liberdade, o trabalhador a manteria – inviabilizando o sistema.
Desse modo, para que o sistema se perpetue, é preciso não só que
haja liberdade formal para contratar, mas que falte liberdade real
para não contratar.” (VIANA, 2004, p. 260).
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
167
Na ontologia trabalhista, há o reconhecimento da organização
coletiva dos trabalhadores e, principalmente, o reconhecimento dos
efeitos ultra-contratuais ou normativos das Convenções Coletivas
de Trabalho, delineando uma ruptura com o monismo jurídico e
firmando o pluralismo jurídico (WOLKMER, 1999) nas relações
de trabalho. Reconhecer uma normatividade advinda dos próprios
destinatários (trabalhadores e empresários) representou um
processo de abertura do Direito Moderno, impregnado por maior
legitimidade e dissonante do tradicional monopólio do Direito pelo
aparelho estatal. Saliente-se que os efeitos normativos consectários
deste pluralismo jurídico descuram amplos debates acerca da
natureza e efeitos da Convenção Coletiva de Trabalho, notadamente
pelo seu caráter especial e controverso, bem situado na conhecida
expressão de Francesco Carnelutti: “Corpo de contrato, alma de
Lei” (apud NASCIMENTO, 2004, p. 1112).
Depreende-se, deste modo, que o Direito do Trabalho surgiu
como medida de justiça social – insuflado pelos reclames dos
movimentos dos trabalhadores, ideologias socialistas e com
valores acolhidos pela classe média, intelectuais e Igreja – para as
relações de trabalho que se baseavam em excessiva exploração
dos trabalhadores. Essa medida de justiça social se confirma pela
mitigação do pilar civilista da autonomia privada, através da
cogência e imperatividade de uma legislação intervencionista que
estipula um rol mínimo de direitos irrenunciáveis. “O Direito do
Trabalho surge como conseqüência de uma desigualdade: a
decorrente da inferioridade econômica do trabalhador. Essa é a
origem da questão social e do Direito do Trabalho.” (PLÁ
RODRIGUEZ, 2000, p. 66).
O Direito do Trabalho surge, então, por uma série de rupturas. A
ruptura com a liberdade formal e sua conseqüente autonomia
privada. A ruptura com a igualdade praticada após a Revolução
Francesa – a igualdade formal, em prol de outra real e efetiva,
168
Direito do trabalho e emancipação
hodiernamente definida como igualdade material. A ruptura com o
individualismo, este que caracterizou o direito moderno como
sendo o pilar central do Direito Privado, ao afirmar a coletividade
dos interesses e sua força social. A ruptura com o monismo jurídico,
recém fortalecido com o apogeu dos Estados Modernos, a partir
do reconhecimento da normatividade advinda das Convenções
Coletivas, imputando um pluralismo jurídico nas relações de
trabalho. A ruptura com a interpretação clássica do Direito, ao
desconsiderar as costumeiras regras de interpretação, em favor
da identificação da norma mais favorável, em atenção ao seu
compromisso com a proteção do hiposuficiente.
A ontologia trabalhista é intrinsecamente protetiva, eis que só
houve razão de ser para esta nova disciplina jurídica, porque a
antiga regulação civilista não mais correspondia ao interesses dos
atores sociais. O surgimento do Direito Laboral decorre da
necessidade de proteção aos hipossuficientes, sendo esta
proteção o caractere essencial desta ciência jurídica e, portanto,
indispensável.
Conclusivamente, a ontologia trabalhista pode ser sintetizada
nas palavras de Martins Catharino:
Nascido e desenvolvido para compensar a desigualdade
econômica, mediante desigual e proporcional tratamento jurídico,
o Direito do Trabalho protege os economicamente débeis. os
“hipossuficientes”, na expressão feliz de A. F. Cesarino Junior.
(CATHARINO, 1982, p. 152)
4. A crise do Direito do Trabalho
Situada a gênese e a ontologia, trata-se, agora, de entender o
atual cenário do Direito do Trabalho, que tem sido demarcado
pela idéia de crise. A compreensão da crise do Direito do Trabalho,
em sua integralidade, imprescinde da analise da conjuntura
econômica e social que o envolve. Nesse sentido, a série de crises
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
169
da sociedade contemporânea enseja desdobramentos nas
instituições basilares, como o Estado, a Ciência e o Direito.
Conseqüentemente, a crise do Direito do Trabalho estará
concatenada com a crise que assola a sociedade, posto que, sendo
o Direito uma Ciência Social Aplicada, refletirá as conseqüências
das crises do Estado, da Ciência e do Trabalho.
A globalização, norteada pelo neoliberalismo, ao promover as
integrações das economias mundiais, também impõe uma redução
na atuação estatal. Em verdade, estabelece como diretriz um
Estado-Mínimo em contraposição ao Estado-Providência. A
autonomia privada ressurge com força, criticando a intervenção
estatal que, segundo este pensamento, tem propiciado obstáculos
para o crescimento econômico. Este contraste entre um Estado,
ainda interventor, mas que sofre reduções, limitações e privatizações
provoca uma crise particular do Estado.
Em concomitância, os estudos científicos mais profundos têm
demonstrado a própria crise da ciência, especialmente porque tem
apontado seus limites. A epistemologia pós-moderna desconstrói
os mitos científicos da modernidade, quais sejam: o cientificismo
e a neutralidade. Vislumbra-se, portanto, uma crise nos paradigmas
científicos, que caminham na direção de relativizações, na
compreensão de que todo conhecimento é provisório, inconcluso
e inacabado, ou seja, de que não existem verdades absolutas e
tampouco a ciência, ou melhor, que a racionalidade científica não
possui o monopólio na produção de verdades. Tem-se a crise na
Ciência, que também repercute no Direito.
Em paralelo com as crises anteriores, a análise dos dados do
mercado de trabalho comprova o declínio do emprego. No Brasil,
em 2002, havia 27 milhões de trabalhadores empregados (com
anotação na CTPS) numa população economicamente ativa de
76,5 milhões de trabalhadores; isto significa que somente 1/3 dos
trabalhadores do país estavam protegidos pela tutela trabalhista.
170
Direito do trabalho e emancipação
Na Região Metropolitana de Salvador, não há muita diferença, pois
tem-se atualmente uma taxa de desemprego de 29,7% da
população economicamente ativa, ou seja, de 1,662 milhão de
pessoas, 496 mil estão sem emprego.
Verifica-se que a organização da economia global incorre em
uma profunda reestruturação produtiva. Segundo Ricardo Antunes
(2003, p.182), o modelo de produção fordista é subjugado pelo
toytotismo, este fundado na descentralização e terceirização do
sistema produtivo, acarretando em uma drástica redução do
proletariado fabril estável, na desqualificação conjugada,
contraditoriamente, com a especialização, precarização e/ou subcontratação do trabalho (ANTUNES, 2003, p. 184). Não se pode
olvidar, ainda, que a “crescente transformação da ciência em força
produtiva” (SANTOS, 1999, p. 200) tem resultado no fenômeno
do desemprego estrutural, a exemplo dos postos de trabalhos
sucumbidos pela automação, informática e robótica.
Nesse sentido, as novas modalidades de trabalho têm sido
utilizadas dentro da estratégia geral pós-fordista de extenalização.
O fenômeno da externalização ou out-sourcing representa o intento
do paradigma pós-fordista em evair-se das obrigações trabalhistas,
a partir de novas formas de trabalho. A crise do emprego, então,
não pode ser explicada unicamente pelos fenômenos econômicossociais supracitados. É assentada, também, na explícita pretensão
flexibilizadora e desregulamentadora. Poder-se-ia argumentar que
a crise do emprego justifica-se pela existência da proteção tutelar
estatal nesta relação de trabalho, enquanto que nas outras prevalece
a máxima liberalidade das partes. A reconfiguração do trabalho
objetiva, além dos ganhos produtivos, a evasão da proteção
peculiar do Direito do Trabalho. Perante a crise do emprego, o
sistema protetivo trabalhista urge ser repensado, sob pena de não
conseguir oferecer proteção ao trabalhador contemporâneo.
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
171
Tal realidade indica a reconfiguração do trabalho na sociedade.
O processo econômico-social de reorganização das formas de
trabalho é chamado de reestruturação produtiva. O crescimento e
a criação de formas de trabalho sem proteção legal, tais como o
trabalho informal, sub-emprego, trabalho (falsamente) cooperado
e os trabalhadores pseudo-autônomos desvela a pretensão de
fuga da relação de emprego. Dessa forma, a nova organização do
trabalho está plenamente associada à crise do emprego, que pode
ser chamada, de outra maneira, de crise do trabalho.
O mundo do trabalho é atualmente caracterizado pela
heterogeneização das formas de trabalho, particularmente com o
decréscimo do trabalho classicamente assalariado, o emprego.
Frise-se que a redução do emprego, em favor de relações
precarizadas ou supostamente autônomas, importa em exclusão
de um imenso contingente de trabalhadores do sistema protetivo
trabalhista, social e previdenciário. Esse novo mundo do trabalho
criou, conseqüentemente, uma classe trabalhadora, assim definida
por Antunes:
Essas mutações criaram, portanto, uma classe trabalhadora
mais heterogênea, mais fragmentada e mais complexificada,
dividida em trabalhadores qualificados e desqualificados do
mercado formal e informal, jovens e velhos, homens e mulheres,
estáveis e precários, imigrantes e nacionais, brancos e negros
etc., sem falar nas divisões que decorrem da inserção
diferenciada dos países e de seus trabalhadores na nova divisão
internacional do trabalho. (2003, p. 184)
Todas essas circunstâncias provocam reflexos importantes no
Juslaboralismo, pois implicam redução da atuação legiferante do
Estado, na redução de custos – redução de direitos e fragmentação
da classe trabalhadora. De fato, o Direito do Trabalho termina
sendo o direito de poucos trabalhadores. Pode-se até denominálo de Direito do Emprego ou, como já ensinava Martins Catharino
172
Direito do trabalho e emancipação
(1979), “Contrato de Emprego”, inclusive porque o Direito Laboral
foi construído a partir do emprego típico (ROMITA, 2000, p. 188).
5. Reafirmando o Princípio da Proteção
Não obstante as mudanças advindas da transição pós-moderna
e do pós-fordismo, as condições de vida do trabalhador continuam
a ser demarcadas pela debilidade. A análise de três importantes
elementos do mercado de trabalho comprovam a persistência da
hipossuficiência. São o percentual de desempregados, o
rendimento salarial e as novas formas de trabalho (ou trabalho
informal). Sublinhe-se que o heterogêneo (diferente da relação de
emprego) implica, do ponto de vista técnico trabalhista, na exclusão
da proteção.
A ontologia juslaboral não se esvai ante o mundo em transição
pós-moderna e a fábrica pós-fordista. A condição do trabalhador,
não mais do empregado, persiste no contexto da dependência ou
hipossuficiência. Há que se vislumbrar de maneira indissociável o
binômio hipossuficiência-dependência, que implica na defesa de
um Direito do Trabalho de cunho protetivo enquanto seus
destinatários perdurarem numa situação de desigualdade
econômica. “Existirá, pois, a necessidade de proteção enquanto
esta existir [inferioridade dos trabalhadores], mas deve ser evitada
a superproteção, que pode produzir efeitos perversos.” (SILVA,
1999, p. 39).
Cumpre, de igual modo, rechaçar alguns argumentos propalados
como causadores da suposta crise do princípio da proteção.
Trata-se de uma repetição (disfarçada) dos argumentos contrários
ao surgimento do Direito do Trabalho e dos seus princípios.
Contudo, ao invés de se invocar o argumento da liberdade das
partes (superado pela idéia de hipossuficiência), o discurso
(neo)liberal vale das idéias de competitividade e eficácia, como
também repete-se as de leis do mercado, necessidade de baixar
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
173
custos, entre outras. O sentido implícito de movimento de
liberalização ao retirar o teor protetivo do Direito Laboral é retomar
uma regulamentação civilista das relações de trabalho, em
mitigando o princípio pré-jurídico ou axioma de que o trabalho
não é mercadoria, como adverte Pinho Pedreira:
É preciso reconhecer que cada norma do Direito do Trabalho
constitui um acidente, um obstáculo, um impedimento para tratar
o trabalho como uma mercadoria sujeita às leis do Mercado.
Querer tirar as rigidezes equivale a querer destruir o Direito do
Trabalho. (SILVA, 2004, p. 93).
A crise econômica, fundamento de igual importância, para que
se pretenda uma flexibilidade na proteção dos trabalhadores,
sempre acompanhou o Direito do Trabalho. Na história, constatamse inúmeras crises econômicas internacionais e nacionais, que
repercutiram, inclusive com o afrouxamento da rigidez da legislação
trabalhista, sem, contudo eliminar a ontologia protecionista (SILVA,
1999, 38). Além disso, mesmo nos momentos críticos, os
interesses econômicos não podem subjugar o valor social do
trabalho, isto é, não podem, para lograr a recuperação, aviltar as
condições de trabalho dos trabalhadores, diminuindo a proteção.
Transferir os prejuízos econômicos para os trabalhadores implica
na negação do princípio da forfertaridade, que desvincula os riscos
do negócio dos direitos trabalhistas.
De forma diametralmente oposta, em momentos de crise que
se deve recorrer às bases e diretrizes do fenômeno contestado.
Recorrer as diretrizes importa reafirmar os princípios originários,
que são, pelos seus caracteres, os componentes da disciplina
jurídica com maior perenidade, uma vez que são depositários de
todos os substratos (econômicos, sociais e políticos) que
originaram o sistema em catarse. Constatada a similitude da
situação econômica – na perspectiva de dependência econômica
do trabalhador, inclusive agravada em alguns casos – a confirmação
174
Direito do trabalho e emancipação
do valor social da proteção aos trabalhadores se impõe. Porém,
as contestações liberais negam este raciocínio, advogando a
existência de um único caminho: a liberalização.
Nesta perspectiva, Amauri Mascaro Nascimento defende a
necessidade a intervenção estatal (uma das técnicas protetivas),
mesmo perante a crise econômica e social, demarcada pela
ascensão da flexibilização e precarização:
[...] a resposta é afirmativa porque a verdadeira igualdade está
em tratar desigualmente situações desiguais. No entanto, há
direitos que devem ser defendidos com a força da lei e outros
que podem ser melhor disciplinados pela autocomposição direta
entre os próprios interessados. (NASCIMENTO, 2002, p. 905)
Em atenção ao contexto crítico, a OIT se manifestou através da
Declaração de 1998 sobre princípios e direitos fundamentais no
trabalho, reconhecendo que os direitos fundamentais atualmente são:
a) Liberdade sindical e reconhecimento efetivo da negociação
coletiva;
b) Eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou
obrigatório;
c) Abolição efetiva do trabalho infantil;
d) Eliminação da discriminação em matéria de emprego e
ocupação.
Infere-se da Declaração da OIT de 1998 uma ênfase ao plano
coletivo, bem como nas questões de excessiva exploração sequer
aceitas no capitalismo (trabalho forçado e infantil) e, destaque-se,
menção a defesa isonomia nos empregos e ocupações. Apesar
de não haver referência explícita ao princípio da proteção, o caráter
tutelar do Direito Laboral pode ser depreendido das declarações
anteriores e da própria finalidade da OIT. Noutro sentido, verificase que, com a menção à isonomia entre emprego e “ocupação”
estipula-se um regime de igualdade entre o trabalho convencional
(emprego) com as atuais formas flexíveis (flex-jobs, trabalho a tempo
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
175
parcial, parassubordinados, cooperados, entre outros), ratificando
a noção de expansionismo do Direito do Trabalho, intrinsecamente
protecionista.
Reafirmada a perspectiva protecionista, o princípio da proteção
precisa de reforço para enfrentar seus dilemas contemporâneos.
A corrente compreensão normativa e vinculante dos princípios,
notadamente dos princípios constitucionais, pode em muito
colaboar. Trata-se de absorver na doutrina ascendente o papel dos
princípios e transpô-lo para o princípio protetivo laboral.
Em consonância com a postura protecionista delineada, sustentase que o Direito do Trabalho urge em ser repensado, com o objetivo
de conferir maior efetividade na proteção aos empregados e
ampliar-se para ofertar proteção aos trabalhadores heterogêneos
e diferenciados, desde que dependentes. A ampliação da tutela
para os parassubordinados, mesmo que em doses menores do
que aquelas destinadas ao empregado, é hermenêutica que mais
concretiza e torna viva a Constituição, pois, significa “a
concretização na práxis jurídica entre nós do humanismo e da
axiologização nas relações de trabalho, imperativos de impressão
da justiça nestas relações, postulado da ordem e da paz sociais.”
(JUCÁ, 2000, p 109). A título de exemplo vale conhecer a recente
experiência italiana que criou o Contrato a Projeto, enquanto
horizonte de perspectivas.
6. Proteção versus Regulação
Há que se fazer uma severa crítica à ontologia protetiva
trabalhista, em atenção à pré-compreensão orientada pelo
materialismo histórico.
Numa análise mais detida, sabe-se que a proteção trabalhista
articulada na legislação conforma-se como mecanismo de
dominação, porque assegura a continuidade da exploração do
trabalhador, advinda da apropriação do resultado do trabalho por
176
Direito do trabalho e emancipação
conta alheia. Com as medidas protetivas que asseguram alguns
direitos, mas mantém a mais-valia, o Direito do Trabalho funciona
como conservador do status quo, impedindo as pretensões
revolucionárias dos trabalhadores. É este o sentido apurado da
afirmativa de Palomeque López:
[...] a legislação do trabalho corresponde prima facie a uma
solução defensiva do Estado Burguês para, através do de um
corpo de normas tuitivas a favor dos trabalhadores, dispor sobre
a integração e institucionalização do conflito entre o capital e o
trabalho em termos compatíveis com a viabilidade do sistema
estabelecido. (apud ROMITA, 1998, p. 603)
Proteger significa dominar e colocar, sob o julgo do protetor,
o protegido que, graças à sua condição de dependente, irá-se
satisfazer com a qualidade de protegido. Destaca Pinho Pedreira:
Pareceu-nos sempre que em tempo algum o fim, em última
instância, do Direito do Trabalho foi a proteção do trabalhador,
pois não seria possível a existência, no regime capitalista, de um
ramo do direito em contradição com os interesses da classe
dirigente, [...]. Para nós, ontem como hoje, a finalidade imediata
do Direito do Trabalho é a proteção do trabalhador, mas a
finalidade mediata o equilíbrio social ou, como se exprime como
maior propriedade Wolfgang Daubler, “a conservação dos status
quo social”. (SILVA, 1999, p. 34).
No mesmo sentido, Aldacy Rachid Coutinho discorre criticamente
que “a proteção do trabalhador é um mito. Aquilo que está no lugar
do que não pode – ou não deve – ser dito. Está enunciar que protege,
quando nem sempre tutela. Afinal o direito do trabalho é o direito
capitalista do trabalho.” (COUTINHO, 2001, p. 7).
Não obstante, mesmo o princípio da proteção conduzindo a
uma faceta de dominação pela regulação, não se pode deixar de
defendê-lo, particularmente de defender seu caráter protetivo. Seu
caráter instrumental também poderá ser guiado pelo viés
emancipatório, quando se vincula a proteção à condição de
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
177
dignidade do homem trabalhador, e quiçá para além daquela
reconhecida pelo direito positivo. Aldacy Rachid Coutinho assevera:
E se não fosse protetivo do trabalhador ... seria do capital. A
primazia do trabalho sobre o capital determina que o direito
está pelo e para o homem. O homem não está a serviço dos
interesses traduzidos no direito. O mercado não pode influenciar,
direcionar o direito do trabalho. (COUTINHO, 2001, p. 7).
A tensão cotejada da regulação-emancipação atinge, de igual
maneira, o direito. Apesar do direito hegemônico praticado,
ensinado dogmaticamente e dito servir como meio de conservação
social (técnica de regulação social), tem-se o contra-direito, o Direito
Crítico, insurgente, de combate, surrealista, ou qualquer outra
denominação que expresse movimentos, no âmbito do direito de
reação à dominação daquele direito posto e hegemônico, na
direção compromisso libertário. Não obstante a indispensável
crítica materialista, a defesa de um direito protecionista é pauta,
no regime capitalista, das ideologias reformistas e revolucionárias.
O cenário que se conjectura para a projeção do Direito do
Trabalho resgata seu horizonte fundador. Rejeita-se uma postura
liberalizante, eis que a flexibilização negociada ou a precarização
das condições de trabalho não são compatíveis com a ontologia
juslaboral, e, no plano fático, não apresentam resultados de
atenuação/diminuição da hipossuficiência do trabalhador, que
continua dependente, seja na subordinação, autonomia ou
parassubordinação. De outro modo, o insucesso da vertente
conciliatória européia, denominada flexicurity, aponta para o retorno
da proteção, desde que baseada em outros moldes. Esta leitura
conduz a uma superação da crise e a reafirmação do Princípio da
Proteção. Assim conclui Plá Rodriguez:
Deve continuar fiel a seus princípios, aplicando-os
adequadamente à época e às realidades efetivas que se põem
em cada momento. Essa aplicação racional, razoável, funcional
178
Direito do trabalho e emancipação
dos princípios deve distinguir o permanente do circunstancial,
separar o essencial do contingente. Os princípios não são
obstáculo às mudanças exigidas pelos tempos e pelas
circunstancias. Sua própria maleabilidade lhes permite manter a
substancia mesmo que tudo o mais se mude. (PLÁ
RODRIGUEZ, 2000, p. 82).
Os discursos flexibilizantes, hegemônicos na globalização, não
se sobrepõem à realidade social, que persiste em caracterizar o
trabalhador de hipossuficiente. O modo de produção pós-fordista,
apesar de alterar as formas de trabalho e seus contratos, tem
agravado a exploração e a dependência econômica do trabalhador.
A crise do princípio da proteção não conduz à sua negação, mas
engendra uma necessidade de repensá-lo.
Nesta tensão regulação–proteção, é tático defender, na
sociedade capitalista, um Direito do Trabalho protetivo, que opera
com fundamentos que negam a racionalidade jurídica capitalista,
como a autonomia privada em favor de um humanismo que não
admite que o trabalho humano seja tratado como mercadoria. O
ideal de Justiça Social e combate à exploração, bases do Direito
do Trabalho, confirmam, em grande medida contra-racionalidades
dentro do sistema jurídico dominante, aproximando mais o
juslaboralismo de uma vertente emancipatória do que regulatória.
Contudo, o caminho que se segue, pela sua complexidade
imanente, diferenciação e heterogeneização, traz um horizonte que
privilegia individualidades ou individualismos, relegando a atuação
coletiva ao declínio e ao descrédito. Neste percalço, Carlos
Drummond de Andrade adverte:
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
(ANDRADE, 2005, p. 59)
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
179
Trata-se de, utopicamente, desvelar que a proteção que se
almeja ao trabalhador não deve depender exclusivamente das
medidas intervencionistas do Estado, o que configuraria a vitória
de uma (des)proteção regulatória com perversos excessos sobre
uma proteção emancipatória, ou seja, o primado da outorga (e
controle) sobre a conquista. Ao contrário, a perspectiva que se
coloca é resgatar, na história companheira, a importância fundante
da atuação coletiva na luta pela proteção nas relações de trabalho.
Aliás, o companheiro, vindo de longe das associações de
companheiros e oficiais da Idade Média (compagnonnages),
designa aquele que reparte o pão. Ou seja, aquele que compartilha
as mesmas condições de trabalho (com o outro trabalhador),
sabendo que somente juntos, partilhando sofrimentos (consciência
coletiva), poderão contrapor-se ou resistir fraternamente.
Esta perspectiva irrompe e recompõe dois valores fundantes e
basilares do Direito do Trabalho, que são recuperados no contexto
contemporâneo, e, por isso, indispensáveis para a tarefa do
repensar. São a fraternidade, que atrai o perfil protetivo nas relações
enfocadas individualmente entre trabalhador e empregador; e a
consciência de classe, que ressalta a imprescindibilidade de um
ente coletivo renovado para os problemas hodiernos.
Faz-se necessário explicitar a idéia de renovação do sindicato.
Reconhecida a crise do sindicalismo, consectária da crise do Direito
Laboral acentuada pelos fenômenos do desemprego estrutural e
da terceirização, poder-se-ia abandonar a entidade de classe, acaso
entenda-se que os conflitos de classe já foram superados pelas
atuais relações de trabalho. É esta a propaganda da nova relação
interativa de parceria empregado-empresa.
De outro lado, do materialismo dialético, que dirige
epistemologicamente a pesquisa, cumpre negar o discurso do fim
dos conflitos de classes e reforçar a atuação coletiva, a partir da
autocrítica acerca dos instrumentos, recursos e atitudes sindicais
180
Direito do trabalho e emancipação
que não foram aptos para enfrentar os atuais conflitos capitaltrabalho. Impõe-se produzir novas práticas sindicais que aglutinem
outros sujeitos (sociedade civil, consumidores, movimentos
populares) no conflito trabalhista. É preciso construir atitudes e
representações tão heterogêneas como são heterogêneos os
trabalhadores atuais, conquanto mantenha-se a centralidade da
questão do trabalho (ANTUNES, 2003).
Por fim, uma leitura emancipatória sinaliza para a conclusão de
que é preciso manter o caráter protetivo do Direito do Trabalho.
Além disto, é indispensável um sistema sindical que consagre e
torne efetiva a liberdade sindical, iniciando-se pela ratificação da
Convenção 87 da OIT e a adoção de medidas que combatam as
ações anti-sindicais.
Desse modo, a proteção trabalhista expressa um compromisso
com a emancipação dos trabalhadores, conquanto seja
proveniente de uma legislação intervencionista e expandida (ou
reforçada) pela atuação coletiva de sindicatos livres e
representativos. Defender, nestes moldes, a proteção é uma tática
adequada à sociedade capitalista, mesmo reconhecendo sua
função de conversação do status quo sobre uma efetiva
emancipação dos trabalhadores. Trata-se de explorar as
possibilidades insurgentes do sistema até seus limites. Em
verdade, uma real proteção-emancipação dispensaria o Direito
do Trabalho o que, por hora, não está a acontecer, justificando o
caráter protetivo do juslaboralismo.
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Murilo Carvalho Sampaio Oliveira
183
PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPP)
Paulo Modesto
Professor de Direito Administrativo da Universidade Federal
da Bahia e do Centro de Cultura Jurídica da Bahia. Presidente
do Instituto Brasileiro de Direito Público. Vice-Presidente do
Instituto de Direito Administrativo da Bahia. Membro do Ministério Público. Diretor da Revista Brasileira de Direito Público.
Conselheiro Técnico da Sociedade Brasileira de Direito Público. Membro do Conselho de Pesquisadores do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado. Ex-Assessor Especial do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado do Brasil. Editor do site www.direitodoestado.com.br
Sumário: 1. As Parcerias Público-Privadas: sentido amplo e restrito 2. As
Parcerias Público-Privadas na Lei nº. 11.079/2004. 3. As Parcerias PúblicoPrivadas nos Serviços de Relevância Pública e as “Concessões
Administrativas”. 4. Conclusão.
1. As Parcerias Público-Privadas: sentido amplo e
restrito
O direito brasileiro conhece, em sentido amplo, formas variadas
de parceria entre o Estado e pessoas privadas de caráter
empresarial e entre o Estado e as entidades privadas sem fins
lucrativos. Naturalmente, as parcerias do primeiro grupo cuidam
de estabelecer preferencialmente formas de cooperação na
prestação de serviços públicos e na exploração de atividades
econômicas. Reversamente, as parcerias do segundo grupo
vinculam-se tradicionalmente à prestação de serviços de relevância
pública, tendo em conta que a atuação das entidades sem fins de
lucro neste campo de atividades é explicitamente fomentada pela
Constituição (v.g., CF/88, arts. 199, §1º, in fine (saúde); 214, I
(assistência social); 205, caput, e 213 (educação))1. Mas essa
divisão não é absoluta: as entidades privadas empresariais também
185
colaboram em serviços sociais do Estado, sem fins de lucro,
cumprindo funções de fomento, especialmente em atividades
culturais (v.g., amostras de arte, exposições, espetáculos públicos)
e sociais (v.g., projetos de urbanização, auxílio a creches e escolas
públicas). São características gerais das diversas modalidades
de parceria, presentes em maior ou menor intensidade nas
diferentes modalidades de ajuste: a) a voluntariedade da adesão
ao ajuste; b) a convergência de interesses; b) a complementaridade
de encargos; c) a atenuação no emprego de prerrogativas
exorbitantes por parte da Administração, com vistas não inibir o
interesse do parceiro privado; d) a flexibilidade dos arranjos
institucionais viabilizadores do ajuste de interesses. As parcerias,
em sentido amplo, caracterizam-se como acordos entre duas ou
mais partes, para atuarem juntas em direção a um objetivo comum.
As parcerias entre o Estado e o empresariado frequentemente
envolvem a celebração de contratos de concessão de serviço
público ou de obra pública, mas também podem ocorrer com a
mobilização conjunta de capitais para criação de entes empresariais
(sociedades de economia mista).2 Formas de parceria também
usuais são os acordos econômicos, que envolvem redução de
preços em setores específicos da economia e a redução
concomitante da tributação sobre produtos industrializados ou
sobre o consumo de certos produtos (ex. redução de tributação
para carros populares).
Não é este sentido amplo da voz parceria, porém, que cumpre
aqui desenvolver. Interessa analisar, considerando o exposto nos
itens anteriores, o alcance específico da expressão parceria públicoprivada, isto é, da voz parceria consoante vem empregada na
recentíssima Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004 (publicada
no DOU de 31/12/2004) e, em especial, a sua aplicação não
apenas no campo tradicional dos serviços públicos e das
atividades de exploração econômica, esfera em que terá
186
Parcerias Público-Privadas (PPP)
provavelmente a mais intensa aplicação, mas no âmbito sempre
esquecido das atividades de relevância pública, dos serviços
sociais e culturais prestados ao público pelo Estado e por
particulares, igualmente carente de recursos e de iniciativas que
lhe ampliem a eficácia3. É o que se fará a seguir.
2. As Parcerias Público-Privadas na Lei 11.079/2004
A Lei n. 11.079/2004 denomina como parceria público-privada
o contrato especial de concessão que estabeleça
contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro
privado, sob duas modalidades: concessão patrocinada e
concessão administrativa.
Trata-se de contrato de direito público, de longo prazo e
caráter extraordinário, somente aplicável a ajustes de grande
vulto, cujo valor seja equivalente ou exceda a R$ 20.000.000,00
(vinte milhões de reais), possua prazo de vigência igual ou superior
a 5 (cinco) anos (mas não excedente a 35 anos) e envolva
compartilhamento de riscos entre o parceiro público e o
parceiro privado, inclusive no tocante à cobertura de riscos
contra caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea
econômica extraordinária.
A Lei 11.079/2004 estipula que, quando não houver
contraprestação pecuniária do poder público, a concessão
administrativa deve ser rotulada como “concessão comum”, sendo
inaplicáveis as normas especiais que institui. Também não são
aplicáveis as normas da nova lei aos contratos que tenham como
objeto único o fornecimento de mão-de-obra, o fornecimento e
instalação de equipamentos ou a execução de obra pública (art.
2º, §4º, III). Saliente-se, ainda, que a contraprestação pecuniária
da Administração Pública, necessária para caracterização da nova
modalidade contratual, somente será cabível após a efetiva
disponibilização do serviço objeto do contrato de parceria
Paulo Modesto
187
público-privada ou, ao menos, de parcela fruível do serviço
contratado (art. 7º).
A Lei 11.079/2004 inova o léxico jurídico administrativo em
termos nacionais (art. 1º), razão pela qual define, expressamente,
os conceitos de concessão patrocinada e concessão
administrativa. Com o primeiro rótulo designa a concessão de
serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987,
de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à
tarifa cobrada dos usuários, contraprestação pecuniária do
parceiro público ao parceiro privado. O segundo rótulo denota
não propriamente um contrato de concessão de serviço público,
ao menos como este é reconhecido no direito administrativo
brasileiro, mas uma espécie de contrato de risco de que a
Administração Pública seja a “usuária direta ou indireta”, cumulado
ou não com contrato de concessão de uso de bem público ou
de obra pública. As denominadas “concessões administrativas”,
segundo o art. 3º da nova Lei 11.079/2004, regem-se pela Lei
11.079/2004 e também pelo disposto nos arts. 21, 23, 25 e 27 a
39 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e no art. 31 da Lei
no 9.074, de 7 de julho de 1995. Nas “concessões administrativas”,
em princípio, não há delegação de serviço público, o que torna
realmente ambígua e problemática a terminologia empregada.
Embora tenha isolado em duas modalidades de contrato as suas
hipóteses de aplicação, é nítida a preocupação da Lei em disciplinar
sobretudo a modalidade de concessão denominada patrocinada,
pois é esta aquela que melhor serve à atração de capitais privados
para investimento em infra-estrutura, particularmente nas atividades
de maior risco econômico ou regulatório.
Como é evidente, segundo a concepção adotada pela nova lei,
parcela significativa dos investimentos em infra-estrutura de que o
país necessita exigem longo prazo de maturação e grande volume
de recursos, isto é, embutem grande risco econômico,
188
Parcerias Público-Privadas (PPP)
regulatório e político, cuja cobertura somente pode ser realizada
integralmente por empresas privadas em situações especiais, nas
quais seja evidente ou muito provável a estabilidade das receitas
a serem auferidas ao longo do tempo ou manifesta a
sustentabilidade do negócio pelo elevado número de usuários a
serem atendidos. Em projetos de interesse público, que envolvam
construção de obras, mas de fluxo de caixa incerto ou
insuficiente, de duas uma: a) o Poder Público integraliza todo o
investimento, contratando do setor privado a obra em regime de
empreitada (regime tradicional: risco integral do Estado); ou b) o
Poder Público compartilha riscos com o investidor privado,
assegurando subsídios ou a estabilidade no tempo de receitas
necessárias à amortização do investimento (regime das parcerias
público-privadas). É esta a concepção ideológica que permeia
todas as normas da Lei 11.079/2004.
Por isso, as duas modalidades de contratação de parcerias
público-privadas (conhecidas no continente europeu também pela
sigla PPP, Public-Private-Partnerships) apresentam caráter
subsidiário em relação às denominadas concessões comuns.
Somente parece legítima a adoção das novas modalidades quando
inviável, por manifesto desinteresse dos capitais privados e
insuficientes recursos de investimento do poder público, a adoção
da modalidade comum de concessões de serviço, de obra ou de
uso de bem público, bem como a contratação direta em regime de
empreitada. 4
O caráter subsidiário e extraordinário dos referidos contratos
de parceria é evidenciado também pelas exigências a serem
observadas pela Administração antes de decisão sobre a
celebração dos contratos, em especial a verificação da
“sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas
dos projetos de parceria” (art. 4º, VII), ao lado da observância da
“responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias”
Paulo Modesto
189
(art. 4º, IV) e “repartição objetiva de riscos entre as partes” (art. 4º,
VI). Por igual, a abertura do processo de licitação, que será sempre
na modalidade de concorrência, está condicionada a “autorização
da autoridade competente, fundamentada em estudo técnico que
demonstre a conveniência e a oportunidade da contratação,
mediante identificação das razões que justifiquem a opção
pela forma de parceria público-privada (art. 10, I, a). É necessário
também que a minuta do edital e do respectivo contrato seja
submetida à consulta pública, que deverá necessariamente
“informar a justificativa para a contratação” (art. 10, VI). Por fim, as
concessões patrocinadas em que mais de 70% (setenta por cento)
da remuneração do parceiro privado for paga pela Administração
Pública dependerão de autorização legislativa específica (art.
10, § 3o). A lei exige também a avaliação da solvência financeira
do ente público, considerando o comprometimento financeiro com
projetos de parceria público-privada em curso, antes da celebração
de novos contratos de parceria.5 Sem essas cautelas, o contrato
de parceria público-privada será ilegal e, em princípio, contrário ao
interesse público.
A opção pelo modelo das PPPs deverá exigir ao menos dois
fundamentos concretos: a ausência de recursos suficientes para
investimentos de interesse público e, cumulativamente, a
inviabilidade da transferência para a iniciativa privada do risco
econômico integral da prestação do serviço, precedido ou não de
obra pública.6 Essa é a razão para a identificação crescente das
PPPs, no plano internacional, a projetos de Iniciativa Financeira
Privada (Private Finance Initiative – “PFI”). Nestes tipos de ajuste,
o empreendedor privado assume a responsabilidade da concepção
dos projetos, da obtenção do financiamento, da construção e da
operação de obras e serviços de interesse público (contratos tipo
“design-build-finance-operate”), cabendo ao Estado fiscalizar a obra
e os serviços, prestar garantias que diminuam o risco do
190
Parcerias Público-Privadas (PPP)
investimento e, por vezes, o papel de cliente direto ou indireto
responsável pelo pagamento dos serviços prestados. No entanto,
nestes ajustes é possível prever também “o compartilhamento com
a Administração Pública de ganhos econômicos efetivos do
parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos
financiamentos utilizados pelo parceiro privado” (art. 5º, IX, da Lei
11.079/2004).
Os contratos de concessão tradicionais, denominados agora
também de “concessões comuns”, quando envolviam a prévia
construção de obra pública, em geral seguiam o modelo BOT
(contratos tipo “build, operate, transfer”: construir, operar, transferir).
Não oneravam, em princípio, os cofres públicos, mas o Estado
era responsável pela concepção do contrato e cobria todos os
riscos de manutenção da equação econômico-financeira. É ainda
hoje uma opção excelente, uma vez que não importa em aumento
do endividamento público, mas traduz modalidade que somente
produz resultados quando a taxa de retorno do investimento privado
é motivadora. Quando a taxa de retorno privado é baixa e a
vantagem social obtida com o ingresso de investimentos privados
é relevante, a parceria somente é possível fora dos marcos
tradicionais da concessão precedida de obra pública.
Nesses casos, como o Poder Público praticamente esgotou as
suas possibilidades de endividamento, ganhou relevo o papel dos
investidores como terceiros diretamente interessados no contrato
de parceria público-privada, prevendo a Lei diversos mecanismos
de garantia do investimento, com vistas a diminuir ao máximo
os riscos econômicos envolvidos no projeto e baratear ao máximo
o crédito necessário para o desenvolvimento da obra ou serviço.
Na Lei 11.079/2004 os investidores assumem papel de destaque
na relação jurídico administrativa, autorizando a lei que os contratos
de parceria público-privada poderão prever o direito de ingresso
dos financiadores no projeto, isto é, a “transferência do controle
Paulo Modesto
191
da sociedade de propósito específico”, responsável pela execução
da concessão, para os seus financiadores, com o manifesto
“objetivo de promover a sua reestruturação financeira e assegurar
a continuidade da prestação dos serviços, não se aplicando para
este efeito o previsto no inciso I do parágrafo único do art. 27 da
Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995” (art. 5º, § 2o, I). Autoriza
também a “possibilidade de emissão de empenho em nome
dos financiadores do projeto em relação às obrigações
pecuniárias da Administração Pública” e “a legitimidade dos
financiadores do projeto para receber indenizações por extinção
antecipada do contrato, bem como pagamentos efetuados pelos
fundos e empresas estatais garantidores de parcerias públicoprivadas” (art. 5º, § 2o, II e III). Por essas medidas, é óbvio, procurase proteger os financiadores ou credores finais do empreendimento
da atuação irregular ou ruinosa de empreendedores privados.
No entanto, como é baixa a credibilidade do Poder Público no
Brasil, a Lei 11.079/2004 trata de prever garantias objetivas dos
financiadores também em relação ao parceiro estatal, especialmente
quanto a atrasos deste no desembolso das contrapartidas públicas
do contrato. Por um lado, admite que a contraprestação da
Administração Pública seja feita de maneira variada, especialmente,
por “ordem bancária; cessão de créditos não tributários; outorga
de direitos em face da Administração Pública; ou outorga de
direitos sobre bens públicos dominicais” (art. 6º, I a IV). Por outro
lado, assegura que esses desembolsos sejam garantidos mediante
“vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV do art.
167 da Constituição Federal; instituição ou utilização de fundos
especiais previstos em lei; contratação de seguro-garantia com
as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder
Público; garantia prestada por organismos internacionais ou
instituições financeiras que não sejam controladas pelo Poder
Público; garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa
192
Parcerias Público-Privadas (PPP)
estatal criada para essa finalidade7; outros mecanismos admitidos
em lei.” (art. 8º). É lógico que essas garantias devem ser compatíveis
com a divisão de riscos estabelecida no contrato de parceria
público-privada, não podendo abranger os riscos que devem ser
cobertos pelos parceiros privados, sob pena de desvirtuamento
do contrato e violação direta das normas previstas na própria Lei
11.079/20048.
Os elementos expostos permitem a formulação de um conceito
operacional das parceiras público-privadas em sentido estrito:
contrato administrativo de longo prazo, celebrado em regime
de compartilhamento de riscos, remunerado após a efetiva
oferta de obra ou serviço pelo parceiro privado, responsável
pelo investimento, construção, operação ou manutenção da obra
ou do serviço, em contrapartida a garantias de rentabilidade e
exploração econômica asseguradas pelo Poder Público.
3. As Parcerias Público-Privadas nos Serviços de
Relevância Pública e as “Concessões Administrativas”
Nos serviços prestados pelo Estado não é possível,
frequentemente, reclamar contrapartidas dos usuários. Em algumas
hipóteses, há previsão constitucional de gratuidade na prestação
dos serviços, como ocorre na prestação de serviços de saúde
(art. 198, § 1º, CF) e de ensino (art. 206, IV, CF). Em outras
situações, há decisão política de não onerar os usuários do serviço
ou da obra pública (por exemplo, as concessões de rodovias com
“pedágio-sombra”, mecanismo pelo qual o Poder Público remunera
o concessionário segundo uma estimativa de utilização, não
havendo pagamento de pedágio pelo usuário direto do serviço).
Dessume-se da Lei 11.079/2004 que “concessão administrativa”
é a parceria público-privada sem participação do usuário na
remuneração do parceiro privado. Nos termos da dicção legal,
“concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços
Paulo Modesto
193
de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta,
ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação
e bens” (art. 2º, § 2o).
O novo instituto pode ser empregado tanto para a prestação
de serviços públicos quanto para prestação de serviços de
relevância pública, desde que o “concessionário” não seja
remunerado por usuários privados.
Figure-se a hipótese da União Federal pretender a instalação
de um hospital para atendimento gratuito e especializado a
portadores de cardiopatias em um Município carente. Não
dispondo a União de recursos orçamentários para a construção e
operação de um novo hospital no referido município, nem havendo
auto sustentabilidade econômica do projeto, pela incerteza da
demanda e pelo caráter gratuito do atendimento, nem sendo
possível a aquisição direta do serviço através de hospitais privados,
por ausência de prestadores locais, pode-se cogitar a utilização
do modelo da “concessão administrativa”, remunerando-se o
concessionário que assuma a construção e operação do novo
hospital mediante a previsão contratual de um percentual de
acréscimo aplicável sobre a tabela geral de procedimentos do
SUS ou de uma estimativa de utilização mínima de
procedimentos médicos. Em contrapartida aos investimentos e
obras exigidas para a construção do hospital, para aquisição das
instalações e manutenção dos serviços, além da remuneração paga
a todo empreendedor proprietário de hospital credenciado junto
ao SUS, o Poder Público asseguraria ao concessionário uma
remuneração estimada (de forma semelhante ao pedágiosombra) ou aplicaria sobre a efetiva utilização de usuários um
percentual adicional sobre a tabela de procedimentos padrões do
sistema único de saúde, com vistas à formação da parceria públicoprivada. O usuário não seria onerado com o custo de procedimentos
médicos, o Estado não precisaria arcar imediatamente com o
194
Parcerias Público-Privadas (PPP)
investimento de implantação do serviço e a amortização do capital
privado investido ocorreria ao longo do tempo, assumindo o
parceiro privado os riscos econômicos de demanda (maior ou
menor quantidade de usuários) e outros que lhe sejam assinalados
no vínculo que firmar com a Administração.9
A hipótese indica que a denominada “concessão administrativa”
não será, nos serviços de relevância pública, uma concessão de
obra pública nem um contrato de prestação de serviços tradicional.
Não será uma concessão de obra comum, pois os usuários não
serão onerados e o que se objetiva é a prestação adequada de
serviços gratuitos, livres à iniciativa privada, mas
desinteressantes para empreendedores privados sem garantias
especiais do Poder Público. Não será um contrato de prestação
de serviços tradicional, pois a obtenção dos recursos necessários
à própria prestação dos serviços será atribuída ao parceiro privado,
além da remuneração possuir um caráter aleatório, dependente
do fluxo futuro de clientes ou usuários dos serviços oferecidos, e
estar vinculada à efetiva prestação dos serviços.10 Além disso,
como antes dito, será um contrato extraordinário, de elevado valor,
prazo determinado e expresso compartilhamento de riscos entre
os parceiros público e privado, este último sendo remunerado
apenas após a efetiva disponibilização do serviço.
A concessão administrativa pode figurar como um contrato de
prestação de serviços peculiar, de risco ou de quantitativos
variáveis, quando não exigir a prévia execução de obra ou o
fornecimento e instalação de bens e a remuneração do empresário
privado decorrer da eficiência de seu desempenho na
execução das atividades contratadas. A hipótese é remota, dada
a proibição de celebração de contrato de parceria público-privada
cujo valor seja inferior a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais)
(art. 2º, § 4o, I, da Lei 11.079/2004). No entanto, não é impossível,
desde que o procedimento contratado seja de valor individual
Paulo Modesto
195
elevado, realizado em grande número e o prazo de prestação do
serviço permita uma estimativa de despesa pública dentro dos
marcos exigidos pela lei.
De ordinário, no entanto, salvo melhor juízo, a concessão
administrativa deve ser qualificada como um contrato
administrativo misto, híbrido, envolvendo um contrato de
prestação de serviços e uma concessão de uso ou de obra
pública, nomeadamente quando envolver a utilização de instalações
privativas do Poder Público ou a execução de obra ou o
fornecimento de bens.
A celebração de contratos de “concessão administrativa”
somente será justificada quando oferecer vantagens
socioeconômicas, sustentabilidade financeira, respeito aos
interesses e direitos dos destinatários dos serviços, repartição
objetiva de riscos entre as partes, ganhos de eficiência e
transparência nos procedimentos e decisões, como exige
expressamente o art. 4º. da Lei 11.079/2004. A concessão
administrativa exigirá, além disso, aperfeiçoamento dos processos
de fiscalização e monitoramento do desempenho do parceiro
privado, para diminuir o risco de desvirtuamento da nova figura
contratual e aproveitamento adequado da atividade desenvolvida
pelos parceiros, especialmente em atividades de relevância pública,
nas quais a qualidade do atendimento ao público é muito mais
importante do que o número dos procedimentos realizados.
4. Conclusão
O modelo das parcerias público-privadas não pode ser um
modismo, que afaste a aplicação dos contratos de concessão
comuns quando estes ainda são cabíveis. Não pode também se
voltar apenas para as atividades econômicas ou para o
financiamento da prestação de serviços públicos, frequentemente
sustentáveis ao longo do tempo, desde que garantias de
196
Parcerias Público-Privadas (PPP)
procedimento leal e honesto da Administração Pública sejam
asseguradas. Este modelo pode ser empregado, com sucesso e
talvez com maior urgência, também para financiar a ampliação de
serviços sociais do Estado, em atividades livres à iniciativa privada,
de expressiva relevância pública, mas desinteressantes para as
empresas sem garantias de rentabilidade mínimas adredemente
pactuadas e firmemente reconhecidas. Estas conclusões não são
expressões singelas de qualquer ideologia: decorrem do sistema
constitucional brasileiro e, por igual, das normas de cautela
previstas na Lei 11.079/2004.
Essas normas evidenciam o caráter subsidiário da nova
modalidade de parceria, voltada apenas para qualificar o contrato
de direito público, de caráter extraordinário, de longo prazo e
grande vulto, cujo valor seja equivalente ou exceda a R$
20.000.000,00 (vinte milhões de reais), possua prazo de vigência
igual ou superior a 5 (cinco) anos (mas não excedente a 35 anos) e
envolva compartilhamento de riscos entre o parceiro público e
o parceiro privado, inclusive no tocante à cobertura de riscos
contra caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea
econômica extraordinária. Para a celebração desses contratos
são exigidas cautelas especiais, como a comprovação da
“sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos
projetos de parceria” (art. 4º, VII), ao lado da observância da
“responsabilidade fiscal na celebração e execução das
parcerias” (art. 4º, IV) e “repartição objetiva de riscos entre as
partes” (art. 4º, VI). Por igual, a abertura do processo de licitação
está condicionada a “autorização da autoridade competente,
fundamentada em estudo técnico que demonstre a conveniência
e a oportunidade da contratação, mediante identificação das
razões que justifiquem a opção pela forma de parceria públicoprivada (art. 10, I, a). É necessário que a minuta do edital e do
respectivo contrato seja submetida à consulta pública, que deverá
Paulo Modesto
197
necessariamente “informar a justificativa para a contratação” (art.
10, VI). Por fim, as concessões patrocinadas em que mais de 70%
(setenta por cento) da remuneração do parceiro privado for paga
pela Administração Pública dependerão de autorização legislativa
específica (art. 10, § 3o). A lei exige também a avaliação da solvência
financeira do ente público, considerando o comprometimento
financeiro com projetos de parceria público-privada em curso, antes
da celebração de novos contratos de parceria.
A aplicação das parcerias público-privadas deve ser a última
opção do Poder Público, quando inexistentes os recursos
necessários para implantação de serviços e obras fundamentais
para o país e for inviável a transferência para o parceiro privado
do risco econômico de empreendimentos de interesse público.
Se não for assim, serviços auto sustentáveis serão contratados
pelo modelo das parcerias público-privadas, para melhor
conforto dos capitais privados, enquanto demandas sociais sem
auto sustentação continuarão esquecidas no quadro das
prioridades públicas.
As parcerias público-privadas desoneram o Poder Público do
desembolso imediato de recursos necessários à implementação
de serviços e obras, mas obrigam o acompanhamento e a
fiscalização detalhadas de todo o processo de prestação do
serviço e da execução da obra. Em especial, nas concessões
administrativas, o risco de demanda do parceiro privado deve ser
acompanhado para que não se converta em fraude real, ainda que
no futuro, para o Poder Público.
Celebradas com as cautelas devidas, as parcerias públicoprivadas podem oferecer nova dinâmica a serviços prestados com
patrocínio do Estado ao público, servir para superar limitações
orçamentárias na implementação de serviços públicos e serviços
de relevância pública, sem ampliar ainda mais o endividamento
público, assegurando hoje utilidades que talvez sem essas
198
Parcerias Público-Privadas (PPP)
iniciativas continuassem também simples promessas no futuro.
(Salvador, 21 de março de 2005).
5. Notas
1
Em trabalho anterior, após referir os dispositivos constitucionais citados, resumi:
“Outras disposições constitucionais referem de forma reflexa esta mesma forma de
colaboração de entidades particulares com a administração pública, a saber: (1)
igrejas (arts. 19, I - colaboração, de interesse público, com a União, Estados, Distrito
Federal e Municípios; art. 226, § 2, celebração do casamento religioso com efeito
civil; art. 213, escolas confessionais); (2) instituições privadas de educação (art. 150,
VI, c - imunidade tributária, desde que sem fins lucrativos); (3) instituições de assistência social beneficentes ou filantrópicas (art. 150, VI, c - imunidade tributária,
desde que sem fins lucrativos; art. 195, § 7º- isenção de contribuição para a seguridade
social); (3) terceiros e pessoas físicas e jurídicas de direito privado na área da saúde
(arts. 197 - declaração de relevância pública das ações e serviços de saúde pelos
mesmos executados); (4) organizações representativas da população (art. 30, X cooperação no planejamento municipal; art. 58, II - participação em audiências
públicas de comissões do Poder Legislativo); (5) serviços notariais e de registros
(arts. 236, e §§ - serviços privados mas por delegação do poder público); (6) entidades privadas em geral - art. 74, II (cabe ao sistema de controle interno integrado dos
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário a comprovação da legalidade e avaliação dos resultados, também quanto à eficácia e eficiência, da aplicação de recursos
públicos por entidades de direito privado ). Essas disposições revelam a extensão
que tomou a cidadania participativa e a parceria público-privado na Constituição de
1988, assinalando ainda algumas das diversas modalidades de estímulo utilizadas
pelo Estado para atrair e premiar a colaboração de entidades privadas em atividades de acentuada relevância social: (a) imunidade tributária (art.150, VI, “c”, art. 195,
§7º e art.240); (b) trespasse de recursos públicos (art. 204, I; art. 213; art. 216, §3º,
art.61,ADCT); (c) preferência na contratação e recebimento de recursos (art. 199,
§1º, in fine).(Cf. MODESTO, Paulo. Reforma Administrativa e Marco Legal das Organizações Sociais no Brasil: as dúvidas dos juristas sobre o modelo das Organizações
Sociais, Revista Trimestral de Direito Público, n. 16, 1996, p. 187-88).
2
Não afasto do conceito amplo de parceria a criação de entidades específicas,
integradas pelos parceiros, com vistas à realização de propósitos comuns (parceria
institucional). A entidade criada pode ser temporária, a exemplo de sociedades de
propósitos específicos (SPE), ou assumir formas jurídicas estáveis, como as sociedades de economia mista. Em sentido contrário, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO
exclui do conceito de parceria a hipótese de formação de nova pessoa jurídica:
“Neste livro, o vocábulo parceria é utilizado para designar todas as formas de sociedade que, sem formar uma nova pessoa jurídica, são organizadas entre os setores
público e privado, para a consecução de fins de interesse público. Nela existe a
colaboração entre o poder público e a iniciativa privada nos âmbitos social e econô-
Paulo Modesto
199
mico, para satisfação de interesses públicos, ainda que, do lado do particular, se
objetive o lucro. Todavia, a natureza econômica da atividade não é essencial para
caracterizar a parceria, como também não o é a idéia de lucro, já que a parceria pode
dar-se com entidades privadas sem fins lucrativos que atuam essencialmente na
área social e não econômica”.(Parcerias na Administração Pública, Editora Atlas, 3ª
ed., 1999, págs. 31/32).
3
Denomino serviços de relevância pública as atividades consideradas essenciais ou
prioritárias à comunidade, não titularizadas pelo Estado, cuja regularidade, acessibilidade e disciplina transcendem necessariamente à dimensão individual, obrigando
o Poder Público a controlá-las, fiscalizá-las e incentivá-las de modo particularmente
intenso. Não há aqui exigência de aplicação obrigatória de todas as obrigações de
serviço público tradicionalmente reconhecidas na legislação. Nem titularidade exclusiva desses interesses pelo Estado, admitindo-se a livre atuação privada. Mas a
lei ordinariamente impõe que a fiscalização e regulação dessas atividades pelo
Poder Público seja minudente e tutelar, sendo assegurando ainda o respeito a
princípios constitucionais, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana.
Na Constituição brasileira há explícita referência aos serviços de relevância pública em duas normas: art. 129, II e art. 197. Na primeira norma, o conceito é empregado em sentido subjetivo
subjetivo, para referir as entidades privadas que prestam serviço de
relevância pública. Na segunda, o conceito é empregado em sentido objetivo
objetivo, para
referir as ações e os serviços de saúde, seja quando prestados pelo Poder Público,
seja quando prestados por pessoa física ou jurídica de direito privado. As disposições são diretas e de simples compreensão:
“Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público:
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância
pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;”
“Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle,
devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros, por pessoa
física ou jurídica de direito privado”
É certo também que os serviços sociais referidos, quando desempenhadas pelo
Poder Público como encargo, obrigação, submetem-se ordinariamente ao regime
de direito público
público, quer por ser este o regime jurídico comum e normal da função
administrativa do Estado, quer por expressa decisão legal. Por essa razão, diversos autores tendem a considerar essas atividades, quando prestadas pelo Estado,
serviços públicos. Mas, sem embargo dessa qualificação, essas atividades não seriam serviços públicos quando desempenhados por particulares. Porém, como vimos antes, rotular de serviço público essas atividades, quando exercidas pelo Estado, é subordinar a natureza jurídica de uma atividade à qualidade do sujeito que
a exercita, é adotar um conceito subjetivo, o que é incoerente com a tese predominante na doutrina brasileira de se buscar a identidade própria da atividade de
200
Parcerias Público-Privadas (PPP)
serviço público na identificação do regime jurídico especial da atividade
atividade, não
do sujeito que por ela responde.
A conseqüência pragmática deste entendimento é ambígua: por um lado, a analogia
permite aparentemente ampliar as garantias dos administrados quando aplicada a
pessoas jurídicas estatais de direito privado (tese problemática, ante a ausência
de imposição constitucional do regime de direito público a todo esse conjunto de
atividades);; por outro lado, restringe a compreensão dos compromissos públicos da
mesma atividade quando exercida por particulares (pois, neste caso
caso, seriam simples
atividades econômicas
econômicas). Seja como for, mesmo os autores que dilatam a aplicação
do conceito de serviço público para atividades sem titularidade do Estado reconhecem que, quando os particulares atuam, com ou sem fins lucrativos, por direito
próprio (iure propio), não se sujeitam ordinariamente ao regime do serviço público
ou do direito administrativo, mas ao regime jurídico típico ou predominante das
pessoas de direito privado, o que muitas vezes lhes confere maior agilidade ou
presteza no atendimento dos seus objetivos sociais.
Os serviços de relevância pública não são serviços públicos, mas também não são
atividades de exploração econômica. Constituem zona jurídica intermediária, rol de
atividades que dispensa título especial de autorização tanto para o Estado quanto
para os particulares, mas que cumpre papel relevante no fornecimento de utilidade
vitais para os cidadãos, sendo especialmente protegida na Constituição Federal
xecução direta de
(v.g., art. 129, II). Trata-se de domínio em que a atividade de e
execução
serviços e a atividade de fomento administrativo
administrativo, mediante outorga de títulos
especiais, apoio financeiro e acordos de parceria encontra lugar privilegiado para
coexistir, rompendo-se em definitivo a dicotomia de soma zero que isolava a atuação
dos particulares e do Estado em zonas distintas e mutuamente excludentes
4
O caráter subsídiário de contratações pela modalidade PPP é ressaltado também
em alguns relatórios internacionais. A Comissão incumbida de estudar os diversos
contratos de PPP celebrados nos países da União Européia, com vistas à elaboração do guia “Diretrizes para Parcerias Público-Privadas bem-sucedidas”, disponível
na Internet (http://europa.eu.int/comm/regional_policy/sources/docgener/guides/
PPPguide.htm), acentuou: “Entretanto, embora as PPPs possam apresentar diversas vantagens, deve ser também lembrado que esses esquemas são complexos
para projetar, implementar e administrar. Em nenhuma hipótese elas constituem a
única opção ou a opção preferencial, e devem ser consideradas apenas se puder
ser demonstrado que elas poderão gerar valor adicional em comparação a outras
abordagens, se existir uma estrutura de implementação efetiva e se os objetivos de
todas as partes puderem ser atingidos com a parceria.” (pág. 04).
5
Para a União: ”Art. 22. A União somente poderá contratar parceria público-privada
quando a soma das despesas de caráter continuado derivadas do conjunto das
parcerias já contratadas não tiver excedido, no ano anterior, a 1% (um por cento) da
receita corrente líquida do exercício, e as despesas anuais dos contratos vigentes,
Paulo Modesto
201
nos 10 (dez) anos subseqüentes, não excedam a 1% (um por cento) da receita
corrente líquida projetada para os respectivos exercícios”. Por vía oblíqua, para os
Estados e Municípios: “Art. 28. A União não poderá conceder garantia e realizar
transferência voluntária aos Estados, Distrito Federal e Municípios se a soma das
despesas de caráter continuado derivadas do conjunto das parcerias já contratadas
por esses entes tiver excedido, no ano anterior, a 1% (um por cento) da receita
corrente líquida do exercício ou se as despesas anuais dos contratos vigentes nos
10 (dez) anos subseqüentes excederem a 1% (um por cento) da receita corrente
líquida projetada para os respectivos exercícios.”
6
As concessões de obra ou serviço público são caracterizadas no Brasil como
contratos administrativos em que o risco é exclusivamente do concessionário
concessionário.
Essa concepção, no entanto, é antes um mito (ou um “mantra dogmático”, um
fraseado repetido sistematicamente, sem reflexão ou crítica) do que um dado da
ordem jurídica positiva: o direito brasileiro reduz o conceito de álea ordinária –
conjunto de riscos que o concessionário deve suportar – e amplia ao máximo a
proteção do concessionário em face da álea extraordinária (nas duas modalidades,
álea administrativa e álea econômica), obrigando o Estado a assumir diversos riscos
durante o contrato de concessão de serviço ou de obra pública. A teoria do fato do
princípe nos contratos de concessão, por exemplo, possui entre nós um alcance
muito mais amplo do que no direito francês: no direito brasileiro, de ordinário, o
Estado cobre com exclusividade os desequilíbrios contratuais decorrentes de medidas gerais por ele impostas que afetem indistintamente toda a coletividade (como os
tributos), o que não ocorre, como regra, no direito francês. Por igual, entre nós a
noção de equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão tem sido extremamente generosa para o concessionário, pois diante de fatos imprevistos, excepcionais, que afetem a economia do contrato têm-se invocado a responsabilidade
integral do Estado pela cobertura destes riscos, enquanto no direito francês os
prejuízos decorrentes de fatos imprevisíveis e anômalos (álea econômica) são partilhados entre o concedente e o concessionário. Essa dupla redução de riscos para
o concessionário é extraída, pela doutrina majoritária, do disposto no art. 37, XXI, da
Constituição Federal, na parte que estatui que as obras e serviços serão contratados “com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta”. Sem embargo dessas garantias do concessionário, que
nada mais são do que assunção pelo Estado de parte dos riscos da concessão, a
Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, define a concessão de obra ou serviço público
como contrato em que o concessionário deve fazer prova de possuir capacidade
para executar a obra ou serviço “por sua conta e risco” (art. 2º, II, III e IV). A Lei
11.079/2004 (Lei das PPPs) foi mais austera: impôs a “repartição objetiva de riscos
entre as partes” (art. 4º, VI), inclusive os “referentes a caso fortuito, força maior, fato
do príncipe e álea econômica extraordinária (art. 5º, III). Não tenho dúvida que
muitos autores inquinarão o novo dispositivo de inconstitucional, por afronta ao
precitado art. 37, XXI, da Constituição Federal. Mas considero que esta será uma
leitura apressada (ou interessada): o dispositivo constitucional obriga que sejam
202
Parcerias Público-Privadas (PPP)
mantidas as condições efetivas da proposta, mas não impede que o legislador
determine aos particulares que, na proposta, contemplem objetiva catalogação dos
riscos que estão dispostos a assumir em relação a situações típicas de caso fortuito,
força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária. O conceito de “condições efetivas da proposta” não deve atinar apenas com o preço e as tarefas assumidas: deve encerrar, ao menos nos contratos de parceria público-privada, um objetivo catálogo de situações que indique quais os riscos serão partilhados entre os
parceiros e quais os riscos serão de responsabilidade exclusiva de cada parte. É o
início do fim dos contratos administrativos elípticos e mal ajustados, de poucas
páginas, que asseguram todas as garantias possíveis ao concessionário e deixam o
Estado sem clareza sobre a extensão do risco efetivo assumido pelo concessionário.
7
A Lei 11.079/2004 cuida de constituir, desde logo, no plano da União, um Fundo
Garantidor de Parceiras Público-Privadas (FGP), com patrimônio inicial autorizado
de R$ 6.000.000.000,00 (seis bilhões de reais), com vistas a “prestar garantia de
pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais
em virtude das parcerias de que trata esta Lei” (art. 16).
8
Nesta direção, a disciplina do Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas
(FGP) estabece: “Art. 18. As garantias do FGP serão prestadas proporcionalmente
ao valor da participação de cada cotista, sendo vedada a concessão de garantia
cujo valor presente líquido, somado ao das garantias anteriormente prestadas e
demais obrigações, supere o ativo total do FGP. (...) § 3o A quitação pelo parceiro
público de cada parcela de débito garantido pelo FGP importará exoneração proporcional da garantia; § 4o No caso de crédito líquido e certo, constante de título
exigível aceito e não pago pelo parceiro público, a garantia poderá ser acionada
pelo parceiro privado a partir do 45 o (quadragésimo quinto) dia do seu vencimento;
§ 5o O parceiro privado poderá acionar a garantia relativa a débitos constantes de
faturas emitidas e ainda não aceitas pelo parceiro público, desde que, transcorridos
mais de 90 (noventa) dias de seu vencimento, não tenha havido sua rejeição expressa por ato motivado; § 6o A quitação de débito pelo FGP importará sua subrogação
nos direitos do parceiro privado.”
9
Segundo o art. 6o, parágrafo único, da Lei 11.079/2004, “o contrato poderá prever
o pagamento ao parceiro privado de remuneração variável vinculada ao seu desempenho, conforme metas e padrões de qualidade e disponibilidade definidos no
contrato”. Embora disciplinada como mera faculdade para os contratos de parcerias
público-privadas em geral, a previsão de remuneração variável deve ser considerada a forma preferencial de remuneração dos parceiros privados nas concessões
administrativas, tendo em vista distanciar a nova forma de parceria dos contratos de
fornecimento de mão-de-obra, fornecimento e instalação de equipamentos ou a
mera execução de obra pública.
10
Recorde-se que a Lei 8.666 veda, expressamente, nos contratos para realização
de obras ou a prestação de serviços incluir no objeto da licitação a obtenção de
recursos financeiros pra a execução do contrato, ressalvados apenas os empreen-
Paulo Modesto
203
dimentos executados e explorados sob o regime de concessão (art. 7º, §3º), bem
como a inclusão, no objeto da licitação, de fornecimento de materiais e serviços sem
previsão de quantidade ou cujos quantitativos não correspondam às previsões reais
do projeto básico ou executivo (art. 7º, § 4º). Estas vedações quardam coerência
com a exigência de programação integral dos custos atuais e finais das obras e
serviços contratados (art. 8º), mas são inviáveis de serem cumpridas em parcerias
público-privadas, cuja matriz conceitual é exatamente a viabilização de obras e
serviços com financiamento privado, compartilhamento de riscos e com remuneração vinculada a obrigações de resultado.
204
Parcerias Público-Privadas (PPP)
REFLEXÕES SOBRE O PÓS-POSITIVISMO
JURÍDICO
Ricardo Maurício Freire Soares
Doutorando e Mestre em Direito (UFBA). Professor dos cursos
de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito da UFBA,
Faculdade Baiana de Direito, Faculdade de Direito da
UNIFACS e da FTE. Professor do Curso JUSPODIVM de preparação para carreira jurídica e da Rede Telepresencial LFG.
Pesquisador-convidado da Università degli studi di Roma (Itália). Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia. E-mail: [email protected]
Sumário: 1. Introdução. 2. A crise do positivismo jurídico. 3. Pós-positivismo e
direito principiológico. 4. Caracteres da principiologia jurídica. 5. A funcionalidade
dos princípios jurídicos. 6. Conclusão. Referências
1. Introdução
Sem a pretensão de esgotar a complexidade e a vastidão do
tema, o presente trabalho versa sobre o pós-positivismo jurídico.
Inicialmente, será examinada a crise do positivismo jurídico, que
representou a importação do positivismo filosófico para o mundo
do Direito, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica objetiva,
neutra e formalista, esvaziando-se o debate sobre a legitimidade e
a justiça do sistema jurídico.
Em seguida, verificar-se-á como a crise do positivismo jurídico
cede espaço para a emergência de um conjunto amplo e difuso
de reflexões acerca da função e interpretação do Direito, que
costuma ser definido como pós-positivismo jurídico, reintroduzindo
as noções de justiça e legitimidade para a compreensão axiológica
e teleológica do sistema jurídico.
Outrossim, será vislumbrada como a emergência do movimento
pós-positivista permite a superação do reducionismo do fenômeno
205
jurídico a um sistema formal e fechado de regras legais, abrindo
margem para o tratamento axiológico do direito e a utilização efetiva
dos princípios jurídicos como espécies normativas que corporificam
valores e finalidades.
Posteriormente, serão estudados como os princípios jurídicos
apresentam morfologia e estrutura normativa diversas daquelas
verificadas no exame das regras de direito e como realizam múltiplas
funções no ordenamento jurídico.
2. A crise do positivismo jurídico
O positivismo foi fruto de uma idealização do conhecimento
científico, baseada na crença de que os múltiplos domínios da
atividade intelectual pudessem ser regidos por leis naturais,
invariáveis e independentes da vontade humana.
Nesse contexto, como bem ressalta Luís Barroso (2003, p. 320,
a ciência desponta como único conhecimento verdadeiro, depurado
de indagações teológicas ou metafísicas. O conhecimento
científico é considerado objetivo, porque fundado no
distanciamento entre sujeito e objeto e na neutralidade axiológica
do sujeito cognoscente, assegurada pelo método descritivo,
baseado na observação e na experimentação.
O positivismo jurídico representou, assim, a importação do
positivismo filosófico para o mundo do Direito, na pretensão de
criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às
ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica apartou
o Direito da moral, concebendo o fenômeno jurídico como uma
emanação imperativa e coativa do Estado. A ciência do Direito
passou a fundar-se em juízos de fato e não em juízos de valor, que
representam uma tomada de posição diante da realidade,
esvaziando o debate sobre a legitimidade e a justiça.
Segundo Norberto Bobbio (1999, p.131-134), o positivismo
jurídico, como típica expressão da modernidade, pode ser
206
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
compreendido nas seguintes dimensões complementares: a) como
um certo modo de abordagem do direito; b) como uma certa teoria
do direito; c) como uma certa ideologia do direito.
O primeiro problema diz respeito ao modo de abordar o direito.
Para o positivismo jurídico, o Direito é um fato e não um valor. O
jurista deve estudar o direito, do mesmo modo que o cientista
estuda a realidade natural, vale dizer, abstendo-se de formular juízos
de valor. Deste comportamento deriva uma teoria formalista da
validade do direito. Com efeito, a validade do direito se funda em
critérios que concernem unicamente à sua estrutura formal,
prescindindo do seu conteúdo ético. Neste sentido, o debate sofre
a justiça sofre um profundo esvaziamento ético, visto que a
formalização do atributo da validez normativa afasta o exame da
legitimidade da ordem jurídica.
No segundo aspecto, encontramos algumas teorizações do
fenômeno jurídico. O positivismo jurídico, enquanto teoria, baseiase em seis concepções fundamentais: a) teoria coativa do direito,
em que o direito é definido em função do elemento da coação,
pelo que as normas valem por meio da força; b) teoria legislativa
do direito, em que a lei figura como a fonte primacial do direito; c)
teoria imperativa do direito, em que a norma é considerada um
comando ou imperativo; d) teoria da coerência do ordenamento
jurídico, que considera o conjunto das normas jurídicas, excluindo
a possibilidade de coexistência simultânea de duas normas
antinômicas; e) teoria da completitude do ordenamento jurídico,
que resulta na afirmação de que o juiz pode sempre extrair das
normas explícitas ou implícitas uma regra para resolver qualquer
caso concreto, excluindo a existência de lacunas no direito; f) teoria
da interpretação mecanicista do direito, que diz respeito ao método
da ciência jurídica, pela qual a atividade do jurista faz prevalecer o
elemento declarativo, sobre o produtivo ou criativo do direito.
Ricardo Maurício Freire Soares
207
No terceiro aspecto, trata-se de uma ideologia do direito que
impõe a obediência à lei, nos moldes de um positivismo ético. O
positivismo como ideologia apresentaria uma versão extremista e
uma moderada. A versão extremista caracteriza-se por afirmar o
dever absoluto de obediência à lei, enquanto tal. Tal afirmação
não se situa no plano teórico, mas no plano ideológico, pois não
se insere na problemática cognoscitiva referente à definição do
direito, mas numa dimensão valorativa, relativa à determinação do
dever das pessoas. Assim como o jusnaturalismo, o positivismo
extremista identifica ambas as noções de validade e de justiça da
lei. Enquanto o primeiro deduz a validade de uma lei da sua justiça,
o segundo deduz a justiça de uma lei de sua validade. O direito
justo se torna uma mera decorrência lógica do direito válido. Por
outro lado, a versão moderada afirma que o direito tem um valor
enquanto tal, independente do seu conteúdo, mas não porque,
como sustenta a versão extremista, seja sempre por si mesmo
justo, pelo simples fato de ser válido, mas porque é o meio
necessário para realizar um certo valor, o da ordem. Logo, a lei é a
forma mais perfeita de manifestação da normatividade jurídica, visto
que se afigura como a fonte do direito que melhor realiza a ordem.
Sendo assim, o positivismo legalista concebia o Direito moderno
como um ordenamento dessacralizado e racional. O sistema
jurídico jurídico passou a ser entendido como um sistema fechado,
axiomatizado e hierarquizado de normas. Desta concepção
moderna defluiam as exigências de acabamento, plenitude,
unicidade e coesão do direito, sendo negada a existência de lacunas
e de antinomias jurídicas.
Com o advento da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, na
primeira metade do século XX, o positivismo jurídico se converte
numa variante de normativismo lógico, aprofundando o
distanciamento da ciência do direito em face das dimensões fática
e valorativa do fenômeno jurídico. Sendo assim, ao isolar o direito
208
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
dos fatos sociais, Hans Kelsen rejeita o tratamento científico da
efetividade da ordem jurídica. Por sua vez, ao apartar o direito da
especulação axiológica sobre a justiça, expurga a compreensão
da legitimidade da ordem jurídica do campo do conhecimento
jurídico.
Como bem assevera Orlando Gomes (2003, p. 57), a teoria
pura só se ocupa do direito tal como é, até porque é uma teoria
do direito positivo, pelo que o valor justiça lhe é indiferente. Toda
valoração, todo o juízo sobre o Direito positivo deve ser afastado.
O fim da ciência jurídica não é julgar o direito positivo, mas, tãosó, conhecê-lo na sua essência e compreendê-lo mediante a análise
de sua estrutura
Privilegia-se tão-somente a validade da norma jurídica, verificada
através do exame imputativo da compatibilidade vertical da norma
jurídica com os parâmetros de fundamentação/derivação material
e, sobretudo, formal que são estabelecidos pela normatividade
jurídica superior. Sendo assim, norma jurídica validade é aquela
produzida de acordo com o conteúdo (o que deve ser prescrito), a
competência (quem deve prescrever) e o procedimento (como deve
ser prescrito) definidos pela norma jurídica superior, dentro da
totalidade sistêmica hierarquizada e escalonada a que corresponde
a pirâmide normativa. O sistema jurídico estaria, em última análise,
fundamentado numa norma hipotética fundamental (grundnorm),
como pressuposto lógico-transcendental do conhecimento jurídico,
cuja função seria impor o cumprimento obrigatório do direito
positivo, independentemente da sua eficácia e da sua legitimidade
enquanto direito justo.
Sendo assim, Hans Kelsen (2003, p. 16) se dedica a examinar
o problema da justiça no plano exclusivamente ético, fora, portanto,
dos limites científicos de sua Teoria Pura do Direito. Para ele, a
ciência do direito não tem de decidir o que é justo, isto é, prescrever
como devemos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo
Ricardo Maurício Freire Soares
209
que de fato é valorado como justo, sem se identificar a si própria
com um destes juízos de valor.
Para ilustrar a sua tese de que a fé não garante certeza científica
e que a justiça é um dado variável, desenvolve estudo das sagradas
escrituras, fonte divina que deveria oferecer um conceito absoluto
ou perene do justo. Demonstra algumas supostas incongruências
entre o Antigo e o Novo Testamento. Existe, por exemplo, franca
oposição entre o princípio da retaliação ensinado por Javé (Antigo
Testamento) e a lei do amor e do perdão ensinada por Jesus Cristo
(Novo Testamento). Acentua ainda a diferença entre a lei mosaica
(decálogo), a doutrina crística (pregações de Jesus Cristo) e os
ensinos paulianos (cartas e exortações). Kelsen critica ainda o
idealismo platônico, pela falta de solidez de seu conceito de justiça,
transformado num valor transcendente e, pois, destituído de
conteúdo material e humano, bem como o pensamento aristotélico,
por buscar uma matematização da justiça e não discutir a justiça
na amizade. Ademais, objeta as teses preconizadas pelo
jusnaturalismo, pela fluidez do conceito de natureza como
fundamento para a justiça.
O cepticismo axiológico da teoria pura do direito se estende,
portanto, para a filosofia kelseniana da justiça, para a qual não
existe, nas questões valorativas, qualquer objetividade possível,
negando qualquer alternativa de racionalidade e consenso em
questão de valor. Sustenta-se um relativismo axiológico ao afirmar
que, no exame do problema da justiça, de um ponto de vista
racional-científico, conviveriam muitos ideais de justiça
contraditórios entre si, nenhum dos quais excluindo a possibilidade
de um outro conceito do justo.
Para Kelsen (1994, p. 76), uma teoria dos valores relativista não
significa – como muitas vezes erroneamente se entende – que não
haja qualquer valor e, especialmente, que não haja qualquer justiça.
Significa, sim, que não há valores absolutos, mas apenas valores
210
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
relativos, que não existe uma justiça absoluta mas apenas uma
justiça relativa, que os valores que nós constituímos através dos
nossos atos produtores de normas e pomos na base dos nossos
juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir
a possibilidade de valores opostos.
Enquanto teoria relativista dos valores, também o positivismo
lógico fornece critérios para a apreciação ou valoração do direito
positivo. Apenas sucede que estes critérios têm um caráter relativo,
negando-se, assim, o tratamento racional da justiça, pois, na visão
kelseniana, racionalizar a qualificação de uma conduta como devida,
sob o ponto de vista de seu valor intrínseco, implicaria negar a
diferença entre a lei físico-matemática e a lei ética.
Ao tentar definir o que seja justiça, Kelsen (2001, p. 25) assinala
que, de fato, não sabe e não pode dizer o que seja a justiça
absoluta. Sendo assim, satisfaz-se com uma justiça relativa, só
podendo declarar o que significa justiça para ele próprio. Uma vez
que a ciência é sua profissão, propõe uma justiça sob cuja proteção
a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade.
Para ele, trata-se da justiça da liberdade, da paz, da democracia e
da tolerância.
A teoria pura do direito, no entanto, não nega lugar aos valores
como integrantes da experiência jurídica e reconhece sua presença
na prática dos juristas. Isto porque a moldura da norma superior
combina vinculação e indeterminabilidade do conteúdo da norma
inferior, implicando a necessidade de interpretação. Diferentemente
do que ocorre com a interpretação doutrinária, a interpretação
autêntica, de responsabilidade do órgão de aplicação do direito
no exercício de sua competência normativa, é produzida como ato
de vontade. Enquanto aquela procura apontar as alternativas
hermenêuticas abertas pela indeterminação lingüística do texto
normativo, a interpretação autêntica permite que o aplicador do
Ricardo Maurício Freire Soares
211
direito realize escolha valorativa, o que escapa do domínio da
ciência jurídica.
O positivismo jurídico sujeitou-se, contudo, à crítica crescente,
visto que jamais foi possível a transposição totalmente satisfatória
dos métodos das ciências naturais para o campo próprio das
ciências humanas. O Direito, ao contrário de outros domínios do
saber, não comporta uma postura puramente descritiva da realidade,
visto que não é um dado, mas uma criação social e cultural, pelo
que o ideal positivista de objetividade e neutralidade é insuscetível
de realizar-se no plano jurídico.
Essa é razão pela qual a decadência do positivismo jurídico
costuma ser emblematicamente associada à derrota do fascismo
na Itália e do nazismo na Alemanha, porquanto tais movimentos,
em nome da legalidade vigente, promoveram inúmeras injustiças e
ofensas à dignidade da pessoa humana. Ao cabo da segunda
grande guerra, as idéias de um ordenamento jurídico desvinculado
do problema da legitimidade, porque indiferente a valores éticopolíticos, bem como de uma legislação formalista e afastada do
valor supremo da justiça, não mais gozavam do reconhecimento
pela comunidade jurídica ocidental.
Ao constatar os mencionados limites do positivismo jurídico,
Karl Engisch (1960, p.74) critica a redução normativista operada
pela doutrina do direito positivo, afirmando que a ordem jurídica
deve ser entendida como um conjunto de valores, através dos quais
os juristas elaboram juízos axiológicos sobre a justiça dos
acontecimentos e das condutas humanas.
Em face do problema da fundamentação do direito justo, o
positivismo jurídico, em suas mais diversas manifestações, revela
propostas limitadas e insatisfatórias. Isto porque a identificação
entre direito positivo e direito justo e a excessiva formalização da
validez normativa não propiciam uma compreensão mais adequada
das íntimas relações entre direito, legitimidade e justiça.
212
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
Decerto, o positivismo legalista desemboca numa ideologia
conservadora que ora identifica a legalidade com o valor-fim da
justiça, em face da crença na divindade do legislador, ora concebe
a ordem positivada pelo sistema normativo como valor-meio
suficiente para a realização de um direito justo.
Por sua vez, o positivismo lógico da Teoria Pura do Direito abdica
o tratamento racional do problema da justiça, ao afastar quaisquer
considerações fáticas e, sobretudo, valorativas do plano da ciência
jurídica, de molde a assegurar os votos de castidade axiológica do
jurista. A busca do direito justo passa a depender das inclinações
político-ideológicas de cada indivíduo, relegando ao campo do
cepticismo e do relativismo a compreensão do direito justo.
Com a crise do positivismo jurídico, abriu-se espaço para a
emergência de um conjunto amplo e difuso de reflexões acerca da
função e interpretação do Direito, que costuma ser definido como
pós-positivismo jurídico, reintroduzindo as noções de justiça e
legitimidade para a compreensão axiológica e teleológica do
sistema jurídico.
3. Pós-positivismo e direito principiológico
Decerto, o reexame do modelo positivista tem ocupado cada
vez mais espaço nas formulações da ciência do direito. A
constatação de que o direito não se resume a um sistema fechado
de regras legais abriu margem para que fossem oferecidos novos
tratamentos cognitivos ao fenômeno jurídico. Buscou-se, então,
conceber-se a ordem jurídica como um sistema plural, dinâmico e
aberto aos fatos e valores sociais. Deste modo, foi se erguendo
um novo paradigma jurídico, denominado por muitos autores como
“pós-positivismo”.
Podem ser elencados, no campo teórico pós-positivista, dois
pilares básicos: a proposta de uma nova grade de compreensão
das relações entre direito, moral e política; e o desenvolvimento
Ricardo Maurício Freire Soares
213
de uma crítica contundente à concepção formalista do positivismo
jurídico. Em relação a este segundo aspecto, interessa frisar a
emergência de um modelo de compreensão principiológica do
direito, que confere aos princípios jurídicos uma condição central
na estruturação do raciocínio do jurista, com reflexos diretos na
interpretação e aplicação da ordem jurídica.
Divisando a emergência desta nova concepção, sustenta Eduardo
de Enterría (1986, pp. 30-34) que todo ele está conduzindo o
pensamento jurídico ocidental a uma concepção substancialista e
não formal de Direito, cujo ponto de penetração, mais que uma
metafísica da justiça ou uma axiomática da matéria legal, que se
encontra nos princípios gerais do direito, expressão desde logo
de uma justiça material, mas especificada tecnicamente em função
de problemas jurídicos concretos. Agora, a ciência jurídica não
tem outra missão senão aquela de revelar e descobrir, através de
conexões de sentido cada vez mais profundas e ricas, mediante a
construção de instituições e a integração respectiva de todas elas
em conjunto, os princípios gerais sobre os quais se articula e deve,
por conseguinte, expressar-se a ordem jurídica.
Dentro do pensamento jurídico pós-positivista, sem embargo
de outras referências importantes, adquirem relevo as contribuições
de expoentes como Chaïm Perelman, Ronald Dworkin e Robert
Alexy, cujas concepções devem ser examinadas no presente
trabalho, ainda que numa apertada síntese.
No tocante a Chaïm Perelman, sua obra se insurge contra as
conseqüências de uma abordagem positivista no campo da
argumentação racional dos valores. O filósofo belga critica o
modelo teórico que privilegia apenas a demonstração e o raciocínio
lógico-matemático como caminhos para a obtenção da verdade,
o que acaba por relegar ao voluntarismo todas as opções
axiológicas do indivíduo.
214
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
Ao refutar a concepção moderna de razão, Perelman busca
enfatizar meios de prova distintos do modelo dedutivo-silogístico.
A valorização de outros meios de produzir convencimento reclama
a elaboração de uma teoria da argumentação, capaz de descortinar
um caminho diferente da demonstração, pedra de toque do
funcionamento da lógica cartesiana tradicional.
Segundo ele, é necessário potencializar a dimensão retórica do
direito e investigar o modo de desenvolvimento racional da
argumentação, perquirindo as técnicas capazes de permitir a
adesão de teses sustentadas perante um determinado auditório.
Partindo da distinção cunhada por Aristóteles entre o raciocínio
dialético, que trata do verossímil e serve para embasar decisões, e
o raciocínio analítico, que abrange o necessário e sustenta
demonstrações, Perelman situa o raciocínio jurídico no primeiro
grupo, ressaltando a sua natureza argumentativa.
Sendo assim, as premissas do raciocínio juridico não são
previamente dadas, mas, em verdade, são escolhidas pelo orador.
O interlocutor que as elege (v.g., o advogado, o promotor, o juiz)
deve, de início, buscar compartilhá-las com o seu auditório (e.g.,
juiz, tribunal, júri, opinião pública), pois, em seu cotidiano
profissional, o operador do direito é instado a formular argumentos
a fim de convencer o interlocutor da tese sustentada.
Perelman constata, assim, a importância da retórica no âmbito
do conhecimento jurídico, com o que se opõe a algumas premissas
básicas do positivismo lógico, tais como a rígida separação entre
o direito e a moral, com a conseqüente negação da normatividade
dos princípios jurídicos.
Neste diapasão, refere Chaïm Perelman (1999, pp.395-396) que,
cada vez mais, juristas vindos de todos os cantos do horizonte
recorrem aos princípios gerais do direito, que poderíamos
aproximar do antigo jus gentium e que encontrariam no consenso
Ricardo Maurício Freire Soares
215
da humanidade civilizada seu fundamento efetivo e suficiente. O
próprio fato destes princípios serem reconhecidos, explícita ou
implicitamente, pelos tribunais de diversos países, mesmo que não
tenham sido proclamados obrigatórios pelo poder legislativo, prova
a natureza insuficiente da construção positivista que faz a validade
de toda a regra do direito depender de sua integração num sistema
hierarquizado de normas.
Com efeito, Perelman observa que, na prática da decisão judicial,
ao contrário do que defendiam os positivistas, são introduzidas
noções pertencentes à moralidade, mediante o uso da
principiologia. Sendo assim, os princípios jurídicos figuram, então,
como topoi (lugares-comuns), aos quais o juiz pode recorrer como
premissas, compartilhadas pela comunidade jurídica, para a
justificação racional de um ato decisório. A utilização destes topoi,
no processo de argumentação judicial, remete à necessidade de
uma escolha valorativa do hermeneuta, que se orienta pelo potencial
justificador e racionalizador para a tomada de uma decisão.
Para Perelman, não basta ter princípios gerais como ponto inicial
de uma argumentação, sendo necessário escolhê-los de um modo
tal que sejam aceitos pelo auditório, bem como formulá-los e
interpretá-los, para poder adaptá-los ao caso de aplicação
pertinente. O que importa é causar a adesão do auditório composto
pela comunidade jurídica, através do uso dos topoi mais
persuasivos para o deslinde do caso concreto, através da força
dos melhores argumentos, o que se potencializa com o uso da
principiologia jurídica.
De outro lado, Ronald Dworkin tem desenvolvido suas reflexões
sobre os princípios jurídicos a partir de um diálogo com outras
doutrinas positivistas, mormente o normativismo lógico de Hart,
no contexto dos sistemas de inspiração anglo-saxônica (common
law). Dworkin não compartilha do entendimento de que, nos
chamados hard cases, o julgador pratica um mero ato volitivo,
216
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
exteriorizando suas convicções particulares e arbitrárias de justiça.
Segundo ele, os princípios podem ser utilizados como critérios
racionais para uma interpretação reconstrutiva da ordem jurídica e
a conseqüente tomada de uma decisão, porque objetivamente
inseridos no sistema jurídico.
Para Dworkin, é indispensável reabilitar a racionalidade moralprática no campo da metodologia jurídica, de molde a controlar a
decisão judicial. Para tanto, critica a estreita visão positivista que
considera o direito como um sistema composto exclusivamente
de regras e que autoriza a discricionariedade do magistrado no
preenchimento das eventuais lacunas jurídicas. Isto porque quando
se admite que o ordenamento jurídico também contempla
princípios, esses problemas restarão solucionados.
Neste sentido, sustenta Ronald Dworkin (1997, p.100) que, uma
vez abandonada a doutrina do positivismo jurídico e tratados os
princípios como expressão do direito, cria-se a possibilidade de
que uma obrigação jurídica a ser cumprida pelo jurisdicionado
possa ser imposta tanto por uma constelação de princípios como
por uma regra estabelecida no sistema jurídico.
Na perspectiva de Dworkin, os princípios jurídicos,
diferentemente, das regras, não podem ser aplicados através do
método lógico-formal, por não disciplinar diretamente uma caso
concreto. Ademais, é possível que mais de uma norma
principiológica seja relevante para a solução do litígio, apontando
em sentidos diversos. Configurada esta hipótese, o julgador deverá
avaliar quais são os princípios jurídicos preponderantes e operar
uma atividade de sopesamento, estabelecendo uma relação de
prioridade concreta, em face da especificidade de uma dada
situação jurídica. Sendo assim, a colisão principiológica se resolve
através de um processo hermenêutico de ponderação, em que os
diversos princípios jurídicos relevantes ao caso concreto são
apreciados em face dos fatos e valores incidentes.
Ricardo Maurício Freire Soares
217
Decerto, as normas principiológicas consubstanciam valores e
fins muitas vezes distintos, apontando para soluções diversas e
contraditórias para um mesmo problema. Logo, com a colisão de
princípios jurídicos, podem incidir mais de uma norma sobre o
mesmo conjunto de fatos, como o que várias premissas maiores
disputam a primazia de aplicabilidade a uma premissa menor. A
interpretação jurídica contemporânea, na esteira do pós-positivismo,
deparou-se, então, com a necessidade de desenvolver técnicas
capazes de lidar com a natureza essencialmente dialética do direito,
ao tutelar interesses potencialmente conflitantes, exigindo o uso
do instrumental metodológico da ponderação.
Por outro lado, ao estudar o sistema jurídico anglo-saxônico, marcado
pela força dos costumes e dos precedentes judiciais, Dworkin pontifica
que a prática jurídica se afigura como um exercício permanente de
interpretação. Apontando os pontos de convergência entre a
interpretação literária e a interpretação jurídica, pretende demonstrar
que a ordem jurídica é um produto de sucessivos julgamentos
interpretativos. Os intérpretes/aplicadores, no entender de Dworkin,
atuariam como romancistas em cadeia, sendo responsáveis pela
estruturação de uma obra coletiva – o sistema jurídico.
Para Dworkin (2000:238), decidir casos controversos no direito
é mais ou menos como esse estranho exercício literário. A
similaridade é mais evidente quando os juízes examinam e decidem
casos do common law, isto é, quando nenhuma lei ocupa posição
central na questão jurídica e o argumento gira em torno de quais
regras ou princípios de Direito subjazem a decisões de outros
juízes, no passado, sobre matéria semelhante. Cada juiz, então, é
como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros
juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que
disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para
chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram
218
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas
formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até então.
A função do intérprete e aplicador seria, portanto, a de reconstruir
racionalmente a ordem jurídica vigente, identificando os princípios
fundamentais que lhe dão sentido. Rompe-se, assim, com a
dicotomia hermenêutica clásssica que contrapõe a descoberta
(cognição passiva) e a invenção (vontade ativa), na busca dos
significados jurídicos. O hermeneuta, diante de um caso concreto,
não estaria, assim, criando direito novo, mas racionalizando o
material normativo existente. O que se trata é de buscar identificar
os princípios que podem dar coerência e justificar a ordem jurídica,
bem como as instituições políticas vigentes. Cabe ao intérprete
se orientar pelo substrato ético-social, promovendo, historicamente,
a reconstrução do direito, com base nos referenciais axiológicos
indicados pelos princípios jurídicos.
A seu turno, merece também registro a obra de Robert Alexy,
que se propõe a examinar as possibilidades de uma racionalização
discursivo-procedimental para o Direito, com destaque para o papel
exercido pelos princípíos jurídicos.
Com efeito, Alexy parte de uma teoria geral da argumentação
prática para aplicá-la ao campo do direito. Para ele, o discurso
jurídico figura como um um caso especial do discurso da
moralidade. Valendo-se da contribuição da teoria da ação
comunicativa de Jurgen Habermas, entende Alexy que as questões
jurídicas podem ser decididas por meio da racionalidade do melhor
argumento, como expressão de um consenso justificado.
Segundo Alexy, o discurso jurídico é um caso especial do
discurso prático geral, porque são debatidas questões práticas,
com uma justa pretensão de correção, dentro dos limites normativos
do direito positivo. O discurso jurídico não pretende sustentar que
uma determinada proposição seja intrinsicamente verdadeira, mas,
Ricardo Maurício Freire Soares
219
isto sim, que ela pode ser fundamentada racionalmente na moldura
do ordenamento jurídico vigente.
Para ele, se, por um lado, o procedimento do discurso jurídico
se define pelas regras e formas do discurso prático geral, por
outro lado, é moldado pelas regras e formas específicas do
discurso jurídico, que expressam, basicamente, a sujeição à lei,
aos precedentes judiciais e à ciência dogmática do direito.
Sendo assim, sustenta Alexy que uma teoria da argumentação
jurídica apresenta o seu valor prático quando consegue unir dois
modelos diferentes de sistema jurídico: o procedimental e o
normativo. O primeiro representa o lado ativo, composto de quatro
procedimentos (discurso prático geral, criação estatal do direito,
discurso jurídico e processo judicial). O segundo configura a
dimensão passiva, constituído por regras e princípios. A concepção
tridimensional de Alexy - composta de regras, princípios e
procedimentos - não permite atingir sempre uma única resposta
correta para cada caso concreto, mas, em contrapartida,
potencializa a busca de um maior grau de racionalidade prática
para a tomada da decisão jurídica.
Sobre a principiologia jurídica, leciona Robert Alexy (2001,p.248)
que a formulação de princípios forma uma classe final de normas
jurídicas. Para ele, princípios são proposições normativas de um
tão alto nível de generalidade que podem, via de regra, não ser
aplicados sem o acréscimo de outras premissas normativas e,
habitualmente, são sujeitos às limitações por conta de outros
princípios. Em vez de serem introduzidos na discussão como
proposições normativas, os princípios também podem ser
introduzidos como descrições de estados de coisas em que são
considerados bons.
Na visão de Alexy, as regras são normas que exigem um
cumprimento pleno e, deste modo, podem apenas ser cumpridas
ou descumpridas. A forma característica de aplicação das regras
220
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
é a subsunção. Os princípios, contudo, são normas que ordenam
a realização de algo na maior medida possível, relativamente às
possibilidades jurídicas e fáticas. As normas principiológicas
figuram, por conseguinte, como mandados de otimização, podendo
ser cumpridos em diversos graus. A forma característica de
aplicação dos princípios é, portanto, a ponderação.
Como já referido na obra de Ronald Dworkin, sob a égide de
uma visão positivista do direito, a subsunção se afigurou como a
fórmula típica de aplicação normativa, caracterizada por uma
operação meramente formal e lógico-dedutiva: identificação da
premissa maior (a norma jurídica); a delimitação da premissa menor
(os fatos); e a posterior elaboração de um juízo conclusivo
(adequação da norma jurídica ao caso concreto). Se esta espécie
de raciocínio ainda serve para a aplicação de algumas regras de
direito, revela-se, no entanto, insuficiente para a lidar com a
interpretação dos princípios jurídicos, como fundamentos para a
decidibilidade de conflitos. Desponta, assim, a ponderação como
técnica hermenêutica aplicável a casos difíceis (hard cases), em
relação aos quais a subsunção figura insuficiente, especialmente
quando a situação concreta rende ensejo para a aplicação de
normas principiológicas que sinalizam soluções diferenciadas.
Embora não seja possível conceber uma teoria sobre os
princípios jurídicos que os situe numa hierarquia restrita, Alexy
propõe uma ordem frouxa, que permite a aplicação ponderada da
principiologia, como fundamento para a tomada de decisões
jurídicas, e não o seu uso arbitrário, o que sucederia caso se
circunscrevesse a um mero catálogo de topoi.
Como bem refere Atienza (2003, p.182), essa ordem frouxa
proposta por Alexy se compõe de três elementos: a) um sistema
de condições de prioridade, que fazem com que a resolução das
colisões entre os princípios, num caso concreto, também tenha
relevo para novos casos. As condições sob as quais um princípio
Ricardo Maurício Freire Soares
221
prevalece sobre outro formam o caso concreto de uma regra que
determina as conseqüências jurídicas do princípio prevalecente;
b) um sistema de estruturas de ponderação que derivam da natureza
dos princípios como mandados de otimização. Com referência às
possibilidades fáticas, cabe formular as seguintes regras: uma
medida M é proibida em face de P1 e P2, senão é eficaz para
proteger o princípio P1, mas é eficaz para solapar o princípio P2;
uma medida M1 é proibida com relação a P1 e P2 se existe uma
alternativa M2 que protege P1 pelo menos tão bem quanto M1,
mas que solapa menos P2. Com relação às possibilidades
jurídicas, a obrigação de otimização corresponde ao princípio da
proporcionalidade, que se exprime nesta lei de ponderação: quanto
mais alto for o grau de descumprimento ou de desprezo por um
princípio, tanto maior deverá ser a importância do cumprimento
do outro; c) um sistema de prioridades prima facie: a prioridade
estabelecida de um princípio sobre outro pode ceder no futuro,
mas quem pretende modificar essa prioridade se encarrega da
importância da prova.
Ademais, Robert Alexy (2002, p.457) correlaciona ainda a
normatividade jurídica com a organização procedimental, ao referir
que os procedimentos se afiguram como os meios capazes de
produzir um acordo racional sobre o conteúdo dos direitos
fundamentais, geralmente enunciados em princípios jurídicos,
oportunizando a dinamização de um espaço comunicativo
necessário para a correção das proposições normativas. Neste
contexto, afirma-se que os procedimentos são sistemas de regras
e princípios para a obtenção de um resultado consensual. Se o
resultado do discurso jurídico é obtido com base em tais regras
e princípios, então, desde o aspecto procedimental, essa é uma
característica positiva. Se não é obtido desta forma, o resultado
é defeituoso desde o ponto de vista procedimental, afigurandose negativo. Tudo isso revela como a estruturação dos
222
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
procedimentos está umbilicalmente ligada à tutela dos direitos
fundamentais do cidadão.
Deste modo, como se infere dos contributos de Perelman,
Dworkin e Alexy, a difusão deste novo paradigma pós-positivista,
que enfatiza a relevância téorico-prática dos princípios, permite
oferecer um instrumental metodológico mais compatível com o
funcionamento dos sistemas jurídicos contemporâneos, a fim de
conciliar legalidade com legitimidade e restaurar os laços éticos
privilegiados entre o direito e a moralidade social.
4. Caracteres da principiologia jurídica
O vocábulo princípio significa, numa acepção vulgar, início,
começo ou origem das coisas. Transpondo o vocábulo para o
plano gnoseológico, os princípios figuram como os pressupostos
necessários de um sistema particular de conhecimento, servindo
como a condição de validade das demais proposições que integram
um dado campo do saber, inclusive, no plano do conhecimento
jurídico.
Como ressalta Humberto Ávila (2005, p.15), em virtude da
constante utilização dos princípios na atualidade, chega-se mesmo
a afirmar que a comunidade jurídica presencia um verdadeiro Estado
Principiológico. Este é o motivo pelo qual a doutrina e a
jurisprudência têm utilizado, cade vez com maior freqüencia, os
princípios jurídicos na resolução de problemas concretos, tornando
absolutamente necessário ao intérprete do direito compreender
estas proposições.
Gradativamente, a doutrina vem assinalado o papel prescritivo
da principiologia jurídica, visto que, com o advento do paradigma
pós-positivista, os princípios foram inseridos no campo da
normatividade jurídica. Como normas jurídicas de inegável
densidade valorativa e teleológica que consubstanciam direitos
fundamentais dos cidadãos, os princípios jurídicos adquiriram
Ricardo Maurício Freire Soares
223
enorme importância nas sociedades contemporâneas, reclamando
dos juristas todo esforço para emprestar-lhes aplicabilidade e
efetividade. Eis a razão pela qual a ciência do direito tem revelado
um significativo empenho em compreender a morfologia e estrutura
dos princípios jurídicos, na busca de seus elementos autênticos,
para diferenciá-los das regras jurídicas.
Conforme assinala Ruy Espíndola (1999, p.65), a diferenciação
entre regras e princípios jurídicos pode ser guiada pelos seguintes
critérios: a) O grau de abstração: os princípios são normas com
um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as
regras possuem uma abstração relativamente reduzida; b) Grau
de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios,
por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações
concretizadoras (do legislador, julgador ou administrador), enquanto
as regras são susceptíveis de aplicação direta; c) Caráter de
fundamentalidade no sistema de fontes de direito: os princípios
são normas de natureza ou com um papel fundamental no
ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema
das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância
estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de
Direito); d) Proximidade da idéia de direito: os princípios são
standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de
justiça (Dworkin) ou na idéia de direito (Larenz); as regras podem
ser normas vinculantes com um conteúdo meramente formal; e)
Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras,
isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de
regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função
normogenética fundamentante.
Sendo assim, as regras disciplinam uma situação jurídica
determinada, para exigir, proibir ou facultar uma conduta em termos
definitivos. Os princípios, por sua vez, expressam uma diretriz, sem
regular situação jurídica específica, nem se reportar a um fato
224
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
particular, prescrevendo o agir humano em conformidade com os
valores jurídicos. Diante do maior grau de abstração, irradiam-se
os princípios irradiam-se pelos diferentes setores da ordem jurídica,
embasando a compreensão unitária e harmônica do sistema
normativo.
Deste modo, a violação de um princípio jurídico é algo mais
grave do que a transgressão de uma regra jurídica. A inobservância
de um princípio ofende não apenas um específico mandamento
obrigatório, mas a todo um plexo de comandos normativos. Tratase, pois, da mais grave forma de invalidade, visto que representa
insurgência contra todo o sistema normativo, ferindo os seus valores
fundantes.
5. A funcionalidade dos princípios jurídicos
Não basta ao operador do direito conhecer as características
dos princípios, sendo fundamental, outrossim, saber para que eles
servem no plano do conhecimento jurídico. É necessário, assim,
compreender qual a função dos princípios de direito para que sejam
aplicados corretamente.
Os princípios figuram como normas jurídicas, mas exercem um
papel diferente daquele desempenhado pelas regras jurídicas.
Estas, por descreverem fatos hipotéticos, possuem a nítida função
de disciplinar as relações intersubjetivas que se enquadrem nas
molduras típicas. O mesmo não se processa com os princípios,
em face das peculiaridades já demonstradas. Os princípios
jurídicos são, por seu turno, multifuncionais, podendo ser
vislumbradas as funções supletiva, fundamentadora e hermenêutica.
Não é outro o pensamento de Joaquín Valdés (1990, pp.78-79)
quando afirma que os princípios gerais do direito, como as idéias
fundamentais que a comunidade forma sobre sua organização
jurídica, estão sendo chamados para cumprir a tríplice função
fundamentadora, interpretativa e supletória. Tais idéias básicas,
Ricardo Maurício Freire Soares
225
por ser fundamento da organização jurídica, assumem uma missão
para o desenvolvimento legislativo necessário para a regulação
de todas as relações interindividuais e coletivas, como cumprem
um papel crítico (axiológico), capaz, em última análise, de invalidar
ou derrogar toda norma positiva que mostre, irredutivelmente, uma
oposição aos princípios. Tanto uma como outra função se realizam
em virtude do denominado caráter informador, que também justifica
sua missão interpretativa, em relação às demais fontes jurídicas.
Residualmente, podem ser utilizados ainda como fonte autônoma,
de direta aplicação, para resolver ou regular situações concretas
jurídicas, na falta da lei ou costume, assumindo, assim, o caráter
de fonte supletória e integradora do ordenamento jurídico.
Na qualidade de fonte subsidiária do direito, os princípios
serviriam como elemento integrador, tendo em vista o
preenchimento das lacunas do sistema jurídico, na hipótese de
ausência da lei aplicável à espécie típica. Esta concepção revelase, porém, anacrônica. Isto porque, ao se constatar a normatividade
dos princípios jurídicos, estes perdem o caráter supletivo, passando
a impor uma aplicação obrigatória. De antiga fonte subsidiária dos
códigos, os princípios gerais, desde o advento do
constitucionalismo da segunda metade do século vinte, tornaramse fonte primária de normatividade, corporificando os valores
supremos da ordem jurídica. Sendo assim, os princípios devem
ser utilizados como fonte imediata do direito, podendo ser
aplicados diretamente a todos os casos concretos.
Por outro lado, no desempenho de sua função fundamentadora,
os princípios são as idéias básicas que servem de embasamento
ao direito positivo, exprimindo as finalidades e as estimativas que
inspiram a criação do ordenamento jurídico.
Destaca-se ainda a função hermenêutica dos princípios jurídicos,
ao informar e orientar a interpretação e aplicação de todo o sistema
normativo, inclusive, das próprias regras jurídicas. Logo, afigura226
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
se incorreta a interpretação da regra, quando dela deflui
contradição, explícita ou tácita, com a principiologia do direito. A
interpretação deve, então, calibrar o alcance e o sentido da regra
com as pautas axiológicas dos princípios jurídicos.
Ainda neste plano hermenêutico, serve também o princípio
jurídico como limite de atuação do intérprete, pois, ao mesmo
passo em que funciona como vetor interpretativo, o princípio tem
limita o subjetivismo do aplicador do direito. Sendo assim, os
princípios estabelecem balizamentos dentro dos quais o jurista
exercitará seu senso do razoável e sua capacidade de realizar o
justo diante de um dado caso concreto.
Ademais, pode-se dizer que os princípios jurídicos funcionam
como padrões legitimidade para a escolha de uma opção
hermenêutica. Decerto, os princípios despontam como imposições
deontológicas capazes conferir força de convencimento às
decisões jurídicas. Quanto mais o operador do direito procurar
utilizá-los, no deslinde dos conflitos de interesses, mais legítima
tenderá a ser a interpretação e a posterior decisão. Por outro lado,
carecerá de legitimidade a decisão que desrespeitar os princípios
jurídicos, enquanto repositório de valores socialmente aceitos.
Em sua dimensão hermenêutica, a aplicação dos princípios
jurídicos exige que sejam densificados e concretizados pelos
operadores do direito. O ato de densificar um princípio jurídico
implica em preencher e complementar o espaço normativo, a fim
de tornar possível a solução dos problemas concretos. Por sua
vez, concretizar o princípio jurídico consiste em traduzi-lo em
decisão, passando dos textos normativos às normas decisórias.
Neste sentido, doutrina Eros Grau (2002, 170-171) que,
enquanto as regras estabelecem o que é devido e o que não é
devido em circunstâncias nelas próprias determinadas, os princípios
estabelecem orientações gerais a serem seguidas em casos, não
predeterminados no próprio princípio, que possam ocorrer. Por
Ricardo Maurício Freire Soares
227
isso, os princípios são dotados de uma capacidade expansiva
maior do que a das regras, mas, ao contrário destas, necessitam
de uma atividade ulterior de concretização que os relacione a casos
específicos.
Como se depreende do exposto, as tarefas hermenêuticas de
concretização e de densificação das normas principiológicas estão
umbilicalmente ligadas: densifica-se um espaço normativo a fim
de tornar possível a concretização e a conseqüente aplicação de
um princípio jurídico a uma controvérsia jurídica.
6. Conclusão
Em face de todo o exposto, pode-se sintetizar que:
- o positivismo jurídico representou a importação do positivismo
filosófico para o mundo do Direito, na pretensão de criar-se uma
ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e
naturais;
- a busca positivista pela objetividade científica, com ênfase na
realidade empírica, apartou o Direito da moral e dos valores
transcendentes, concebendo o fenômeno jurídico como uma
emanação do Estado com caráter imperativo e coativo;
- a ciência jurídica positivista passou a fundar-se em juízos de
fato e não em juízos de valor, que representam uma tomada de
posição diante da realidade, esvaziando o debate sobre a
legitimidade e a justiça;
- o positivismo jurídico sujeitou-se a uma crítica severa, porquanto
jamais foi possível a transposição dos métodos das ciências
naturais para o campo próprio das ciências humanas, pois o Direito
não comporta uma postura puramente descritiva da realidade, pelo
que o ideal positivista de objetividade e neutralidade é insuscetível
de realizar-se no plano jurídico.
- o positivismo jurídico, em suas mais diversas manifestações,
revela propostas limitadas e insatisfatórias, porque a identificação
228
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
entre direito positivo e direito justo e a excessiva formalização da
validez normativa não propiciam uma compreensão mais adequada
das íntimas relações entre direito, legitimidade e justiça;
- o positivismo legalista desemboca numa ideologia
conservadora que ora identifica a legalidade com o valor-fim da
justiça, em face da crença na divindade do legislador, ora concebe
a ordem positivada pelo sistema normativo como valor-meio
suficiente para a realização de um direito justo;
- o positivismo lógico da Teoria Pura do Direito abdica o
tratamento racional do problema da justiça, ao afastar quaisquer
considerações fáticas e, sobretudo, valorativas do plano da ciência
jurídica, de molde a assegurar os votos de castidade axiológica do
jurista. A busca do direito justo passa a depender das inclinações
político-ideológicas de cada indivíduo, relegando ao campo do
cepticismo e do relativismo a compreensão do direito justo;
- a crise do positivismo jurídico cede espaço para a emergência
de um conjunto amplo e difuso de reflexões acerca da função e
interpretação do Direito, que costuma ser definido como póspositivismo jurídico, reintroduzindo as noções de justiça e
legitimidade para a compreensão axiológica e teleológica do
sistema jurídico;
- a emergência do movimento pós-positivista permite a superação
do reducionismo do fenômeno jurídico a um sistema formal e
fechado de regras legais, abrindo margem para o tratamento
axiológico do direito e a utilização efetiva dos princípios jurídicos
como espécies normativas que corporificam valores e finalidades;
- o pós-positivismo, baseado no uso dos princípios, oferece
um instrumental metodológico mais compatível com o
funcionamento dos sistemas jurídicos contemporâneos, a fim de
harmonizar legalidade com legitimidade e reafirmar os laços éticos
privilegiados entre o direito e a moralidade social;
Ricardo Maurício Freire Soares
229
- os princípios jurídicos apresentam morfologia e estrutura
normativa diversas daquelas verificadas no exame das regras de
direito, visto que as regras disciplinam uma situação jurídica
determinada, em termos definitivos, sendo aplicadas por
subsunção, enquanto as normas principiológicas expressam uma
opção valorativa, sem regular situação jurídica específica, nem se
reportar a uma circunstância particular, sendo aplicadas por
ponderação;
- os princípios jurídicos procuram realizar as funções supletiva,
fundamentadora e hermenêutica, oferecendo, nesta última hipótese,
os parâmetros para uma interpretação/aplicação do direito que,
ao superar o modelo subsuntivo, revela-se mais legítima e
compatível com os fatos sociais;
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232
Reflexões sobre o pós-positivismo jurídico
COMO ESCREVER UM PROJETO DE PESQUISA?
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
Professora Adjunta de Direito Civil da Faculdade de Direito
da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade
do Estado da Bahia (UNEB), professora na Faculdade de
Direito da Universidade Católica do Salvador (UCSal), coordenadora da Especialização em Direito Civil da UFBA, Doutora em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC).
Sumário: 1. Advertência preliminar; 2. Sobre a metodologia de pesquisa; 3.
Sobre o projeto de pesquisa; 4. O que colocar num projeto de pesquisa? 5
Descrição das partes do projeto de pesquisa; 5.1 Capa e folha de rosto; 5.2
Sumário; 5.3 Identificação do projeto; 5.4 Introdução e apresentação; 5.5
Justificativa; 5.6 Problema de pesquisa; 5.6.1 Definição e importância do
problema; 5.6.2 Delimitando o âmbito da pesquisa: os limites do trabalho a
ser planejado; 5.6.2.1 Recortando o objeto da pesquisa; 5.6.2.1 a) Em relação
ao assunto; 5.6.2.1 b) Em relação ao tempo; 5.6.2.1 c) Em relação ao espaço;
5.6.2.2 Tipos de perguntas-problemas para a pesquisa; 5.6.2.3 Requisitos
para a formulação da sua pergunta-problema: familiaridade e criatividade;
5.6.2.4 Outros elementos a serem observados na escolha da sua perguntaproblema: aptidão, inclinação e motivação pessoal; 5.6.2.5 A viabilidade da
pesquisa: também requer cuidado na formulação da pergunta-problema; 5.7
Hipótese; 5.8 Questões orientadoras; 5.9 Objetivos; 5.10 Revisão de
literatura; 5.11 Teoria de base ou embasamento teórico; 5.12 Sistema
conceitual; 5.13 Estrutura preliminar; 5.14 Metodologia; 5.14.1 Função da
metodologia; 5.14.2 Ausência de uniformidade; 5.14.3 Que informações são
necessárias? 5.15 Resultados esperados; 5.16 Cronograma; 5.17
Orçamento; 5.18 Conclusão; 5.19 Referências; 5.20 Apêndice; 5.21 Anexos;
6 Formatação; Bibliografia
1. Advertência preliminar
Normalmente, os guias ou manuais não são capazes de ensinar
a fazer pesquisa, pois esta se aprende com a própria prática da
233
pesquisa. Entende-se que mais útil para o estudante é ajudá-lo a
descobrir sua própria forma de pesquisar, oferecendo-lhe
sugestões de como proceder em determinados momentos,
apresentando-lhe opções de caminhos que podem ser tomados,
indicando as atitudes que normalmente dão certo e alertando-o
sobre as decisões que, na maioria das vezes, fazem com que o
pesquisador iniciante se perca em seu trabalho ou se desvie de
seu curso principal.
Assim, não se busca, neste trabalho, elaborar uma análise da
epistemologia da ciência ou das teorias sobre o conhecimento
científico. Este texto é especialmente destinado a quem está diante
de uma pesquisa a ser planejada e que gostaria de ter alguma
orientação prática sobre como proceder.
2. Sobre a metodologia de pesquisa
A metodologia de pesquisa pode ser entendida como um roteiro
para a realização de pesquisas que pretendem ter como resultados
conhecimentos novos e relevantes, obtidos a partir de
procedimentos reconhecidos como científicos pela comunidade.
Não se trata, propriamente, de regras ou normas a serem seguidas
obrigatoriamente pelo pesquisador, mas de um conjunto de práticas
ou costumes que poderão ajudá-lo a chegar ao final de sua
pesquisa obtendo o reconhecimento de seus pares.
Portanto, o que se vai ver nas próximas páginas não são modelos
nos quais o pesquisador deve se encaixar, mas informações sobre
como normalmente as pesquisas reconhecidas têm se
desenvolvido. Não se podem tomar tais costumes acriticamente
nem colocar as orientações metodológicas como fim de uma
pesquisa, mas, sempre, como um instrumento.
Assim, as regras ou normas metodológicas são costumes ou
práticas que servem para nos orientar quando resolvermos fazer
nossa pesquisa. Como as pesquisas reconhecidas pela
234
Como escrever um projeto de pesquisa?
comunidade científica seguem determinados procedimentos, vamos
conhecer esses procedimentos para podermos atingir, também,
um bom resultado para nossa pesquisa. Essas normas não são
propriamente estabelecidas por alguém, surgem da prática da
pesquisa e da discussão teórica sobre a metodologia científica,
constituindo-se muito mais de costumes ou práticas reiteradas da
comunidade de pesquisadores do que normas impostas por
alguém. Se estas regras ou procedimentos não forem adotados
pelo pesquisador, ele corre o risco ou de se perder em sua pesquisa
ou de, ao final desta, não obter o reconhecimento pretendido.
Feitas essas observações preliminares, deve-se preparar para
uma atividade que deverá ser proveitosa, criativa, produtiva e
prazerosa que, além disso, poderá atribuir os títulos ou
reconhecimentos desejados e contribuir para o desenvolvimento
teórico ou social de um campo ou setor.
3. Sobre o projeto de pesquisa
A função mais importante do projeto de pesquisa é a de projetar
o trabalho a ser feito, tanto em relação ao seu provável conteúdo
como em relação às etapas a vencer. Ou seja, sua principal utilidade
é servir ao próprio pesquisador, como planejamento de sua
pesquisa. Neste aspecto, ele é essencial para que o pesquisar se
organize e não se perca antes mesmo de começar a pesquisa.
A monografia/dissertação/tese resulta de uma pesquisa. A
pesquisa é uma atividade que demanda certo planejamento. Se se
pretende elaborar uma monografia/dissertação/tese, o primeiro
passo é planejar a pesquisa que levará até ela.
A redação da monografia/dissertação/tese é a última fase de
uma pesquisa, na qual o pesquisador exporá à comunidade
científica qual era, inicialmente, seu problema, quais eram seus
objetivos no início da pesquisa, qual resultado foi alcançado e
que caminho ele percorreu até chegar ao resultado ou conclusão.
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
235
Assim, a monografia/dissertação/tese é um relatório da pesquisa,
devendo, portanto, ser escrita apenas ao final desta.
Portanto, para escrever uma monografia/dissertação/tese,
precisa-se, antes, desenvolver uma pesquisa. E, para desenvolver
uma pesquisa, precisa-se planejar como fazê-la, para que haja
eficiência. Esta é a função do projeto: projetar a pesquisa.
O projeto de pesquisa contém informações sobre todos os
aspectos da pesquisa a ser realizada, desde a apresentação da
pergunta-problema que se pretende responder ou resolver até
informações sobre os custos da pesquisa.
Além disso, quando se está fazendo pesquisa numa instituição
de ensino, em graduação, especialização, mestrado ou doutorado,
há algum momento em que será exigido um projeto de pesquisa.
Este momento pode ocorrer já no curso da graduação,
especialização, mestrado e doutorado, ou, em outros casos, antes
do ingresso do estudante nos programas de pós-graduação, como
parte do processo de seleção.
Independente de estar ou não vinculado a alguma instituição de
ensino, se o pesquisador pretender algum apoio técnico ou
financeiro para sua pesquisa ou se quiser convidar alguém para
orientá-lo, provavelmente terá de elaborar um projeto de pesquisa.
O projeto de pesquisa pode ser comparado a um cartão de
visitas do pesquisador. É através de projetos de pesquisa que
se comunica a outras pessoas (orientador, professores,
instituições, órgãos) sobre a pesquisa que se deseja
desenvolver.
Em suma, o projeto de pesquisa pode ser utilizado pelo
pesquisador para:
a) ajudar o próprio pesquisador a se organizar em função da
pesquisa,
b) obter ingresso em cursos de pós-graduação, sobretudo
mestrados e doutorados,
236
Como escrever um projeto de pesquisa?
c) cumprir requisito para aprovação em disciplina ou curso.
d) apresentar sua proposta de pesquisa a seu futuro ou atual
orientador,
e) apresentar sua proposta de pesquisa a agências de fomento,
com o fim de obter recursos necessários para seu
desenvolvimento, como bolsas,
f) obter financiamentos de organizações ou instituições
específicas, que não sejam agências de fomento à
pesquisa.
4. O que colocar num projeto de pesquisa?
Os projetos de pesquisa não obedecem a padrões rígidos. No
entanto, a instituição de ensino ou organização para as quais se
destina podem exigir a observância de algumas normas de
apresentação, tópicos que deve conter, número de páginas.
No projeto de pesquisa, o pesquisador, em geral:
a) planeja o maior número de aspectos da pesquisa que
pretende realizar,
b) define o objeto da pesquisa, ou seja, define a pergunta que
buscará responder ou o problema para o qual pretende
apresentar solução,
c) define os objetivos internos da pesquisa, deixando claro o
que deseja demonstrar, provar, alcançar,
d) justifica seus objetivos, ou seja, explica por que essa
pesquisa merece ser feita, prevendo as contribuições que
poderá trazer para o desenvolvimento de seu campo de
conhecimento e da sociedade,
e) estabelece como o problema será abordado,
f) prevê que técnicas de coleta de dados serão utilizadas,
g) prevê as etapas que a pesquisa terá e como estão
programadas no tempo,
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
237
h) prevê os custos da pesquisa e qual será a fonte dos recursos
necessários para desenvolvê-la,
i) prevê os resultados que espera de sua pesquisa.
Para fazer um projeto de pesquisa, o estudante ou pesquisador
deve ter, em primeiro lugar, um planejamento da pesquisa que
pretende fazer. Esse planejamento requer que o estudante ou
pesquisador já saiba o que deseja investigar, o que pretende
alcançar na investigação, por quê e como. Veja-se como esses
planos podem ser transformados num projeto.
Um projeto de pesquisa pode ser composto pelas seguintes
partes, explicadas nos tópicos seguintes:
a) capa,
b) folha de rosto,
c) sumário,
d) identificação do projeto,
e) (apresentação ou introdução),
f) justificativa,
g) problema,
h) (hipótese),
i) objetivos,
j) revisão da literatura,
k) teoria de base,
l) sistema conceitual,
m) estrutura preliminar da monografia,
n) metodologia,
o) resultados esperados,
p) cronograma,
q) orçamento,
r) (conclusão),
s) referências ou bibliografia,
t) apêndices,
u) anexos.
238
Como escrever um projeto de pesquisa?
5. Descrição das partes do projeto de pesquisa
Apresentam-se aqui as partes consideradas essenciais a todos
os projetos, assim como tópicos que aparecem em alguns projetos
mas que são desnecessários e outros que são impróprios.
Normalmente, são essenciais, nos projetos de pesquisa: capa,
folha de rosto, sumário, justificativa, problema, revisão de literatura,
metodologia, cronograma, referências.
Podem ser desnecessários, dependendo do caso, os tópicos:
identificação do projeto, introdução, apresentação, hipótese,
objetivos, teoria de base, sistema conceitual, estrutura preliminar
do relatório (monografia/dissertação/tese), orçamento, apêndice,
anexos. As necessidades desses tópicos dependerá do contexto
do projeto e do pesquisador.
É imprópria a presença de conclusão.
5.1 Capa e folha de rosto
A capa e a folha de rosto de um projeto de pesquisa são, em
geral, padronizadas segundo as normas da ABNT ou da instituição,
não sofrendo muitas variações. Assemelham-se às capas de
monografias, dissertações e teses, devendo conter informações
gerais sobre a pesquisa, tais como: nome do pesquisador,
instituição à qual está vinculado ou à qual pretende se vincular,
título do projeto, local e data.
O título do projeto é a primeira informação importante sobre a
essência da proposta do pesquisador. Deve ser claro, objetivo e
fiel ao conteúdo do projeto, explicitando a delimitação do tema
(recorte quanto ao assunto, tempo, espaço, matriz teórica etc.).
5.2 Sumário
O sumário do projeto de pesquisa tem a mesma função que
um sumário de monografia/dissertação/tese: apresentar suas
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
239
partes. As partes principais ou títulos contidos no projeto de
pesquisa devem ser indicados no seu sumário, com indicação da
página em que o título inicia.
5.3 Identificação do projeto
A identificação do projeto é o campo onde se deve informar:
a) título do projeto (embora isso já esteja na capa),
b) nome do pesquisador (o autor do projeto),
c) endereço, telefone, fax, e-mail do pesquisador (como o
pesquisador pode ser contactado),
d) orientador do projeto (se houver),
e) endereço, telefone, fax, e-mail, titulação do orientador,
f) outros pesquisadores ou técnicos que compõem a equipe
ou grupo de pesquisa, se houver, com respectivos dados,
g) área de concentração ou linha de pesquisa em que o projeto
se insere (aplica-se a projetos vinculados a instituições de
ensino),
h) duração do projeto (previsão de quando será seu início e
de quando os resultados da pesquisa serão apresentados),
i) instituições envolvidas no projeto (instituição de ensino ou
outra organização),
j) instituição financiadora da pesquisa (agência de fomento,
empresa ou outra entidade).
5.4 Introdução e apresentação
Não é raro encontrar projetos que contenham introdução e/ou
apresentação. Não se vê utilidade nesses tópicos, num projeto
de pesquisa, pois, geralmente, as informações neles apresentadas
terão lugar próprio nos tópicos seguintes, como objeto, justificativa,
revisão de literatura.
A menos que haja alguma informação que não seja adequada a
estes tópicos, pode ser conveniente uma apresentação.
240
Como escrever um projeto de pesquisa?
5.5 Justificativa
A justificativa tem um papel muito importante no projeto de
pesquisa porque, como indica a própria denominação, é lá que
ele vai justificar sua pesquisa, demonstrando que ela é atual,
original, relevante, viável, útil, necessária. Neste tópico se constrói
o convencimento de que esta pesquisa merece ser feita e, se for o
caso, merece ser apoiada.
Na justificativa o pesquisador deve deixar claro:
a) por que esse problema merece ser investigado,
b) o que sua pesquisa oferecerá como contribuição para a
sociedade e para o campo de conhecimento em que se
insere, ou seja, qual é a utilidade da pesquisa, sua
contribuição teórica e social,
c) qual é a relevância e atualidade dessa pesquisa,
d) qual é sua originalidade,
e) demonstrar sua viabilidade.
A originalidade nos projetos de pesquisa é polêmica. Costuma-se
dizer a respeito da originalidade, que todo trabalho de pesquisa tem
algo de original. Outras vezes se diz que nenhuma pesquisa é totalmente
original. Afinal, em que consiste a originalidade de uma pesquisa? Esta
é uma pergunta espinhosa. De fato, quase todo trabalho de pesquisa
apresenta algo de original e, também, praticamente nenhuma pesquisa
é cem por cento original. Mas por quê?
Se se pensar em originalidade como um trabalho que não é
idêntico a outro, então toda pesquisa poderá ser considerada
original, ou com certo grau de originalidade. Assim, são aceitas
pesquisas sobre temas já pesquisados, mas que analisam o
mesmo objeto a partir de um novo ponto de vista, estudando-o
com base em nova teoria, observando um aspecto que não foi
devidamente estudado nas pesquisas precedentes ou a partir de
uma abordagem metodológica diversa. Essas pesquisas, embora
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
241
seu tema não seja exatamente original, apresentam alguma
contribuição a mais, pois contribuem para a continuidade de uma
reflexão iniciada por outros pesquisadores e ainda não exaurida.
De outro lado, como normalmente as pesquisas são
continuações das que lhes precederam, ou como se apóiam nas
pesquisas já realizadas, pode-se dizer também que quase nenhuma
pesquisa é dotada de cem por cento de originalidade, pois a
produção do conhecimento é um processo feito por continuidades
ou acúmulos (e, de vez em quando, algumas descontinuidades e
rupturas também). Por isso, quase toda pesquisa terá que se referir
ao conhecimento anteriormente produzido pelos outros
pesquisadores, seja para tomar como ponto de partida, seja para
o criticar.
Na verdade, a originalidade está mais ligada à forma como um
tema é abordado do que propriamente ao tema em si. Na maioria
das vezes, não é o tema que é original, mas a abordagem que se
faz sobre ele, o enfoque dado, o percurso realizado.
Quanto à relevância de uma pesquisa, outra polêmica se levanta.
Habitualmente se diz que uma pesquisa deve ter relevância teórica
e social. Há momentos em que se diz que a pesquisa deve ser
livre, pura, sem vínculos com a relevância ou atualidade. O ideal é
que toda pesquisa apresente uma relevância teórica e social no
seu campo de conhecimento ou setor de aplicação. Isso significa
que o pesquisador, ao propor uma pesquisa, deve estar
comprometido com a transformação teórica de seu campo
científico e com a transformação social ou transformação da
realidade na qual ele está inserido.
Mas a relevância é relativa, pois, em certas áreas científicas,
algumas pesquisas são empreendidas sem que tenham, no seu
início, objetivamente, uma relevância social, e acabam por ter como
resultado a produção de um conhecimento ou uma tecnologia de
242
Como escrever um projeto de pesquisa?
relevância científica e social que não era imaginada no momento
em que foi proposta.
Convém refletir sobre a utilidade de informações, no projeto,
sobre a vida pessoal e/ou profissional do pesquisador, ou sobre
suas motivações particulares. Elas só devem ser incluídas no
projeto se realmente forem necessárias ou úteis, dependendo do
contexto no qual o projeto for apresentado. Podem complementar
a justificativa ou a metodologia.
Sobre a viabilidade, veja-se, abaixo, quando do tratamento sobre
o problema de pesquisa.
5.6 Problema de pesquisa
5.6.1 Definição e importância do problema
O objeto ou problema, no projeto de pesquisa, é a perguntaproblema que o pesquisador pretende responder ou resolver. No
tópico objeto de pesquisa ou problema o pesquisador descreverá
o que irá investigar, qual é seu tema, o assunto, qual é a problemática
que irá analisar, problematizando o tema. Em algum momento, é
bom que a pergunta-problema seja apresentada na forma de
interrogação.
O passo mais importante do planejamento da pesquisa é
formular o problema da pesquisa:
a) O que se vai pesquisar?
b) O que se vai estudar?
c) O que se vai analisar?
d) O que se quer explicar, comparar, criticar?
O problema da pesquisa é a pergunta central que se busca
responder realizando a pesquisa. A pesquisa tem um objetivo que
é responder à pergunta central que foi elaborada pelo pesquisador
no início da pesquisa. Se não foi formulada uma questão, a
pesquisa está sem objetivo e o pesquisador, sem rumo. Para não
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
243
ficar sem rumo na pesquisa, precisa-se, de início, formular com
muita precisão a pergunta que se pretende responder ou o
problema que se quer resolver.
É o problema de pesquisa que guiará o pesquisador em
seu trabalho. Se o problema de pesquisa não for bem formulado,
bem delimitado, bem definido, o pesquisador não saberá o que
estará pesquisando. Isso terá como conseqüências para o
pesquisador muita leitura feita sem sentido, tempo perdido,
recursos despendidos e ... nenhum resultado.
A formulação do problema de pesquisa é um dos momentos
mais importantes do trabalho do pesquisador. Dele depende todo
o desenrolar da pesquisa. De um problema bem formulado, bem
delimitado, bem definido, proposto de forma clara e objetiva,
depende o desenvolvimento da pesquisa.
Nesse momento talvez seja preciso fazer um rápido estudo do
tema para poder delimitá-lo melhor. Isso geralmente pode ser feito
através de uma breve pesquisa bibliográfica, chamada de
levantamento bibliográfico ou pesquisa exploratória. É uma revisão
do assunto, um levantamento das possíveis abordagens para a
pesquisa, uma busca de enfoques que se podem dar ao trabalho.
Além disso, nesse levantamento, busca-se a certeza de que a
pergunta-problema está bem formulada e que, portanto, pode-se
passar para o desenvolvimento da pesquisa, com a definição do
planejamento e o aprofundamento da investigação.
5.6.2 Delimitando o âmbito da pesquisa: os limites do
trabalho a ser planejado
Com a formulação do problema se está delimitando o alcance
da pesquisa. É neste momento que se devem estabelecer os limites
da pesquisa, até onde se vai pesquisar, qual a quantidade de
informações precisarão ser coletadas, qual a quantidade de leitura
que deverá ser feita, quanto tempo será necessário. É formulando
244
Como escrever um projeto de pesquisa?
o problema de pesquisa que se estabelecem os limites da
investigação.
Quanto mais amplo for o problema ou quanto mais genérica for
a pergunta, mais perto do impossível se estará se se pretender
elaborar uma monografia sobre isso. Como a monografia é o
resultado de uma análise profunda sobre um tema, quanto mais
restrito for o problema formulado, mais facilmente poder-se-á ir
direto ao ponto e os riscos de se darem voltas e não chegar a
lugar nenhum será muito reduzido. Se a questão formulada for
muito ampla, ter-se-á que ler, analisar, compreender, criticar e
relacionar tantos fatores que, provavelmente, o prazo expirará sem
que tenha começado a fase de redação da monografia.
Os limites para delimitar o tema e formular o problema podem
ser em relação ao assunto, ao tempo e ao espaço.
5.6.2.1 Recortando o objeto da pesquisa
a) Em relação ao assunto
Em relação ao assunto, pode-se delimitar o problema “cortando”
o assunto que se escolheu investigar.
Se alguém diz que sua pesquisa será sobre Direito Civil, é
necessário informar, informar que não há aí um tema. Direito Civil é
um ramo do direito, um mundo de institutos, categorias, princípios,
teorias. Não se escreve uma monografia sobre Direito Civil, pois
Direito Civil não é um tema, muito menos um problema. Assim,
embora esse pesquisador tenha escolhido o ramo do direito dentro
do qual quer pesquisar, ainda definiu pouco. Dentro do Direito
Civil há a Teoria Geral, o Direito das Obrigações, o Direito de
Família, o Direito das Coisas, o Direito das Sucessões ... cada um
com princípios próprios, objetivos diversos, categorias e figuras
diferentes. Imagine-se que, dentro do Direito das Obrigações, o
pesquisador tenha escolhido estudar a teoria geral dos contratos.
Bem, isso ainda é o assunto, pois é possível redigir um manual
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
245
sobre a teoria geral dos contratos, mas não uma monografia. É
preciso ainda que o pesquisador pense sobre que questão ou
que problema, dentro da teoria geral dos contratos, ele pretende
analisar. Digamos que ele decida investigar a boa-fé objetiva. Bem,
“investigar a boa-fé objetiva” pode ser um tema, mas ainda não se
chegou a um problema de pesquisa, pois “investigar a boa-fé
objetiva” não indica o que se busca na pesquisa, o que se pretende
resolver, explicar, demonstrar, provar ou criticar em relação à boafé objetiva.
Esse pesquisador precisa efetuar mais um esforço, precisa
formular uma pergunta interessante, uma pergunta para a qual ainda
não foi oferecida resposta ou uma pergunta que ainda mereça um
trabalho de investigação, argumentação, comprovação, divulgação.
Imagine-se que, finalmente, o pesquisador chegue ao seguinte
problema: “O Código Civil de 2002 protege a boa-fé objetiva na
fase pré e pós contratual?”. Agora, sim, há um esboço de problema,
podendo-se começar a pesquisa propriamente dita, pois, antes,
sem um problema bem formulado, não havia o que investigar,
apenas o que explorar.
b) Em relação ao tempo
Ainda há um outro critério utilizado para a delimitação do âmbito
da pesquisa e formulação do problema. É o critério temporal. Após
a delimitação do tema em relação ao assunto, selecionando um
tópico específico a ser investigado, pode-se delimitar esse tópico
também em relação ao tempo. Utilizando o exemplo acima, delimitase o tempo ao se expressar no problema ou na pergunta que a
análise será feita a partir das disposições que entraram em vigor
com o novo Código Civil (2003). Ou seja: a pesquisa investigará
a realidade a partir de 2003. Assim, não se vai analisar a boa-fé
objetiva no Direito Civil de todas as épocas. Ou, se a fonte principal
for documental, como, por exemplo, a jurisprudência, pode-se definir
que serão objeto de análise decisões judiciais a partir de 2003,
246
Como escrever um projeto de pesquisa?
quando o Código entrou em vigor, ou a partir de 1988, quando foi
publicada a Constituição Federal.
c) Em relação ao espaço
Da mesma forma, também se pode delimitar a pesquisa em
relação ao espaço. Ao se inserir no exemplo acima “o Código
Civil brasileiro de 2002”, automaticamente revela-se que a pesquisa
estará delimitada no âmbito do direito brasileiro, pois não se
pretende analisar a regulamentação da boa-fé objetiva no direito
de outros países. Ou, numa pesquisa jurisprudencial, restringir a
análise às decisões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça ou
de outro(s) Tribunal(s).
Quanto mais se especificar o que se vai investigar, mais fácil
fica iniciar – e concluir – a pesquisa, pois já se sabem os limites
desta. Assim, não se vai analisar o Direito Civil vigente no século
passado nem estudar a legislação vigente na China ou na França,
pois o âmbito de pesquisa já foi delimitado.
Esse tipo de delimitação a partir de critérios espaciais e
temporais é especialmente importante, sobretudo quando a
pesquisa demandar coleta de informações através de formulários,
questionários, levantamentos estatísticos, documentos, estudos
de casos. Se não tiver definido o “recorte da realidade” que se
pretende investigar, o desenvolvimento da pesquisa será dificultado
pela desorganização e indefinição.
5.6.2.2 Tipos de perguntas-problemas para a pesquisa
Diante desse tipo de dificuldade, que atinge todos os
pesquisadores que nunca fizeram – e mesmo os que já fizeram
alguma – pesquisa monográfica, vejam-se alguns tipos de
perguntas que podem ser formuladas e constituírem problemas
de pesquisa.
Podem-se fazer perguntas de definição. As perguntas de
definição utilizam-se da expressão interrogativa “o que é?” ou “o
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
247
que são?” e exigem do pesquisador a elaboração de uma definição
para um conceito. Exemplo de uma pergunta-problema de
definição: “O que é personalidade jurídica para o direito civil
brasileiro?”. Assim, o objetivo da pesquisa é construir uma definição
de personalidade jurídica a partir do direito civil brasileiro.
Podem-se elaborar perguntas que busquem uma relação de
causa e efeito entre dois ou mais fenômenos, ou perguntando
pela causa ou perguntando pelo efeito ou dissociando os
fenômenos, como, por exemplo: “o que provoca...?”, “o que
causa...?”, “qual é a causa de...?”, qual é a origem de...?”, “... é
mesmo a causa de...?”, “qual é a conseqüência de ...?”, “... é
conseqüência de...?” etc.
Ou perguntar que influência uma coisa tem em outra: “qual é a
influência de ... sobre ...”, “como ... influencia ou determina ...”, “como
... afeta ...”, “em que grau ... provoca ...” etc.
Também se podem fazer perguntas que exigem como respostas
uma afirmação ou uma negação, seguida de uma explicação, como,
por exemplo: “Há incidência de autonomia privada no Direito de
Família brasileiro? Sim? Não? Por quê?”.
Ainda podem-se formular perguntas que exijam respostas
quantitativas, ou seja, respostas que demonstrem quantidades de
determinado objeto, exemplo: “Quantos tipos de propriedades
existem no direito privado brasileiro? Quais são?”.
Outro exemplo de pergunta é a que busca classificar determinado
objeto, como: “A CPMF pertence a que classe que tributo?”.
Enfim, são inúmeras as formas de problema que podem se
encontradas nas pesquisas já realizadas e infinitas as que podem
ser utilizadas para nossa pesquisa. Se for um problema bem
elaborado, ele guiará a pesquisa. Se a pergunta-problema for mal
elaborada, mal definida, mal recortada, poderá haver mais dispêndio
de energia e recursos do que o necessário para chegar à conclusão.
248
Como escrever um projeto de pesquisa?
5.6.2.3 Requisitos para a formulação da sua perguntaproblema: familiaridade e criatividade
Para a formulação da pergunta-problema é preciso ter
conhecimento prévio do assunto que se deseja investigar – senão
não se consegue sequer formular um problema adequado – e um
pouco de criatividade. Se o pesquisador não tiver familiaridade
com o assunto escolhido, não conseguirá formular uma pergunta
que possa levar a uma resposta nova e relevante para seu campo
de conhecimento, pois não conhecerá suficientemente o campo a
ponto de identificar quais são as questões mal resolvidas ou que
demandam maior desenvolvimento.
Na prática, pode ocorrer que o problema sofra um leve
“acabamento” à medida em que a pesquisa se realiza. Não significa
que o pesquisador esteja sem rumo, mas que ele simplesmente
“aprimorou” a formulação de sua pergunta. Isso costuma acontecer
com freqüência, mesmo com pesquisadores que já têm certa
experiência.
5.6.2.4 Outros elementos a serem observados na escolha
da sua pergunta-problema: aptidão, inclinação e motivação
pessoal
Não adianta ter elaborado um problema que insinue uma resposta
original e relevante, a respeito de um assunto em relação ao qual
se tem familiaridade, se não há atração pela proposta. Poderá ser
uma pesquisa que trará grande contribuição para dado campo de
conhecimento ... se o pesquisador conseguir concluí-la.
Por isso não se deve pensar apenas em realizar uma pesquisa
original, ou relevante, ou sobre um tema “da moda”. Se não houver
uma motivação real, envolvimento com o tema, a pesquisa corre
risco de não ser concluída.
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
249
É muito mais fácil realizar – e terminar – a pesquisa se, além de
gostar do tema, considerar-se seu estudo útil para o pesquisador,
seja em relação a uma carreira que queira seguir ou a um concurso
que queira fazer ou a uma pós-graduação em que queira ingressar
ou terminar. Ora, se além de sentir atração pelo tema, o pesquisador
também o considerar útil para si, tanto melhor para o
desenvolvimento da pesquisa, pois haverá motivação para
empreendê-la, e para empreendê-la bem.
Se não gostar do tema, dependendo da disciplina pessoal do
pesquisador, talvez até consiga levar a pesquisa até o fim, mas
percorrendo, desnecessariamente, um caminho penoso. Realizar
um trabalho de pesquisa penoso é desnecessário porque é o
pesquisador quem escolhe seu tema, portanto, é livre para facilitar
ou para dificultar sua própria vida.
Há algumas questões pessoais que devem ser respondidas,
sob o risco de desperdício de tempo e outros recursos:
a) Por que escolhi este tema? Gosto desse assunto?
b) Tenho facilidade para tratar desse assunto?
c) Tenho inclinação ou tendência por esse tema?
d) Esse tema prende meu interesse?
e) Escolhi porque é um tema da moda?
f) Combina com os assuntos que mais estudei em minha
formação?
g) Combina com os assuntos em relação aos quais mais tive
êxito?
h) Qual é a motivação que tenho para levar essa pesquisa
adiante?
i) Tenho afinidade com os professores que poderão ser meus
orientadores?
j) Qual é o papel desse tema em minha formação?
k) Qual é a utilidade desse tema em minha vida profissional?
250
Como escrever um projeto de pesquisa?
l)
O que posso tirar de bom da experiência de pesquisar esse
tema?
5.6.2.5 A viabilidade da pesquisa: também requer cuidado
na formulação da pergunta-problema
Além disso, é preciso verificar se existem técnicas e recursos
disponíveis para a coleta das informações de que o pesquisador
precisará. A pesquisa deve ser viável, o que significa que o
pesquisador deve se preocupar com os aspectos práticos da
pesquisa, tais como os prazos de que dispõe, relacionados com
seu preparo intelectual e sua experiência de pesquisa; a bibliografia
disponível ou outras fontes de informação; necessidade de
equipamentos, viagens ou outros tipos de serviços.
Assim, ao propor a pergunta-problema, devem ser feitas as
seguintes questões:
a) O tempo que tenho para a realização dessa pesquisa me
permite pesquisar esse tema, nessa amplitude, buscando
as informações de preciso, tendo tempo para analisá-las,
para redigir a monografia e entregar no prazo estipulado? O
tempo de que disponho é suficiente para a realização da
pesquisa que desejo?
b) As informações de que preciso para fundamentar minha
pesquisa estão disponíveis? São acessíveis? Onde estão
essas informações? Em livros? Tenho acesso a essa
bibliografia? Tenho esses livros? Que bibliotecas possuem
esses livros? Se tiver de adquirir alguns livros, quantos
serão? Quando?
c) Os livros que tratam sobre o tema são livros estrangeiros?
Tenho esses livros nas bibliotecas às quais tenho acesso?
Domino os idiomas em que estão escritos?
d) As informações de que preciso não estão apenas nos livros,
mas nos relatos das pessoas? Sei quem são as pessoas
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
251
que podem me relatar suas experiências? Essas pessoas
estão dispostas a colaborar? Como poderei coletar esses
relatos? Através de entrevistas abertas? Formulários,
questionários? Saberei analisar esses dados? Terei tempo
para isso?
e) Precisarei fazer alguma viagem para coletar informações
imprescindíveis à pesquisa? Tenho tempo e dinheiro para
isso?
f) Precisarei de materiais, equipamentos ou serviços? São
oferecidos em minha cidade? Terei recursos econômicos
para adquiri-los?
g) Terei um professor orientador para este tema?
Ora, não adianta ter, teoricamente, uma excelente perguntaproblema se não existem condições práticas para que a pesquisa
se desenvolva, ou seja, viabilidade. Se isso acontece,
aconselhamos que o problema seja reformulado.
A viabilidade deve transparecer, no projeto de pesquisa, nos
tópicos justificativa e metodologia.
5.7 Hipótese
O problema e a hipótese são os elementos da pesquisa que
guiarão o trabalho do pesquisador. Em sua atividade de pesquisa,
o pesquisador buscará demonstrar que sua hipótese é
suficientemente fundamentada para convencer a comunidade
científica quanto à sua solidez. Se, na conclusão da pesquisa, a
hipótese tiver sido confirmada, tem-se já não mais uma hipótese,
mas uma teoria. Aquela resposta imaginada pelo pesquisador no
início de seu trabalho foi confirmada, através de demonstração,
argumentação, comprovação.
É controverso o cabimento de hipóteses em alguns tipos de
pesquisa, como em ciências humanas e sociais aplicadas. Se
houver a exigência deste tópico, deve-se colocar como hipótese a
252
Como escrever um projeto de pesquisa?
resposta provisória que o pesquisador planeja comprovar/refutar
com a pesquisa. Hipóteses são as repostas ou soluções
imaginadas pelo pesquisador, que vai buscar provar através da
pesquisa. Pode haver hipóteses básicas e secundárias, todas
redigidas como afirmações.
Quando se formula uma pergunta ou conjunto de perguntas a
serem respondidas através de uma investigação, geralmente se
imagina qual é a resposta provável. A hipótese é esta resposta
provável ou resposta provisória que o pesquisador, a partir de seu
estágio de conhecimento atual sobre o campo, imagina que será
confirmada ao final do trabalho de investigação. Nas Ciências
Sociais, algumas vezes a pesquisa é feita para fundamentar a
resposta que o pesquisador, de início, já imagina adequada para a
pergunta que ele formulou. Pode ser considerada uma teoria
provisória, que passará a ser definitiva (tese) ao final da pesquisa,
com sua confirmação, ou será rejeitada nas conclusões da pesquisa.
Se houver formulação de hipótese no projeto, o pesquisador
realizará sua pesquisa buscando todos os elementos que refutem
esta resposta provisória (sua hipótese), podendo chegar à sua
confirmação, ao final.
Desta forma, automaticamente à formulação da pergunta (ou
problema), o pesquisador, em grande parte das vezes, já imagina,
também, a reposta para essa pergunta. Essa resposta imaginada
deve ser nova (original) e relevante para a comunidade científica
da qual o pesquisador faz parte. Se a resposta não for nova, então
não há tanta razão para fazer aquela pesquisa. Se não for relevante,
a comunidade, da mesma forma, também não encontrará razão
para dar atenção àquele trabalho.
A resposta que o pesquisador espera ou imagina deve
apresenta alguma novidade, alguma contribuição para a
compreensão de certa realidade, ou então carecerá de motivo
para ser buscada:
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
253
a) Por que realizar uma pesquisa, com dispêndio de tempo e
dinheiro, se seu resultado não acrescentará nada ao campo
de conhecimento no qual está inserida?
b) Por que gastar tanta energia para demonstrar o que já foi
suficientemente demonstrado por outros pesquisadores?
Se não há respostas razoáveis para essas perguntas, não há o
que justifique tal pesquisa. E a justificativa é o que faz com que as
pessoas se convençam de que devem apoiar a pesquisa
(orientadores, agências de fomento, instituições de ensino) e é o
que levam outras pessoas a lerem os resultados do trabalho.
Assim, se a pergunta elaborada não insinuar uma reposta
que ofereça novidades e novidades essas que tenham utilidade
para a comunidade científica, há riscos como desinteresse de um
programa de pós-graduação por aquele projeto (e desclassificação
ou baixa pontuação no processo seletivo), falta de apoio durante
a pesquisa, falta de crédito ao final da pesquisa e desestímulo
durante o processo de pesquisa.
Ao se tratar de hipóteses, costumam-se classificá-las em
hipótese básica e hipóteses secundárias. A hipótese básica é a
resposta principal apresentada para a pergunta-problema. Em
alguns casos, o pesquisador elabora também hipóteses
secundárias, que complementam a hipótese básica, englobando
detalhes que não cabem no enunciado principal, mas que ajudarão
o pesquisador a encaminhar suas atividades de forma a não se
distanciar do objeto central da pesquisa.
5.8 Questões orientadoras
Em certos casos, para explicitar ainda mais os aspectos que o
problema envolve, sugere-se a elaboração de questões
orientadoras. São perguntas intermediárias ou subsidiárias ou
satélites que o pesquisador terá que responder para resolver a
questão central, ou o problema.
254
Como escrever um projeto de pesquisa?
As questões orientadoras ligam-se diretamente às hipóteses
secundárias e aos objetivos específicos, podendo haver um
sentimento de repetição na elaboração e leitura desses tópicos, o
que denota coerência do projeto.
5.9 Objetivos
Nos objetivos o pesquisador poderá desdobrar sua perguntaproblema, anunciando o que ele visa demonstrar, analisar, atingir,
alcançar, provar. Deverá haver muita proximidade entre os
objetivos e o problema, chegando a parecer repetitivo. Se não
houver a sensação de repetição, é porque o projeto não está
coerente. Pode haver objetivo geral e objetivos específicos. O
geral liga-se diretamente ao problema e à hipótese básica. Os
específicos são desdobramentos do geral. Recomenda-se a
utilização de verbos no modo infinitivo para a listagem, em tópicos,
dos objetivos.
Os objetivos internos a que se refere este tópico do projeto,
são aqueles que se referem às conclusões da pesquisa. Ao
iniciarmos uma pesquisa, há uma questão que se quer resolver, a
que se costuma chamar de problema. Assim, essa questão ou
problema é o que vai impulsionar o pesquisador em busca de uma
resposta ou de uma solução. O encontro da resposta para essa
questão ou da solução para esse problema é a finalidade interna
principal da pesquisa. Chegar à conclusão significa encontrar a
resposta ou a solução da pergunta ou do problema.
A finalidade interna de nossa pesquisa é chegar a essa
conclusão. Podem-se ter como objetivos internos, por exemplo, a
demonstração de alguma característica, a demonstração de alguma
relação entre fenômenos, a demonstração de ausência de relação
entre acontecimentos, a comprovação de uma causa ou de um
efeito, a prova de um equívoco ou de um acerto, a explicação
sobre certo evento ou teoria.
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
255
Por isso, o objetivo central está diretamente ligado à hipótese
básica, se houver, e ao problema. Pode haver um sentimento de
repetição na elaboração desses itens, mas esta repetição denota
coerência no projeto, como exposto. Às vezes o pesquisador é
pego numa armadilha: para evitar a repetição, ele inova no objetivo
central, o que torna o projeto incoerente.
Os objetivos específicos ligam-se diretamente às questões
orientadoras, se houver. Eles revelam etapas intermediárias que
devem ser atingidas para se chegar ao objetivo central.
5.10 Revisão de literatura
A revisão da literatura é a parte do projeto de pesquisa em
que o pesquisador apresenta qual é o estágio atual de
desenvolvimento daquele tema, em que consistem os
conhecimentos atuais acerca daquele problema, qual é a posição
da literatura, o que foi pesquisado e desenvolvido até esse
momento sobre a realidade que ele quer investigar, ou seja, qual é
o estado da arte sobre o tema.
Deve o pesquisador demonstrar o “estado da arte” no seu campo
de conhecimento, descrevendo as principais correntes de
pensamento, as principais teorias, como o conhecimento naquele
campo se desenvolveu até o momento e em que consiste o
conhecimento atual sobre o tema.
De certa forma, a descrição do estado da arte, ao mesmo tempo
em que pode justificar o projeto de pesquisa, demonstra o
conhecimento que o pesquisador tem do tema proposto.
5.11 Teoria de base ou embasamento teórico
Na teoria de base o pesquisador descreverá o seu quadro
teórico de referência, ou seja, ele apresentará que em teorias ou
idéias pretende se basear para abordar o problema selecionado
como objeto de pesquisa. Ele identificará as teorias ou quadros
256
Como escrever um projeto de pesquisa?
teóricos de que se utilizará para analisar sua pergunta-problema,
que pensamentos o influenciarão na busca e tratamento das
informações, no uso dos conceitos, na elaboração das definições.
Também pode ser chamada de embasamento teórico. Revela
uma opção feita pelo pesquisador, a partir da revisão da literatura,
estando ligada, também, à abordagem metodológica.
É possível que o embasamento teórico seja feito juntamente
com a revisão de literatura, sem um tópico destinado
exclusivamente a isso, assim como pode antecipar questões
metodológicas.
5.12 Sistema conceitual
No item sistema conceitual, se o pesquisador já estiver com a
pesquisa relativamente avançada, ele poderá definir as categorias
ou conceitos principais a serem utilizados na pesquisa, como serão
operados e quais são suas definições.
É possível que o sistema conceitual componha a teoria de base
ou embasamento teórico, sem a necessidade de um tópico
exclusivo para isso. Dependerá da especialidade ou importância
do sistema conceitual no projeto.
5.13 Estrutura preliminar
O pesquisador deverá apresentar também, no projeto, a estrutura
preliminar da monografia/dissertação/tese. Trata-se do índice
provisório da monografia/dissertação/tese a ser redigida ao final
da pesquisa. É comum que este tópico seja exigido em exames
de qualificação de dissertações ou teses.
Tendo formulado a pergunta-problema, deve-se fazer um “mapa”
que guiará o pesquisador através da pesquisa. Nesse mapa temse um ponto de partida, que é a pergunta-problema, e um ponto
de chegada, que será a resposta imaginada para aquela perguntaproblema. Mas o que existe entre o ponto de chegada e o ponto
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
257
de partida? O que levará o pesquisador da pergunta-problema à
confirmação da resposta que imaginou para ela? Que percurso
será esse? O que será encontrado pelo caminho?
A monografia/dissertação/tese (o texto final) é um grande
argumento. Nesse argumento, o autor (o pesquisador) se propõe
a resolver determinado problema ou a responder certa pergunta e
percorrerá inúmeras páginas demonstrando ao leitor (o orientador,
os examinadores, os colegas) que existe uma solução para esse
problema ou uma resposta para essa pergunta. E, durante páginas,
o pesquisador estará convencendo (ou tentando convencer) essas
pessoas de que a solução ou resposta encontrada é a única
possível ou a melhor de todas ou a ideal ou a mais atualizada ou
a mais completa. E tudo isso se faz manuseando-se informações.
Assim, as informações são a matéria-prima de uma pesquisa e,
conseqüentemente, de uma monografia/dissertação/tese.
É com as informações que se constroem os vários argumentos
que formarão o argumento maior chamado monografia/
dissertação/tese. É necessário, portanto, elaborar um mapa de
informações. Esse mapa de informações, na verdade, é um índice.
O índice da monografia/dissertação/tese, a que se chamamos, no
projeto, de estrutura preliminar.
Formulada a pergunta-problema, o passo seguinte é a
formulação da estrutura preliminar do futuro texto:
a) Que tópicos, capítulos, itens, subtópicos terá?
b) Como será sua divisão e subdivisão?
c) Que assuntos serão tratados em cada parte, desde a primeira
até a última?
d) Em que ordem?
Esse é um poderoso instrumento de orientação na pesquisa. A
estrutura preliminar, ao mesmo tempo em que será sua bússola,
será, também, modificada à medida em que a pesquisa for se
desenvolvendo. Isso é natural. À medida que for lendo, analisando e
258
Como escrever um projeto de pesquisa?
interpretando as informações que são a matéria-prima da pesquisa,
pode-se mudar de opinião quanto à organização do índice.
A estrutura preliminar levará o raciocínio, passo a passo, até a
conclusão, como se fosse uma escada que, degrau a degrau, leva
ao topo. Assim, o índice indica quais degraus precisam ser
percorridos. O mapa indicará por quais caminhos deve-se passar
para chegar até o destino (a conclusão).
Desta forma, a estrutura preliminar é o retrato do megaargumento (texto da monografia/dissertação/tese), é um rascunho
do que se vai escrever, de forma mais extendida, na monografia. É
uma fôrma ou molde que precisa ser preenchida com uma massa
de informações. É a partir dessa fôrma ou molde de argumentos
que se vai buscar as informações necessárias para preenchê-la.
5.14 Metodologia
5.14.1 Função da metodologia
Na metodologia o pesquisador deverá indicar os métodos
de abordagem, os métodos de procedimento e os métodos e
técnicas de pesquisa de que se utilizará para encontrar a resposta
ou solução de sua pergunta-problema. Neste item ele deve prever,
por exemplo, se a pesquisa será qualitativa e/ou quantitativa, se
coletará dados através de pesquisa bibliográfica, documental,
entrevistas, onde estão localizadas essas informações, que
instrumentos utilizará para coletá-las, como estas informações
serão tratadas.
O rigor metodológico é o que atribuirá “seriedade” ao trabalho
produzido pelo pesquisador. A observância do rigor metodológico
vigente na época é que atribuirá cientificidade ao trabalho do
pesquisador.
O rigor metodológico diz respeito à forma como o trabalho foi
desenvolvido, ao procedimento utilizado para atingir determinado
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
259
resultado ou conclusão. A observância do rigor metodológico é o
que gera a confiança da comunidade científica em relação a
determinado trabalho de pesquisa. A comunidade científica de
determinada época “costuma” produzir ciência a partir de
determinados modelos e só reconhece como ciência ou como
válido o conhecimento que for produzido seguindo estes modelos.
Se uma determinada pesquisa não seguir estes modelos, ou seja,
se não apresentar rigor metodológico, não será aceita pelos demais
pesquisadores.
Numa pesquisa, o que leva o pesquisador da pergunta-problema
à confirmação da resposta que imaginamos são, como exposto,
informações. As informações são o que há de mais precioso numa
pesquisa – depois da genialidade do pesquisador, claro. São as
informações e o tratamento dado a elas que permitirão a
comprovação ou demonstração da resposta como sendo a única
cabível para a pergunta-problema formulada.
5.14.2 Ausência de uniformidade
Não há uniformidade quanto ao que deve ser posto neste tópico.
Há várias expressões utilizadas pelos pesquisadores, com uma
variedade semântica grande, o que dificulta o trabalho dos iniciantes.
De uma forma geral, pode-se dizer que a metodologia de
abordagem ou o método de abordagem ou, simplesmente, a
abordagem, é a concepção teórica do pesquisador sobre como
tratar o tema. Como dito acima, é possível que isso já seja revelado
no embasamento teórico. A abordagem pode ser, por exemplo:
hermenêutica, fenomenológica, dialética, hipotético-dedutiva, indutiva.
O método de procedimento pode ser, por exemplo:
comparativo, histórico, estatístico, monográfico.
Os tipos de pesquisa podem ser, exemplificativamente:
pesquisa de campo, pesquisa bibliográfica, pesquisa documental.
260
Como escrever um projeto de pesquisa?
As técnicas de pesquisa podem ser, de forma exemplificativa:
entrevistas, observação, estatística.
É importante ressaltar que não é obrigatório haver apenas um
método de abordagem, assim como podem ser feitos mais de
um tipo de pesquisa, com mais de uma técnica. O tipo de
problema formulado é que vai indicar a necessidade quanto à
forma de abordagem, quanto aos dados necessários para a
verificação da hipótese, quanto às técnicas necessárias para
coletar os dados. Não há uma escolha propriamente dita dessas
metodologias, pois tudo deve estar justificado a partir do problema
proposto e servir a ele.
5.14.3 Que informações são necessárias?
Deve-se perguntar ao problema e ao mapa, ao índice, à estrutura
preliminar. Diante do mapa ou estrutura preliminar, vêem-se, através
dos tópicos (capítulos e subdivisões) ali previstos, as informações
a serem buscadas. É o índice que diz o que deve ser lido, quem
deve ser entrevistado, que dados devem ser coletar. Os títulos
que formam os índice são as setas que apontam os caminhos.
O mapa ou estrutura preliminar indica quais são as leituras a
serem feitas para obter as informações para construir pequenos
argumentos que formarão o argumento maior. Em outras palavras,
a estrutura preliminar indica quais são as fontes que para a coleta
das informações necessárias à construção dos tópicos e capítulos
que formarão o texto da monografia.
Olhando a estrutura preliminar, a partir do conhecimento que o
pesquisador já tem sobre o assunto, ele deverá anotar, abaixo de
cada tópico:
a) Quais são os outros assuntos que terá de abordar,
b) Que autores terá de comentar,
c) Que documentos terá de analisar,
d) Que comparações terá de fazer,
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
261
e)
f)
g)
h)
Que elementos terá de relacionar,
Que relações terá de interpretar,
Que livros terá de buscar,
Que leis, tratados, biografias, relatos, processos, julgados,
terá de conhecer,
i) Com que pessoas terá de conversar,
j) Que pessoas terá de entrevistar,
k) Que órgãos terá de consultar,
l) Que detalhes terá de esclarecer,
m) Que dados terá que analisar.
Depois de respondidas essas perguntas, o pesquisador estará
com um mapa bem mais detalhado do que antes. São essas as
informações de que ele precisa para desenvolver sua pesquisa e
escrever sua monografia.
Já se sabem quais são as informações necessárias para
preencher o índice e construir os argumentos de defesa para a
resposta. Mas como chegar a essas informações? Começa a fase
da pesquisa usualmente conhecida como coleta de dados. Para
que se analisem e interpretem as informações, é preciso, antes,
coletá-las.
Existem diversas formas de coletar os mais variados tipos de
informações. São as técnicas ou tipos de pesquisa: pesquisa
bibliográfica, pesquisa documental, pesquisa experimental,
entrevistas, aplicação de formulários e questionários, estudos de
caso, observação sistemática.
Algumas pesquisas são desenvolvidas a partir de combinações
de técnicas de coletas de dados, mas nenhuma prescinde da
pesquisa bibliográfica. O pesquisador deve conhecer essas
técnicas de coletas de informações para que possa identificar quais
são as mais apropriadas para sua pesquisa.
262
Como escrever um projeto de pesquisa?
5.15 Resultados esperados
Nem sempre se exige a presença do tópico resultados
esperados ou produtos. O pesquisador deve estar atento às regras
da instituição sobre as partes necessárias do projeto. Deve indicar,
neste tópico, se a pesquisa resultará em publicações, em
comunicações científicas, em patentes, em industrializações, ações,
intervenções etc.
5.16 Cronograma
O cronograma é a previsão, em relação ao tempo, das fases
de uma pesquisa. É a agenda da pesquisa, em forma de tabela. O
pesquisador prevê quais as semanas ou meses que tem pela frente
e localiza, apontando, em cada período, que etapas da pesquisa
serão desenvolvidas. É a organização do tempo da pesquisa.
Como fazer um cronograma? Elabora-se uma tabela de tempo,
com a previsão das semanas ou meses se tem pela frente e tentase imaginar que etapas da pesquisa serão desenvolvidas em cada
momento.
O cronograma, se bem previsto, pode ajudar a imprimir o ritmo
correto à pesquisa, sem que o pesquisador se adiante
desnecessariamente e sem se atrasar demais, afinal, sempre há
um prazo para a pesquisa e, muitas vezes, é esse prazo que
determina a velocidade do trabalho.
Se não se calcular razoavelmente o tempo que necessário para
a pesquisa – não apenas quantas horas por semana, mas quantas
semanas ou quantos meses –, corre-se o risco de passar muito
tempo numa fase da pesquisa, sem avançar, e acabar atropelando
etapas subseqüentes para não perder o prazo, prejudicando o
trabalho feito. O pesquisador deve ser realista nesta previsão.
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
263
Vejam-se alguns exemplos de cronogramas:
Exemplo 1:
Exemplo 2:
5.17 Orçamento
O orçamento, também apresentado em forma de tabela, exibe uma
estimativa detalhada dos custos da pesquisa. Devem ser apresentados
os tipos de gastos previstos e de quanto serão esses gastos.
Normalmente é um tópico exigido quando há financiamento da
pesquisa por agência de fomento.
5.18 Conclusão
Como o projeto é a projeção do planejamento da pesquisa, é
uma projeção do que deverá ser feito, não cabe um tópico para
conclusão, já que esta só acontecerá no final da execução da
pesquisa, cujo planejamento é feito no projeto.
264
Como escrever um projeto de pesquisa?
Ora, se o pesquisador ainda está planejando a pesquisa, não
pode ter, já, a conclusão.
5.19 Referências
As referências ou bibliografia ou referências bibliográficas
do projeto indicam as obras já consultadas ou a serem estudadas
na pesquisa. A diferença é que, enquanto sob o título bibliografia
listam-se livros ou textos literários em papel, citados ou não, sob
o título referências, aceitam-se outras fontes, como as eletrônicas
e as documentais, desde que citadas no trabalho, e sob o título
referências bibliográficas devem aparecer as obras literárias em
papel citadas no trabalho.
Devem ser consultadas as regras adotadas pela instituição para
elaboração de referências bibliográficas e de listagem de
bibliografia.
5.20 Apêndice
No apêndice o pesquisador pode apresentar formulários,
questionários ou mapas que já tenha elaborado, fotos, gráficos
etc. Não é um item obrigatório.
5.21 Anexos
Os anexos são complementações ao projeto, na forma de
textos, documentos, fotos, formulários etc., similares ao apêndice,
mas elaborados por terceiros, desde que considerados importantes
para a compreensão da proposta.
Assim como o apêndice, sua presença não é obrigatória e só
deve ocorrer quando realmente necessária.
6 . Formatação
Por fim, o pesquisador deve formatar seu projeto segundo as
normas de apresentação escrita seguidas pela instituição, como
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
265
as comumente adotadas normas elaboradas pela Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
7. Bibliografia
ANDRADE, Maria Margarida de. Introdução à metodologia do
trabalho científico. São Paulo: Atlas, 1997.
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São Paulo: Hucitec, 1997.
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Francisco Alves, 1991.
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metodologia científica: fundamentos e técnicas. 6. ed. Papirus:
Campinas: 1997.
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HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias qualitativas na
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KÖCHE, José Carlos. Fundamentos de metodologia científica: teoria
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LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica. Porto Alegre:
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SALOMON, Délcio Vieira. Como fazer uma monografia. São Paulo:
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SALVADOR, Ângelo Domingos. Métodos e técnicas de pesquisa
bibliográfica. 11. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Sulina, 1986.
Roxana Cardoso Brasileiro Borges
267
O MERCOSUL E SUAS RELAÇÕES COM A ALCA
E A UNIÃO EUROPÉIA
Saulo José Casali Bahia
Juiz Federal (SJBA) e Professor Adjunto (UFBA).
Doutor em Direito (PUC-SP).
Sumário: 1. O estágio atual do Mercosul. 2. O Mercosul e a ALCA. 3. O
Mercosul e a União Européia
1. O estágio atual do Mercosul
A integração entre países, embora exista quanto a isto alguma
divergência na doutrina, possui estágios diversos, nem sempre
sucessivos. E a integração comporta vários tipos, também não
necessariamente sucessivos, pois não se pode dizer que a
integração econômica tenha sido sempre a primeira a ocorrer,
embora o seu avanço sempre produza a necessidade de uma maior
e posterior integração jurídica e política.
Quanto aos estágios e o tipo de integração, o exemplo da integração
econômica européia parece ser, para a América Latina, em razão da
precedência e do estágio avaçado, um paradigma a ser observado,
embora não se requeira que seja necessariamente imitado.
O primeiro passo que geralmente é adotado consiste na
formação de uma área de preferências aduaneiras (Tariff
Preferences), onde passam os países a usufruir de facilidades
comerciais derivadas de tarifas aduaneiras mais reduzidas. A
reciprocidade, base deste nível de integração, gera uma redução
de custos dos produtos e serviços, dinamizando a economia dos
Estados ao permitir a expansão do mercado e do consumo. Via de
regra, as preferências aduaneiras são estabelecidas em relação a
serviços ou bens onde ocorre franca complementariedade entre
269
os Estados envolvidos, ou onde a concorrência não se mostrar
capaz de promover grave desequilíbrio para qualquer das partes.
A zona de preferência tarifária é estabelecida entre os Estados
partes do acordo celebrado para este fim. Trata-se de uma situação
diversa daquela onde a convergência de interesses se verifica para
a finalidade de união de esforços no tocante à fixação de tarifas
em relação a terceiros países, chamada de União Aduaneira
(Customs Union). Neste nível, as tarifas aduaneiras em relação a
terceiros países é comum para os Estados que celebraram o
tratado de constituição desta união, que permite um maior poder
de barganha no plano internacional. Surge uma política comercial
comum e uma tarifa externa comum em relação a terceiros estados.
O nível mais avançado de integração econômica corresponde à
Zona de Livre Comércio (Free Trade Association), onde a franca
liberalização comercial diz respeito aos bens, serviços e capitais,
e a circulação se faz acompanhar do livre estabelecimento e da
livre concorrência, no grau que as partes entenderem pertinente.
Todavia, o aprofundamento da prática do regime das 5 liberdades
previsto para a Zona de Livre Comércio pode gerar graves
desigualdades e desequilíbrios, restando setores produtivos de
um ou alguns dos países envolvidos seriamente afetados, pela
impossibilidade de competir com setores, em outros países, melhor
articulados e desenvolvidos. Os riscos sociais e econômicos fazem
com que a zona de livre comércio dependa, para o seu completo
sucesso como ambiente de liberdades, de certa coordenação de
políticas macroeconômicas e alguma intervenção estatal na
economia, organizando as forças produtivas e evitando que o puro
esforço da “mão invisível do mercado” dirija as ações e aponte as
consequências da integração. Basta mencionar o esforço em
promover as chamadas inversões econômicas intra-bloco, que
envolve o fechamento e a abertura de fábricas, treinamento de
pessoal, deslocamentos de mão de obra etc, que não poderiam
270
O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia
ser promovidos, senão a maior custo social, senão pela força dos
Poderes Públicos. Este estágio é o do Mercado Comum (Common
Market), que pode fazer a coordenação através de organismos
supranacionais (caso da União Européia) ou meramente
intergovernametais, dependendo do consenso dos Estados
envolvidos (caso do Mercosul).
A integração econômica, geralmente (mas não necessariamente)
após alcançado o estágio do Mercado Comum, conflui de modo
natural para a adoção de uma moeda única, na medida em que farse-á necessária a facilitação das trocas e obtida certa harmonização
nos fluxos comerciais e financeiros. É a etapa da União Monetária
(Monetary Union), atual estágio europeu.
Por fim, a frustrada recente tentativa de aprovar a Constituição
Européia parece representar o último estágio da integração, qual
seja, a União Política (Political Union).
Sem dúvida alguma, a Constituição Européia buscou reforçar a
autoridade supranacional comum. Ainda que não se visasse
aniquilar a personalidade internacional por completo dos Estados
membros, boa parcela de suas soberanias seria cedida ao ente
central. Falava-se em blocos de constitucionalidade (presentes nas
constituições nacionais) intocáveis, e resguardados da sanha
invasora comunitária. Venceu, todavia, no primeiro embate, o
pensamento daqueles que consideram ainda muito prematura a
adoção de uma integração política em grau mais avançado. Podese considerar, todavia, que foram os próprios impactos positivos
e negativos da integração econômica que foram avaliados,
sabendo-se que muitas das ações comunitárias produziram danos
de monta para muitos setores em vários estados partes, ainda
não devidamente assimilados. O custo da integração é alto, e o
desemprego e a recessão presentes em algumas zonas da Europa
impedem, por ora, que a unificação seja tida como a solução
preferencial a ser adotada.
Saulo José Casali Bahia
271
O Mercosul caminha a uma velocidade de integração visivelmente
inferior àquela que a Europa já possuiu.
Previu-se para o Mercosul que haveria um programa de
liberalização comercial (com redução progressiva, linear e
automática de tarifas, junto com a remoção de restrições nãotarifárias ou medidas de efeito similar). Ao lado disto, estabeleceuse uma tarifa externa comum e a harmonização de políticas macroeconômicas e setoriais, onde apropriado. A verdade é que o
cronograma da desgravação tarifária vem sendo prorrogado
reiteradamente. As listas de exceções nunca foram eliminadas por
completo. Fala-se constituir o Mercosul uma União Aduaneira
incompleta, uma Zona de Livre Comércio imperfeita e um quaseMercado Comum. Trata-se de uma visão pragmática e realista,
atuando a diplomacia dos países mercosulinos, notadamente o
Brasil, com certa prudência, evitando que a integração do cone
sul descambe para o passionalismo.
2. O Mercosul e a ALCA
Há, atualmente, uma grave divergência entre o Brasil e os USA
no tocante ao ritmo de implementação da Área de Livre Comércio
das Américas (ALCA), onde a posição brasileira, ao contrário da
americana, consiste na estratégia de negociar como bloco
(envolvendo os 4 Estados do Mercosul, conscientes os países
integrantes do Mercosul da maior vantagem comparativa na
negociação em bloco) e em todas as áreas simultaneamente (“single
undertaking”), o que produz uma redução no ritmo de negociações.
Hoje em dia, a tarifa externa comum varia de 0% a 20%, com
média de 14%, o que já representa níveis bastante inferiores aos
já praticados.
Qual a razão (ou razões) para explicar a estratégia brasileira?
Antes de mais nada, o Brasil vê a ALCA como uma Zona de
Livre Comércio comandada ou pela mão invisível do mercado ou
272
O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia
pelos interesses comerciais dos países cujas economias sejam
as mais competitivas na região (o que poderia ser dito dos Estados
Unidos). A ALCA não teria, para o Brasil, qualquer pretensão de
constituir um Mercado Comum, com intercâmbio planificado e
disposição de cessão de qualquer parcela de soberania dos
Estados envolvidos.
Assim, o Brasil vê certos riscos na criação imediata da ALCA,
pois muitas empresas brasileiras continuam a operar com vetores
produtivos inadequados e ainda não estão aptas a competir sob
níveis reduzidos de proteção estatal. E fatores institucionais impedem
a redução dos custos de transações no Brasil. Todavia, não se
pode negar certas oportunidades, pois a integração hemisférica
pressiona e exige a reestruturação de indústrias localizadas no Brasil,
melhorando suas condições de competitividade.
Como outros riscos, pode-se notar que, entre os membros da
ALCA, os interesses em criar um Mercado unificado são
assimétricos, e apenas 4 países da região possuem um leque
diversificado de produtos para exportação. Será certamente
necessário o aumento, pelos Estados, dos investimentos em
ciência e tecnologia, e a criação de condições que possam
encorajar o setor privado a cumprir as suas funções.
Como riscos à estabilidade monetária, pode-se apontar para
que muitos países latinoamericanos usam âncoras externas para
combater a inflação, não sendo o dolar uma âncora ideal para
uma futura integração. Mas como oportunidades, se a Argentina,
o Brasil, o Canada e o México harmonizarem as suas políticas de
taxas externas, suas moedas poderiam servir como uma âncora
inicial para a criação de sistema monetário para as Américas
(Monetary System of the Americas - MSA) e para promover a
convergência de políticas macroeconômicas no hemisfério.
A atual agenda a ALCA possui três desafios principais: a questão
monetária, a ajuda estatal e a ciência e tecnologia. Enquanto estas
Saulo José Casali Bahia
273
dificuldades persistirem, as assimetrias no hemisfério não irão
propriamente ser resolvidas. Mas não deve haver dúvida de que as
negociações da ALCA estimulam a transparência e a coerência
em políticas domésticas, e a negociação em questões envolvendo
a regulação do mercado interno abre novas oportunidades para a
cooperação.
A iniciativa da ALCA pressupõe que o Brasil tenha regras estáveis
governando o comércio exterior, como uma taxa equilibrada para
as trocas e um estável regime de importação.
Muitos outros riscos podem ser apontados, desde o decréscimo
dos direitos trabalhistas (bastante desenvolvidos no Brasil, sendo
a proteção ao trabalhador tida como maior do que em países como
os EUA), a destruição das tradições culturais (com a massificação
comercial) e da agricultura familiar (com o implemento da produção
em escala). Fala-se em danos que vão da seguridade social à
biodiversidade, da destruição de médias e pequenas empresas
até o crescimento das dificuldades e responsabilidades
internacionais. Os fracos tornar-se-iam mais fracos, e os fortes
mais fortes. Caberia aos Estados menos desenvolvidos ou
competitivos todos os custos do ajustamento e das inversões
econômicas, bem como os custos de novos investimentos. Quando
se fala em ALCA, há uma falta de previsão de auxílios ou de fundos
regulatórios, e nada de muito concreto se fala quanto às barreiras
não-tarifárias (que podem ser impostas por certos países).
A ALCA pode representar, por outro lado, um abandono do
projeto integracional do Mercosul, ou afetar o mesmo, fazendo
com os países integrantes deste bloco percam as suas vantagens
comparativas.
Todavia, são poucos os que também não vejam o estímulo ao
comércio, a redução de custos, o acesso a bens e serviços, o
crescimento da renda e o desenvolvimento dos países envolvidos.
274
O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia
Existe nos países membros do Mercosul uma clara consciência
de que a integração econômica, por qualquer via, não pode
desprezar o desenvolvimento social em prol de ganhos absolutos
mas mal partilhados entre os segmentos da população. “Crescer
e depois dividir” consistiu em uma política econômica hoje
repugnada, pois a experiência já demonstrou que a concentração
de renda fomentou apenas a perpetuação da pobreza e gera um
mecanismo auto-defensivo em favor da própria concentração. É
consensual, na América mercosulina, a necessidade de ligar o
desenvolvimento econômico e a justiça social, com a rejeição da
opressão da lei do mais forte, devendo-se buscar o desenvolvimento
equilibrado e durável, com a participação da sociedade.
Não foi à toa que uma consulta pública, no Brasil, em relação
à ALCA, com 10.149.542 votantes e promovida por cerca de 60
instituições, em 4000 Municípios, ofereceu há poucos anos o
desalentador resultado de 98% contra e apenas 1% em favor da
criação desta zona.
Os riscos com a ALCA não podem ser, como até o presente
momento se sugere, meramente um problema nacional. Em
verdade, a integração via ALCA está a reclamar, para muitos
países, um choque de solidariedade. Para tanto, e como
salvaguarda, insiste o Brasil em proceder à negociação através
do MERCOSUL, e realizar a discussão sobre todos os setores
(subsídios, dumping, no chamado entendimento único ou através
do “single undertaking”), e não apenas sobre a data de início,
dentro da conhecida estratégia de “eixo e raios” (“hub and spokes”)
ou do bilateralismo.
3. O Mercosul e a União Européia
Desde a criação do Mercosul, en 1991, houve a presença e a
ajuda institucional da União Européia, que sempre considerou o
Saulo José Casali Bahia
275
Mercosul como um instrumento capaz de evitar o alargamento da
influência dos EUA no continente americano.
Assim, em 1992 foi assinado o Acordo Bilateral de Cooperação
Institucional, e em 1994 o Plano de Duas Fases UE-Mercosul para
reforçar as trocas comerciais. Em 1995 (15/12) foi a vez do Acordoquadro de Cooperação Interregional, o primeiro do gênero por
uniões aduaneiras, e foi prevista a criação de uma associação
interregional. No ano de 2006, houve a assinatura do “Projeto de
apoio da União Européia para a instalação do Parlamento do
Mercosul”.
O interesse em não ver alargar a influência de um poder
econômico rival (EUA) não é, todavia, a única motivação existente
para a atenção dispensada pela UE ao Mercosul.
Várias outras razões servem a justificar o vívido relacionamento
entre os Blocos.
Antes de mais nada, dois membros da UE (Espanha e Portugal)
guardam identidade de valores e de civilização com os países do
Mercosul, donde o interesse em manter vínculos aproximativos.
As economias (temperada do hemisfério norte e tropical do
hemisfério sul) guardam inegável complementariedade, seja diante
das injunções e inversões climáticas, seja diante dos graus
diferenciados e diversificados que possuem.
A UE representa 1/3 des exportações do Mercosul, que recebe
42% dos investimentos europeus. É o Mercosul o quarto mercado
mundial depois do NAFTA, da UE e do Japão, com PIB de 1,1
bilhões de dólares.
Assegurar a existência do Mercosul pode contrabalançar não
somente os EUA, mas também a idéia da ALCA (Área de Livre
Comércio das Américas), zona de livre comércio desprovida de
qualquer pretensão de supranacionalidade, harmonização ou
coordenação de políticas macroeconômicas, e onde se imagina
haver o resultado principal de abertura do mercado para os EUA.
276
O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia
A diagonalização com o Mercosul permitiria aos países membros
do Mercosul, segundo estudos já realizados, um crescimento do
PIB, com a liberalização comercial, maior que aquela advinda da
associação na ALCA (Brasil com 0,76% mais que com a ALCA, e
Argentina com 4,0% mais que com a ALCA).
Obviamente, as ações Mercosul-U E seguem estratégia
organizada definida, e sintetizada em 3 pilares:
a) a cooperação política ;
b) a liberalização gradual e recíproca das trocas, em todos os
setores;
c) a cooperação mútua reforçada.
Os acordos acima mencionados cuidaram do estabelecimento
de uma estrutura institucional formada pelo Conselho de
Cooperação (nível ministerial), pela Commissão Mista de
Cooperação e pela Subcommissão Comercial.
Vem ocorrendo Reuniões Regulares dos órgãos desde 1996, e
em 2000, na Reunião do CMC de Buenos Aires, foi decidido
realizar a negociação por 3 grupos.
O Grupo 1 corresponde ao diálogo político, prevendo-se
reuniões regulares de chefes de Estado e autoridades da UE,
reuniões anuais de chanceleres e reuniões ministeriais e de altos
funcionários. Ainda é aguardada a definição de uma data para o
início da associação interregional.
O grupo 2 corresponde à cooperação, com o reforço das
instituições, das políticas setoriais e macroeconômicas, da
integração física, das estruturas comerciais e dos laços com a
sociedade civil.
O grupo 3 corresponde aos temas comerciais, com 3 subgrupos: GT1 – Comércio de mercadorias, Tarifas, Normatização,
Dumping, Regime de origem e Aduana; GT2 - Serviços, Propriedade
Intelectual e Investimentos; e GT 3 – Compras Governamentais,
Concorrência e Solução de Controvérsias.
Saulo José Casali Bahia
277
Esta aproximação, todavia, não deve ser considerada como
despida de diversas e sérias dificuldades.
Como problemas, deve-se recordar que, em 1998, a Commissão
Européia adotou uma recomendação ao Conselho Europeu para
obter a autorização de negociar uma associação interregional com
o Mercosul. Todavia, houve a posição contrária da França, e a
questão da concorrência agrícola foi lembrada. Onde quase 50%
das trocas envolvem produtos agrícolas e agroindustriais, forçouse a uma negociação por 2 fases, envolvendo a Organização
Mundial do Comércio e a revisão da PAC (Políticas Agrícolas
Comuns).
Não se pode esquecer que, em matéria de comércio internacional,
a política protecionista nunca é uma posição descartada por
qualquer Estado, em qualquer ocasião. A “Revue Europe”, em edicão
de 1995 (nº 6468, em 26 abril 1995), atrevidamente, para padrões
diplomáticos, realizou a seguinte advertência: “A coragem política
é dizer aos amigos sulamericanos, e aos outros produtores do
mundo inteiro, que a Europa deve manter suas políticas, não abrir
suas fronteiras aos produtos alimentares essenciais dos outros
continentes, nem aos cereais, nem à carne, nem aos lácteos, nem
para as frutas e legumes, porque estes produtos devem ser
produzidos na Europa.”
Contra o protecionismo, e para contorná-lo quando surge durante
negociações comerciais, a estratégia do Mercosul consistiu em tratar
de temas do comércio internacional com base no princípio do “single
undertaking”. Ou se negocia todos os pontos, ou não pode haver
negociação de qualquer um deles. Não é preciso dizer do entrave
que tal posição inevitavelmente provoca às negociações comerciais
internacionais e às negociações comerciais UE-Mercosul.
E, ao lado deste entrave, entrou em cena, por parte da UE, uma
ação reativa quanto ao seu entorno (em direção à Europa Central
e do Leste e para o Mediterrâneo).
278
O Mercosul e suas relações com a ALCA e a União Européia
Por parte do Mercosul a situação também não deixa de ser
parecida, e os esforços não se concentram apenas na aproximação
com a União Européia. Também o Mercosul promove ativamente
uma ação reativa em direção ao seu entorno, notadamente com o
Chile, Bolivia, Venezuela, Pacto Andino (disto já resultando a
admissão pelo CMC da Venezuela como membro pleno), chegando
as diplomacias Mercosulina e brasileira a propor a Área de Livre
Comércio Sulamericana (ALCS), em claro contraponto à Área de
Livre Comércio Americana (ALCA), livre dos estorvos e assimetrias
que poderiam advir de uma tal relação (zona de livre comércio)
com os Estados Unidos, onde o Brasil não possuiria maior poder
de decisão.
Espera-se, portanto, que as relações entre países ocorram
sempre em prol do desenvolvimento dos Estados envolvidos, e
que o sentido de cooperação supere aquele de ganhos exclusivos,
garantindo-se, com o diálogo e o entendimento, a adoção de
medidas que possam preservar os interesses das populações
envolvidas.
Saulo José Casali Bahia
279
NOTAS PARA UMA TEORIA HERMENÊUTICOJURÍDICA
Willis Santiago Guerra Filho
Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor de Filosofia do Direito no Programa de Estudos PósGraduados (Mestrado e Doutorado) em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e dos Cursos de Mestrado
em Direito das Universidades Candido Mendes (UCAM), RJ,
e de Pós-Graduação lato sensu\da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Doutor em Ciência do Direito (Universidade de Bielefeld, Alemanha) e Livre-Docente em Filosofia do Direito (Universidade Federal do Ceará).
Sumário: 1. Generalidades. 2. Os Sentidos da Interpretação Jurídica. 3. A
Hermenêutica Jurídica Tradicional. 4. A nova Hermenêutica Jurídica: a
Interpretação especificamente Constitucional. 5. Referências.
Resumo: A hermenêutica é uma disciplina de origem filosófica, que passou para
o campo do direito, modernamente, mediada por uma inserção e desenvolvimento
em outras disciplinas, como a teologia e a filologia. A elaboração moderna e ainda
atual do que se pode chamar de abordagem clássica da hermenêutica jurídica é
devida, principalmente, ao professor alemão do Século XIX F. C. von Savigny,
que distinguiu os métodos gramatical, filológico, histórico e sistemático, enquanto
será uma contribuição posterior, de Rudolph von Jhering, a introdução do método
teleológico, sendo de se considerar uma radicalização deste método aquele dito
sociológico. A ênfase maior dada a uns ou outros desses métodos vai introduzir
uma oposição entre concepções subjetivistas e objetivista na interpretação do
direito, algo a ser superado em uma abordagem atualizada pelos recursos
semiológicos/semióticos da vertente analítica em filosofia contemporânea. A
grande novidade em matéria de hermenêucia jurídica, no entanto, são os novos
métodos da chamada inerpretação especificamente constitucional, que levam a
uma re-interpretação quando a aplicação do direito com base na hermenêutica
tradicional leva a uma ameaça os fundamentos constitucionais do direito, com
destaque para a preservação dos direitos fundamentais, evitando colisões entre
eles que possa inviabilizar algum deles, pela incidência do princípio da
proporcionalidade.
281
Palavras-chave: Hermenêutica Filosófica – Interpretação Jurídica – Hermenêutica
Constitucional – Princípio da Proporcionalidade
1. Generalidades
A etimologia da palavra “interpretação”, de origem latina, remeteria
a uma prática adivinhatória romana, muita antiga, baseada na
“leitura” do que se via ao abrir ritualmente animais sacrificados,
em suas entranhas (inter pres), para prognosticar o futuro. No
mesmo ambiente cultural, outras formas divinatórias, menos
cruentas, eram utilizadas, como a leitura do vôo sincopado de
pássaros, como as andorinhas, e se pode mesmo afirmar que em
toda sociedade se produzem tais práticas, mágicas, de atribuição
(ou “desentranhamento”) de um sentido ao que ocorreu, ocorre e
ocorrerá, a partir de algum dispositivo considerado apto a
estabelecer vínculos entre esta realidade, mundana, com aquela
outra, superior, invisível, em que habitam as forças ou deidades
que geram e detêm o controle dessa realidade em que vivemos (e
morremos). Daí que uma outra palavra, mais erudita, que guarda
sinonímia com aquela que ora nos ocupa, a saber, “hermenêutica”,
em sua origem grega, seja associada ao deus Hermes, filho de
Zeus com a Ninfa Maya, que se tornou o mensageiro de pés alados,
mediador e responsável pela comunicação entre seu pai e os
mortais, sendo por isso atribuída a ele, na narrativa mitológica
helênica, a invenção da linguagem e da escrita.
Apesar de questionada e duvidosa (Jean Grondin), como
geralmente ocorre com a etimologia dos vocábulos, especialmente
aqueles mais significativos, esta aproximação com a mitologia,
além de esclarecedora, enquanto alegoria, nos coloca, justamente,
diante de situação que requer o emprego da interpretação, seja
como interpretatio, seja como hermèneutiké. Isso para transitarmos
de um sentido que esteja “escondido”, na interioridade de animais
sacrificados ou do pensamento de quem se dedica a entender o
282
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
sentido do mundo, podendo ainda este sentido se perder por estar
muito à vista, na literalidade de uma narrativa mítica – sendo ho
mythos, em grego, justamente este relato de uma vivência
(Emmanuel Carneiro Leão) -, donde a necessidade de se trazê-lo à
compreensão, expressando-o por meio de uma espécie de tradução
ou deciframento do que se interpreta, em linguagem corrente. É
dessa expressão e compreensão, decorrente do ajuste entre o
que está em dada sentença e a intenção a ela subjacente, para
assim aferir de sua veracidade, que se vai tratar, quando Aristóteles
- tal como em geral ocorreu, precedido por seu mestre Platão -,
faz uma elaboração filosófica do problema, no âmbito de sua obra
Peri hermèneias, traduzida em latim por De interpretatione. Assim,
apesar dessa aproximação semântica, entre o que teria sido,
originalmente, a designação de uma prática divinatória, no caso
da interpretação, enquanto forma de saber, e a hermenêutica, ao
ponto de se ter uma sinonímia entre ambas, na Grécia antiga se
diferenciava perfeitamente a ambas, ao mesmo tempo em que se
considerava guardarem entre si uma espécie de parentesco, tal
com se nota no pequeno diálogo de Platão denominado Epínomis,
ou seja, “apêndice”, a outro mais extenso, que é “As Leis”, sendo
aquele denominado também “O Filósofo”, quando já em sua
segunda manifestação o personagem designado com “O
ateniense” considera como duas espécies de um mesmo gênero
de saber a quiromancia (mantiké) e a hermenêutica, ambas
incapazes de conduzir ao saber verdadeiro, a Sophia. Isto porque
a hermenêutica, enquanto arte ou “capacidade” (na trad. bras.) geral
de interpretar oráculos, conduziria à compreensão do que é dito
por estes que, em seu estado de êxtase, de mania, sequer sabem
o que dizem, mas ainda não permite estabelecer se é verdadeiro
(alethes) o que foi dito.
Em texto clássico e de grande importância histórica, denominado
“A Origem da Hermenêutica”, de 1900, Wilhelm Dilthey, logo no
Willis Santiago Guerra Filho
283
princípio, assevera o A. que a “arte de interpretar (hermeneía) nasceu
na Grécia, fruto da necessidade de ensinar”. Concretamente, este
ensino baseava-se em textos poéticos como os de Homero e
Hesíodo, para citar apenas dois dos mais conhecidos dentre os
“pais-fundadores” da Civilização que é um dos pilares daquela
dita Ocidental. Daí porque um outro filósofo contemporâneo,
identificado com a elaboração filosófica da hermenêutica, Paul
Ricouer, na abertura mesmo de sua obra, igualmente clássica, “O
Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica”, vai afirmar
que o problema da interpretação é colocado, primeiramente,
enquanto um problema de exegese, ao aparecer “no contexto de
uma disciplina que se propõe a compreender um texto, a
compreendê-lo a partir de sua intenção, baseando-se no
fundamento daquilo que ele pretende dizer”. Eis que terminamos
por introduzir uma terceira palavra, “exegese”, também considerada
um sinônimo de interpretação, mas que se restringiria a uma
dimensão mais filológica, por vincular a interpretação a objeto de
certo tipo, que são os textos. Ao mesmo tempo, percebe-se aí a
grande amplitude em que, já nesse nível exegético, o problema da
interpretação se situa, com implicações para além – ou aquém -,
inclusive, da própria filosofia, especialmente no campo de religiões
como aquelas baseadas em textos, a exemplo dos Vedas, da Bíblia
e do Corão, assim como da literatura em geral e, também, de
maneira igualmente paradigmática, desde épocas bastante
recuadas, no campo do Direito, na forma da interpretação jurídica.
Contemporaneamente, pode-se destacar a interpretação
psicanalítica como um exemplo que se situa neste paradigma.
2. Os Sentidos da Interpretação Jurídica
O problema hermenêutico pode ser considerado, principalmente
no âmbito das chamadas ciências do espírito ou culturais, como
um desdobramento da questão metodológica e, portanto, como
284
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
uma preocupação que se coloca igualmente ao nível
epistemológico, visto que ‘interpretação’, em sentido amplo, é
sinônimo de “compreensão”, quando esta seria precisamente a
tarefa a ser realizada por aquelas ciências, entre as quais se inclui
o Direito, em oposição ao objetivo descritivo das ciências ditas
exatas ou naturais. “Explicamos a Natureza, compreendemos a
Cultura”, foi o lema de Dilthey.
No campo do Direito, em virtude mesmo da conexão íntima
que se demonstrou existir entre conhecimento e interpretação, a
ponto de tornar em grande parte coincidentes a questão
hermenêutica com a questão epistemológica jurídica, verifica-se
um tratamento da primeira que em tudo faz lembrar aquele
dispensado a esta última. É assim que ao lado dos que consideram
a atividade de interpretação do Direito como voltada para a
determinação da verdade, conferindo-lhe, portanto, caráter científico,
outros a concebem como mera técnica decisória, em face de
valores antagônicos, enquanto Kelsen entende não ser este sequer
um problema de Teo-ria do Direito, mas sim de Política do Direito,
postulando, ab initio, ser a interpretação realizada pelos órgãos
estatais aplicadores do Direito a interpretação correta, em qualquer
circunstância, e distinguindo, nesta aplicação, um ato de
conhecimento, que transcende os limites do Direito positivo,
revelador de inúmeras possibilidades de interpretação de uma
norma, e um ato de vontade, onde se escolhe uma delas, o que se
toma ela própria uma norma jurídica (individual), e deverá ser
considerada como autêntica e irrefutável. Incidentalmente, podese observar, na concepção kelseniana, considerada em linhas
gerais, como é impreciso o limite onde termina a interpretação e
começa a aplicação do Direito, quando, na verdade, como deflui
do que ficou assinalado, são operações obviamente distintas,
conquanto intimamente interrelacionadas. G. Tarello, aplicando ao
problema o que U. Scarpelli denominou ‘semântica terapêutica’.
Willis Santiago Guerra Filho
285
distingue inicialmente duas acepções em que se utiliza a palavra
‘interpretação’, sendo uma “aquela pela qual o vocábulo se refere
a uma atividade; a segunda acepção é aquela pela qual o vocábulo
se refere a um objeto (que eventualmente coincide com o produto
de uma atividade designável como ‘interpretação’ na primeira
acepção).” Em seguida, tomando em consideração diversos
contextos em que os termos são empregados, conclui que existe
uma “área semântica comum” entre eles, o que se evidencia
particularmente quando os vocábulos são usados com referência
à atividade dos juízes e funcionários administrativos. Assim, é
possível, sendo mesmo o mais comum, que se interprete uma
norma, mas não se chegue ao ponto de aplicá-la, o que é tarefa
específica de determinadas autoridades. O contrário, porém, não
se veri-fica, pois na atualidade é voz corrente que toda aplicação,
por mais evidente que seja o significado do dispositivo, pressupõe
uma interpretação. Finalmente, é de se ressaltar como `aplicação’
também, por sua vez, pode ser entendida de duas formas, isto é,
como `aplicação-atividade’, e como `aplicação-produto’, notando
que “quando se emprega o termo ‘interpretação’ na acepção de
‘interpretação-produto’ se refere às interpretações para a aplicação,
ou seja, às interpretações dos juízes e dos funcionários
administrativo”. Já a aplicação-atividade pode ser qualificada dentro
do que J. L. Austin chamou de ‘enunciados performativos’, para
designar a função operativa da linguagem, na medida que não se
prestam tanto a dizer algo - como ocorre na interpretação-atividade,
onde se diz que um poder, direito ou obrigação é concedido a
alguém -, quanto a fazer com que o indivíduo seja investido em
determinada situação subjetiva, ao passo que a aplicação-produto
e constituída pelo próprio fato desta investidura.
O que caracteriza o emprego da interpretação no Direito é sua
finalidade eminentemente prática, onde o intérprete deseja
compreender não aquilo que o autor do texto normativo lato sensu
286
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
disse ou quis dizer - donde o despropósito de polêmicas do tipo
daquela entre subjetivistas e objetivistas, a ser considerada
oportunamente -, mas sim quer saber como ele deverá se comportar
diante da prescrição normativa, como deverá julgar concretamente
em face dela, se for um juiz; como orientará o comportamento de
outros para entendê-la ou cumpri-la, caso seja professor, jurista
ou advogado. Por outro lado, a interpretação jurídica é revestida
igualmente de importância teórica inexcedível, já que a própria
ciência do Direito é uma ciên-cia prática, voltada para o controle e
organização da sociedade, ao propiciar a redução dos conflitos
intersubjetivos de interesses. Na verdade, a hermenêutica jurídica
possui diversos níveis, pois se pode divisar uma espécie de
interpretação doutrinal, realizada de uma perspectiva extrasistemática, no âmbito da Política do Direito ou da filosofia jurídica,
onde se estuda o momento valorativo e ideológico da interpretação,
para justificar racionalmente e de maneira objetivamente avaliável
o objetivo do ato interpretativo. Por outro lado, existe o que se
denomina interpretação operativa, mais ligada à práxis judiciária, a
qual pode ocasionar uma verdadeira teoria, científica e descritiva
da interpretação, ao se ocupar da construção de modelos
hermenêuticos específicos para o tratamento do Direito em sua
concretude.
Por outro lado, a interpretação jurídica é revestida igualmente
de importância teórica inexcedível, já que a própria ciência do
Direito é uma ciência prática, voltada para o controle e organização
da sociedade, ao propiciar a redução dos conflitos intersubjetivos
de interesses. Na verdade, a hermenêutica jurídica possui diversos
níveis, pois se pode divisar uma espécie de interpretação doutrinal,
realizada de uma perspectiva extra-sistemática, no âmbito da
Política do Direito ou da filosofia jurídica, onde se estuda o
momento valorativo e ideológico da interpretação, para justificar
racionalmente e de maneira objetivamente avaliável o objetivo do
Willis Santiago Guerra Filho
287
ato interpretativo. Por outro lado, existe o que se denomina
interpretação operativa, mais ligada à práxis judiciária, a qual pode
ocasionar uma verdadeira teoria, científica e descritiva, da
interpretação, ao se ocupar da construção de modelos
hermenêuticos específicos para o tratamento do Direito em sua
concretude. A interpretação operativa assume uma estrutura
dogmática, ao elaborar um conhecimento em função de uma tomada
de decisão, que põe fim a conflitos, mesmo sem solucioná-los de
forma cabal, impedindo assim sua generali-zação insidiosa pelo
corpo social. Esta decisão se dá sob a égide de uma tensão entre
dois pólos, presa a duas determinações fundamentais: uma inicial,
que impõe a assunção de um ponto de partida e de apoio,
convencionado previamente e aceito de um modo geral como apto
a fundamentar a decisão - é o dogma, constituído pela norma jurídica
abstrata, premissa maior do silogismo judicial, a espera de uma
interpretação que propicie a subsunção dos fatos con-cretos, ao
estabelecer uma equivalência com aqueles previstos na hipótese
le-gal ou suporte fático normativo (Tatbestand, dizem os alemães;
fattispecie, os italianos). O condicionamento final é a imposição
da tomada de decisão, sendo vedada a pronúncia da
impossibilidade de solução, o non liquet. Esta demarcação de
limites para a interrogação e a dúvida, informadora de todo o
processo cognitivo, é o que concede à interpretação operativa
seu caráter dogmático. A interpretação doutrinal, por seu turno,
estrutura-se de forma zetética (gr., zetein: pesquisar, investigar), o
que lhe confere uma postura aberta, que admite o questionamento
total - ou quase total, posto que sempre existem os axiomas, isto
é, pontos assentes que permitem o desenvolvimento do
pensamento -, com o qual tanto pode-se chegar a soluções de
lege lata, como de lege ferenda, ou ainda concluir dizendo que a
norma interpretada não tem um sentido preciso ou a ambígua,
hipóteses descartadas quando se realiza uma interpretação
288
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
operativa. Para atender ao objetivo da exegese de um dispositivo
legal, a via adequada é a da interpretação operativa, conforme a
uma teoria descritiva, ensejada por um modelo explicativo de
natureza empírico-semiótica.
E de fato, a importância da teoria dos signos no procedimento
interpretativo evidencia-se quando se considera que as duas
principais formas semióticas da linguagem, a comunicação e a
significação, se acham presentes ali, pois interpretar e atribuir certo
sentido ou significado a um signo, o qual provém de um emissor
(no caso da lei, o legislador) e dirige-se aos receptores (os
indivíduos subordinados ao ordenamento jurídico), veiculando uma
informação, is-to é, fazendo uma comunicação.
3. A Hermenêutica Jurídica Tradicional
Abordando agora, sucintamente, o tema da hermenêutica jurídica
tradicional, cabe assinalar, inicialmente, a insuficiência da aplicação
unilateral de qualquer método hermenêutico, na compreensão dos
textos legais. A interpretação, contudo, é uma, não se fraciona,
conquanto exercite-se por vários processos, contendo diversos
elementos ou fases: gramatical ou filológico e lógico, subdividido
este em lógica propriamente dita e social. Estes dois aspectos da
interpretação representam a permanente tensão dialética que marca
todo o processo hermenêutico entre, por um lado, a letra do
dispositivo e, por outro lado, o espírito que o anima. Neste sentido,
já preconizava a velha sentença de Ulpiano: Verbum ex legibus,
sic occipiendem est: tam ex legum sententia, quam ex verbis ( D.
50.16 - 6, § 19; “o sentido das leis se deduz tanto do espírito
como da letra respectiva”.). O processo gramatical exige,
precipuamente, o domínio perfeito da língua empregada no texto,
isto e, das palavras e frases usada em determinado tempo e lugar;
propriedade e acepções várias de cada uma delas, bem como
conhecimento das leis de composição e gramaticais. É este o
Willis Santiago Guerra Filho
289
ponto de partida do trabalho hermenêutico, sua conditio sine qua
non, (condição necessária) porém, jamais conditio per quam
(condição suficiente). O brocardo in claris cessat interpretatio (“com
a clareza cessa a interpretação”) não encontra jamais aplicação,
pois toda lei é passível de ser interpretada de forma lógico-extensiva,
e não apenas literalmente. Como regras de proceder líterogramatical, tem-se de: (1o.) examinar se não ha divergências entre
o significado comum das palavras e seu sentido técnico, quando
este, evidentemente, prevaleceria sobre o primeiro; (2o.) levar em
consi-deração a colocação da norma no corpo da lei; (3o.) enquadrar
as palavras da nor-ma não só no contexto em que se acha, mas
também relacioná-la com outras disposições sobre a matéria; (4o.)
em havendo palavras que apresentam vários sentidos literais,
interpretar verificando, inicialmente, qual deles pode-se harmonizar
com aqueles advindos da interpretação lógica, sistemática,
teleológica e histórico-evolutiva; (5o.) caso tal não ocorra, isto é,
havendo antinomia entre o sentido gramatical e os demais, lógicos
lato sensu, o intérprete deve abrir mão do primeiro em face dos
demais, dissolvendo as divergências, tendo em vista as exigências
do bem comum. Assim, pode-se enunciar duas regras elementares
da interpretação lé-xica: (1o.) deve-se atender ao sentido usual da
palavra e (2o.) deve-se sempre confrontar este sentido com aquele
resultante da conexão entre as outras palavras do texto caso estes
princípios não se coordenem. Há de se dar primazia ao segundo,
deixando o campo aberto para a interpretação lógica.
Os autores dividem a interpretação lógica em interna e externa.
Na primeira, opera-se uma indagação psicológica daquilo que foi a
vontade do legislador (mens legislatoris), considerando como a
própria vontade da lei (mens legis). Externamente ressalta a pesquisa
de ocasio legis e da ratio legis, isto é, da formação histórica do
instituto, do estudo da legislação comparada, dos trabalhos
preparatórios, das normas vigentes ao tempo da lei interpretada,
290
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
bem como sua finalidade, sui telos. Autores que se aglutinam em
torno de posição dita “subjetivista” privilegiam o momento “interno”,
na definição de qual seja a melhor interpretação, enquanto outros,
os “objetivistas”, ressaltam a maior relevância do aspecto “externo”.
Os epígonos de ambas as tendências possuem fortes argumentos
para contrapor a seus opositores, sem que os argumentos em seu
próprio favor cheguem a reunir o poder de se impor definitivamente
– e o resultado mais evidente do debate é o enfraquecimento mútuo,
antes que o fortalecimento da própria posição. Os que entendem
ser necessário captar a intenção do legislador (mens legislatoris)
sofrem o reproche de que este legislador é uma ficção, não existe
como figura concreta, pois em qualquer sociedade com um nível
maior de complexidade em sua organização e que acate padrões
mínimos de civilização, as leis não resultam da vontade de um chefe
identificável, mas sim de um processo de positi-vação, cujo resultado
não e a expressão da vontade de nenhum dos que dele tomam
parte, individualmente ou em conjunto, nem sequer do seu acordo
ou da media estatística da votação. A “vontade” do legislador termina
sendo aquela que ficou consagrada pela tradição, necessitando,
para que se manifeste com força vinculante, que seja sempre
reafirmada, por um recurso as normas interpretativas, donde se
evidencia que, até por uma questão de ordem prática, deve-se confiar
nas palavras da lei acima de tudo. A isto os subjetivistas rebatem
dizendo que seus opositores não conseguem escapar a tarefa de
identificar a intenção da lei, mas apenas, ao negar que esta deva
coincidir com a vontade, acaba fazendo com que seja dada
arbitrariamente pelo próprio intérprete, acarretando uma tremenda
insegurança nas relações jurídicas. Além disso, se não se pode
conferir um atributo psíquico a figura institucional do legislador, com
menos razão ainda se poderia fazê-lo com relação a entidades
totalmente desprovidas de propriedades psicológicas, como são
as normas jurídicas. Como se pode observar, as duas posições
Willis Santiago Guerra Filho
291
são extremamente fortes, no que diz respeito a capacidade de
desmontar-se mutuamente, mas ao mesmo tempo, completamente
débeis, quando se trata de apresentar fundamentos para suas
próprias sustentações.
Ideologicamente, a sustentação do subjetivismo favoreceria o
fortalecimento do Estado, sendo levada às últimas conseqüências
pelo despotismo, onde as leis devem ser interpretadas sempre de
acordo com a vontade do chefe absoluto, tal como ocorreu na
Alemanha no período do nacional-socialismo, quando era vigente
o chamado “Führerprinzip”, pelo qual se deveria interpretar o direito
como um todo e cada uma de suas disposições como expressão
da vontade de Adolf Hitler. Já o objetivismo, ao sustentar que com
a edição do ato legislativo a lei desprende-se do seus autores,
adquirindo existência autônoma e objetiva, vinculando a todos,
inclusive aqueles consagra um dos princípios basilares do Estado
de Direito, resguardando a so-ciedade civil do autoritarismo estatal
- contudo, radicalizá-lo conduziria a anarquia social, por se ter tantas
interpretações quantos forem os intérpretes.
O processo lógico propriamente dito ou lógico-formal consiste
em procurar descobrir o sentido e alcance das expressões jurídicas
sem recorrer ao auxílio de nenhum elemento exterior. Trata-se, então,
de uma interpretação “pura”, no sentido em que Kelsen adota,
quando se propõe a realizar uma dou-trina pura do direito (reine
Rechtslehre). Pretende do simples estudos das normas em si
mesma consideradas, ou em conjunto, por meio do raciocínio
dedutivo, obter uma interpretação. Absolutizar tal processo só seria
possível se o sistema jurídico fosse algo ideal, e não uma realidade
social concreta. A eurritmia lógica e a perfeição do raciocínio têm
um limite: a utilidade social, nem sempre fácil de enquadrar na
rigidez de um silogismo. Daí a necessidade de se recorrer a outros
processos, ditos sociais. Entre os processos sociais, desponta,
primeiramente, aquele que pode ser considerado como um método
292
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
intermediário entre estes e o lógico stricto sensu. Trata-se do
processo sistemático, pelo qual se compara o dispositivo, sujei-to
à exegese, com outros do mesmo repertório ou de leis diversas,
mas referentes ao mesmo objeto, que formam, assim, um mesmo
instituto jurídico. Este há de ser relacionado com institutos outros
e, finalmente, refere-se tudo aos princípios gerais e ao conjunto
do ordenamento em vigor.
Levando este processo sistemático às últimas conseqüências,
percebe-se a contribuição imensa que pode dar o estudo do direito
comparado à interpretação jurídica, bem assim o método históricoevolutivo. Entretanto, cumpre acentuar as peculiaridades do meio
para o qual as normas são elaboradas, donde resulta que outros
elementos, como, v. g., o teleológico, serão de mais valia para a
hermenêutica – reconhece-se como uma contribuição de Rudolph
von Jhering, posterior a Savigny, já no último terço do século XIX,
a introdução do método teleológico, sendo de se considerar uma
radicalização deste método aquele dito sociológico, advindo com
o surgimento da sociologia jurídica, no bojo do chamado
Movimento do Direito Livre, já no seéculo XX.
4. A nova Hermenêutica Jurídica: a Interpretação
especificamente Constitucional
A interpretação constitucional se reveste de especificidades, da
mesma maneira como em outros ramos do Direito, quando sobre
ele se projeta a hermenêutica jurídica. Assim sendo, enquanto na
interpretação gramatical, no campo do Direito Processual, diante
do significado de um termo, deve-se privilegiar o seu sentido
técnico, por se tratar de ramo do Direito afeto primariamente aos
profissionais da área, em se tratando de interpretação de texto
constitucional, há de se prestigiar mais o sentido comum das
palavras, visto ser o conjunto da cidadania o seu destinatário. Mais
importante do que tratar desses aspectos, relacionados a uma
Willis Santiago Guerra Filho
293
hermenêutica jurídica que já se pode considerar tradicional, em
um curso de pós-graduação, se nos afigura tratar das
especificidades da hermenêutica constitucional, ou seja, de uma
forma de interpretação jurídica especificamente constitucional, que
introduz novos cânones, em complemento àqueles consolidados
a partir do trabalho de F. C. von Savigny, ainda no século XIX.
Praticar a “interpretação constitucional” é diferente de interpretar
a Constituição de acordo com os cânones tradicionais da
hermenêutica jurídica, desenvolvidos, aliás, em época em que as
matrizes do pensamento jurídico assentavam-se em bases
privatísticas. A intelecção do texto constitucional também se dá,
em um primeiro momento, recorrendo aos tradicionais métodos
filológico, sistemático, teleológico etc. Apenas haverá de ir além,
empregar outros recursos argumentativos, quando com o emprego
do instrumental clássico da hermenêutica jurídica não se ob-tenha
como resultado da operação exegética uma “interpretação
conforme à Constituição”, a verfassungskonforme Auslegung dos
alemães, que é uma interpretação de acordo com as opções
valorativas básicas, expressas no texto constitucional.
A referência feita a um jargão em língua alemã não foi mero
acaso, pois é da recente experiência constitucional alemã - quando
após a hecatombe nazista se retoma o projeto político-jurídico
anti-positivista da época da República de Weimar -, que se extrai
os melhores subsídios para aprofundar a questão aqui colocada,
da necessidade de desenvolver uma forma específica de interpretar
a Constituição. O contato com essa experiência modelar mostra
como a nova metódica hermenêutico-constitucional resultou de
uma íntima colaboração entre produção teórica e elaboração
jurisprudencial, em nível de jurisdição constitucional. Além disso,
introduziu-se em sede de teoria do direito uma diferença entre
normas que são regras daquelas com a natureza de princípios que
repercutiu no modo como se reconfigurou o tema da hermenêutica
294
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
em Direito. É essa natureza diferenciada de princípios e regras
que suscita a necessidade de se desenvolver uma hermenêutica
constitucional igualmente diferenciada, diante da hermenêutica
tradicional. Especialmente a distinção por último referida, segundo
a qual os princípios encontram-se em estado latente de colisão
uns com os outros, requer o emprego dos cânones da interpretação
constitucional, que passamos a expor, na formulação já clássica
de Konrad Hesse, secundado, em língua portuguesa, entre outros,
por Gomes Canotilho, sendo, no entanto, de se atribuir a Friedrich
Müller, com sua “Teoria Estruturante do Direito” e a correspondente
“metódica jurídica”, o maior mérito pelo desenvolvimento dos novos
cânones hermenêutico-jurídicos.
(1) O primeiro - e mais importante - desses cânones é o da
unidade da constituição, o qual determina que se observe a
interde-pendência das diversas normas da ordem constitucional,
de modo a que formem um sistema integrado, onde cada norma
encontra sua justificativa nos valores mais gerais, expressos em
outras normas, e assim sucessivamente, até chegarmos ao mais
alto desses valores, expresso na decisão fundamental do
constituinte. O ato de in-terpretação constitucional, portanto, sempre
tem um significado polí-tico e se dá calcada numa ideologia, que,
porém, não deve ser a ideologia particular do intérprete, mas sim
aquela em que se baseia a própria Constituição. No caso da nossa,
a fórmula política se acha claramente indicado no “Preâmbulo” e
no seu art. 1º: Estado Democrático de Direito. Ela há de se situar
ao nível do que na hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer
se denomina “pré-compreensão” (Vorverständnis), designando a
pré-disposição orientadora do ato hermenêutico de compreensão.
(2) Cânone do efeito integrador, indissoluvelmente associado
ao primeiro, ao determinar que, na solução dos problemas jurídicoconstitucionais, se dê preferência à interpretação que mais favoreça
a integração social, reforçando a unidade política.
Willis Santiago Guerra Filho
295
(3) Cânone da máxima efetividade, também denominado
cânone da eficiência ou da interpretação efetiva, por determinar
que, na interpretação de norma constitucional, se atribua a ela o
sentido que a confira maior eficácia, sendo de se observar que,
atualmente, não mais se admite haver na Constituição normas que
sejam meras exortações morais ou declarações de princípios e
promessas a serem atendidos futuramente. Tal cânone assume
particular relevância na inteligência das normas consagradoras de
direitos fundamentais.
(4) Cânone da força normativa da Constituição, que chama a
atenção para a historicidade das estruturas sociais, às quais se
reporta a Constituição, donde a necessidade permanente de se
proceder a sua atualização normativa, garantindo, assim, sua
eficácia e permanência. Esse cânone nos alerta para a circunstância
de que a evolução social determina sempre, se não uma
modificação do texto constitucional, pelo menos alterações no
modo de compreendê-lo, bem como às normas infraconstitucionais.
(5) Cânone da conformidade funcional, que estabelece a estrita
obediência, do intérprete constitucional, da repartição de funções
entre os poderes estatais, prevista constitucionalmente.
(6) Cânone da interpretação conforme a Constituição, que
afasta interpretações contrárias a alguma das normas
constitucionais, ainda que favoreça o cumprimento de outras delas.
Determina, também, esse cânone, a conservação de norma, por
inconstitucional, quando seus fins possam se harmonizar com
preceitos constitucionais, ao mesmo tempo em que estabelece
como limite à interpretação constitucional as próprias regras infraconstitucionais, impedindo que ela resulte numa interpretação
contra legem, que contrarie a letra e o sentido dessas regras.
(7) Cânone da concordância prática ou da harmonização,
segundo o qual se deve buscar, no problema a ser solucionado
296
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
em face da Constituição, confrontar os bens e valores jurídicos
que ali estariam conflitando, de modo a, no caso concreto sob
exame, se estabeleça qual ou quais dos valores em conflito deverá
prevalecer, preocupando-se, contudo, em otimizar a preservação,
igualmente, dos demais, evitando o sacrifício total de uns em
benefício dos outros. Nesse ponto, tocamos o problema crucial
de toda hermenêutica constitucional, que nos leva a introduzir o
topos argumentativo da proporcionalidade.
Para resolver o grande dilema da interpretação constitucional,
representado pelo conflito entre princípios constitucionais, aos
quais se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que
ocupam na hierarquia normativa, se preconiza o recurso a um
“princípio dos princípios”, o princípio da proporcionalidade, que
determina a busca de uma “solução de compromisso”, na qual se
respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em
conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), e jamais
lhe(s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhe seu
“núcleo essencial”, onde se encontra entronizado o valor da
dignidade humana. Esse princípio, embora não esteja explicitado
de forma individualizada em nosso ordenamento jurídico, é uma
exigência inafastável da própria fórmula política adotada por nosso
constituinte, a do “Estado Democrático de Direito”, pois sem a
sua utilização não se concebe como bem realizar o mandamento
básico dessa fórmula, de respeito simultâneo dos interesses
individuais, coletivos e públicos.
O princípio da proporcionalidade, entendido como um
mandamento de otimização do respeito máximo a todo direito
fundamental, em situação de conflito com outro(s), na medida do
jurídico e faticamente possível, tem um conteúdo que se reparte
em três “prin-cípios parciais” (Teilgrundsätze): “princípio da
proporcionalidade em sentido estrito” ou “máxima do
sopesamento” (Abwägungsgebot), “princípio da adequação” e
Willis Santiago Guerra Filho
297
“princípio da exigibilidade” ou “máxima do meio mais suave” (Gebot
des mildesten Mittels).
O “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” determina
que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado
por uma disposição normativa e o meio empregado, que seja
juridicamente a melhor possível. Isso significa, acima de tudo, que
não se fira o “conteúdo essencial” (Wesensgehalt) de direito
fundamental, com o desrespeito intolerável da dignidade humana, bem
como que, mesmo em havendo desvantagens para, digamos, o
interesse de pessoas, individual ou coletivamente consideradas,
acarretadas pela disposição normativa em apreço, as vantagens que
traz para interesses de outra ordem superam aquelas desvantagens.
Os subprincípios da adequação e da exigibilidade ou
indis-pensabilidade (Erforderlichkeit), por seu turno, determinam
que, dentro do faticamente possível, o meio escolhido se preste
para atingir o fim estabelecido, mostrando-se, assim, “adequado”.
Além disso, esse meio deve se mostrar “exigível”, o que significa
não haver outro, igualmente eficaz, e menos danoso a direitos
fundamentais.
Do exposto até aqui, espera-se ter ficado suficientemente
evidenciada a íntima conexão entre o princípio da proporcionalidade
e a concepção, antes esboçada, do ordenamento jurídico como
formado por princípios e regras, princípios esses que podem se
converter em direitos fundamentais - e vice-versa. Da mesma forma,
como assevera R. Alexy, atribuir o caráter de princípio a normas
jurídicas implica logicamente no reconhecimento daquele princípio
maior, e vice-versa. É ele que permite fazer o “sopesamento”
(Abwägung, balancing) dos princípios e direitos fundamentais,
bem como dos interesses e bens jurídicos em que se expressam,
quando se encontram em estado de contradição, solucionando-a
de forma que maximize o respeito a todos os envolvidos no conflito.
O princípio em tela, portanto, começa por ser uma exigência
298
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
cognitiva, de elaboração racional do Direito - e aqui vale lembrar a
sinonímia e origem comum, na matemática, dos termos “razão”
(latim: ratio) e “proporção” (latim: proportio) -, o que explica a
cir-cunstância da idéia a ele subjacente animar também um dos
cânones metodológicos da chamada “interpretação constitucional”
- aquela a que se deve recorrer quando o emprego da hermenêutica
jurídica tradicional não oferece um resultado constitucionalmente
satisfatório: o da “concor-dância prática”, conforme vimos acima.
Não se confunda, porém, o princípio constitucional da
proporcionalidade, que é norma jurídica consagradora de um direito
(rectius: garantia) fundamental – portanto, é uma prescrição -, com
um cânone da nova hermenêutica constitucional, que não atua
sobre a vontade, mas sim sobre o intelecto do intérprete do Direito,
nos quadros de um Estado Democrático.
Na verdade, pode-se perfeitamente compreender aqueles
cânones todos como uma transcrição, para o plano heurístico,
das opções políticas (e éticas) fundamentais, subjacentes àquela
forma de Estado, onde o cânone do efeito integrador corresponde
à soberania popular (CR, art. 1o., parágrafo único); o da máxima
efetividade, à aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais
(CR, art. 5o., § 1o.); o da força normativa da Constituição, aos
objetivos fundamentais da República (CR, art. 3 o.); o da
conformidade funcional, à separação de Poderes da União (CR,
art. 2o.); o da interpretação conforme a constituição, à legalidade
do Estado de Direito, assim como o da unidade da constituição
corresponde à legitimidade democrática, estando ambos
consagrados no art. 1o. da CR, no caput, em seus incisos, bem
como ao longo de toda a ordem constitucional e da ordem jurídica
que nela se funda, como um desdobramento dessa polarização
da forma jurídica do Estado de Direito com o conteúdo éticopolítico da Democracia, requisitos epistemológicos da teoria
hermenêutico-jurídica aqui esboçada.
Willis Santiago Guerra Filho
299
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FERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna – La hermenéutica jurídica
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GRONDIN, Jean – Introdução à hermenêutica filosófica, São
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RICOUER, Paul – O Conflito das Interpretações. Ensaios de
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300
Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica
ACESSO À JUSTIÇA E O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
Wilson Alves de Souza1
1
Mestre (UFBA) Doutor (UMSA-Buenos Aires) e Pós-Doutor
(Universidade de Coimbra) em Direito. Professor Associado
da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia
(Graduação, Mestrado e Doutorado). Juiz Federal.
Sumário: 1. Introdução. 2. Conteúdo do princípio do juiz natural. 3. O princípio
do juiz natural e conceito de autoridade competente: falta de jurisdição e falta
de competência. 4. O princípio do juiz natural e a idéia de juiz do lugar. 5. O
problema dos atos processuais praticados por juiz afastado em face do
princípio do juiz natural. 6. A unidade do juiz natural. 7. Sobre a substituição
de juízes e convocação de juízes de órgão inferior para atuar em órgão superior
em face do princípio do juiz natural. 8. Sobre o denominado “esforço
concentrado” em face do princípio do juiz natural. 9. Sobre a distribuição de
processos em face do princípio do juiz natural. 10. Sobre a avocação e a
suspensão de processos em face do princípio do juiz natural. 11. Sobre a
exclusão de juiz do processo e o desaforamento de causas em face do
princípio do juiz natural. 12. Sobre os atos de supressão ou de modificação
de competência de órgão judiciário em face do princípio do juiz natural. 13.
Sobre a cláusula contratual de competência de foro em face do princípio do
juiz natural. 14. Sobre a atribuição de poder jurisdicional a particulares fora
dos casos previstos na constituição em face do princípio do juiz natural. 15.
Violação ao princípio do juiz natural e suspeita de parcialidade. 16. Conclusões.
17. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O princípio do juiz natural é um dos princípios processuais
constitucionais dos mais relevantes, de maneira que há uma
profunda relação entre o direito de acesso à justiça e tal princípio.
É o que passaremos a analisar.
2. Conteúdo do princípio do juiz natural
O princípio do juiz natural (juiz legal, segunda a terminologia
preferida pela doutrina alemã, bem assim por boa parte da doutrina
301
portuguesa) se funda, em primeiro lugar, na idéia de que ninguém
deve ser julgado por tribunal ou juízo de exceção ou ad hoc, mas
sim apenas pela autoridade competente nos termos previstos em
lei anterior a partir da norma constitucional ou na própria norma
constitucional.2
Por tribunal de exceção entende-se aquele designado ou criado
para julgar determinado caso, não importando quem o criou nem
se foi criado antes ou depois do fato ou complexo de fatos objeto
da causa a ser julgada nem quem fez a designação.3
Sem dúvida que a criação de tribunal ou juízo de exceção
posteriormente ao caso é mais gritante, mas a violação ao princípio
do juiz natural pode também se concretizar se a criação do órgão
se deu anteriormente aos fatos. Assim, se é exata a associação
que se costuma fazer de juiz natural a juiz preconstituído, esse não
é o único dado que configura a observância do princípio em tela,
de maneira que o órgão jurisdicional pode ter sido criado
anteriormente aos fatos, mas com finalidade específica e dirigida
para julgar determinados casos concretos ou casos idênticos, isto
é, ante determinadas situações previsíveis, determináveis,
temporalmente limitadas, que se sabe de antemão que se
concretizarão (tribunais extraordinários). Deste modo, se essa última
hipótese ocorrer tal órgão jurisdicional se caracteriza como tribunal
ou juízo de exceção, o que significa dizer que o caso será,
igualmente, de violação ao princípio do juiz natural.4
Com efeito, o princípio do juiz natural pressupõe que o órgão
jurisdicional tenha sido criado anteriormente segundo as normas
constitucionais ou legais em carácter geral e abstrato. Vê-se aí
que o princípio do juiz natural envolve os princípios da legalidade
(só a lei pode instituir o órgão jurisdicional e determinar a sua
competência) e da irretroatividade (a lei que instituiu o órgão
jurisdicional e definiu a sua competência deve estar em vigor antes
do acontecimento do fato que fundamenta a ação.5
302
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
Quando se fala em carácter geral evidentemente que não se
está a querer dizer que o Estado não possa criar justiças
especializadas como mecanismo de divisão do trabalho e melhor
realização da atividade jurisdicional. Assim é que a instituição de
justiça especial (justiça federal, justiça trabalhista, justiça eleitoral,
justiça militar), como ocorre, no direito brasileiro.6
Nessa mesma perspectiva, também não se pode falar em
violação ao princípio do juiz natural a atribuição constitucional
de função jurisdicional a órgãos não integrantes do Poder
Judiciário (ou não caracterizado como tribunal judicial, para usar
a linguagem posta na Constituição portuguesa), nos sistemas
que em determinados casos atribuem função jurisdicional ao
parlamento,7 instituem tribunais administrativos e fiscais,8 tribunais
de contas 9 e órgão especial de controle abstrato de
constitucionalidade.10
Nessa linha de raciocínio também não podem ser tidos como
tribunais ou juízos de exceção os órgãos jurisdicionais com
atribuições para julgar causas em razão de pessoas e fatos
(prerrogativa de foro). A razão é idêntica à situação anterior, ou
seja, o que importa é que não se está a instituir órgãos
jurisdicionais para beneficiar ou prejudicar determinada pessoa
em particular, mas sim para atender necessidade pública ou
interesse público, nos termos constitucionais ou legais prévios e
gerais. Deste modo, justifica-se a prerrogativa de foro se
determinada conduta praticada por determinado agente se
enquadrar em determinadas situações peculiares previstas nas
normas referidas, como o exercício de determinadas funções
públicas e determinadas condutas por estes praticadas. Por
outras palavras, a prerrogativa de foro prevista previamente na
constituição ou na lei está posta em razão do cargo a ser
ocupado, e não da pessoa que ocupa o cargo.11
Wilson Alves de Souza
303
3. O princípio do juiz natural e conceito de autoridade
competente: falta de jurisdição e falta de competência
O conceito de autoridade competente deve ser entendido, em
primeiro lugar, como sendo aquela que tem o poder jurisdicional
atribuído pelas normas constitucionais (jurisdição). Esse aspecto
do conceito é mais relevante do que o aspecto restrito do conceito
de competência dado pela doutrina processual, que se refere a
mera divisão do trabalho dentre os órgãos com função jurisdicional,
tendo em consideração diversos critérios (território, matéria, pessoa,
valor, etc.) segundo normas infra-constitucionais. Assim, quando
se fala em autoridade competente, para se referir ao princípio do
juiz natural, significa dizer, num primeiro plano, que o poder
jurisdicional é entregue, a partir da constituição, normalmente a
diversos órgãos do Poder Judiciário (justiça comum, justiças
especiais, como justiça federal, justiça do trabalho, justiça eleitoral,
justiça militar, etc.), ou excepcionalmente, conforme salientado
acima, a órgãos especiais, como tribunais de contas, cortes
constitucionais, tribunais administrativos, nos países que adotam,
respectivamente, sistema especial de controle de
constitucionalidade e sistema de contencioso administrativo, ou,
ainda, ao Poder Legislativo, em princípio nos casos crimes de
responsabilidade. Desta maneira, é fundamental aqui a distinção
entre poder e função, valendo ressaltar que, como é elementar, o
clássico princípio da divisão de poderes não se aplica
integralmente, sendo frequentemente necessário, até mesmo como
condição de funcionalidade do próprio princípio, que,
excepcionalmente um Poder exerça funções que são típicas de
outro Poder.12 Por outras palavras, quando a letra de determinada
constituição se referir ao princípio do juiz natural expressando que
“ninguém será processado e julgado senão pela autoridade
competente”, deve-se ter em consideração que a própria
304
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
constituição pode - frequentemente o faz - dividir a função
jurisdicional entre determinados órgãos, de maneira que esses
órgãos só têm jurisdição (e não mera competência segundo a
terminologia empregado normalmente pela doutrina processual)
nos limites postos na própria constituição. Isso significa dizer que
o juiz natural, primeiro de tudo, é o juiz para o caso segundo as
normas constitucionais, para depois se analisar o problema a nível
de competência, no sentido estrito (processual) da expressão, a
nível, portanto, das normas infra-constitucionais. Por outras
palavras, em torno desse tema não se pode olvidar que a atribuição
constitucional do poder jurisdicional significa atribuição de
jurisdição e não de mera competência.
Com efeito, a análise do problema sob este enfoque tem a
consequência prática de que “o processo e o julgamento” cujos
atos foram praticados por quem não tem função jurisdicional para
o caso (falta de jurisdição) são juridicamente inexistentes, enquanto
o processo e o julgamento cujos atos foram praticados por quem
tem poder jurisdicional, mas não tem competência segundo as
leis infra-constitucionais, são juridicamente existentes, o que
significa dizer que esses atos prevalecerão enquanto não forem
invalidados por quem tem competência para tanto, que é o próprio
órgão jurisdicional, cabendo aí distinguir, com todas as suas
consequências processuais, a incompetência absoluta da
incompetência relativa, segundo o ordenamento jurídico de cada
país. Expressando de outro modo, a violação ao princípio do juiz
natural a nível constitucional direto (falta de jurisdição) é um
problema de inexistência jurídica do processo; a violação às normas
processuais infra-constitucionais de competência é um problema
de invalidade de determinados atos processuais. Assim, por
exemplo, se a constituição atribui ao parlamento o poder de julgar
determinados agentes políticos nos crimes de responsabilidade,
e o “julgamento” se deu por agentes de qualquer outro órgão,
Wilson Alves de Souza
305
mesmo que seja por agentes do Poder Judiciário, houve clara
violação ao princípio do juiz natural por agressão direta à
constituição, caracterizando-se o “processo” e a “decisão” dentro
dele operada como juridicamente inexistentes. Diga-se o mesmo,
à evidência, se determinado órgão que não o tribunal constitucional
(função que no Brasil é exercida pelo Supremo Tribunal Federal,
que é órgão de cúpula do Poder Judiciário) “decidir” uma
“demanda” que tem por objeto o controle concentrado de
constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo do poder
público. No mesmo contexto, vale citar como mais um exemplo o
caso de um ordenamento jurídico que segue sistema de
contencioso administrativo, a exemplo do ordenamento português,
em que determinada causa de natureza administrativa ou fiscal é
julgada por um tribunal judicial, ou então, ao contrário, um tribunal
administrativo julga causa que é atribuição de tribunal judicial.
Os exemplos acima narrados são bem caracterizados e nítidos
para melhor compreender o tema em tela, mas o problema da
atribuição constitucional de julgar não se põe apenas na relação
entre os Poderes, ou entre órgãos judiciais e órgãos especiais,
mas também, na linha do acima exposto, entre os próprios órgãos
de um mesmo Poder, particularmente, num segundo plano, entre
órgãos do próprio Poder Judiciário, tendo em conta as
constituições que instituem tribunais judiciais especiais, como é o
caso da Constituição brasileira. 13 Assim, por exemplo, se a
constituição atribuiu o poder jurisdicional de julgar causas
trabalhistas à justiça do trabalho, enquanto órgão jurisdicional
especial por ela próprio instituído,14 e o julgamento se deu por
outro órgão jurisdicional, também houve violação aberta ao princípio
do juiz natural por agressão direta à constituição (falta de
jurisdição), caracterizando-se todo o “processo” como
juridicamente inexistente, o mesmo ocorrendo se a justiça do
trabalho julgar causa atribuída pela constituição à justiça comum
306
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
ou a outra justiça especial. Isso não significa dizer que o princípio
do juiz natural não tenha que ser considerado e analisado no que
se refere a problemas processuais de competência por violação a
normas processuais infra-constitucionais, como logo adiante se
perceberá.
Com efeito, existem muito problemas processuais relacionados
com a falta de jurisdição e, consequentemente, com o princípio
do juiz natural. Vejamos alguns casos.
4. O princípio do juiz natural e a idéia de juiz do lugar.
O conceito atual de juiz natural não se identifica com a idéia de
juiz do lugar, idéia essa que nada mais é do que um aspecto
definidor de competência, que é o aspecto territorial, por sinal dos
mais tênues, porque os ordenamentos jurídicos costumam dispor
que são casos de nulidade relativa os vícios de competência
territorial do juízo, de maneira que os atos processuais praticados
por juízo relativamente incompetente em princípio ou já foram
sanados pela aceitação da parte interessada ou, se impugnados,
só poderão resultar em anulação dos atos decisórios praticados.
De outro lado, é claro que a decisão de um juiz do lugar vale em
todo o território nacional. No entanto, é preciso não olvidar que o
conceito de juiz do lugar diz respeito ao princípio do juiz natural
no sentido de que o juiz só tem jurisdição no seu lugar, ou seja, no
limite da sua atuação jurisdicional territorial na forma da lei local,
vale dizer, o juiz, só porque juiz é, não tem como sair dos seus
limites jurisdicionais territoriais para assumir processos e prolatar
decisões em qualquer lugar em que estão atuando outros juízes, a
não ser, é claro, nos casos de substituição segundo as normas
locais de organização judiciária. Essa vedação é tão importante
que também se aplica aos casos em que existe mais de um juiz,
igualmente competente ou não, no mesmo lugar, isto é, o juiz de
um lugar fica limitado a atuar nos processos que foram atribuídos
Wilson Alves de Souza
307
ao seu órgão jurisdicional conforme distribuição, não podendo
sair do seu órgão jurisdicional para decidir processos atribuídos a
outro juiz no mesmo lugar, ou seja, para atuar em outro órgão
jurisdicional, a não ser, repita-se, nos casos de substituição na
forma das normas locais de organização judiciária. Em todos esses
casos o problema é de falta jurisdição, e não de mera falta de
competência, porque em evidente violação ao princípio do juiz
natural a nível constitucional, de maneira que tais atos haverão de
ser tidos como juridicamente inexistentes. É exactamente por isso
que se costuma dizer, com propriedade, que o juiz natural (leia-se
o órgão jurisdicional natural) é apenas um. Em verdade, esse tipo
de conduta, qualificada como usurpação de função (pública)
jurisdicional, é de ser tida como grave violação aos deveres
funcionais.
5. O problema dos atos processuais praticados por
juiz afastado em face do princípio do juiz natural
O juiz afastado por qualquer motivo, a exemplo de suspensão
cautelar das funções em procedimento administrativo para apuração
de falta funcional, licença para tratamento de saúde, licença para
fins de estudo, férias, etc, enquanto afastado estiver não tem
jurisdição, que, por sinal, está ocupada pelo seu substituto legal,
não sendo outra a razão pela qual se diz corriqueiramente, como
acima salientado, que o juiz natural é apenas um. Nesses casos
os atos que por acaso o juiz afastado praticar ofendem ao princípio
do juiz natural e devem ser tidos como juridicamente inexistentes.
Com o retorno regular do juiz afastado, uma vez que readquiriu
este sua jurisdição, quem já não mais tem jurisdição, a contrario
sensu, é o substituto legal daquele – e mais uma vez incide a idéia
de que o juiz natural é apenas um –, de modo que quem estará a
violar o princípio do juiz natural e, assim, a praticar atos juridicamente
308
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
inexistentes, será o juiz substituto se continuar a atuar após o regular
retorno do juiz substituído.
6. A unidade do juiz natural
Quando se afirma a unidade do juiz natural está-se aqui a se
referir ao órgão jurisdicional a partir de processos pendentes e
não à figura da pessoa do juiz, de maneira que, como visto acima,
mais de um juiz pode atuar num determinado processo, seja nos
casos de substituição legal de juízes ou nos casos de sucessão
legal de juízes. Excepcionalmente é possível atuação de mais de
um órgão jurisdicional num mesmo processo por atribuição
constitucional em caráter hierárquico15 ou não16 ou em caso de
regra de competência.17
7. Sobre a substituição de juízes e convocação de juízes
de órgão inferior para atuar em órgão superior em face
do princípio do juiz natural
O princípio do juiz natural também deve ser observado nas
substituições dos juízes nos processos, inclusive nas convocações
de juízes de instância inferior para atuar em órgão jurisdicional
superior, de maneira que as normas que regulamentam o assunto
devem prescrever a garantia da pré-constituição, vedando
designações arbitrárias ou discricionárias de juiz. Assim, por
exemplo, se o juiz se afastou de determinado processo por motivo
de impedimento ou suspeição deve remeter os autos do processo
ao seu substituto legal na forma das normas regulamentares
preexistentes. Inexistindo tais normas e havendo mais de dois
órgãos jurisdicionais no mesmo lugar a solução correta para que
seja efetivamente aplicado o princípio do juiz natural será a
distribuição do processo. Aliás, em casos assim, sempre que não
se previu nas normas regulamentares como se procede a
Wilson Alves de Souza
309
substituição do órgão ante determinada situação, a única solução
aceitável, no mesmo lugar ou não, será a distribuição do processo
entre os órgãos com igual competência material, sendo
absolutamente fora de cogitação o critério da designação arbitrária.
No caso falta de regulamentação prévia específica de
convocação de juízes de instância inferior para atuar em órgão
jurisdicional superior, o único critério razoavelmente aceitável é a
observância da regra de antiguidade, o que significa dizer que
também nesse caso as designações arbitrárias ferem o princípio
do juiz natural.
8. Sobre o denominado “esforço concentrado” em
face do princípio do juiz natural
Um dos mais graves problemas dos nossos dias no que diz
respeito a atividade jurisdicional – não importa aqui analisar os
motivos – é o excesso de processos pendentes na maioria dos
órgãos jurisdicionais, enquanto em outros órgãos jurisdicionais
pode ocorrer uma situação inversa, problema esse que os
encarregados da administração do serviço jurisdicional buscam
solucionar por meio do que se vem convencionando denominar
no Brasil de esforço concentrado ou mutirão, que consiste no
fato de designação de juízes com menor carga de trabalho para
processar e julgar causas que estão atribuídas a juízes com carga
excessiva de trabalho, e assim com prestação jurisdicional
demorada além do razoável. Ocorre que, não raro, na apressada
tentativa da solução desse problema as designações de juízes e
– o que é bem mais grave – a atribuição de processos aos juízes
designados não seguem qualquer critério normativo geral, objetivo
e prévio. A ser assim, violado estará, sem qualquer sombra de
dúvida, o princípio do juiz natural.
Não se pode negar que a solução do denominado esforço
concentrado ou (mutirão) pode ser uma aceitável política como
310
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
mecanismo no objetivo de minorar, embora episódica e
paliativamente, a demora excessiva da prestação jurisdicional,
buscando, assim, aplicar um outro princípio constitucional (o
princípio do processo em tempo razoável), desde que não se ignore
o princípio do juiz natural. Essa ponderação pode ser obtida
mediante a previsão de normas gerais prévias que estabeleçam
critérios objetivos com relação aos atos de designação, e uma
vez assim ocorrendo tais designações impõe-se a redistribuição
dos processos entre todos os juízes designados no órgão
necessitado de concentração de esforços.
9. Sobre a distribuição de processos em face do
princípio do juiz natural
Outro aspecto a considerar é que tendo em vista que em muitos
casos há necessidade de se instituir mais de um órgão jurisdicional
num mesmo lugar com igual competência material o princípio do
juiz natural se define pela distribuição da petição inicial ou, sendo
o caso, dos processos (sorteio). Deste modo, temos como certo
que a distribuição da petição inicial e dos processos, muitas vezes
negligenciada, não tem apenas a finalidade de dividir
equitativamente o trabalho entre os juízes do mesmo lugar com
igual competência, mas sim tem igualmente a relevante função de
fazer observar o princípio do juiz natural.18
A norma que impõe distribuição por dependência nos casos de
conexão ou continência é mecanismo que visa a atender ao princípio
do juiz natural, na medida em que a competência fora antes firmada
com a distribuição alusiva à causa anterior conexa, impondo-se tal
solução por razões lógicas (evitar julgamentos contraditórios) ou
de economia processual ou por conveniência legal.19 Para alcançar
esses objetivos a conexão entre causas pode e deve, aliás,
determinar a modificação de competência de um dos juízes, o que
se dará pelo critério legal de prevenção, mas não se perca de vista
Wilson Alves de Souza
311
que isso só ocorre, assim como a distribuição por dependência,
se o juiz tiver competência a nível absoluto para ambos os
processos; não sendo o caso, a conexão entre causas não
determina a distribuição por dependência nem a reunião de
processos, mantendo cada juiz a sua competência, devendo, no
entanto, ficar suspenso o processo da causa prejudicada em relação
ao da causa prejudicial.20
Também é perfeitamente salutar a norma que impõe distribuição
por dependência para evitar escolha indireta de juiz pela parte
autora, quando esta desiste da ação após já ter conhecimento do
órgão jurisdicional a quem a peça inicial de postulação fora
distribuída e propõe nova demanda posteriormente, ainda que com
alterações parciais nos aspectos subjetivos e objetivos da causa.21
Discute-se se há violação ao princípio do juiz natural no ato de
terceiro que aproveitando processo pendente já distribuído onde
tem mais de um juízo igualmente competente pretende ingressar
como litisconsorte ativo facultativo ulterior para defender direito
próprio e independente, embora conexo com a causa originária,
que permitiria o litisconsórcio facultativo originário. Diz parcela da
doutrina que a parte que assim agir, porque já sabia para quem
fora distribuída a petição inicial da demanda originária, escolheu o
órgão jurisdicional que vai julgar a sua causa, de modo que tal
postulação deve ser indeferida pelo juiz no sentido de ter o ato
como nova demanda e encaminhá-la à distribuição regular.22
Pensamos que há exagero na tese. É que se existe conexão, própria
(por razões de prejudicialidade) ou imprópria (por razões de
economia processual) deve haver (necessariamente nos casos de
conexão própria) ou pode haver (nos casos de conexão imprópria)
distribuição por dependência para o juízo prevento23. Nessa mesma
perspectiva deve haver (nos casos de conexão própria) ou pode
haver (nos casos de conexão imprópria) reunião de processos
tendo em conta o juízo prevento. Sendo assim, uma vez
312
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
caracterizada a conexão imprópria – evidentemente que no caso
de conexão própria a reunião de processos é impositiva - e tendo
em vista o momento temporal ainda é possível o litisconsórcio
ulterior, não se pode falar em violação ao princípio do juiz natural
na hipótese, vez que o litisconsorte ulterior nada mais fez do que
aplicar regra legítima de prevenção, de modo que se assim não
agir os juízes dos dois processos poderão fazer o acertamento
no sentido de determinar a reunião dos processos devendo ambos
ficarem com o juízo prevento se tal providência for necessária no
sentido da aplicação do princípio da economia processual.24 Por
óbvio, não há que colocar o problema na hipótese de no lugar em
que a ação fora ajuizada existir apenas um órgão jurisdicional
competente.
No objetivo de conciliar o princípio do juiz natural com o princípio
da efetividade pensamos que o legislador pode e deve prescrever
exceções no sentido de dispensar distribuição imediata em casos
urgentes, impondo-se, no entanto, distribuição a posteriori.25
A inobservância da distribuição, por violar o princípio
constitucional do juiz natural, deveria gerar meros fatos, ou seja,
atos juridicamente inexistentes. No entanto, há que se ponderar tal
princípio com o princípio do processo em tempo razoável e até
mesmo com o princípio da segurança jurídica, mesmo porque não
se pode comparar essa hipótese com a hipótese de falta de
jurisdição. Assim, se só muito tempo depois se alega tal violação,
não se pode falar em inexistência jurídica, mas sim em nulidade.
Deste modo, entendemos que os atos decisórios praticados em
processo em que faltou distribuição devem ser considerados nulos,
porque, no mínimo, há que se considerar a hipótese como de
incompetência absoluta. Pensamos que a falta de distribuição,
diferentemente do que pode aparentar, gera um problema de
incompetência de tanta ou maior gravidade do que a falta de
competência material. Não se perca de vista que a falta de
Wilson Alves de Souza
313
distribuição, quando estava deveria ocorrer, significa que o juiz a
quem se dirigiu a petição inicial está a receber designação de
alguma autoridade, não importando se do próprio Poder Judiciário,
ou está sendo designado pela própria parte autora, o que é bem
mais grave, de maneira que forçoso é convir que não devem ser
considerados como válidos atos processuais decisórios que daí
surjam.26
10. Sobre a avocação e a suspensão de processos
em face do princípio do juiz natural
Desrespeita o princípio do juiz natural o ato que autorizar ou
determinar a avocação ou suspensão de processos em tramitação
perante o juiz competente, porque esses atos importam em retirar
ou paralisar a atuação do juiz legalmente preconstituído fora dos
casos que se compatibilizem com as normas constitucionais
pertinentes. Trata-se, como se vê, de grave situação de suspeita e,
consequentemente, de desconfiança. De outro lado, no caso de
avocação há dupla violação ao princípio do juiz natural, na medida
em que retira-se, arbitrária e abusivamente, a competência do juiz
competente para atribuí-la a outro que não tem competência.
Evidentemente que a avocação de processo por órgão jurisdicional
superior para preservar sua competência que estava sendo usurpada
por órgão jurisdicional inferior atende à constituição, na medida
em que o juiz inferior não era o juiz natural.27
A suspensão de processos nos casos de relação de
prejudicialidade ou outras situações razoáveis previstas em lei
também atende à constituição, porque seu objetivo é, no primeiro
caso, evitar decisões contraditórias, preservando a competência
dos órgãos jurisdicionais envolvidos nos dois processos, e, no
segundo caso, por alguma impossibilidade lógica ou prática que
impede o prosseguimento do processo.28
314
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
11. Sobre a exclusão de juiz do processo e o
desaforamento de causas em face do princípio
do juiz natural
A exclusão do processo de juiz que não julga a causa no prazo
legal sem justificativa, não fere o princípio do juiz natural, porque
tal situação se compatibiliza com o princípio do processo em tempo
razoável, sendo lícito ao Estado tomar determinadas providências
no sentido de fazer respeitar este último princípio, desde que atenda
ao devido processo legal para apurar a falta funcional do juiz e
excluí-lo do processo, não se justificando tal medida se o caso é
de falta estrutural do próprio sistema estatal de prestação de tal
serviço. De outro lado, se correta a decisão de afastamento do
juiz do processo, é necessário que tal processo seja atribuído ao
substituto legal do juiz afastado, nos termos acima expostos.29
Também não transgride o princípio do juiz natural o
desaforamento de causas por motivos de segurança pública ou
forte clamor popular.30 Aqui o princípio do juiz natural terá que ser
conciliado não tanto com o princípio da segurança, mas sim com
os princípios da ampla defesa, da independência e da
imparcialidade do juiz. É que ao Estado cabe garantir segurança a
todos, em particular, sendo o caso, àquele que está sob sua
custódia e àquele agente estatal encarregado do julgamento. Esse
clamor popular, no entanto, pode ser tão intenso que há forte
possibilidade de comprometer um julgamento independente,
imparcial e, assim, justo, sobretudo se estamos a tratar de júri
popular. Assim, o desaforamento de processos deve ser visto com
muito cuidado e tratado com muita excepcionalidade, devendo a
decisão em tal sentido se sustentar em sólidos fundamentos fáticos
e jurídicos e o processo ser encaminhado ao órgão jurisdicional
substituto nos termos da lei prévia.
Wilson Alves de Souza
315
12. Sobre os atos de supressão ou de modificação
de competência de órgão judiciário em face do
princípio do juiz natural
Os atos de supressão de órgão judiciário ou de modificação
de competência de órgãos judiciários, desde que por lei, não
violam, em regra, o princípio do juiz natural.31 Existe aqui uma
proporcionalidade entre o princípio do juiz natural e o princípio do
processo em tempo razoável, na medida em que é uma constante
a necessidade de ajustes na organização judiciária como
mecanismo para alcançar maior rapidez nos julgamentos. No
entanto, não se pode afastar a possibilidade de que por trás da
aparente legalidade do ato exista o atroz objetivo indireto de afastar
determinados juízes de determinados processos, caso em que
ocorrerá violação ao princípio do juiz natural. De outro lado, a
alteração de órgão judiciário por lei que institua justiça especial,
ainda que se trate de norma constitucional, não pode incidir sobre
processos pendentes, porque o caso não é simplesmente de
alteração de competência, mas sim de alteração de jurisdição, a
não ser que o próprio constituinte prescreva expressamente que
os processos pendentes devem ser encaminhados ao novo órgão
constitucional.
13. Sobre a cláusula contratual de competência de
foro em face do princípio do juiz natural
Não viola o princípio do juiz natural a lei que autoriza a inserção
de cláusula contratual que prevê competência de foro em caso de
surgimento de necessidade de solucionar litígios entre as partes
contratantes relacionados com o próprio contrato (foro de eleição
ou foro do contrato), ainda que no foro eleito exista um só órgão
jurisdicional.32 No entanto, a lei não pode autorizar, por violar o
princípio do juiz natural, a eleição de determinado juízo se no lugar
316
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
eleito existir mais de um juízo com igual competência. Válida será
a cláusula contratual na parte em que escolheu o foro (definição
contratual da competência territorial), não podendo ser aplicada
na parte em que escolheu o juízo, dentre vários existentes no lugar,
impondo-se, no caso de eventual demanda, a distribuição da peça
inicial de postulação na linha do exposto acima.
14. Sobre a atribuição de poder jurisdicional a
particulares fora dos casos previstos na constituição
em face do princípio do juiz natural
Viola claramente o princípio do juiz natural, sem prejuízo do
desrespeito a outros princípios constitucionais, a lei que confere
poder jurisdicional, ainda que limitada à prática de atos executivos,
a quem não tem nem pode ter atribuição jurisdicional constitucional.
Com efeito, fere abertamente o princípio do juiz natural a lei que
concede poderes unilaterais a uma das partes para processar e
julgar determinada causa ou instituir órgão com tal função, ainda
que limitadamente à prática de atos executivos.33
15. Violação ao princípio do juiz natural e suspeita
de parcialidade
Vê-se, assim, que a não aplicação do princípio do juiz natural
carrega o juiz de forte suspeita de dependência e de parcialidade.
Não se pode dizer de antemão que o juiz que está a atuar em
processo em que não se observou o princípio do juiz natural seja
dependente e parcial, mas há evidentemente uma forte tendência
a isso. Daí a cautela com que se procura atender a tal princípio a
partir de uma garantia constitucional.34
De todo modo, essa suspeita de parcialidade é muito forte a
ponto de podermos ter como visível a relação do princípio do juiz
natural com o princípio do acesso à justiça, e até mesmo com
princípios constitucionais maiores, como o princípio do Estado de
Wilson Alves de Souza
317
direito. Deste modo, a observância do princípio do juiz natural não
tem o objetivo, como pode aparentar, de criar embaraços à prestação
do serviço jurisdicional, mas sim tem por finalidade, porque a tanto
essencial, evitar um julgamento dependente, bem assim parcial,
objetivo esse que é extremamente necessário nos sistemas jurídicos
democráticos, porque garantia fundamental do cidadão a obter uma
decisão judicial justa, e porque essencial para que a população
tenha confiança nas decisões e as instituições jurisdicionais adquiram
credibilidade perante todos os jurisdicionados, os quais só assim
poderão obter um efetivo acesso à justiça.
16. Conclusões
1. É profunda a relação entre o princípio do juiz natural e o
princípio do acesso à justiça.
2. O princípio do juiz natural (juiz legal, segunda a terminologia
preferida pela doutrina alemã, bem assim por boa parte da doutrina
portuguesa) se funda, em primeiro lugar, na idéia de que ninguém
deve ser julgado por tribunal ou juízo de exceção ou ad hoc, mas
sim apenas pela autoridade competente nos termos previstos em
lei anterior a partir da norma constitucional ou na própria norma
constitucional.
3. Por tribunal de exceção entende-se aquele designado ou
criado para julgar determinado caso, não importando quem o criou
nem se foi criado antes ou depois do fato ou complexo de fatos
objeto da causa a ser julgada nem quem fez a designação.
4. O conceito de autoridade competente de que trata o art.
5º, LIII, da Constituição federal, deve ser entendido, em primeiro
lugar, como sendo aquela que tem o poder jurisdicional atribuído
pelas normas constitucionais (jurisdição).
5. O conceito de juiz do lugar diz respeito ao princípio do juiz
natural no sentido de que o juiz só tem jurisdição no seu lugar, ou
318
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
seja, no limite da sua atuação jurisdicional territorial na forma da
lei local, vale dizer, o juiz, só porque juiz é, não tem como sair dos
seus limites jurisdicionais territoriais para assumir processos e
prolatar decisões em qualquer lugar em que estão atuando outros
juízes, a não ser, é claro, nos casos de substituição segundo as
normas locais de organização judiciária.
6. Os fatos processuais praticados por juiz afastado ofendem
ao princípio do juiz natural e devem ser tidos como juridicamente
inexistentes.
7. Quando se afirma a unidade do juiz natural está-se aqui a se
referir ao órgão jurisdicional a partir de processos pendentes e não
à figura da pessoa do juiz, de maneira que mais de um juiz pode
atuar num determinado processo, seja nos casos de substituição
legal de juízes ou nos casos de sucessão legal de juízes.
8. O princípio do juiz natural também deve ser observado nas
substituições dos juízes nos processos, inclusive nas convocações
de juízes de instância inferior para atuar em órgão jurisdicional
superior, e no caso que se convencionou chamar de esforço
concentrado ou mutirão, de maneira que as normas que
regulamentam o assunto devem prescrever, em obediência a tal
princípio, a garantia da pré-constituição, vedando designações
arbitrárias ou discricionárias de juiz.
9. Tendo em vista que em muitos casos há necessidade de se instituir
mais de um órgão jurisdicional num mesmo lugar com igual competência
material o princípio do juiz natural se define pela distribuição da petição
inicial ou, sendo o caso, dos processos (sorteio).
10. Desrespeita o princípio do juiz natural o ato que autorizar ou
determinar a avocação ou suspensão de processos em tramitação
perante o juiz competente, porque esses atos importam em retirar ou
paralisar a atuação do juiz legalmente preconstituído fora dos casos
que se compatibilizem com as normas constitucionais pertinentes.
Wilson Alves de Souza
319
11. A exclusão do processo de juiz que não julga a causa no
prazo legal sem justificativa, não fere o princípio do juiz natural,
porque tal situação se compatibiliza com o princípio do processo
em tempo razoável, sendo lícito ao Estado tomar determinadas
providências no sentido de fazer respeitar este último princípio,
desde que atenda ao devido processo legal para apurar a falta
funcional do juiz e excluí-lo do processo, não se justificando tal
medida se o caso é de falta estrutural do próprio sistema estatal
de prestação de tal serviço.
12. Também não transgride o princípio do juiz natural o
desaforamento de causas por motivos de segurança pública ou
forte clamor popular.
13. Os atos de supressão de órgão judiciário ou de modificação
de competência de órgãos judiciários, desde que por lei, não
violam, em regra, o princípio do juiz natural, a não ser que, no caso
concreto se verifique a finalidade de, indiretamente, excluir o juiz
do processo.
14. Não viola o princípio do juiz natural a lei que autoriza a
inserção de cláusula contratual que prevê competência de foro em
caso de surgimento de necessidade de solucionar litígios entre as
partes contratantes relacionados com o próprio contrato (foro de
eleição ou foro do contrato), ainda que no foro eleito exista um só
órgão jurisdicional.
15. Viola claramente o princípio do juiz natural, sem prejuízo do
desrespeito a outros princípios constitucionais, a lei que confere
poder jurisdicional, ainda que limitada à prática de atos executivos,
a quem não tem nem pode ter atribuição jurisdicional constitucional.
16. A observância do princípio do juiz natural não tem o objetivo,
como pode aparentar, de criar embaraços à prestação do serviço
jurisdicional, mas sim tem por finalidade, porque a tanto essencial,
evitar um julgamento dependente, bem assim parcial, objetivo esse
que é extremamente necessário nos sistemas jurídicos
320
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
democráticos, porque garantia fundamental do cidadão a obter
uma decisão judicial justa, e porque essencial para que a população
tenha confiança nas decisões e as instituições jurisdicionais
adquiram credibilidade perante todos os jurisdicionados, os quais
só assim poderão obter um efetivo acesso à justiça.
17. Referências
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. 1º vol.
Coimbra: Coimbra Editora, 1974.
DIEZ-PICAZO GIMENEZ, Ignacio. El derecho fundamental al
juez ordinario predeterminado por la ley. In Revista Española de
Derecho Constitucional, año 11, nº 31, jan-abr, 1991.
GRINOVER, Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua
dupla garantia. In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, nº 29, jan-mar, 1983.
N E RY J U N IOR, Nelson. Princípios do processo civil na
constituição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
18. Notas
2
A Constituição brasileira consagra esse princípio nos seguintes termos: “não haverá juízo ou tribunal de exceção” (art. 5º, XXXVII); “ninguém será processado nem
sentenciado senão pela autoridade competente” (art. 5º, LIII). Diz Nelson Nery
Junior que a Constituição brasileira consagra também no ora transcrito art. 5º, LIII o
princípio do promotor natural, ao sustentar que “extrai-se da locução “processar”,
que vem no art. 5º, LIII, da CF, o sentido de que é a atribuição que se confere ao
Ministério Público para mover ação judicial, pois somente ele pode “processar” alguém; não mais o juiz, a quem se aplica o vocábulo “sentenciar” constante da mesma
norma constitucional em exame”. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo
civil na constituição ffederal
ederal
ederal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 81. Pensamos que o dispositivo em tela se refere apenas ao juiz, até porque quando o
promotor promove ação judicial contra alguém não pratica ato de autoridade, mas
sim ato de parte, sujeitando-se, por isso mesmo, como qualquer outra parte, à
autoridade da decisão de quem tem o poder jurisdicional, evidentemente que com
os meios e recursos previstos em lei, também conferidos a qualquer um que esteja
a agir como parte. De outro lado, embora seja certo que ao juiz não cabe promover
ação, certo igualmente é que ele não se limita no processo a sentenciar, valendo
lembrar que há casos em que determinado ordenamento jurídico pode prever que
determinado órgão tem poder jurisdicional apenas para processar (órgão jurisdicional
Wilson Alves de Souza
321
de instrução) e outro órgão tem o poder jurisdicional apenas para julgar (órgão
jurisdicional de julgamento).De toda maneira, é sempre ao juiz que se entrega a
função de processar e julgar. Quando o art. 5º, LIII, da Constituição brasileira emprega a expressão processar está a se referir apenas ao juiz porque a ele cabe decidir
se admite ou não o ato da parte que inicia a demanda, inclusive o ministério público
quando estiver atuando como parte, e dirigir o processo até final. Por outras palavras, da cláusula de que “ninguém será processado senão pela autoridade competente” resulta que o cidadão só está sujeito a processo que tenha toda a sua
tramitação perante o juiz natural, e não a que também está sujeito somente a ser
acusado por um promotor natural, mesmo porque o dispositivo em tela não se refere
apenas ao processo penal, onde, por sinal, não é só o ministério público quem tem
a titularidade da ação penal, mas também ao processo civil, onde também o ministério público pode atuar como parte, e a todo e qualquer outro processo. Fosse
diferente, quando qualquer particular estiver a atuar como parte ter-se-ia que concluir que estaria “processando” alguém e, assim, agindo como autoridade, o que,
evidentemente, não é o caso. Aliás, tudo isso resulta igualmente claro dos arts. 52,
I e II, 102, I, 105, I, 108, I, 109, I a XII, 114, I a IX e 125, parágrafos 4º e 5º, da
Constituição brasileira, todos empregando a expressão “processar e julgar” quando
se referem às atribuições jurisdicionais dos órgãos ali referidos. Veja-se, aliás, que
há exemplo no direito brasileiro em que determinado juiz tem competência para
processar (dirigir o processo praticando os atos necessários ao julgamento), mas a
competência para julgar pode ou deve, a depender das circunstâncias, ser atribuída
a outro juiz. É o caso do processo alusivo a crimes dolosos contra a vida (consumados ou tentados), onde o juiz togado tem competência para dirigir todo o processo
(processar), tem poderes de julgamento para absolver sumariamente o réu, decidir
no sentido de não pronunciá-lo (que também ocorre após a instrução) ou no sentido
de pronunciá-lo (levá-lo a julgamento pelo júri), caso em que a competência para
julgar o réu passa a ser do júri popular (juiz natural), ficando o juiz togado com
competência limitada a presidir os trabalhos, retomando o poder decisório para
aplicação da pena na hipótese de o júri proferir decisão condenatória (Constituição
Federal, art. 5º, XXXVIII e Código de Processo Penal, arts. 406 e seguintes). Não se
nega aqui a existência nem a relevância do princípio do promotor natural, mas ele
resulta do art. 129, da Constituição Federal e das normas infra-constitucionais que
regulamentam tal dispositivo no sentido de vedar designações de promotores ou
exclusão de promotores de suas atividades sem observância dos mesmos critérios
aplicáveis ao juiz. Na Constituição portuguesa o princípio do juiz natural está expresso apenas com relação à matéria penal, como se deduz dos artigos 27º, 2, 32º, 9 e
209º, 4. O primeiro, com a rubrica direito á liberdade e à segurança
segurança, dispõe que
“ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em
consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei
com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”. O segundo,
com a rubrica garantias de processo criminal
criminal, prescreve que “nenhuma causa
pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. O
terceiro, com a rubrica categorias de tribunais
tribunais, dispõe que “sem prejuízo do dispos-
322
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
to quanto aos tribunais militares, é proibida a existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes”. Isso não significa
dizer que o princípio não seja aplicável em relação ao processo civil ou administrativo
e fiscal. Haverá de ser considerado implícito.
3
No sentido do texto, em termos, NERY JUNIOR, Nelson. Princípios
Princípios…, cit., p. 58.
4
Foi exemplo disso no Brasil, ao tempo do Estado Novo, o Tribunal de Segurança,
criado em 1935 para julgar crimes contra a segurança do Estado e a estrutura das
instituições.
5
Nesse sentido, no que se refere à matéria criminal cf. na doutrina portuguesa, DIAS,
Jorge de Figueredo. Direito processual penal
penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1974, 1º
vol., pp. 322-323. É de se reconhecer, no entanto, que no que se refere ao Processo
Civil, pelo menos em regra, essa exigência de irretroatividade deve ser abrandada
para o momento da propositura da ação, tendo em conta, p. ex., a largueza de alguns
prazos prescricionais. No entanto, deve ficar ressalvado que essa flexibilidade não
impede que se apure eventual caso concreto de burla ao princípio do juiz natural por
trás da instituição, ainda que por lei, de órgão jurisdicional no transcurso temporal
entre o fato que fundamenta a ação e o ajuizamento da ação.
6
Cf. Constituição brasileira, art. 92.
7
É o caso do direito brasileiro (Constituição federal, arts.51, I e 52, I e II)
8
É o caso do direito português (Constituição, art. 209º).
9
É o caso do direito brasileiro (Constituição federal, art.71) e do direito português
(Constituição, art. 214º).
10
É o caso do direito português (Constituição, arts. 221º a 224º).
11
Vejam os seguintes exemplos na Constituição brasileira: “Compete privativamente
à Câmara dos Deputados: I – autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os
Ministros de Estado (art. 51, I); “Compete privativamente ao Senado Federal: I –
processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de
responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha,
Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; II –
processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o ProcuradorGeral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade”
(art. 52, I e II). “Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o
do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oitos anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais
sanções judiciais cabíveis” (parágrafo único do art. 52); “Admitida a acusação contra
o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele
Wilson Alves de Souza
323
submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais
comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade” (art. 86);
“Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,
cabendo-lhe: I – processar e julgar originariamente: b) nas infrações penais comuns,
o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional,
seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações penais
comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os
membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes
de missão diplomática de caráter permanente; d) o habeas corpus, sendo paciente
qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e
o habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do ProcuradorGeral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal” (art. 102, I, b a d). Inserese, pensamos, como exemplo de prerrogativa de foro o julgamento da perda de
mandato de parlamentar nos casos de violação às normas constitucionais de incompatibilidade do parlamentar (art. 54 c/c art. 55, I), quebra do decoro parlamentar (art.
55, II), condenação criminal por sentença transitada em julgado, que, conforme seja
respectivamente deputado ou senador, “será decidida pela Câmara dos Deputados
ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação
da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional,
assegurada ampla defesa” (§ 2º do art. 55). Ressalte-se o fato de se encontrar
tramitando no Congresso Nacional Projeto de Emenda Constitucional no sentido de
transferir a atribuição para tal julgamento ao Supremo Tribunal Federal. No direito
português o Presidente da República é processo e julgado perante o Supremo
Tribunal de Justiça nos casos de crimes relacionados com o exercício das suas
funções (Constituição, artigo 130º, 1), e perante os tribunais comuns, após o término
do mandato, nos casos de crimes estranhos a suas funções (Constituição, art. 130º,
4), enquanto os parlamentares são processados e julgados pelos tribunais comuns,
nos termos da lei, ainda que se trate de “crime de responsabilidade no exercício da
função” (Constituição, art. 160º, 1, d).
12
Não temos como constitucionais, ainda que conste na constituição, as normas de
determinado Estado que, por hipótese, atribua função jurisdicional a órgão do Poder
Executivo para julgar causas em que a própria Administração é parte, ainda que se
trate de questões de natureza administrativa ou fiscal, sem qualquer possibilidade
de acesso a tribunal independente e imparcial, ainda que não seja integrante do
Poder Judiciário. Como se verá adiante, se o Poder Executivo julga atos do próprio
Executivo não haverá, aí exercício de jurisdição, mas sim julgamento em causa
própria, porquanto o que caracteriza a jurisdição é a nota da substituição, ou seja,
julgamento por terceiro independente e imparcial. Como o Estado não teria porque,
no caso, abrir mão da sua soberania, não há alternativa senão o julgamento do
Estado pelo próprio Estado, mas impõe-se que esse julgamento seja realizado por
um órgão independente e imparcial. Fora daí, portanto, toda vez que o órgão admi-
324
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
nistrativo julgar contra o particular, uma vez que estaria vedado acesso aos tribunais
judiciais, haverá, inequivocamente, negação de acesso à justiça.
13
É claro que nos casos concretos teremos as situações de evidência e as situações
de dúvida. De todo modo, os casos duvidosos em que se verifica conflito de atribuições terá tal conflito que ser resolvido por um terceiro órgão competente nos termos
da constituição. Mas o fato da situação ser duvidosa não nos dispensa da coerência
de afirmar que não se concordando com a solução que fora dada em determinado
caso em que não houve suscitação de conflito o “processo” e a “decisão” são
juridicamente inexistentes. Não importa, por se tratar de outro problema, o fato de
“decisão” juridicamente inexistente produzir efeitos práticos no plano material, inclusive pelo fato de o interessado deixar de postular a declaração judicial de inexistência
jurídica e o afastamento jurídico dos efeitos materiais produzidos.
14
É o caso do direito brasileiro (CF, arts. 92, IV, 111 e 114). No ordenamento português podemos citar, com mais forte razão, porque em contexto mais profundo, o
caso dos tribunais administrativos e fiscais, os quais apesar de não serem considerados tribunais judiciais, são órgãos jurisdicionais independentes e estão incluídos
nas categorias de tribunais, de maneira que têm atribuições constitucionais (jurisdição) limitadas e específicas, mas com exclusividade, para julgar determinados tipo
de causa, quais sejam “litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”
(Constituição, arts. 209º, 1, b e 212º), não tendo jurisdição para julgar os demais tipos
de causa, do mesmo modo que falta jurisdição aos tribunais judiciais para julgar os
tipos de causa atribuídas aos tribunais administrativos e fiscais.
15
No direito brasileiro podemos citar como exemplos o caso de atribuição a órgão
hierarquicamente superior para julgar recursos em face dos princípios do esgotamento da função jurisdicional e do duplo grau de jurisdição ou de atribuição constitucional direta, como no caso de recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça
e recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal.
16
É o caso, no direito brasileiro, da atuação do juiz togado e do tribunal do júri nos
crimes dolosos contra a vida (Constituição federal, art. 5º, XXXVIII).
17
É o caso, no direito brasileiro, de instrução realizada por juiz de outra comarca, a
exemplo da testemunha que reside em outra comarca (CPC, art. 410, II).
18
No direito brasileiro o princípio da distribuição está consagrado explicitamente no
art. 251 do CPC. A relevância de tal princípio está claramente percebida no art. 256
do mesmo Código, que garante à parte ou a seu procurador o direito de fiscalizar o
ato de distribuição. No direito português o art. 209º, do CPC reza que “é pela
distribuição que, a fim de repartir com igualdade o serviço do tribunal, se designa a
secção e a vara ou juízo em que o processo há-de correr ou o juiz que há-de exercer
as funções de relator”. Apesar da referência apenas à finalidade de divisão do
trabalho, pensamos que o legislador disse menos do que deveria ou poderia dizer.
O CPC português garante ao advogado da parte o direito de acompanhar o resultado e obter informações a respeito da distribuição (art. 209º-A).
Wilson Alves de Souza
325
19
No direito brasileiro conferir CPC, arts. 105, 108, 109, 253 e 800. No direito
português o CPC não é expresso sobre o assunto, mas isso é o que resulta do que
se dispõe no art. 96º, 2, ao propósito das causas incidentais, bem assim no que se
refere aos procedimentos cautelares em relação ao processo principal (art. 383º).
20
Cf. CPC brasileiro, art. 265, IV, a e c, e CPC português, artigo 97º combinado com
artigo 279º, 2 e 3.
21
No direito brasileiro conferir CPC, art. 253, II.
22
É o que sustentam, por exemplo, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade
Nery. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de processo
civil comentado
comentado. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 347.
23
É o que consta expressamente no Código de Processo Civil brasileiro (art. 253, III).
24
Cf. Código de Processo Civil brasileiro, arts. 103, 104, 105, 106 e 219.
25
No direito brasileiro há exemplo em tal sentido no caso de ação de alimentos,
dispensando-se a prévia distribuição, mas impondo-se a distribuição posteriormente
(art. 1º e parágrafo 1º, da Lei nº 5.478/1968). No direito português também consta
tal exceção para alguns casos simples, “procedimentos cautelares e diligências
urgentes feitas antes de começar a causa ou antes da citação do réu” (art. 212º).
Isso, no entanto, não significa dizer que a distribuição não tenha que ser feita
posteriormente à decisão tida como urgente.
26
O CPC brasileiro não expressa as consequências ante o reconhecimento da falta
de distribuição de processos. No entanto, como tal inobservância gera incompetência do juízo, e considerando que tal Código só permite modificação de competência
por vontade das partes em função do valor e do território, inclusive pela omissão do
réu em não alegar a incompetência relativa por meio de exceção no prazo de
contestação (arts. 111 e 114) e considerando tudo o mais quanto o exposto no texto
principal, pensamos que indiretamente as consequências deverão ser as mesmas
determinadas para os casos de incompetência absoluta, ou seja, a anulação pode
e deve ser decretada ex officio, a incompetência pode ser alegada por qualquer das
partes, em qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição (art. 113), os atos
decisórios haverão de ser anulados com remessa dos autos para a distribuição –
aqui reconhecemos que, excluída a hipótese de afastamento do juiz do processo
por se reconhecer que o mesmo agiu de má-fé ao aceitar processo sem prévia
distribuição, se houve distribuição para o mesmo juiz que antes atuava no processo
todos os atos processuais deverão ser aproveitados – e se a sentença passou em
julgado cabe ação rescisória no prazo decadencial de dois anos (arts. 485, II). No
caso da ação rescisória entendemos, como nos casos normais de incompetência
absoluta do juízo ou impedimento do juiz, que o tribunal deve rescindir a sentença e
proceder ao rejulgamento da causa. O CPC português disciplinou expressamente o
assunto no artigo 210º, 1, ao gizar que “a falta ou irregularidade da distribuição não
produz nulidade de nenhum acto do processo, mas pode ser reclamada por qual-
326
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
quer interessado ou suprida oficiosamente até a decisão final”. Como se vê, disciplinou-se a matéria aqui de modo semelhante aos casos de reconhecimento de
incompetência absoluta (art.102º,1), caso em que não há a sanção de nulidade de
atos processuais.
27
No direito brasileiro existe o instituto da reclamação constitucional ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça “para preservação de
sua competência e resguardar a autoridade de suas decisões” (Constituição federal,
arts. 102, I, l e 105, I, f).
28
Cf. as causas de suspensão do processo no CPC brasileiro (art. 265) e no CPC
português (arts. 276º a 279º e artigo 97º).
29
No direito brasileiro o CPC é expresso no sentido de prever a exclusão de juiz do
processo em caso de demora na prestação jurisdicional sem motivo justificável.
Assim: “Qualquer das partes ou o órgão do Ministério Público poderá representar ao
presidente do Tribunal de Justiça contra o juiz que excedeu os prazos previstos em
lei. Distribuída a representação ao órgão competente, instaurar-se-á procedimento
para apuração da responsabilidade. O relator, conforme as circunstâncias, poderá
avocar os autos em que ocorreu excesso de prazo, designando outro juiz para
decidir a causa” (art. 198). “A disposição do artigo anterior aplicar-se-á aos tribunais
superiores, na forma que dispuser o seu regimento interno” (art. 199).
30
Cf. no direito brasileiro o art. 424, do Código de Processo Penal, que deve ser
interpretado com muita cautela, tendo em vista os muitos conceitos vagos ali contidos, sobretudo no que toca ao parágrafo único, que dispõe sobre desaforamento
por excesso de prazo, que só pode ocorrer, no nosso modo de entender, por motivo
imputado ao próprio juiz. Não consta norma similar no CPP português nem no
Decreto-Lei nº 387-A/87, de 29 de dezembro, que trata do regime do júri.
31
O art. 87, do CPC brasileiro dispõe sobre o assunto nos seguintes termos: “Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as
modificações no estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou
da hierarquia”. O CPC português também é expresso sobre o assunto ao dispor no
artigo 64º que: “Quando ocorra a alteração da lei reguladora da competência considerada relevante quanto aos processos pendentes, o juiz ordena oficiosamente a
sua remessa para o tribunal que a nova lei considere competente”.
32
No direito brasileiro conferir CPC, art. 111 e parágrafos. No direito português
conferir artigo 100º, do CPC.
33
Assim, no direito brasileiro são manifestamente inconstitucionais o Dec-lei nº 70,
de 21.11.1966 e a Lei n. 5.741, de 01.12.1971, que concedem a banco credor nas
relações jurídicas de financiamento para aquisição de moradia própria pelo Sistema
Financeiro da Habitação o direito de instituir agente fiduciário com o poder de
sumariamente processar a execução do crédito hipotecário com a consequente
Wilson Alves de Souza
327
determinação de imissão do credor na posse do imóvel. Veja-se que esse poder de,
na prática, conferir jurisdição executiva ao próprio credor não é atribuído nem mesmo
ao próprio poder público, ainda que se trate de crédito tributário, o qual como se
sabe, se destina a atender necessidades coletivas. É lastimável que o Supremo
Tribunal Federal tenha afirmado, e continue afirmando, como constitucional tão
gritante inconstitucionalidade, dando guarida a um sistema com origem nos tempos
do período ditatorial, com o evidente objetivo de privilegiar o poder econômico. O
mais grave é que do outro lado da relação jurídica está sabidamente a parte mais
fraca (o consumidor), que era quem deveria merecer tratamento diferenciado em seu
favor, relação jurídica essa que envolve relevantíssimo problema jurídico e social,
que é o direito de morar. No sentido do nosso ponto de vista, em termos, GRINOVER,
Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua dupla garantia
garantia. In Revista de
Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 29, jan-mar, 1983, pp. 22-23.
34
Como percebido por Ignacio Diez-Picazo Gimenez, esta garantia “no es más que
un límite jurídico para evitar un riesgo (juez ad hoc) que levanta una sospecha
(parcialidad), pero no es una panacea, es decir, que resulta perfectamente concebible
que, respetándose la predeterminación legal, el juez resultante no sea ni independiente
ni imparcial, o lo contrario, que, aun vulnerando la regla de la predeterminación legal,
el juez ad hoc sea totalmente independiente y totalmente imparcial. El principio del
juez legal no es sino el resultado de una experiencia secular que ha llevado a los
hombres a sospechar de la imparcialidad del juez designado ad casum, pero de ahí
no se puede deducir que todo juez parcial ou dependiente viola el derecho fundaho fundamental del artículo 24.2 CE”. DIEZ-PICAZO GIMENEZ, Ignacio. El derec
derecho
mental al juez ordinario predeterminado por la ley
ley. In Revista Española de Derecho
Constitucional, año 11, nº 31, jan-abr, 1991, p. 92.
328
Acesso à justiça e o princípio do juiz natural
ENSAIOS
JEAN CHARLES DE MENEZES E O PROCESSO
PENAL DO AMIGO
César de Faria Júnior1
1
Advogado, professor, mestre e doutorando em Direito pela
UFBA. ([email protected]).
Só a partir de 1985, em estudo sobre a “Criminalización en el
estadio prévio a la lesión de um bien jurídico”, JACOBS2 começou
a estabelecer a diferença entre o Direito Penal do Cidadão, o qual
preserva as esferas de liberdade, e o Direito Penal do Inimigo, que
prioriza a proteção a bens jurídicos.
Em trabalho mais recente, o mesmo autor tedesco3, invocando
as teorias contratualistas do Iluminismo, aduziu que quem viola as
normas do contrato social, por princípio e de forma reiterada,
renuncia ao seu status de cidadão, da mesma forma que aquele
que adere ao grupo criminoso, em vez da sociedade civil, e repudia
a legitimidade do Estado em seu conjunto pratica uma “autoexclusão da personalidade”, devendo, segundo ele, ser tratado
como inimigo.
Os fenômenos político-criminais geradores do denominado
Direito Penal do Inimigo, segundo CANCIO MELIÁ4, são o Direito
Penal Simbólico e o punitivismo, ambos produtos da expansão
do Direito Penal nas sociedades pós-industriais. O professor
espanhol critica a tese de JACOBS acerca da pretensa autoexclusão da personalidade jurídica por parte do inimigo, na justa
medida em que a personalidade jurídica é atribuída pelo Estado
Democrático de Direito a todos os seres humanos, sendo
irrenunciável, de tal forma que Direito Penal do Inimigo encerra
uma contradição em termos, ao passo que Direito Penal do
Cidadão, um pleonasmo.
331
JACOBS sustenta sua posição, restringindo a aplicação do
Direito Penal do Inimigo como Direito Penal de Emergência,
defendendo sua aplicação aos terroristas, numa guerra refreada,
de forma claramente delimitada, para se evitar que se prive o Direito
Penal do Cidadão de suas qualidades imanentes à noção de Estado
de Direito, o que, em sua opinião, seria menos perigoso do que se
embutir no Direito Penal do Cidadão alguns dispositivos próprios
do Direito Penal do Inimigo.
A referida polarização entre Direito Penal do Cidadão e Direito
Penal do Inimigo permeia igualmente o Direito Processual Penal.
O grande paradoxo do Direito Processual Penal é ter duas
finalidades precípuas que se entrechocam: eficácia na realização
da justiça e proteção dos direitos fundamentais do cidadão.
Ordenamento de liberdade versus ordenamento de segurança.
Nessa dicotomia, o Processo Penal do Inimigo traduz, em vez
da atividade cognitiva baseada na imparcialidade do Estado
Democrático de Direito, aquilo que LUIGI FERRAJOLI5 denomina
“procedura decisionistica e inquisitória fondata sul principio,
schiettamente politico, dell´amico/nemico”. Segundo o autor
peninsular, são características do Processo Penal do Inimigo a
conotação partidária do acusador e do órgão jurisdicional e a
transformação do processo penal em instrumento da luta contra a
criminalidade organizada. Em outro trabalho6, o mesmo autor fala
em uma crise de credibilidade do direito, como conseqüência da
globalização, porque, apesar das muitas cartas constitucionais e
declarações de direitos, os homens são, hoje, incomparavelmente,
mais desiguais em essência devido às condições de indigência
das quais são vítimas milhares de seres humanos.
Nesse contexto, WINFRIED HASSEMER 7 aduz que os
fenômenos da modernização e da globalização vêm ameaçando
maciçamente as clássicas garantias do processo penal, sendo
que as reformas processuais penais “concentram-se nas últimas
332
Jean Charles de Menezes e o processo penal do amigo
décadas somente na fase de investigação, isto é, naquela parte
do processo em que se trata de instrumentos de controle.”
Como já advertia BARATTA,8 os mecanismos discriminatórios
na administração dos direitos fundamentais a favor de cidadãos
“respeitáveis” e a custa dos excluídos (imigrantes, desempregados,
indigentes, toxicômanos, jovens marginais, etc.) condicionam uma
redução da segurança jurídica que, por sua vez, alimenta o
sentimento de insegurança da opinião pública. O resultado é uma
forma de estilização seletiva das áreas de risco de violação dos
direitos, onde a parte não está no todo, mas em lugar do todo ou,
diretamente, contra o todo, entendido o todo como os direitos
fundamentais de todas as pessoas.
O maior paradigma do Processo Penal do Inimigo é, na
abalizada opinião de DIOGO MALAN9, a Ordem Militar Presidencial
estadunidense de 13/11/2001, a qual versa sobre a “Detenção,
Tratamento e Julgamento de Alguns Não-cidadãos na Guerra
contra o Terrorismo”.
Trata-se de ato normativo, promulgado por força do notório
atentado de 11 de setembro de 2001, ao qual podem ser
submetidos indivíduos considerados suspeitos de qualquer tipo
de envolvimento com o terrorismo, notadamente com a organização
terrorista Al Quaeda, desde que seja considerado conveniente do
ponto de vista dos interesses dos Estados Unidos da América.
Todos os indivíduos enquadrados no elástico conceito de
terroristas são julgados por órgãos denominados Comissões
Militares, cujos membros (julgadores, acusadores e defensores)
são diretamente nomeados pelo Secretário de Defesa
estadunidense, dentre oficiais integrantes das Forças Armadas.
Numa concentração absoluta de poderes, o Secretário de Defesa
detém também competência legislativa, podendo editar ordens
com vistas à regulamentação desse ato, quanto à matéria
processual, havendo, ainda, a instituição de um reexame obrigatório
César de Faria Júnior
333
de todas as decisões de mérito proferidas pelas Comissões
Militares pelo próprio Presidente da República ou pelo Secretário
de Defesa, caso designado por aquele.
Tal ato legislativo ressalva, expressamente, serem inaplicáveis
aos suspeitos da prática de atos terroristas os princípios da lei e
as regras probatórias do processo criminal ianque, não cabendo
recurso por parte dos réus a qualquer tribunal civil, seja ele norteamericano, estrangeiro ou internacional.
Como visto, a Ordem Militar Presidencial outorga poderes
praticamente ilimitados ao Secretário de Defesa: acumula o poder
legislativo (ao criar órgãos jurisdicionais e normas processuais
penais ex post factum), executivo (ao nomear todos os
componentes dessas Comissões Militares e exercer as funções
de autoridade penitenciária) e, finalmente, judicial (ao desempenhar
o papel de instância revisora das decisões proferidas pelo primeiro
grau de jurisdição), tornando tal Ordem “um ato absolutamente
único, ante a clássica tripartição de Poderes e o seu sistema de
freios e contrapesos, que caracterizam qualquer Estado
Democrático de Direito”, como bem anota MARCO BOUCHARD10.
Registre-se que, após cinco anos do atentado às torres gêmeas,
a Suprema Corte dos EUA começou a reagir no tocante à
contradição de se admitir o Processo Penal do Inimigo num Estado
que se auto-proclama Democrático e de Direito, ao decidir que
também os suspeitos de terem praticado atos de terrorismo detidos
pelo governo devem ser tratados de acordo com a Convenção de
Genebra de 1949 sobre prisioneiros de guerra. Veja-se o quanto
se retrocedeu na história do Direito Penal e Processual Penal, a tal
ponto que, aplicar as regras destinadas aos prisioneiros da Segunda
Guerra Mundial, passou a ser uma garantia, uma “evolução”.
De qualquer sorte, o procedimento aplicável aos suspeitos da
prática de terrorismo nos Estados Unidos da América, bem como
em outros países tidos democráticos, como a Inglaterra (que
334
Jean Charles de Menezes e o processo penal do amigo
também adota medidas excepcionais de detenção governamental
por tempo indefinido de estrangeiros suspeitos de terrorismo) são
casos paradigmáticos de Processo Penal do Inimigo, visando à
neutralização do suposto perigo que esses indivíduos representam,
através da supressão de diversas garantias fundamentais, ao lado
do Processo Penal do Cidadão, com todos os corolários lógicos
da cláusula do “due processo of law” aplicável a todos os demais
cidadãos.
E, para nós, a morte do brasileiro JEAN CHARLES DE
MENEZES pela famosa polícia inglesa, a “scotland yard”,
metralhado na estação do metrô em Londres, por fantasiosa
suspeita de ser terrorista, é o significativo e triste exemplo do que
leva ver o outro como inimigo. Em sua memória escrevi estas
linhas, indignado com o reverso da moeda, a aplicação do
“processo penal do amigo” aos seus algozes, com a conseqüente
impunidade. Afinal, para eles, a vítima era apenas um brasileiro.
Notas
2
JAKOBS, Gunther. Criminalización en el estádio prévio a la lésion de um bien
jurídico. Trad. De Enrique Peñaranda Ramos. Estúdios de derecho penal. P.293-323.
Madrid: Civitas, 1997.
3
JAKOBS, Gunther. Derecho penal del ciudadano y derecho penal del enemigo. In:
JAKOBS, Gunther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid:
Civitas, 2003, p. 19-56.
4
CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo y delitos de terrorismo: Algumas consideraciones sobre la regulacíon de lãs infracciones em matéria de terrorismo em el código penal español después de la LO 7/2000 . Revista Peruana de
Ciências Penales, Lima, n. 9, p. 151-168, jun. 2003.
5
FERRAJOLI, Luigi. Emergência penale e crisi della giurisdizione . Dei delitti e delle
pene, Bari, n. 2, p. 271-292, mag./ago. 1984.
6
FERRAJOLI, Luigi. Criminalidad y globalização, trad. De M. Carbonell, em CRPClaves de Razón Práctica, n.152, 2005, p.20-25, esp. p. 20.
7
HASSEMER, Winfried. Processo penal e direitos fundamentais. Jornadas de direito processual penal e direitos fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004, p. 15-25.
César de Faria Júnior
335
8
BARATTA, El concepto actual de seguridad en Europa. RCSP – Revista Catalana
de Seguridad Pública, n. 8, 2001, p.19.
9
MALAN, Diogo Rudge. Revista Brasileira de Ciências Penais, março/abril 2006,
ano 14, nº 59, p.223-59. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
10
BOUCHARD, Marco. Guantánamo: morte do processo penal e início do apocalipse.
Trad. Eduardo Maia Costa. Revista do Ministério Público, n. 97, p. 61-72, Lisboa, jan./
mar. 2004.
336
Jean Charles de Menezes e o processo penal do amigo
VEGETARIANISMO COMO AÇÃO POLÍTICA
Heron Santana
Doutor em Direito pela UFPE. Professor Adjunto da UFBA –
Promotor de Justiça do Meio Ambiente em Salvador. Presidente do Instituto Abolicionista Animal. [email protected]
A expressão vegetarianismo somente se tornou mundialmente
conhecida após a criação da Sociedade Vegetariana da Inglaterra
em 1847. Derivada do latim begetus, ela na verdade tem o sentido
de “forte”, “vigoroso”, “saudável”, e não de “vegetal” como muitos
pensam. De fato, o vegetarianismo, via de regra, permite o consumo
de ovos e leite, embora hoje em dia esteja mais em voga a filosofia
vegan, que, mais próxima da teoria do abolicionismo animal, recusa
o consumo de todo e qualquer produto que obtido com o
sofrimento de animais.
Muitos filósofos gregos como Pitágoras, Empédocles, Plutarco,
Platão, Plotino e Porfírio já defendiam o vegetarianismo, embora o
vitalismo aristotélico tenha prevalecido na formação da tradição
filosófica e religiosa ocidental. Plutarco, por exemplo, denunciava
que ao mesmo tempo em que os homens acusam as serpentes e
os leões de selvageria ele é capaz de matar e devorar animais
mansos e pacíficos, que a natureza parece ter criado apenas para
que possamos admirar sua graça e beleza. Para ele a compaixão
pelos animais é um importante treino para a responsabilidade social,
pois tudo o que fazemos aos animais nós também podemos fazer
aos nossos semelhantes. Vários estudos revelam que a maioria
dos criminosos violentos têm históricos de violência contra animais.
Rousseau foi um dos primeiros a afirmar que o homem é
naturalmente vegetariano, pois tem dentes chatos como o cavalo
e não pontudos como o cachorro, e que além disso, sendo a caça
337
o principal motivo de luta entre os carnívoros, os animais frugívoros
tendem a ser mais pacíficos.
Embora o vegetarianismo tenha entrado em declínio na era
moderna, a partir dos anos 70 ele reapareceu, com fundamento
em quatro linhas de argumentação: o primeiro é o argumento
ecológico, uma vez que a pecuária é uma das principais fontes de
poluição do meio ambiente e responsável pelo desmatamento de
quase um quarto da área terrestre do planeta. No Brasil, por
exemplo, onde o gado é criado em pastos, este quadro se torna
ainda mais dramático, e já se constitui em uma das principais
causas da destruição da mata atlântica e da amazônia, duas das
principais reservas de biodiversidade do mundo. Além disso, o
índice de poluição dos manancias hídricos por fezes e carcaças
de animais mortos para o consumo humano é elevadíssimo, o que
faz aumentar ainda mais a escassez de água no mundo.
O segundo argumento é econômico, pois o custo/ benefício
para a população seria muito grande se ela adotasse uma dieta
vegetariana, já que os rebanhos consomem uma quantidade de
alimentos bem maior do que a população humana. Na verdade,
um terço dos grãos produzidos no mundo são destinados para
alimentação do gado, quando poderiam ser utilizados diretamente
para a alimentação das pessoas. A taxa média de cereais
empregados na alimentação do gado, por exemplo, é de 3 kg para
produzir 450 g de alimento aproveitável e a produção de 0,5 kg de
carne normalmente consome cerca de 9.500 litros de água. (Lappé,
1985;p.88)
O terceiro argumento é de saúde pública, e uma grande parte
dos profissionais de saúde já concorda que o homem pode viver
muito bem sem o consumo de carne, e que isto só traria
conseqüências positivas para ele. O Banco Mundial, por exemplo,
tem se recusado a financiar projetos econômicos de gado de corte
ao redor do mundo, pois seus técnicos chegaram à conclusão de
338
Vegetarianismo como ação política
que esta atividade tem empobrecido o planeta e aumentando a
fome dos países pobres. Por outro lado, grande parte do orçamento
público é gasto para o tratamento de doenças como câncer,
obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares, que normalmente
são originadas ou agravadas pelo consumo excessivo de carne.
Diversas pesquisas já demonstraram que as populações que
adotam uma dieta vegetariana possuem uma maior longevidade e
necessitam de menos cuidados médicos, de modo que o
vegetarianismo já se apresenta como uma das principais vertentes
da medicina preventiva(Patrícia Bertron; p.32)
O quarto argumento é de caráter político, e tem se tornando
cada vez mais divulgado através das obras de filósofos como
Herry Salt, Perter Singer, Tom Regan, que entendem que a adoção
de uma dieta vegetariana é um importante instrumento político na
luta pelos direitos dos animais.
De fato, as pessoas devem mudar suas crenças antes de mudar
seus hábitos, embora um processo como esse exija muitos esforços
de ordem educacional e política visando promover mudanças nos
corações e mentes, preparando assim a opinião pública para uma
mudança social que venha a por fim a todo tipo de exploração
institucionalizada dos animais. Como afirmou Peter
Singer(2000:183): “Os que lucram com a exploração de grande
número de animais não precisam de nossa aprovação, eles precisam
de nosso dinheiro. Eles utilizarão métodos intensivos, desde que
consigam vender o que produzem mediante a utilização desses
métodos; e terão os recursos necessários para combater reformas
no campo político; e poderão defender-se contra as críticas,
respondendo que simplesmente oferecem o que o público quer.”
A indústria de criação intensiva de animais nada mais é do que
a junção da tecnologia industrial à idéia de que os animais são
meros instrumentos para os fins pretendidos pelo homem, e
enquanto estivermos dispostos a adquirir produtos provenientes
Heron Santana
339
desse tipo de exploração, a norma constitucional que proíbe a
prática de atividades que submetam os animais à crueldade não
passará de um simples pedaço de papel impresso, sem qualquer
eficácia social ou jurídica.
340
Vegetarianismo como ação política
O DIREITO DO TRABALHO NO SÉCULO XXI
Rodolfo Pamplona Filho
Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Ilhéus do Tribunal Regional do Trabalho da Quinta Região (Bahia). Professor Titular
de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador – UNIFACS. Coordenador do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Civil da Universidade Salvador – UNIFACS. Membro da Academia Nacional de Direito do
Trabalho e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Mestre
e Doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e Especialista em Direito Civil pela
Fundação Faculdade de Direito da Bahia. Professor Colaborador da Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito
da UFBA – Universidade Federal da Bahia. Autor de diversas
obras jurídicas.
Instigado a refletir sobre o Direito do Trabalho do Século XXI, a
primeira frase que vem à mente não é de nenhum jurista consagrado
ou doutrinador de escol, mas sim do poeta da nova geração, Lulu
Santos, ao cantar que “Nada do que foi será, de novo do jeito que
já foi um dia...”
De fato, a nova face que se vislumbra do Direito do Trabalho no
Século XXI é bem diferente daquela originalmente desenhada, ainda
no alvorecer da Revolução Industrial, bem como completamente
oposta do perfil que lhe tentaram impor na segunda metade do
século XX.
E essa nova visão passa, necessariamente, pela concepção do
Direito Material do Trabalho, mas também pelos novos desafios
outorgados à nossa Justiça do Trabalho, notadamente com a
Emenda Constitucional nº 45.
Senão, vejamos!
O Direito do Trabalho surgiu como uma resposta especializada
da necessidade da quebra do paradigma de igualdade do Direito
341
Civil clássico, pela peculiaridade de uma forma contratual derivada
da antiga locação de servicos romana: o contrato de emprego (ou
trabalho subordinado).
Na constatação da super-exploração da mão-de-obra,
visivelmente inferiorizada diante dos titulares do capital, foi
construído todo um sistema jurídico de proteção ao trabalhador,
no que diz respeito às suas condições mínimas de trabalho, em
especial na busca por uma limitação da jornada e da fixação de
uma retribuição mínima pelo labor.
Nesse momento histórico, que se interpenetra ainda com a
realidade presente, constata-se uma tendência de maior intervenção
estatal nas relações trabalhistas, idéia que influencia, ainda hoje, a
imagem do Direito do Trabalho na doutrina jurídica, a ponto de
respeitados autores, como o civilista Álvaro Villaça de Azevedo, o
classificarem como parte do Direito Público.
Esse sistema ganhou ainda mais força no século XIX e meados
do século XX, na contraposição do sistema capitalista com o
comunismo histórico da URSS e aliadas, em que o medo do
“perigo vermelho” fazia com que os grandes grupos econômicos
admitissem ceder uma parcela de seus ganhos, ainda que fosse
para o sistema continuar da mesma forma.
Com a derrocada do regime socialista na maioria dos países
que o adotaram, chegamos àquilo que Francis Fujuyama denominou
exageradamente de “fim da história”, com a prevalecência do livre
mercado, terreno fértil para o desenvolvimento do fenômeno da
globalização da economia.
Nessa linha, encontra-se um segundo perfil do Direito do
Trabalho, que ganhou espaço na mencionada segunda metade do
século XX.
Trata-se da concepção reducionista do Juslaboralismo, em que
a expressão “flexibilização” ganhou imensa força, com o estímulo
a contratos precários, jornadas flexíveis, remunerações por
342
O Direito do trabalho no Século XXI
produção, entre outros institutos tão caros aos teóricos da
“excelência empresarial”.
Esqueceram-se, porém, que o Direito do Trabalho somente faz
sentido no próprio regime capitalista, como num sistema de freios
e contrapesos, a permitr a retroalimentação da sociedade, como
uma visão autopoiética das organizações.
Com efeito, trabalhadores com contratos de duração
determinada não obtêm crédito tão facilmente quanto aqueles
portadores de algum tipo de estabilidade econômica (não
necessariamente jurídica). Sem crédito, não há dinheiro na praça a
alimentar o comércio. Sem comércio, não há produção de riquezas,
nem arrecadação de impostos, o que faz com que toda a
organização social se enfraqueça, em um círculo vicioso que a
corrói como um tumor incontrolável...
Nessa constatação, vê-se claramente uma nova face do Direito
do Trabalho a surgir.
Na Europa, notadamente na Espanha e Itália, onde se flexibilizou
a não mais poder, fala-se em um recrusdecimento da proteção.
No Brasil, o órgão maior de proteção das relações trabalhistas,
a Justiça do Trabalho, passa de candidata a extinção para o ramo
mais prestigiado pela Reforma do Judiciário.
Isso tudo não pode ser considerado uma mera coincidência.
Não, definitivamente, não!
O Direito do Trabalho do Século XXI é, novamente, protetivo,
sem ter receio de admitir isso.
Essa proteção, porém, não se limita mais à velha concepção do
contrato individual de trabalho, mas, sim, muito mais do que isso,
abrangendo a luta pela preservação da saúde, física e mental, nas
relações laborais.
Nesse campo, não se discute somente o descumprimento do
conteúdo pecuniário do contrato, mas também a tutela dos direitos
da personalidade do trabalhador e do empregador, combatendo
Rodolfo Pamplona Filho
343
males antigos que tomam novos nomes, como o assédio sexual,
assédio moral, doenças ocupacionais etc.
Esse novel perfil do direito material influencia o órgão
jurisdicional, agora com competência renovada para lides
trabalhistas como um todo, e não somente do trabalho
subordinado. Afinal, trabalho digno é direito de todos e o ramo do
Judiciário que se propõe a ser uma “Justiça do Trabalho” não pode
ser reduzida a uma “Justiça do Contrato de Emprego”.
O novo Direito do Trabalho é, sem incoerências, tradicional e
inovador, na medida em que preserva as garantias básicas, mas
se preocupa com outros pontos que merecem proteção nas
relações trabalhistas.
Cabe a todos aqueles, vocacionados para enfrentar toda esta seara
de inesgotáveis problemas, a missão de efetivar esta nova face.
E não tenho dúvida que, se vocacionados são, preparados estão
para esta missão...
344
O Direito do trabalho no Século XXI
DOUTRINA ESTUDANTIL
ARTIGOS DOS FORMANDOS
A INTERRUPÇÃO ÚNICA DO PRAZO
PRESCRICIONAL NO NOVO CÓDIGO CIVIL
Arivaldo Marques do Espírito Santo Júnior
Lucas Lopes Menezes
Acadêmicos da Universidade Federal da Bahia.
Sumário: I – Considerações iniciais; II – Do conceito de prescrição; III – Dos
fundamentos da prescrição; IV – Manifestações doutrinárias; V – Problemas
decorrentes da unicidade prescricional; VI – Soluções Propostas pela doutrina;
VII - Aplicação da unicidade no Novo Código Civil e da necessidade de se
adotar uma interpretação sistemática e teleológica; VIII – Conclusão; IX –
Referências bibliográficas.
Resumo: O Novo Código Civil veio como tentativa de reaproximação da
realidade jurídica com o mundo dos fatos, visto que o Código Civil de 1916
já demonstrava alguma ineficiência em determinados aspectos por não se
compatibilizar com as novas exigências sociais, patrimoniais e até mesmo
processuais que se apresentavam como objeto de regulação. Dentre essas
modificações trazidas na parte geral do Novo Código, o sistema da prescrição
foi significativamente alterado. A nova Lei codificada estabeleceu prazos
menores para o exercício da pretensão, permitiu o conhecimento de ofício da
alegação de prescrição quando favorecer absolutamente incapaz1, além de
pôr fim a antiga discussão acerca da diferença entre a prescrição e
decadência. Sem correspondente na antiga codificação civil, o aludido artigo
inova ao estabelecer a interrupção única dos prazos prescricionais.
1. Considerações iniciais
O Novo Código Civil veio como tentativa de reaproximação da
realidade jurídica com o mundo dos fatos. O Código Civil de 1916
já demonstrava alguma ineficiência em determinados aspectos por
não se compatibilizar com as novas exigências sociais, patrimoniais
e até mesmo processuais que se apresentavam como objeto de
regulação. No mais das vezes, a aplicação do código anterior já
não mais satisfazia as necessidades que ora se apresentavam,
347
seja nas relações de família e sucessórias, em que a condição
jurídica da mulher e dos filhos - havidos fora do casamento - eram
colocados num plano secundário, seja em sua parte geral, que
reclamava pela proteção de novos direitos e pelo “refinamento”
de institutos já existentes.
Dentre essas modificações trazidas na parte geral do Novo
Código, o sistema da prescrição foi significativamente alterado. A
nova Lei codificada estabeleceu prazos menores para o exercício
da pretensão, permitiu o conhecimento de ofício da alegação de
prescrição quando favorecer absolutamente incapaz2, além de pôr
fim a antiga discussão acerca da diferença entre a prescrição e
decadência.
Outra inovação importante introduzida é aquela fornecida pelo
caput do artigo 202, que preceitua:
A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer
uma vez, dar-se-á:
Sem correspondente na antiga codificação civil, o aludido artigo
inova ao estabelecer a interrupção única dos prazos prescricionais.
Mas a inovação não é demasiada original. O próprio direito
positivo brasileiro apresenta antigo precedente ao limite da
interrupção. A regra contida no artigo 202 do novo códex espelhase no decreto 20.910/323, que estabelece que a prescrição de
toda e qualquer pretensão contra a Fazenda Pública, seja ela
Federal, Estadual ou Municipal só poderá sofrer uma única
interrupção.
Distancia-se, entretanto, do Código de 1916, que não
apresentava limite algum, ao menos expressamente, para a
interrupção do prazo da prescrição, apenas verberando em seu
artigo 172 que “a prescrição interrompe-se:”
Foi justamente pelo silêncio da Lei Codificada Anterior que
surgiu, naquele momento, na doutrina, a discussão acerca da
possibilidade da prescrição ser interrompida mais de uma vez.
348
A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil
Favoravelmente à limitação, argumentava-se que a prescrição
possui como um dos seus fundamentos básicos o interesse da
sociedade em que os direitos não permaneçam muito tempo sem
exercício, situação que restaria incompatível com a interrupção mais
de uma vez do prazo prescricional. 4
Nesse sentido, o Ministro Bento de Faria já sustentava, numa
posição vanguardista, a tese da interrupção única do prazo
prescricional na apelação nº 5.250 de 23 de setembro de 1927.
Argumentava o douto jurista que a prescrição se justificava em
razão de elevados interesses sociais, sendo, por conta disso, uma
medida de ordem pública para estabilidade de todas as relações
jurídicas. Dessa forma, tal instituto não se coadunava com
perpetuação do litígio, embutida na possibilidade da prescrição
ser interrompida diversas vezes:
[...] tudo deve ter fim e o Estado é interessado em que os direitos
não permaneçam por muito tempo sem exercício; se com tal
dispor, assentado na – negligência – a razão de imputabilidade
contra o titular de crédito, se procurou prescrever o regime nas
ações perpétuas, já malferidas desde 424, por TEODOSIO, o
jovem; parece que permitir, ilimitadamente, a interrupção do prazo
respectivo não removeria, mas faria surgir esse – periculum
litium. Basta que o interessado, sem ajuizar seu crédito para
exigi-lo, por outro meio, v. g., pelo protesto interrompesse
continuamente, em tempo útil, o curso do prazo fixado para
extingui-lo.” 5
Contrariamente a Bento de Faria, Carvalho Santos6 sustentava
que quando o credor interrompe a prescrição não dá lugar para
que se estabeleça uma situação de incerteza, inexistindo, por conta
disso, interesse social em que ele perca a sua pretensão, “pois a
sociedade não pode ter interesse em prejudicá-lo, quando
nenhuma certeza ou dúvida subsiste quanto ao seu direito.”
Carvalho Santos argumentava que a prescrição apenas se
justifica quando houver negligência do credor que, se prolongada,
Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes
349
importe a renúncia do seu direito. Afirmava o douto jurista que a
interrupção do curso prescricional feita pelo credor se dava em
seu próprio benefício e representava a ausência de sua incúria,
não sendo possível, dessa forma, que a ordem social sacrificasse
esse direito sem fundamento razoável, não tolerando novas
interrupções da prescrição.
Além disso, segundo Carvalho Santos, a lei quedou-se silente
acerca da reiteração do ato interruptivo, por julgá-lo supérfluo, já
que uma vez interrompido surge um prazo novo, porém, com a
mesma natureza do anterior. Assim, se há novo prazo, há,
necessariamente, a possibilidade de nova interrupção.
A discussão findou-se (ao menos aparentemente) com o advento
da nova Lei Civil que instituiu a unicidade da interrupção do curso
prescricional em seu art. 202, ora comentado.
Entretanto, se é certo que a alteração trazida pelo Novo Código
Civil pôs fim à discussão travada pela doutrina acerca da
interrupção única da prescrição, certo também é que uma
interpretação equivocada da regra esculpida no art. 202 da Lei
Civil poderá dar origem a diversos outros problemas a serem
enfrentados pelos operadores do direito. Será este, portanto, o
tema central deste trabalho: os problemas decorrentes da regra
da unicidade interruptiva da prescrição.
2. Do conceito de prescrição
A prescrição pode ser definida como uma exceção7 material que
obsta o exercício da pretensão do titular de um direito violado. Operada
a prescrição por inércia do titular do direito violado, desaparece o
poder de exigir coercitivamente a reparação desse direito.
O conceito formulado assenta-se em novas premissas
encontradas em diversos exames feitos pela doutrina nacional
envolvendo este instituto. Superada a idéia outrora sustentada de
que a prescrição atinge o direito de ação8, pois este é um direito
350
A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil
fundamental e abstrato, a noção da pretensão como o “direito de
exigir de outrem uma ação ou omissão” assumiu a condição de
nova premissa para o estudo da prescrição9, sendo adotada pelo
Código Civil Brasileiro sob influência do Código Civil Alemão (§
198). Observe-se, de outro lado, que já antes do advento do Novo
Código Civil, Pontes de Miranda10, com maestria, ensinava:
A prescrição seria uma exceção que alguém tem contra o que
não exerceu, durante um lapso de tempo fixado em norma, sua
pretensão ou ação. (grifos aditados)
Maria Helena Diniz, também vinculada à noção de que prescrição
atua como impedimento da pretensão11, pondera que:
O que caracteriza a prescrição é que ela visa extinguir uma
pretensão alegável em juízo por meio de uma ação, mas não o
direito propriamente dito12. (grifos aditados)
Logo, atento às novas bases que circundam o instituto jurídico
da prescrição, o Código Civil alterou o tratamento dado à
prescrição dentro do sistema jurídico brasileiro, inovando em
diversos pontos, como, v.g., ao estabelecer a interrupção única
dos prazos prescricionais.
3. Dos fundamentos de prescrição
A análise mais detalhada da prescrição leva-nos a duas ordens
de fundamentos que lhe dão sustento:
a) o interesse público e;
b) castigo à negligência do titular do direito13.
Primeiramente, a violação ou até mesmo a simples ameaça de
um direito geram uma desarmonia social e desequilíbrio da ordem
jurídica. A ação surge como instrumento que possibilita ao titular
do direito restabelecer o “status quo ante”.
Entretanto, se o titular desse direito queda-se inerte, não
exercitando pretensão, nada mais faz que cooperar com essa
desarmonia, legando ao Estado o dever de solucionar o desarranjo
Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes
351
e restaurar o equilíbrio anteriormente existente. Para corresponder
a este dever ao qual é chamado, o Estado se faz valer da prescrição
como meio eficaz para tanto. As relações jurídicas quando instáveis
necessitam de mecanismo que devolva a harmonia antes havida.
Se permanece paralisado o titular do direito, permitindo a
continuidade da perturbação da ordem jurídica e não cooperando
para a harmonia social, o Estado incumbe-se de realizar providência
mediante a prescrição, que retira do titular do direito o poder de
exigir de outrem, coercitivamente, o cumprimento de um dever
jurídico. 13
Bem lembra Maria Helena Diniz que “esse instituto foi criado
como medida de ordem pública para proporcionar segurança às
relações jurídicas, que seriam comprometidas diante da
instabilidade oriunda do fato de se possibilitar o exercício da ação
por prazo indeterminado”.14
Ademais disso, fundamenta também a prescrição o seu propósito
de punir a inatividade do titular do direito, isto é, a sua negligência
diante da possibilidade de pacificação da ordem jurídica. A
prescrição apresenta-se como uma penalidade, pois a negligência
não compadece com a existência de um estado antijurídico. Imperioso
é o brocardo latino “dormientibus non sucurit iure”.
Não resta dúvida que a prescrição é, em simbólica alusão, uma
espada pressionada contra o titular do direito, que o força ao
exercício de sua pretensão, sob pena de não poder mais exigir
que a outra parte satisfaça a obrigação avençada. É, desta forma,
imprescindível que o credor quede-se inerte para que a prescrição
opere seus efeitos. Nesse sentido pondera J. M. de Carvalho
Santos:
“A negligência do credor, portanto, é a base da prescrição e só
a justifica quando se manifesta a tal ponto, que vá redundar em
trazer incerteza de seu direito, com o que já interessa de perto
a ordem pública e os interesses sociais.
352
A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil
Mas, sem a negligência, se o credor está vigilante, interrompendo
sempre a prescrição, isso revela apenas que, em benefício seu,
não exercitou a ação e não seria possível que a ordem social
viesse a sacrificar esse direito, sem fundamento razoável, não
tolerando novas interrupções da prescrição”15
4. Manifestações doutrinárias
Diversas são as manifestações encontradas na doutrina acerca
da modificação, direcionando elogios à limitação da interrupção
dos prazos prescricionais. Os professores Pablo Stolze e Rodolfo
Pamplona Filho entendem ser salutar a medida, haja vista a tentativa
de moralizar a utilização da possibilidade de interrupção, coibindose abusos e a própria perpetuação da lide16. Ressaltam ainda,
posteriormente, que:
“No Juízo Trabalhista, por força do entendimento consolidado
no Enunciado 268 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho,
‘a demanda trabalhista, ainda que arquivada, interrompe a
prescrição’. A quase-gratuidade no ajuizamento de reclamações
trabalhistas tem permitido que os autores simplesmente ajuízem
ações sem sequer comparecer à audiência designada
(arquivando-a, na forma do art. 844 da CLT, o que corresponde
à extinção do processo sem julgamento do mérito), simplesmente
para o obter novo prazo para apresentarem reclamação. Tal
prática, agora, não terá mais possibilidade jurídica sendo
realizada, em função da aplicação da nova regra
expressa”. 17(grifos nossos).
Evidente, não há como afastar a boa intenção do legislador ao
intentar a modificação inserta no caput do art. 202. A inovação
pretendeu atender aos fundamentos e a toda estrutura do sistema
da prescrição, evitando a perduração da situação de instabilidade,
e contrária ao ordenamento jurídico.
Como bem observa Câmara Leal, umas das vantagens da
prescrição é a de “impedir que o autor retarde, maliciosamente, a
demanda no intuito de dificultar a defesa do réu pelo desbara-
Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes
353
tamento das provas, em virtude da remota ocorrência dos
fatos”18,19. Dessa forma, de nada adiantaria a sua existência se a
lei atribuísse a fatos subjetivos, dependentes, portanto, da vontade
do credor, o efeito de interromper o curso prescricional, a qualquer
tempo e em qualquer situação.
Isto, fatalmente, fulminaria o objetivo do instituto da prescrição
que é justamente o de coibir os abusos de direito por parte do
seu titular, contrariando, por conseqüência lógica, o seu próprio
fundamento, na medida em que haveria a perpetuação da situação
de incerteza instaurada pela violação do direito.
Talvez por isso, é que essa alteração trazida pelo Novel Código
Civil tem sido vista pela doutrina como uma medida salutar tomada
pelo legislador.
5. Problemas decorrentes da unicidade prescricional
Data venia ao intuito legislativo, a admissão da unicidade da
interrupção do prazo prescricional provoca repercussões materiais
e processuais importantes, que não podem ser renegadas a um
plano secundário.
Uma interpretação literal do artigo acarretaria situações injustas
e desarrazoadas. Poder-se-ia entender, por exemplo, que, em virtude
da regra constante no caput do art. 202, interrompido anteriormente
o prazo prescricional e proposta, depois, a demanda, haveria a
ocorrência da prescrição intercorrente.
Dessa forma, o entendimento da interrupção prazal única de
modo compatível com toda a sistemática da prescrição deve ser
visualizada à luz dos fundamentos, anteriormente examinados, que
norteiam este instituto.
Isso porque, do contrário, a unicidade da interrupção poderá
nos levar a situação de os efeitos da prescrição se operarem
mesmo que o titular do direito não se mostre negligente. Tomese em consideração a hipótese do titular de um título cambial
354
A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil
que, no primeiro dia subseqüente ao vencimento do título,
interrompe seu prazo prescricional mediante o protesto cambial
(hipótese prevista no inciso III do artigo 202 do Código Civil)20,
continuada a inadimplência do devedor, propõe ação executiva
de cobrança da cambial. Em nenhum momento esse titular do
direito mostrou-se inerte. Muito pelo contrário, desde o início,
mostrara-se diligente diante de suas possibilidades de fazer
cumprir seu direito.
Entretanto, diante da exegese literal do artigo, essa primeira
interrupção inviabilizaria qualquer outra posterior, até mesmo aquela
prevista em seu inciso I, decorrente do despacho citatório do juiz.
Assim entendido, o prazo prescricional voltaria a “correr” na data
do protesto cambial, conforme estabelece o parágrafo único do
artigo 202, não mais havendo nova interrupção em virtude da
propositura de ação. Através do raciocínio exposto, aplicado a
hipótese figurada, concluir-se-ia que o processo proposto não
poderia durar mais de 03 anos, sob pena de prescrita a pretensão
do titular do crédito.
Mais absurda ainda era a situação anterior a vigência da Lei
11.232/2005, quando tínhamos a separação entre os processos
de conhecimento e de execução. Proposta a ação de conhecimento
e interrompido o prazo prescricional, não mais se interromperia o
prazo reiniciado em virtude do processo de execução.21 Sabido
que é a situação do Judiciário em todo o país e da duração
desarrazoada de seus processos, inconcebível punir o titular da
pretensão que se mostrou diligente por fatos alheios a sua esfera
de atuação.
6. Soluções prospostas pela doutrina
Apesar da recente inovação conferida pelo Novo Código Civil
já se vislumbram na doutrina pátria alguns posicionamentos
acerca do tema.
Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes
355
Humberto Theodoro Júnior, enfrentando o problema, afirma que
em sendo proposta a ação principal posteriormente à ação
preparatória, o despacho citatório exarado no bojo daquela não
terá o condão de interromper o curso prescricional. Todavia, “o
efeito que impede a contagem do prazo prescricional enquanto
pende o feito em juízo (art.202, parágrafo único), que teve
começo no processo primitivo perdurará enquanto não se
encerrar o processo principal, dado o vínculo de acessoriedade
que há entre eles.” 22
Apesar de louvável, a solução trazida pelo ilustre doutrinador
não pacifica a questão, pois apenas se presta a resolver o problema
quando existir uma relação de acessoriedade entre os atos
interruptivos. E quando inexistir essa relação? Pensemos novamente
no exemplo do título protestado e a sua posterior execução. Nesse
caso não haveria a relação de acessoriedade sustentada pelo ilustre
jurista. Haveria então prescrição intercorrente, de acordo com a
inovação do art. 202 do Novo Código Civil?
Já os professores Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barbosa
e Maria Celina Bodin de Moraes23 afirmam que a interpretação
literal do caput do art. 202 não deve prosperar, posto que inexistente
um requisito essencial da prescrição, qual seja, a inércia do credor.
Isso porque “nada mais demonstrativo do que o interesse de
receber o crédito”, vale dizer, do exercício da pretensão do que o
ajuizamento da demanda judicial. Com isso, “reconhecer que
despacho citatório não é hábil para interromper a prescrição, pelo
simples fato de que o prazo já foi anteriormente interrompido,
além de contrariar a essência do instituto jurídico, estabeleceria o
caos e a insegurança jurídica dos créditos, isso sim, repudiado
pelo ordenamento jurídico”.
Diante disso, sustentam os citados autores que o magistrado
deve sopesar as questões relativas à aplicação da causa interruptiva
constante no inciso I do art. 202 do Código Civil.
356
A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil
De fato, da literalidade do dispositivo poder-se-ia concluir pela
prescrição intercorrente, pelo que se estaria, com já foi dito, criando
situações esdrúxulas no sistema. Entretanto, a solução apontada
pelos doutos juristas esbarra no problema da ampliação da
discricionariedade judicial, questão essa bastante controvertida
na doutrina.24
O professor Arruda Alvim, com a clareza que lhe é peculiar, ensina
que a regra da interrupção única do curso prescricional somente
deve ser aplicada no âmbito extraprocessual. Isso porque a
finalidade da norma insculpida no caput do art. 202 seria a de
possibilitar a propositura da demanda. Dessa forma, em sendo
promovida a ação aplicar-se-á a segunda parte do parágrafo único
do dispositivo em comento.25
Com efeito, não há maiores problemas relacionados a unicidade
da interrupção prescricional quando seu efeito recair sobre o âmbito
extraprocessual. Nessas situações, a permissão de inúmeras
interrupções da prescrição não se coadunaria com os fundamentos
do instituto.
No entanto, data maxima venia ao brilhante entendimento
esposado pelo Mestre Arruda Alvim, não concordamos que a regra
da unicidade da interrupção da prescrição deva ser aplicada
apenas ao âmbito extraprocessual.
Isso porque incontroverso é o entendimento de que a prescrição
caracteriza-se pela punição à negligência e que a norma em
comento surgiu com o escopo de coibir os abusos cometidos
pelos credores que se valiam da interrupção do curso prescricional
para postergar a lide, dificultando, com isso, a defesa do réu.
Note-se, por exemplo, as hipóteses previstas nos incisos II, IV,
V, VI do art. 202 do Código Civil, que apesar de judiciais, portanto
endoprocessuais, estariam adstritas à interrupção única do curso
prescricional, haja vista que a permissão de inúmeras interrupções
também não se coadunaria com o fundamentos do instituto.
Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes
357
Note-se ainda que a regra da unicidade não exclui de sua
aplicação a hipótese do inciso I do art. 202 do Código Civil. Devese, porém, observar algumas ponderações, como se verá adiante.
7. Aplicação da unicidade no novo código civil e
da necessidade de se adotar uma interpretação
sistemática e teleológica
Inexistindo a indolência do credor26 consubstanciada pelo
ajuizamento da demanda judicial, impossível é que seja negado
efeito interruptivo ao despacho citatório. Assim, em qualquer
hipótese, a causa prevista no inciso I do art. 202 do NCC terá o
condão de interromper o curso prescricional.
Por outro lado, poder-se-ia afirmar que essa interpretação
fulminaria o objetivo da norma que é coibir os abusos cometidos
pelos credores. Isso porque permitiria que os credores ajuizassem
a demanda, abandonando-a posteriormente o que implicaria na
extinção do feito sem julgamento do mérito, mas não afetaria a
interrupção do curso prescricional. É o que acontece (ou acontecia)
no Juízo Trabalhista. Entretanto, é obvio que esse entendimento
não pode prosperar.
Ora, se o ajuizamento da demanda judicial demonstra o interesse do
credor de exercer a sua pretensão, o seu abandono demonstra a sua
incúria. Com isso, uma vez proposta a demanda, se esta vier a ser
extinta por culpa do autor, o despacho citatório exarado no bojo do
processo quando da sua repropositura não terá o condão de interromper
o curso prescricional. Deve o credor, pois, ser punido, posto que não
foi diligente quanto ao prosseguimento do feito primitivo.
Com isso, pugnamos pela adoção de uma interpretação
sistemática e teleológica do caput do art. 202, tomando-se por
base os fundamentos que norteiam a prescrição, bem como a
intenção do legislador consubstanciada na regra ora analisada.
358
A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil
Importante observar que a adoção de determinada regra
hermenêutica não exclui, necessariamente, a aplicação de outra,
podendo haver, portanto, a conjugação de técnicas interpretativas.
Nesse sentido assevera Humberto Theodoro Junior que “os
vários critérios ou métodos de interpretação não excludentes entre
si. Ao contrário, devem ser empregados cumulativamente na
medida em que o caso concreto reclame técnica exegética
pertinente a cada um deles. Às vezes um só deles é suficiente
para solucionar o problema de interpretação. Outras vezes só com
a conjugação de alguns ou de todos os critérios disponíveis é
que se logrará resultado satisfatório na operação hermenêutica.”
Desse modo, o intérprete deve buscar o espírito da norma,
adequando-a ao sistema que circunda a prescrição.
Em assim sendo, o aplicador do direito deve ponderar o caráter
punitivo da prescrição e o intuito do legislador de coibir os abusos
de direito cometidos por quem o titulariza. Ou seja, para que a
regra da unicidade seja aplicada ao quanto disposto no inciso I
do art. 202 da Lei Civil é mister que a conduta do credor evidencie
o seu descaso quanto ao exercício da sua pretensão, bem como
o seu propósito em postergar o litígio.
Dessa forma, entendemos ser nada desarrazoado que quando
o processo for extinto por conta das hipóteses que evidenciem
uma finalidade procrastinatória e o descaso do autor, deverá ser
observada literalmente a regra da unicidade da prescrição. Vale
dizer, quando por culpa do autor o processo ficar parado por mais
de um ano, ou quando este desistir da ação, ou abandonar a causa,
mostrando-se inerte perante a sua pretensão, não poderá ele
interromper o curso prescricional através da repropositura da ação.
Importante ressaltar que estaria incluída toda e qualquer hipótese
que gere a extinção do feito sem resolução mérito por fato imputável
ao autor, a exemplo do não comparecimento do demandante à
Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes
359
audiência nos processos de competência dos Juizados Especiais
e da Justiça Trabalhista.
Ressalte-se ainda que na hipótese de desistência da ação (art.
267, VIII do CPC), se esta ocorrer antes da citação do réu,
entendemos que deverá este ser notificado da decisão nos termos
do § 6º do art. 219 do Código de Processo Civil.27
Restaria, dessa forma, respeitado simultaneamente o sistema
prescricional e o intuito do legislador buscado com a inovação.
8. Conclusão
Diante dos argumentos acima expostos e dos ensinamentos
da Hermenêutica Jurídica, irrefutável é a posição de que ao caput
do art. 202 do Código Civil não se aplica uma interpretação literal.
Caso contrário estaria sendo ignorada toda a estrutura em que se
assenta o instituto da prescrição, além de ocasionar, por via de
conseqüência, situações de extrema insegurança jurídica, punindose, desmotivadamente, o credor e colocando o devedor em
situação excessivamente vantajosa.
Evidente que a análise do caput do art. 202 deve preservar a
intenção do legislador de coibir os abusos de direito cometidos
pelo credor, contudo, essa posição deve ser ponderada de forma
a não desvirtuar o instituto da prescrição, ou seja, a aplicação da
novidade trazida pelo citado artigo deve-se coadunar com os
fundamentos objetivos da prescrição.
Dessa forma, concluímos que:
a) Aplica-se, sem restrições, a interrupção única da prescrição
aos incisos II, III, IV, V e VI do art. 202;
b) Quanto ao inciso I do art. 202 do Código Civil, deve ser
adotada uma interpretação sistemática e teleológica,
levando-se em consideração os fundamentos que circundam
a prescrição, assim como o intuito legislativo de coibir os
abusos de direito. Assim, deve o magistrado aplicar a regra
360
A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil
da unicidade apenas nos casos de repropositura da
demanda anteriormente extinta por fato imputável ao autor.
Isso porque nessas hipóteses visualiza-se, o descaso do
credor quanto ao exercício da sua pretensão, o que configura,
por sua vez, a negligência do titular do direito, repudiada
pelo sistema que envolve o instituto da prescrição, além de
evidenciar o propósito do credor em postergar a lide.
c) Havendo extinção do processo em virtude do disposto no
inciso VIII do art. 267 do CPC, deve o réu ser notificado
nos termos do § 6º do art. 219 do mesmo diploma legal.
9. Referências
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TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria
Celina Bodin de. (coord.). Código Civil Interpretado Conforme a
Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
10. Notas
1
Posteriormente, a Lei 11.280 de 16.02.2006 alterou o §5º do art. 219 do CPC
dando-lhe o seguinte enunciado: “juiz pronunciará, de oficio, a prescrição”. Com isso,
revogou o art. 194 do Código Civil. Sobre o tema conferir THEODORO JUNIOR.
Humberto. “A exceção da prescrição no Processo Civil. Impugnação do devedor e
decretação de oficio pelo Juiz”. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil. São
Paulo: IOB Thomson. 2006, ano VII., nº 41. p. 69-85.
2
Posteriormente, a Lei 11.280 de 16.02.2006 alterou o §5º do art. 219 do CPC
dando-lhe o seguinte enunciado: “juiz pronunciará, de oficio, a prescrição”. Com isso,
revogou o art. 194 do Código Civil. Sobre o tema conferir THEODORO JUNIOR.
Humberto. “A exceção da prescrição no Processo Civil. Impugnação do devedor e
decretação de oficio pelo Juiz”. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil. São
Paulo: IOB Thomson. 2006, ano VII., nº 41. p. 69-85.
3
Art. 8° do Decreto-lei nº 29.910/32: “A prescrição somente poderá ser interrompida
uma vez.”
4
TEPEDINO. Gustavo. Barboza. Heloisa Helena. Bodin de Moraes. Maria Celina
Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República.
Rio de Janeiro. Renovar. 2004. p. 379.
5
BENTO DE FARIA apud J.M. CARVALHO SANTOS. Código Civil Brasileiro interpretado, principalmente prático. Vol. III. Parte Geral. 7ª edição. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos. 1991. p. 441-442.
6
CARVALHO SANTOS. Op., cit.,. p.443.
De acordo com Fredie Didier Jr, em sentido material, “a exceção relaciona-se com a
pretensão, sendo um direito de que o demandado se vale para opor-se à pretensão,
para neutralizar-lhe a eficácia – é uma situação jurídica que a lei material considera
como apta a impedir ou retardar a eficácia de determinada pretensão, espécie de
contradireito do réu em face do autor: é uma pretensão que se exerce como
Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes
363
contraposição à outra pretensão”. DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual
Civil. Vol. 1, 7ª Edição. Salvador: Juspodivm, 2007, p.439-440.
7
Para Carvalho Santos, a prescrição era um modo de extinção dos direitos em
virtude da perda da ação que os assegurava. Carvalho Santos. João Manuel.
Código Civil Brasileiro interpretado, principalmente prático. Vol. III. Parte Geral. 14ª
edição. Rio de Janeiro. 1991, p., 123.
8
A noção de que os efeitos da prescrição se operam sobre a pretensão do titular de
um direito violado ganha força no Brasil com o trabalho artigo apresentado por Agnelo
Amorim Filho, que, ao buscar diferenciar os institutos da decadência e da prescrição,
acaba por ressaltar em diversos pontos que a pretensão, e não a ação que extinguese com a prescrição. De acordo com o professor, “o exercício dos direitos potestativos
se vinculam somente a decadência pelo fato de que estes direitos não têm por
objetivo a satisfação de uma pretensão, se se entender como tal o poder de exigir de
outrem uma prestação, pois os direitos potestativos são, por definição, direitos sem
pretensão”. F I LH O , Agnelo Amorim. Critério Científico para Distinguir a Prescrição da
Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis. RT, 300, outubro/1960, pág. 7,
reproduzido na RT 744, outubro/1997, v.744, págs. 725-750.
9
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte geral, v.6, p., 100.
10
Afirmando o entendimento de que a prescrição ataca a pretensão, os professores
baianos Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho entendem que “a prescrição é a
perda da pretensão de reparação do direito violado, em virtude da inércia de seu
G LIAN
O , Pablo Stolze e PAM
P LO NA F
titular, no prazo previsto pela lei.” GA
GAG
IANO
AMP
FII LH O ,
Rodolfo. Novo curso de direito civil. 4ª ed, v. I. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 476.
11
D I N I Z , Maria Helena.Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil.
São Paulo: Saraiva, 2002, v. I, p.336
12
SAVIGNY apud LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Da prescrição e da decadência. 2.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 27.
13
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito
Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003, v.I. p. 478.
14
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil.
São Paulo: Saraiva 2002, v. I. p.335.
15
CARVALHO SANTOS. Op., cit., p. 444.
16
Nesse mesmo sentido afirma CARLOS ROBERTO GONÇALVES: “A restrição é
benéfica, para que não se eternizem as interrupções da prescrição. Como o art. 172
do Código de 1916 silenciava a esse respeito, admitia-se que a prescrição fosse
interrompida mais de uma vez, salvo se reiteração caracterizasse abuso. A inovação
é salutar, porque evita interrupções abusivas e a protelação da solução das controvérsias.” Direito Civil. Parte Geral . V. 1. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 476.
364
A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil
17
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op., cit., p. 497-498.
18
CÂMARA LEAL, Antônio Luiz da. Op., cit., p. 32.
19
Note-se que não devemos confundir os fundamentos da prescrição com os seus
benefícios. Aqueles são os motivos que lhe deram origem, razão da existência do
instituto, enquanto que estes são apenas as conseqüências dele decorrentes.
20
Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, darse-á:
I – por despacho do juiz, mesmo que incompetente, que ordenar a citação, se o
interessado a promover no prazo e na forma da lei processual;
II – por protesto, nas condições do inciso antecedente;
III – por protesto cambial
IV – pela apresentação do titulo de credito em juízo de inventario ou em concurso de
credores;
V - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
VI - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor.
Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a
interrompeu, ou do último ato do processo que a interromper.”
21
O professor baiano CRISTIANO CHAVES DE FARIAS entende que “em se tratando de causa interruptiva judicial, a paralisação prazal única a que alude o dispositivo
legal diz respeito a cada tipo de pretensão. Assim, interrompida a prescrição no
processo de conhecimento, uma única vez, não obsta que se venha a interromper,
também a prescrição executiva, pelo despacho no processo de execução”. Direito
Civil. Teoria Geral. Lúmen Júris. 3ª edição. Rio de Janeiro. 2005. p. 506.
22
THEODORO JUNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. 3, Tomo II.
Dos efeitos do negócio jurídico ao final do livro III. Rio de Janeiro. Forense. 2003. p. 255.
23
TEPEDINO. Gustavo. BARBOZA. Heloisa Helena. MORAES. Maria Celina Bodin
de (coord.). Op., cit., p 380
24
Sobre discricionariedade judicial ver BANDEIRA DE ME LO, Celso Antônio.
Discricionariedade e Controle Jurisdicional. ed. 2. Malheiros: São Paulo. 2001
25
“entendemos que a interrupção feita fora do processo é que pode ser feita
somente uma vez. Sendo assim, interrompida a prescrição no caso do inc. III, por
protesto cambial, pode ser promovida a ação de execução, e, com a citação, será,
novamente, interrompida a prescrição, e, no curso do processo, aplicar-se-á o parágrafo único do art. 202, segunda parte (“a prescrição interrompida recomeça a correr
da data do ato que a interrompeu, ou do ultimo ato do processo para a interromper”);
ou seja, a cada do processo interrompe-se novamente. (...) Por fim, deve-se acentuar
que a única e exclusiva finalidade de ser interrompida uma prescrição, fora do
âmbito de um processo, é para que, possivelmente, venha este a ser proposto. Se é
Arivaldo M. do Espírito Santo Jr/ Lucas Lopes Menezes
365
assim, por certo, este é entendimento que deverá vir a ser aceito.” ARRUDA. Alvim.
Da Prescrição Intercorrente. Prescrição no novo Código Civil: uma análise
interdisciplinar. Mirna Cianci (coord.). São Paulo. Saraiva, 2005. p. 36.
26
Nesse sentido, assevera ARRUDA ALVIM: “Não se deve admitir a ocorrência de
prescrição se não houver inércia do credor; e, minudeando mais, igualmente não
deve ser havida como configurada prescrição intercorrente se não há inércia do
credor e autor em processo de conhecimento ou em execução”. Op., cit., p.26.
27
A aplicação do art. 267, III deverá ocorrer em conjunto com o § 6º do art. 219 do
Código Civil, haja vista ser uma das formas de dar ao réu condição de averiguar a
ocorrência da interrupção do prazo prescricional. Essa interpretação sistemática dos
artigos mencionados beneficia ao réu.
366
A interrupção única do prazo prescricional no novo código civil
A INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME
DISCIPLINAR DIFERENCIADO
Bruno Nova Silva1
Daniela Carvalho Portugal2
1
Formando da Faculdade de Direito da Universidade Federal
da Bahia e pesquisador voluntário do PIBIC 2006/2007.
2
Aluna do 6° semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora do PIBIC 2006/2007.
Sumário: 1. Introdução 2. Aspectos Técnicos 3. Breve Contextualização
Histórico-Política 4. Direito Penal de Emergência e o R D D 5.
Inconstitucionalidade Material 6. Considerações Finais 7- Bibliografia
Resumo: O presente texto consiste no resultado de um estudo acerca do
regime disciplinar diferenciado, em que serão abordados os aspectos formais
e materiais atinentes ao tema, bem como o contexto histórico que o envolve.
Pretende-se, pois, tratar não só dos aspectos jurídicos, como também das
implicações políticas e sociais relevantes ao assunto. Desta forma, o RDD
será contextualizado com as diretrizes de política criminal adotadas no país,
bem como com os sistemas de lei e ordem e de Direito Penal de Emergência
que vêm resultando na gradativa flexibilização – ou mesmo supressão! – de
direitos e garantias fundamentais caracterizadores do Estado brasileiro
enquanto democrático.
1. Introdução
A Lei n° 7.210/84, denominada Lei de Execução Penal (LEP),
sofreu recente alteração pela edição da Lei n° 10.792/03, que
instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). À época da referia
alteração, pensou-se tratar de meio eficaz para o combate à
criminalidade crescente que figurava como responsável pela
incrementação do forte temor social frente ao crime organizado.
Neste sentido, serão analisados os gradativos fatores sociais e
medidas institucionais que antecederam a instituição do RDD em
nosso ordenamento jurídico, contextualizando-os com a atual
367
política de direito penal de emergência3. Desta forma, buscar-se-á
a demonstração do mero efeito simbólico que marca tais medidas,
em especial o RDD, frente a uma sociedade gravemente abalada
pelo temor da violência social.
O presente trabalho, portanto, tem o objetivo de discutir os
dispositivos legais trazidos com a referida alteração, contrapondoos ao sistema jurídico vigente. Para tanto, dar-se-á enfoque aos
direitos e garantias fundamentais do indivíduo e a sua demasiada
flexibilização frente a tais políticas de segurança pública.
2. Aspectos Técnicos
Preliminarmente, cumpre ressaltar que o Regime Disciplinar
Diferenciado, apesar de tal denominação, ainda não constitui regime
autônomo de cumprimento de pena, ao menos quanto à acepção
técnica do termo. Isto porque, conforme o quanto disposto no art.
33 do Código Penal brasileiro c/c art. 110 da LEP, tem-se como
regimes para o cumprimento da pena a serem determinados pelo
juiz quando da condenação do réu: fechado, semi-aberto ou aberto.
Entretanto, já é demonstrada a intenção política em torná-lo um
regime autônomo de cumprimento de pena, como evidencia o
Projeto de lei do Senado n° 179 de 2005, que prevê a criação do
regime penitenciário de segurança máxima.
Assim, pode-se definir o RDD como um tratamento especial
conferido, sem prejuízo da sanção penal, ao preso, seja ele
provisório ou condenado, que cometa falta grave mediante prática
de conduta prevista como crime doloso capaz de ocasionar
subversão da ordem e disciplina internas. Cabe aqui, de início,
antecipar a ofensa ao modelo garantista referente à possibilidade
de submissão do preso provisório ao RDD, valendo o destaque
da construção de Ferrajoli sobre as medidas cautelares:
Naturalmente, a ausência do nexo entre pena e delito dissolve,
em tais casos, inclusive, a garantia da legalidade, ademais dos
368
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
eventuais vínculos da jurisdicionariedade: a lei que estabelece
os pressupostos da medida preventiva, com efeito, corresponde
a uma norma em branco, quer dizer, a uma espécie de caixa
vazia, preenchida em cada ocasião dos conteúdos mais
arbitrários; o juízo, ao estar desvinculado de qualquer condição
objetiva preexistente e informado por meros critérios de
discricionariedade administrativa, degenera em procedimento
policial de estigmatização moral, política ou social. 4
Outrossim, imperioso ressaltar que também estão igualmente
sujeitos ao RDD os presos provisórios ou condenados, nacionais
ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e
segurança do estabelecimento penal e da sociedade ou sobre os
quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação,
a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando,
conforme dispõem os §§ 1° e 2° do art. 52 da LEP. Tal fato
aproxima o modelo punitivo escolhido pelo Estado brasileiro do
chamado “sistema de mera prevenção”, combatido por Ferrajoli:
É evidente o caráter não igualitário, ademais de puramente
decisionista, deste esquema de intervenção punitiva. De
conformidade com ele, o direito e o processo penal se
transformam de sistema de retribuição, dirigido a prevenir os
fatos delituosos por meio da comprovação e da punição dos já
ocorridos, em sistema de pura prevenção, dirigido a afrontar a
mera suspeita de delitos cometidos, mas não provados, ou o
mero perigo de delitos futuros.5
O interno submetido ao RDD será recolhido em cela individual,
tendo direito à visitas semanais de duas pessoas, não contadas
as crianças, com duração de duas horas. Terá, também, direito à
saída da cela durante apenas duas horas diárias para banho de
sol. Vale dizer que a submissão ao RDD tem duração máxima de
trezentos e sessenta dias, podendo ser prorrogada por igual
período em virtude de nova falta grave da mesma espécie, até o
limite de um sexto da pena aplicada. Neste sentido, importante é
recordar o quanto disposto na súmula 715 do STF, segundo a
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
369
qual os incidentes de execução da pena são contados com base
no total das penas unificadas, e não do limite de trinta anos.
Portanto, se um indivíduo fosse condenado a 200 anos, ele poderia
passar até um sexto de tal condenação em RDD!
Conforme verbera o art. 54 da supracitada lei, diferente do que
ocorre com as demais sanções disciplinares às quais ficam sujeitos
os internos, para a imposição ao RDD é necessário não mero ato
motivado do diretor do estabelecimento carcerário, mas prévio e
fundamentado despacho do juiz competente.
Para tanto, caberá ao diretor ou a outra autoridade administrativa
a elaboração de requerimento circunstanciado, que passará pela
análise do presentante do Ministério Público e pela manifestação
da defesa – a ser apresentada em um prazo máximo de quinze
dias –, para só então ser decidida pela autoridade judiciária
competente.
Vale frisar, ainda, que há possibilidade de inclusão do interno
no RDD em caráter provisório, desde que no interesse da disciplina
e averiguação do fato, o que, no entanto, fica condicionado ao
despacho do juiz competente e tem prazo máximo de dez dias a
ser abatido quando da imposição definitiva.
Importante esclarecer que também se aplica ao RDD o
quanto disposto no art. 45 da LEP. Desta forma, fica vedada
a aplicação de falta grave ou sanção disciplinar sem que haja
expressa previsão legal ou regulamentar que a defina, bem
como proibida a colocação em risco da integridade física e
moral do detento, a alocação em cela escura e a aplicação de
sanções coletivas.
Ultrapassada a exposição do tratamento legal instituidor do
RDD, cabe agora tecer alguns comentários acerca de tais
disposições. Quando da determinação da amplitude da sujeição
passiva ao RDD, o legislador fez uso da expressão “apresentem
alto risco para ordem e a segurança do estabelecimento penal ou
370
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
da sociedade”. Trata-se de flagrante violação à estrita legalidade
ou taxatividade, já que, segundo tal princípio, é obrigatória a
utilização de técnica legislativa idônea a excluir dispositivos
arbitrários e discriminatórios que se refiram às pessoas e não a
fatos. Com isso, cabe à lei prevê hipóteses que traduzam apenas
comportamentos empíricos determinados para não incorrer no
chamado “direito penal do autor”, severamente condenado por
Ferrajoli:
Substancialismo e subjetivismo, além disso, alcançam as formas
mais perversas no esquema penal chamado tipo de autor, onde
a hipótese normativa de desvio é simultaneamente “sem ação” e
“sem fato ofensivo”. A lei, neste caso, não proíbe nem regula
comportamentos, senão configura status subjetivos diretamente
incrimináveis: não tem função reguladora, mas constitutiva dos
pressupostos da pena; não é observável ou violável pela omissão
ou comissão de fatos contrários a ela, senão constitutivamente
observada e violada por condições pessoais, conformes ou
contrárias. 6
Tal técnica legislativa representa, ainda, violação à estrita
jurisdicionalidade, já que exclui da hipótese acusatória os seus
requisitos da refutabilidade e verificabilidade. Isto porque configurar
“alto risco” consiste em mero juízo de valor, dotado assim de inteira
subjetividade, o que, além de conferir indesejada margem de
discricionariedade quando da aplicação de tal medida, impossibilita
o exercício da ampla defesa e do contraditório, já que não se pode
confrontar de maneira objetiva um juízo de valor.
Outra expressão utilizada que merece ser analisada é “fundadas
suspeitas”. Isto pois sua disposição acaba por ferir frontalmente o
princípio constitucionalmente consagrado da presunção de
inocência. Como se admitir que, em um regime democrático
garantidor dos direitos fundamentais do indivíduo, uma lei faculte
ao judiciário a restrição à liberdade de um indivíduo em tal nível
por existir contra ele “fundadas suspeitas”?!
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
371
Conclui-se, portanto, que a previsão legal do Regime Disciplinar
Diferenciado, da forma que está posta no nosso ordenamento
jurídico, apresenta graves defeitos formais. Apega-se em conceitos
fluidos, indeterminados, e elementos normativos do tipo, que
conferem ampla margem de discricionariedade na aplicação dos
seus dispositivos. Frise-se, por oportuno, que uma
discricionariedade demasiada nada mais é senão um pressuposto
para arbitrariedades!
3. Breve contextualização histórico-política
A Lei de Execução Penal, quando editada, foi considerada uma
lei a frente de seu tempo, pois, mesmo antes da promulgação da
denominada Constituição “cidadã” de 1988, já previa uma série
de direitos e garantias fundamentais, bem como princípios a serem
seguidos no tratamento dispensado ao indivíduo apenado.
O grande problema, à época, era a falta de estrutura do Estado
que permitisse a garantia de uma efetividade dos dispositivos da
supramencionada lei. Diante dessa situação, o Estado optou não
por criar medidas político criminais de base que viabilizassem a
aplicação de tais dispositivos, mas por suprimi-los de forma
gradativa.
Tal supressão configurou verdadeiro “atestado” de incompetência
estatal frente ao combate à criminalidade, configurando flagrante
ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social, aproximando
mais o país do modelo totalitarista e, consequentemente,
distanciando-o do suposto ideal democrático politicamente
proclamado.
O contexto de institucionalização do RDD está intimamente
ligado à evolução do crime organizado no país, bem como ao
espaço que se fez ocupar de tal assunto na mídia brasileira. A
crescente violência urbana e o forte temor social “legitimaram” a
372
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
flexibilização de direitos e garantias consagrados não só pela LEP
como também pela Constituição Federal de 1988.
Pode-se afirmar, inclusive, que a intenção política já era manifesta
neste sentido, já que é muito mais fácil resumir a política criminal à
construção de presídios em lugar de investir em programas sociais
de base. Faltava, apenas, uma justificativa politicamente idônea
para se conquistar o massificado apoio popular em prol do sistema
de lei e ordem que passam a defender e inaugurar.
Neste sentido, para a conquista do clamor social – e sua
conseqüente manipulação – faltava tão somente a existência de
um “vilão”, um “inimigo do Estado”, rótulo para o qual os
presidiários, sobretudo o traficante serviram muito bem. Escolhido
o “bode expiatório”, ficaria mais fácil isentar o dito “cidadão de
bem” de culpa pelas mazelas sociais que influenciam, direta ou
indiretamente, no aumento da criminalidade e persuadi-lo a aderir
à política de tolerância zero.
O fato mais marcante propulsor da supressão de direitos e
garantias foi o surgimento do Primeiro Comando da Capital (PCC),
facção de presidiários no estado de São Paulo. Em 1985, quando
criado o Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté,
foram construídas 160 celas separadas, utilizadas no isolamento
dos internos considerados perigosos. Já naquela época, tal
segregação revoltava os presos, que se organizaram, fazendo surgir,
em 1993, o PCC.
A partir de então, tal facção criminosa comandou uma série de
acontecimentos, dentre os quais é possível destacar duas rebeliões
como fatores decisivos no endurecimento penal e na busca por
mecanismos eficazes para evitar semelhantes situações.
O primeiro fato marcante, neste contexto, foi o grave motim na
Casa de Custódia em Taubaté, no ano de 2000, em que houve a
destruição completa da penitenciária, bem como a morte de nove
internos, sendo quatro decapitados.
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
373
O segundo evento, considerado a maior rebelião do país até então,
ocorreu em 2001 após o retorno dos “presos perigosos” para a
Casa de Custódia, quando findada a sua reforma. Tal rebelião
envolveu 25 presídios e 4 cadeias do estado de São Paulo.
Este último fato gerou grave repercussão social, culminando na
edição da Resolução n° 26 de 2001 pelo então Secretário da
Administração Penitenciária (SAP) do estado de São Paulo Nagashi
Furukawa, que instituiu o RDD no mesmo ano.
A grande polêmica à época versava sobre a ilegalidade de tal
resolução, tanto no seu aspecto material, posto que contrariava
os dispositivos da LEP, quanto no seu aspecto formal, já que violava
a separação de Poderes e a competência para a edição de leis
que pertence, exclusivamente, ao Poder Legislativo.
Neste sentido, houve diversas manifestações jurisprudenciais
pela inconstitucionalidade de tal dispositivo, dentre as quais merece
destaque a decisão proferida pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça de São Paulo quando do julgamento do Habeas Corpus
relativo ao processo de n° 978.305.3/0-00. O referido HC tinha
como paciente Marcos Willians Herbas Camacho, vulgo “Marcola”,
e como relator o desembargador Borges Pereira, no qual seque
trecho do voto:
[...] Trata-se, no entanto, de medida inconstitucional, como se
sustenta a seguir:
O chamado RDD (Regime disciplinar diferenciado) é uma
aberração jurídica que demonstra à saciedade como o legislador
ordinário, no afã de tentar equacionar o problema do crime
organizado, deixou de contemplar os mais simples princípios
constitucionais em vigor.
Já no seu nascimento, a medida ofende mortalmente a
Constituição Federal, desde que a resolução SAP n° 026/01,
que cria o regime disciplinar diferenciado, é ato de secretário de
estado, membro do Poder Executivo, a que não cabe legislar
sobre matéria penal, nem tampouco penitenciária, segundo a
374
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
Constituição Federal (arts. 22, I e 24, I). Assim, a inexistência de
procedimento legislativo e da necessária edição de lei federal, é
que deveria bastar para demonstrar a inviabilidade de sua
efetivação, configurando evidente constrangimento ilegal.
Solucionando a polêmica apenas em seu aspecto formal, foi
editada, dois anos após a SAP n° 026/01, a lei n° 10.792 de
2003, que altera a LEP e institui o RDD.
4. Direito Penal de emergência e o RDD
Os discursos têm o efeito de centrar a atenção sobre certos
fenômenos e seu silêncio em relação a outros os condena à
ignorância ou à indiferença. Isso é o que acontece com a
verdadeira dimensão política do poder punitivo, que não se radica
no exercício repressivo-seletivo da criminalização secundária
individualizante, mas no exercício configuradr-positivo da
vigilância, cujo potencial controlador é imenso em comparação
com a escassa capacidade operativa da primeira.7
A violência urbana e sua respectiva exploração pela mídia,
consoante já mencionado, geram um intenso temor pela falta de
segurança pública, que repercute no clamor social por medidas
céleres e enérgicas por parte do Estado no combate à
criminalidade.
Mas a velocidade da notícia e a própria dinâmica de uma
sociedade espantosamente acelerada são completamente
diferentes da velocidade do processo, ou seja, existe um tempo
do direito que está completamente desvinculado do tempo da
sociedade. E o Direito jamais será capaz de dar soluções à
velocidade da luz.
Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada
com a velocidade da virtualidade não quer esperar pelo
processo, daí a paixão pelas prisões cautelares e a visibilidade
de uma imediata punição. Assim querem o mercado (que não
pode esperar, pois o tempo é dinheiro) e a sociedade (que não
quer esperar, pois está acostumada ao instantâneo).8
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
375
Neste contexto, os poderes políticos encontram terreno fértil
para a adoção de medidas emergenciais, com forte valor simbólico
frente a uma sociedade amedrontada e, por isso, de fácil
manipulação, como é o caso do RDD.
O simbolismo decorre da falsa, porém tranqüilizante, idéia de
que esta nova política é eficaz: raciocínio construído e propagado
pelos meios de comunicação, que exploram lucrativamente o temor
social e manipulam a opinião pública. Deflagra-se um processo
de fobia generalizada em que está presente não só o medo concreto
decorrente de uma prática delitiva consumada, como também o
pânico diante da possibilidade constante da agressão. Desenvolvese, portanto, a perseguição à figura do “bode expiatório”, “inimigo
do estado”, o que contribui para o fortalecimento da segregação e
da marginalização social.
A legislação penal de emergência surge no momento em que o
Estado se utiliza de medidas de reafirmação da sua soberania no
combate a situações excepcionalmente graves, capazes de abalar
a ordem e segurança do país, ocasionando forte temor social.
Esta resposta estatal, em princípio, seria legítima e necessária,
não fossem as conseqüências que, na prática, são extraídas de tal
política.
As intervenções de urgência parecem sempre chegar ao mesmo
tempo demasiado cedo e demasiado tarde: demasiado cedo
porque o tratamento aplicado é sempre superficial; demasiado
tarde porque, sem uma inversão de lógica, o mal não parou de
se propagar.9
Essa situação excepcional acaba por se perpetuar e tais medidas
são incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio, dando vez à
institucionalização de um “Direito Penal de Emergência”. Significa,
então, que o Estado acaba por “atestar” a sua incapacidade de
restaurar o ambiente de normalidade, e a situação supostamente
excepcional se torna regra. Assim, legitima-se a quebra de direitos
376
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
e garantias fundamentais constitucionalmente consagrados, ferindo
o modelo de Direito Penal garantista, preconizado por Luigi Ferrajoli.
Conclui-se, portanto, que o RDD é mais um fruto desta
legiferação de emergência e, como tal, possui caráter meramente
simbólico, não constituindo medida idônea ao verdadeiro
enfrentamento da problemática da criminalidade, até porque é
manifesto que tal fenômeno vai muito além de um mera e efêmera
situação de anormalidade. Desta forma, mais uma vez o Estado
cede às pressões da mídia e, consequentemente, da sociedade,
dispensando tratamento superficial a um assunto de tamanha
gravidade.
Elege-se figuras, tais como “Fernandinho Beira-Mar” e “Marcola”
como “bodes expiatórios”, atribuindo-lhes a falsa responsabilidade
pela violência urbana. Assim, utiliza-se do intolerante e cruel
tratamento a tais “líderes”, dando-lhes publicidade essencialmente
comercial e politiqueira, com o mero fim de representatividade da
atividade estatal de combate à violência.
5. Inconstitucionalidade material
O RDD viola flagrantemente os direitos e garantias fundamentais
consagrados pelo nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido,
observa-se não só a afronta aos preceitos expressamente
dispostos na Constituição de 1988, como também aos princípios
implícitos e aos direitos e garantias consagrados em tratados
internacionais em que o país é signatário.
Cabe aqui uma breve digressão com o objetivo de distinguir as
supracitadas vertentes assumidas pelos direitos e garantias
fundamentais no nosso ordenamento jurídico. Primeiramente,
existem aqueles devidamente expressos em nossa Magna Carta,
elencados não só em seu art. 5°, como também ao longo de seu
texto. Os princípios implícitos, por sua vez, têm o seu conteúdo
extraído da interpretação sistemática dos dispositivos atinentes
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
377
às regras de garantias. Por fim, seguindo a moderna orientação
de Direito Internacional Público, os direitos inscritos em tratados
internacionais ocupariam mesma posição hierárquica – ou até
superior – em relação aos preceitos constitucionais expressos.
O que vem ocorrendo, em termos práticos, é a manifestação da
atual tendência a interpretar a Constituição à luz dos textos
infraconstitucionais. É verdade que um princípio, quando
isoladamente considerado, traduz diversas possibilidades
interpretativas, dentre as quais caberá ao Estado a escolha daquela
que irá tutelar. Entretanto, ao ser inserido em um sistema jurídico
harmônico, tal princípio tem suas possibilidades de interpretação
naturalmente reduzidas, uma vez que o todo do qual ele é parte
limita a escolha do significado correspondente exato a ser tutelado.
Não fosse esta busca de unidade e coerência, impossível seria
falar em sistema harmônico.
A interpretação do direito é interpretação do direito, no seu
todo, não de textos isolados, desprendidos do direito.
Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços.
A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete,
sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso
que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. um
texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema
jurídico, não expressa significado normativo algum.10
Desta forma, o interesse pela segurança pública não pode ser
visto de outra forma senão em conjunto com os demais princípios
garantistas consagrados pela Constituição “cidadã” de 1988. A
crescente legiferação de emergência, no afã de prever situações
rápidas – embora ineficazes – de combate a problemas estruturais,
para a conquista de apoio político, acaba por desnaturar o modelo
garantista e democrático proposto, ao menos em tese, pela Magna
Carta. Esta carência de diretrizes e valores agrava a situação de
temor social, facilitando a manipulação do cidadão para o apoio
378
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
de medidas de urgência, das quais o RDD é grande exemplo,
flagrantemente inconstitucionais.
Sob uma perspectiva sistemática, o RDD foge à construção de
um modelo de Estado garantidor, conforme restará demonstrado
a seguir, ignorando a construção feita por Ferrajoli:
Cada uma das implicações deônticas – ou princípios – de que
se compõe todo modelo de direito penal enuncia, portanto,
uma condição sine qua non, isto é, uma garantia jurídica para
a afirmação da responsabilidade penal e para a aplicação da
pena. Tenha-se em conta de que aqui não se trata de uma
condição suficiente, na presença da qual esteja permitido ou
obrigatório punir, mas sim de uma condição necessária, na
ausência da qual não está permitido ou obrigado punir. 11
O RDD viola o princípio do non bis in idem, que, apesar de não
ser expressamente previsto na Constituição, é necessário à própria
legitimação de um Estado Democrático de Direito. Isto porque o
envolvimento em quadrilha ou bando, além de ser previsto como
hipótese de incidência do RDD, também constitui crime autônomo,
tipificado no art. 288 do nosso Código Penal em vigor.
O princípio da dignidade da pessoa humana, disposto já no art.
1°, III, combinado com a leitura do art. 5°, XLIX, ambos da Carta
Constitucional pátria também resta desrespeitado. A ofensa à
integridade física e moral do preso submetido ao RDD é alarmante,
pois o excessivo confinamento consiste em condição capaz de
desencadear um processo de atrofia muscular, bem como o
acometimento do interno a um estado de depressão profunda.
Observa-se, ainda, a ofensa ao princípio da humanização das
penas, previsto não só na Constituição Federal, em seu art. 5°, III,
como também na Convenção Americana de Direitos Humanos de
1969 (Pacto de San José da Costa Rica), em seu art. 5° n° 2,
segundo o qual “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a
penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
379
privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à
dignidade inerente ao ser humano”.
O RDD agride, ainda, os princípios do in dubio pro reo e da
presunção de inocência, este último previsto no art. 5°, LVII,
segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito
em julgado de sentença penal condenatória”. Isto ocorre não só
porque o RDD pode ser aplicado ao preso provisório, como
também pelo fato de as hipóteses de incidência estarem calcadas
em conceitos valorativos e ambíguos, tais como “alto risco” e
“fundado temor”, o que enseja demasiada discricionariedade
quando da aplicação da norma em detrimento do preso. Desta
forma, a mera suspeita justifica, de forma arbitrária e nefasta, a
inclusão de um indivíduo em condições de confinamento
subumanas.
Neste contexto, a utilização legal de termos imprecisos e
repletos de subjetividade revela-se, ainda, uma afronta direta ao
princípio da legalidade estrita vigente no direito penal pátrio,
conforme dispõe o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal. Vale
aqui mencionar as duas condições intrínsecas a tal princípio, quais
sejam: “o caráter formal ou legal do critério de definição do desvio
e o caráter empírico ou fático das hipóteses de desvio legalmente
definidas” 12. Assim, tem-se atendida apenas a primeira condição,
já que se encontra legalizada tal aberração jurídica, “apenas” não
restando preenchida a segunda condição, o que decorre da
utilização de figuras subjetivas intrinsecamente ligadas ao autor, e
não a qualquer fato. Mais uma vez, mostra-se indispensável a
doutrina de Ferrajoli:
O princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnica
legislativa específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e
discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos,
mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter
“construtivo” e não “regulamentar’ daquilo que é punível: como
380
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
as normas que, em terríveis ordenamentos passados,
perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e
os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso
ordenamento, que perseguem os “desocupados” e os
“vagabundos”, os “propensos a delinqüir”, os “dedicados a
tráficos ilícitos”, os “socialmente perigosos” e outros
semelhantes.13 (grifo nosso).
Também resta violado o princípio da proporcionalidade, já que
não há base legal que indique a dosimetria adequada à aplicação
da sanção em virtude de cada uma das hipóteses de submissão
do preso ao RDD, nem mesmo em relação à possibilidade prevista
no caput do art. 52 da LEP, que é definida com base em critérios
razoavelmente objetivos. Neste sentido, sepulta-se, também, o
quanto disposto no art. 7° n° 3 do Pacto de San José da Costa
Rica, uma vez que a falta de critério firmado na aplicação da sanção
acaba por submeter o preso a encarceramento arbitrário.
O princípio da individualização da pena, previsto no art. 5° XLVI
da Magna Carta, é ofendido com a aplicação do RDD. A escolha
do tempo de duração do castigo feita pelo juiz é meramente
casuística, inexistindo critérios objetivos para a sua respectiva
aplicação com base nos diferentes graus de reprovabilidade sobre
o fato. Nada mais elementar, posto que não se está tratando de
diferenciados graus de reprovabilidade da conduta, mas do autor
– hipótese em que resta impossível a delimitação de critérios
concretos de dosimetria, já que se ancora em valoração puramente
subjetiva! O resultado disso é aplicação da mesma punição aos
mais diversos presos, ainda que por motivos absolutamente distintos.
Vale dizer, ainda, que o preso em RDD tem violado o seu direito
à informação, fundamentado pelo art. 5°, XIV da Constituição
Federal e pelo art. 39 das Regras mínimas das Nações Unidas
para o Tratamento de Prisioneiros. O confinamento impossibilita
o contato do interno com a realidade que o cerca, incrementando
a alienação do preso – refletindo o interesse político do Estado
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
381
no isolamento, sobretudo de líderes de organizações criminosas,
como meio de esconder em uma pequena cela de prisão a sua
vasta e evidente incompetência frente o combate às desigualdades
sociais e suas conseqüências.
Diante disso, já não se pode mais falar em princípio da função
ressocializadora da pena, uma vez que o art. 1° da LEP, diante da
atual política penal da intolerância, configura texto morto,
desprovido de qualquer sentido prático.
O discurso da lei e da ordem conduz a que aqueles que não
possuem capacidade para estar no jogo sejam detidos e
neutralizados, preferencialmente com o menor custo possível.
Na lógica da eficiência, vence o Estado Penitência, pois é mais
barato excluir e encarcerar do que restabelecer o status de
consumidor, através de políticas públicas de inserção social.
Trata-se de uma conseqüência (penal) do afastamento do
Estado do setor social, onde um menos Estado-providência
necessita de um Estado (mais) Penal para conter a decorrente
marginalização social. É o que WACQUANT sintetiza em
supressão do Estado econômico, enfraquecimento do Estado
Social, fortalecimento e glorificação do Estado penal.14
Por fim, percebe-se que, ao contrário do que dispõe o art. 5° § 1°
da CF-88, as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais não têm, em verdade, aplicação imediata, aliás, sequer
têm qualquer aplicação prática: seria hipocrisia afirmar o contrário.
Caso os princípios normativos realmente guardassem relevância e
respeito, ou mesmo real eficácia normativa em nosso ordenamento,
jamais seria permitido o ingresso ou a permanência do instituto do
Regime Disciplinar Diferenciado no sistema jurídico pátrio.
Com efeito, a segurança pública não é um assunto a ser tratado
de forma maniqueísta. Há quase que uma mitificação do chamado
“cidadão de bem” em contraposição à demonização do indivíduo
apenado. Frisa-se tal expressão com o intuito de lembrar que as
jaulas do cárcere não abrigam monstros, mas pessoas. A
382
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
sociedade “de bem” frequentemente esquece deste “detalhe”
porque não quer se sentir responsável pela incrementação da
miséria humana por intermédio do cárcere.
6. Considerações finais
Só o jurista consciente da insuficiência do monólogo jurídico
está apto a compreender a complexidade característica da
sociedade contemporânea. Para tanto, deve ter humildade
científica suficiente para socorre-se de leituras de sociologia,
antropologia, história, psiquiatria, etc. sem falar no lastro
filosófico. Não há espaço para o profissional alienado,
porque ele ali-é-nada.15 (grifo nosso)
Diante do quanto exposto, conclui-se que o Regime Disciplinar
Diferenciado não pode ser abrigado em nosso sistema jurídico,
uma vez que viola diretamente os direitos e garantias fundamentais
consagrados pela Constituição Federal de 1988. Consiste, pois,
em verdadeiro retrocesso, uma vez que atropela o modelo garantista
preconizado por Ferrajoli, aproximando o Estado brasileiro de um
modelo totalitarista e autoritário:
[...] reprimem não tanto ou não apenas determinados
comportamentos, senão atitudes ou situações de imoralidade,
de perigosidade ou de hostilidade ao ordenamento, para além
de sua exteriorização em manifestações delituosas concretas.
Entretanto, os sistemas e as normas “sem ofensa” prescindem
da lesão de bens jurídicos concretos, ou reprimindo
antecipadamente a simples e freqüente colocação abstrata em
perigo, ou mesmo punindo puramente o desvalor social ou
político da ação, para além de qualquer função penal de tutela.16
A mídia exerce, junto ao Estado, grande parcela de culpa pelo
processo de demonização do indivíduo apenado. Explora
lucrativamente o medo da sociedade mediante a incessante e
sensacionalista exibição da violência urbana. A finalidade dos
meios de comunicação em massa, neste sentido, não tem como o
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
383
objetivo principal a difusão da informação ao seu público alvo,
uma vez que estes manipulam da forma que lhes for mais
conveniente (política e economicamente) a informação que será
vendida à sociedade.
Vale dizer, ainda, que o famigerado RDD não constitui meio
idôneo de combate à criminalidade, uma vez que não é capaz de
reduzir os altos índices de violência urbana ou mesmo reincidência
penal. Não é com base em uma política de intolerância que o
Estado conseguirá solucionar tal problemática. Impossível pensar
em uma política de combate ao crime desprovida de um programa
social que objetive (e viabilize, por óbvio) a efetiva melhoria de
qualidade de vida da grande parcela miserável da população
brasileira.
O confinamento desencadeia um ciclo vicioso de estigmatização
social, uma vez que aquele indivíduo privado do contato com o
mundo exterior retornará à sociedade e o crime, para ele, funcionará
como uma espécie de “reação social”, uma vez que também é
vítima da falta de educação, de oportunidade e da descriminação
pelo dito “cidadão de bem”.
É cediço que o ser humano possui como importante
característica a capacidade de se habituar ao meio em que vive.
Mesmo não desconsiderando as imperfeições intrínsecas aos
indivíduos, pode-se afirmar, hipoteticamente, que qualquer indivíduo
“puro”, livre das experiências sociais com as quais, diariamente,
os brasileiros convivem, entraria em “choque”, em estado de
perplexidade diante da mazelas que circundam as cidades
brasileiras.
Tal espanto, entretanto, apenas dura o curto espaço de tempo
em que o indivíduo precisa para se habituar e, por conseqüência,
acomodar-se a tal realidade. É o que ocorre, pois, com a gradual
quebra dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo,
rotineiramente intensificada, maliciosamente inserida na sociedade.
384
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
A falência da pena de prisão, neste diapasão, é ainda mais
gritante quando submetido o preso ao RDD, pois é aqui que o
processo de demonização é levado ao extremo, já que são
somados os esforços do Estado e da Mídia para rotular aquele
indivíduo como “inimigo do Estado”. Essa constatação frente à
falência do sistema carcerário, a muito declarada por diversos
estudiosos, deixa claro que a instituição do Regime Disciplinar
Diferenciado consiste verdadeira “contra-mão” histórica!
Por fim, cabe ao Estado seguir as diretrizes fixadas (expressa e
implicitamente) na Constituição Federal de 1988 e nos tratados
internacionais – sobretudo os Tratados Internacionais de Direitos
Humanos e das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento
de Prisioneiros – e expulsar RDD do sistema jurídico pátrio.
Entretanto, frente à constante omissão e manifesto desinteresse
político do Estado em transformar tal realidade e seguir as
supracitadas orientações, não se pode perder de vista que, além
desta habilidade se habituar, possui, também, o ser humano a
capacidade de modificar o meio em que vive! É neste último sentido
que deve se direcionar a atitude do jurista, do cidadão, numa postura
de efetivação substancial dos direitos e garantias fundamentais, por
meio de políticas sociais de base, e não mediante o uso do direito
penal como vassoura a esconder a sujeira debaixo do tapete.
7. Referências
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Penal. Lineamentos para uma teoria do bem jurídico”. In: Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 2, n° 5, 1994.
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385
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8. Notas
3
MOCCIA, Sergio. La perenne emergenza. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane,
1997.
4
eoria Geral do Garantismo P
enal
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – T
Teoria
Penal
enal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 82.
5
Id., Ibid., p. 81-82.
6
FERRAJOLI, op. cit., p. 80-81.
7
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.
enal Brasileiro: primeiro volume – T
eoria Geral do Direito P
enal. Rio de
Penal
Teoria
Penal.
Direito P
janeiro: Renavan, 2003, p. 69.
386
A inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
8
rocesso P
enal: F
undamentos da
LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao P
Processo
Penal:
Fundamentos
instrumentalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 28.
9
empo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999, p. 356 apud LOPES
OST, François. O T
Tempo
JUNIOR, Aury. Op cit., p. 29.
10
Id., Ibid., p. 40.
11
FERRAJOLI, op. cit.,p. 74.
12
FERRAJOLI, op. cit.,p. 30.
13
FERRAJOLI, op. cit.,p. 31.
14
LOPES JUNIOR, Aury. Op cit., p. 13.
15
LOPES JUNIOR, Aury. Op cit., p. 11-12.
16
FERRAJOLI, op. cit.,p. 80.
Bruno Nova Silva/ Daniela Carvalho Portugal
387
O CONCEITO DE “DÍVIDA” EMPREGADO NO INCISO
LXVII DO ART. 5.º DA CF/88 E A PRISÃO CIVIL COMO
MEDIDA COERCITIVA INOMINADA
Bruno Garcia
Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de dívida; 2.1. Breves considerações;
2.2. Estudo semântico da expressão; 2.3. Conceito jurídico; 2.3.1. Dívida
lato sensu (“Tese restritiva da prisão civil”); 2.3.2. Dívida strictu sensu (“Tese
ampliativa da prisão civil”); 2.3.3. Nossa opinião. Análise do texto do art. 5º,
inciso LXVII, da Constituição Federal de 1988; 3. Conclusão.
Resumo: Através do presente estudo, tentaremos romper com o paradigma
que tem imperado no nosso sistema jurídico de que só seria a utilização da
prisão civil naquelas expressamente autorizadas pelo inciso LXVII do art. 5.º
da Constituição Federal de 1988. Nesse esteio, mostraremos que a prisão
civil - se bem utilizada - é medida bastante útil para a concretização do direito
fundamental à efetividade tão em voga atualmente, além de outros igualmente
fundamentais tuteláveis no caso concreto.
1. Introdução
Inicialmente, cumpre esclarecer o porquê de se estar fazendo
um estudo do conceito da palavra “dívida” empregado no inciso
LXVII do art. 5.º da Constituição Federal de 1988. Ora, a justificativa
pauta-se no fato de o aludido dispositivo vedar a aplicação do
instituto da prisão civil por dívida, salvo nos casos de depositário
infiel e inadimplemento de prestação alimentar. Desse modo, tendo
o legislador constituinte dado conteúdo à prisão civil que seria
vedada, ou seja, por ter tido ele o cuidado de especificar qual tipo
de prisão civil estaria vedada, cumpre que se estude com não
menor zelo qual, definitivamente, é o conceito de dívida ali
empregado. Entendemos, pois, que, caso não fosse importante
tal trabalho interpretativo, o poder constituinte originário apenas
teria simplesmente redigido tal dispositivo sem dar qualquer
389
conteúdo à vedação da prisão civil, excluindo do texto a expressão
“por dívida”. Incontroverso, pois, que relevante é o trabalho
interpretativo ora proposto.
Com essa análise, tentaremos romper com o paradigma que
tem imperado no nosso sistema jurídico de que só seria a utilização
da prisão civil naquelas expressamente autorizadas pelo inciso
LXVII do art. 5.º da Constituição Federal de 1988. Esse
entendimento – como já dito - conduz a uma inoperância da
expressão dívida empregada como qualidade da prisão civil que
estaria vedada pelo mencionado dispositivo. Nesse esteio,
mostraremos que a prisão civil - se bem utilizada - é medida
bastante útil para a concretização do direito fundamental à
efetividade tão em voga atualmente, além de outros igualmente
fundamentais tuteláveis no caso concreto. Contudo, para coibir
possíveis arbitrariedades de magistrados, defenderemos o
estabelecimento de rígidos critérios para adoção de tal medida,
sempre atentos à regra da proporcionalidade e à ponderação dos
direitos fundamentais envolvidos no caso concreto, além da
operância de um eficaz sistema de controle para os excessos
porventura cometidos.
2. Conceito de dívida
2.1. Breves considerações
Para que seja apreendido o conceito de dívida de modo legítimo,
é mister que se faça uma análise do uso comum da palavra pelos
cidadãos brasileiros, os jurisdicionados submetidos à ordem
constitucional posta. Embora tal método não seja apto a deflagrar o
conceito jurídico da expressão dívida logo no seu início, confere a
legitimidade necessária à correta interpretação a ser dada ao final.
Pois bem, geralmente, o cidadão comum brasileiro, leigo às
minúcias jurídicas, conceitua vulgarmente dívida como sendo tudo
aquilo que é devido por alguém a outro alguém, inclusive favores,
390
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
fugindo-se completamente do conceito jurídico de tal palavra,
conforme será demonstrado adiante.
2.2. Estudo semântico da expressão
Segundo o Dicionário Eletrônico Aurélio, a palavra “dívida” tem
a sua origem no latim debita (devida), que significa aquilo que se
deve, obrigação, dever.1 Doutra parte, cumpre também transcrever
a definição dada no site jurídico “Índice Fundamental do Direito”:
Do latim debita, ‘devida’ - subentende-se quantia. S. f. 1.
Aquilo que se deve; 2. Obrigação, dever.2 (grifos editados)
Feita esse adendo acerca da etimologia da palavra dívida,
necessária se faz a análise do conceito jurídico da expressão, ou
seja, que valores os doutrinadores do direito tem atribuído à palavra,
para que daí se possa extrair a real vontade da norma constitucional
contida no inciso LXVII, do art. 5.º da Carta Suprema Brasileira de
1988. É exatamente isso que será feito adiante.
2.3. Conceito jurídico
A doutrina brasileira diverge bastante acerca do conceito jurídico
da palavra dívida aplicada no inciso LXVII do art. 5.º da CF/88,
havendo doutrinadores que defendem que ela deve ser interpretada
ampliativamente, em benefício da garantia da liberdade e outros
que pregam a interpretação restritiva da expressão dívida,
favorecendo assim a sobrepujança do direito fundamental à tutela
executiva. Esses entendimentos lastreiam, respectivamente, a tese
restritiva da prisão civil e a tese ampliativa da prisão civil. Passemos,
então, aos seus exames detidos.
2.3.1. Dívida lato sensu (“Tese restritiva da prisão civil”)
O conceito jurídico de dívida defendido pelos doutrinadores
adeptos dessa corrente é aquele no sentido de abranger toda e
qualquer obrigação civil devida por alguém a outro alguém. Esse
Bruno Garcia
391
entendimento, portanto, confere um conceito mais amplo da
expressão dívida, envolvendo assim não só as obrigações
pecuniárias, mas também as obrigações de fazer, não-fazer e dar
coisa diversa de dinheiro.
Nesse esteio, é de se destacar o papel do professor Eduardo
Talamini que ensina o seguinte:
Relega-se a “prisão civil” – a constrição da liberdade como
medida processual civil coercitiva, meio de “execução indireta”
– à excepcionalidade. Fora da exceção estabelecida no próprio
dispositivo constitucional, a prisão só poderá ser utilizada como
“pena” propriamente dita, sanção para condutas tipificadas
como crimes (ou, quando menos, “transgressões militares” –
art. 5º, LXI) – e desde que observadas todas as garantias
constitucionais, penais e processuais penais (art. 5º, XXXIX,
LX, XLV, LIII, LIV, LV, LVII, LXI, LXV, LXVI etc.).3
O professor Eduardo Talamini argumenta ainda que caso a
vedação da prisão civil constante no art. 5º, inciso LXVII da
Constituição Federal de 1988 se referisse apenas às dívidas
pecuniárias, como se explicaria o fato de ter o texto ressalvado da
regra geral uma obrigação não pecuniária como a prisão por
depositário infiel? Cumpre, pois, transcrever o trecho no qual o
autor trata do assunto:
Autorizada doutrina sustenta que a Constituição proibiria apenas
a prisão “por dívida”, no sentido de inadimplemento de prestação
pecuniária. O emprego da prisão civil como mecanismo
processual coercitivo, para resguardar a autoridade jurisdicional,
não encontraria nenhum óbice. Em outras palavras, ninguém
poderia sofrer prisão civil, por dever uma quantia; mas nada
impediria a prisão civil, em todo e qualquer caso, daquele que
desobedecesse a uma ordem do juiz. Houve até quem
pretendesse que a prisão civil estaria entre as medidas atípicas
que o juiz pode adotar mesmo de ofício para efetivar a tutela
específica prevista no novo art. 461 do Código de Processo
Civil (§ 5º do art. 461).
392
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
Mas o argumento, data venia, não procede. Se a regra geral
fosse essa, como explicar que uma das duas exceções previstas
na norma constitucional – a do depositário infiel – não envolve
prisão por dívida pecuniária? Afinal, a prisão civil do depositário
infiel funciona (ou funcionava, enquanto cabível) precisamente
como mecanismo de preservação da autoridade do juiz. A
resposta não pode ser outra: o preceito constitucional
consagrou essa hipótese como exceção justamente porque a
regra geral nele contida é a vedação de qualquer prisão civil.
Então, para que se compreenda o exato alcance da regra geral,
tem-se de cotejá-la com as exceções.4
A adoção desse conceito ampliativo da expressão dívida,
abrangendo todas as obrigações civis, sustenta a tese restritiva
da prisão civil como medida coercitiva, de modo que a vedação
constitucional do art. 5º, inciso LXVII atingiria inclusive as
obrigações de fazer, não-fazer e dar coisa distinta de dinheiro, do
que se conclui logicamente que o poder geral de efetivação
conferido ao juiz pelo § 5º do art. 461 do Código de Processo
Civil não autorizaria a aplicação da prisão civil como meio de
coerção inominado para efetivação da tutela específica.
Outro doutrinador que adere a esta corrente é o professor
Amendoeira Jr., cujo entendimento ora se transcreve:
Medidas como essas poderão ser até tachadas de radicais,
mas o próprio obrigado não terá deixado alternativas ao juiz.
Para nós, a pressão psicológica que o juiz pode legitimamente
dispor consistirá apenas em impor ou exacerbar astreintes
razoavelmente proporcionadas e a serem devidas em caso de o
obrigado continuar desobedecendo depois de decorrido o
prazo fixado; ou em desencadear outras medidas necessárias
que, caso a caso, sejam adequadas, suficientes e razoavelmente
proporcionais. Aliás, é importante que a intensidade da pressão
não seja total e abrupta de início, devendo ser aumentada na
medida em que a desobediência se arrasta pelo tempo e
culminando com a decisão de renunciar à esperança de obter o
cumprimento voluntário – impondo-se então a medida
Bruno Garcia
393
equivalente necessária a obter o resultado desejado. Isso é
mais do que suficiente para evitar que o juiz tenha que se resignar
com a reiterada desobediência da parte, o que equivaleria a
exercer o poder estatal pela metade. Mas daí ao permissivo
da prisão do devedor, o passo é muito grande e certamente
inconstitucional em nosso sentir. Do mesmo que
demonstramos que há um incremento histórico dos poderes do
juiz, daí a defesa dessa linha, também é possível demonstrar,
por outro lado, que sempre houve uma tendência histórica em
se reduzir ou deixar de se admitir a prisão civil. Mais do que isso,
o próprio direito penal de forma cada vez mais radical vem
restringindo a aplicação das penas restritivas de liberdade e
buscando formas alternativas para o ilícito penal, como ainda a
descriminalização e a despenalização. Daí, então, de se perguntar:
como seria de se admitir o Contempt of Court em toda a sua
extensão no Brasil? Não seria, mesmo porque, diferentemente
do que entendem ADA PELEGRINI GRINOVER e KAZUO
WATANABE, entendemos que falar em pressão nestes casos
levaria a se infringir o dispositivo constitucional.5 (grifos editados)
Nesse sentido, também o professor Antônio Carlos de Araújo Cintra:
Lembre-se, a propósito, que não haverá prisão civil por dívida,
salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e
inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel
(Constituição Federal, art. 5.º, inciso LXVII).6
A crítica feita em torno desse entendimento é que tal corrente
ignora totalmente qualquer trabalho de ponderação de normas
jusfundamentais conflitantes no sentido de possibilitar, em certos
casos, a utilização da prisão civil como medida coercitiva apta a
compelir o devedor ao cumprimento de uma decisão que porventura
tutele um outro direito fundamental, cujo descumprimento conduziria
ao total desrespeito a norma(s) igualmente jusfundamental(is). Os
doutrinadores adeptos a esta corrente, pois, acabam por,
inconscientemente, privilegiar o direito fundamental à liberdade em
detrimento de quaisquer outros direitos fundamentais. Reside aí,
pois, o equívoco dessa parte da doutrina.
394
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
2.3.2. Dívida strictu sensu (“Tese ampliativa da prisão civil”)
Outra parcela da doutrina interpreta a expressão dívida, constante
no art. 5º, inciso LXVII da Constituição Federal de 1988, no seu
sentido estrito, do que se faz concluir que a vedação constitucional
do mencionado dispositivo envolveria apenas as obrigações
pecuniárias, aquelas de conteúdo patrimonial. É a tese ampliativa
da prisão civil.
Esta corrente defende que não teria sido por acaso que o legislador
constituinte fez questão de qualificar a prisão civil que seria vedada,
fazendo constar no texto que “não haverá prisão civil por dívida”.
Assim, ainda de acordo com esse pensamento, contra-argumentando
a idéia dos doutrinadores adeptos da tese restritiva da prisão civil,
a expressa consignação das exceções à vedação constitucional
do artigo 5º, inciso LXVII da Constituição, teria o único objetivo
de enfatizar a possibilidade de prisão naqueles casos (de
depositário infiel e débito alimentar).
Nesse sentido é o entendimento dos professores Luiz Guilherme
Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:
A visualização da prisão civil como meio de execução – meio de
coerção indireta, assim como a multa –, exige a análise do art.
5.º, LXVII, da Constituição Federal, que assim dispõe: “Não
haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia
e a do depositário infiel”.
Esta norma proíbe a prisão civil por descumprimento de
obrigação que dependa, para seu adimplemento, da disposição
de dinheiro, podendo ser dito, neste sentido, que tal norma
proibiu a prisão por “dívidas pecuniárias”.
As hipóteses do depositário infiel e a do devedor de alimentos
possuem características próprias, as quais conduziram a
Constituição a traçá-las como exceções. Isto apenas para deixar
evidenciada a possibilidade de prisão no caso de depositário
infiel e de não pagamento de alimentos.
Bruno Garcia
395
É certo que o débito alimentar não tem origem em obrigação,
mas constitui dever legal com repercussão não-patrimonial e,
assim, não pode ser comparado a uma simples dívida pecuniária.
Mas a Constituição se preocupou em deixar clara a possibilidade
de se conferir tratamento diferenciado ao crédito alimentar e,
por esta razão, excepcionou a possibilidade de prisão do
devedor de alimentos. Portanto, a intenção da Constituição, ao
estabelecer as referidas exceções, foi apenas evidenciar que,
em tais casos, a prisão é possível.
Caso o objetivo da norma fosse o de proibir toda e qualquer
prisão, com exceção dos casos do devedor de alimentos e do
depositário infiel, não haveria com explicar a razão pela qual
deu conteúdo à prisão civil, dizendo que “não haverá prisão
por dívida”. É pouco mais do que evidente que a norma desejou
proibir uma determinada espécie de prisão civil, e não toda e
qualquer prisão civil. O que importa saber, assim, é a espécie de
prisão civil que foi vedada. Se não há como fugir da idéia de que
foi proibida somente uma espécie de prisão civil, e não toda e
qualquer prisão civil, a prisão vedada somente pode ser a prisão
por “débito”.7 (grifos editados)
Outro renomado autor que adere à “tese ampliativa” da prisão
civil é o professor Marcelo Lima Guerra:
Logo, em defesa da “tese ampliativa” da prisão civil – aquela
que atribui à expressão “dívida” o significado de “obrigação
pecuniária” – já se pode argumentar que ela não implica,
necessariamente, em deixar de levar em consideração e
proteger, em medida proporcional, o valor fundamental da
proteção da liberdade. Com efeito, uma interpretação que, no
marco da teoria dos direitos fundamentais, venha a considerar
possível o uso da prisão civil fora das hipóteses do mencionado
dispositivo constitucional, não permitiria, de forma alguma, o
uso concreto desta medida, em situações concretas, onde não
se revelasse necessário, exigível e proporcional proteger um
outro direito fundamental, com sacrifício da liberdade individual.
Insista-se, portanto, que o uso de prisão civil é capaz de favorecer
a realização de outros direitos fundamentais, o que consiste
em forte argumento em favor da “tese ampliativa”. Assim, como
396
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
medida coercitiva de eficácia comprovada, a prisão civil favorece,
desde logo, o direito fundamental à tutela executiva. Além disso,
se a própria situação material – vale dizer o crédito a ser satisfeito
in executivis – também consistir na expressão subjetiva de algum
direito fundamental, como por exemplo, a proteção ao meio
ambiente, à saúde, à privacidade, à integridade física e à própria
vida do credor, esses outros valores reforçam a defesa, sempre
na perspectiva do caso concreto, do uso de prisão civil.
Por tais razões, acredita-se racionalmente justificada a opção
por atribuir à expressão “dívida” o sentido de “obrigação
pecuniária”, aderindo à aqui chamada “tese ampliativa”. Tal
decisão está metodologicamente justificada, por ser resultante
do uso de uma interpretação especificamente constitucional,
adequada à teoria dos direitos fundamentais e às peculiaridades
específicas das normas jusfundamentais como mandamentos
de otimização – as quais, repita-se, não se compadecem com
soluções que privilegiem, absoluta e abstratamente, qualquer
direito fundamental – assim como está também materialmente
justificada por permitir uma maior proteção a todos os direitos
fundamentais que possam estar envolvidos numa situação
concreta, onde se discuta o cabimento ou não de prisão civil,
fora das hipóteses do inc. LXVII do art. 5.º da CF.8
Outro adepto desta corrente é o sempre atual Pontes de Miranda.
O ilustre professor alagoano, ao comentar a o parágrafo 17 do art.
150 da Constituição de 1967, posicionou-se a favor da
possibilidade de utilização da prisão civil por inadimplemento de
obrigações não pecuniárias. Ver-se-á adiante que, nada obstante
tenha ele feito tal comentário diante de uma outra ordem
constitucional, o inciso LXVII do art. 5.º da Constituição Federal
de 1988 praticamente reproduziu a previsão do parágrafo 17 do
art. 150 da Constituição de 1967, que foi assim comentado pelo
mencionado autor:
A prisão civil por inadimplemento de obrigações, que não sejam
pecuniárias, é sempre possível na legislação. Não a veda o texto
constitucional. Outrossim, em se tratando de obrigações que
não sejam de dívidas no sentido estrito [...].9
Bruno Garcia
397
Esta corrente defende, em sua versão mais atual e moderna, a
existência do Contempt of Court no Brasil. Tal sistema se constitui
nos poderes que os juízes ingleses e americanos possuem para
imporem suas decisões, o que justifica a grande credibilidade
atribuída aos sistemas judiciários inglês e americano. Através de
uma injuction (para as obrigações de não fazer) ou de uma specific
performance (para as obrigações de fazer), o Tribunal emite uma
ordem ao obrigado, que, se desobedecê-la, estará desacatando o
Tribunal, caracterizando-se aí o Contempt of Court, que prevê a
aplicação de multas e até pena de prisão ao demandado até que
ele cumpra a decisão. É de se ressaltar ainda o fato de, no direito
inglês e no americano, tal como no direito brasileiro, também ser
vedada a prisão civil por dívida, justificando-se a prisão imposta
pelo Contempt of Court, não pelo inadimplemento da obrigação,
mas sim pelo descumprimento de ordem judicial.10
O professor Marcelo Lima Guerra também se prestou a fazer a
relação das recentes alterações no Código de Processo Civil
Brasileiro com o sistema norte-americano representado pelo
Contempt of Court:
Essa brevíssima referência ao direito norte-americano é oportuna,
para melhor compreender as recentes evoluções do direito
brasileiro, inserindo-as no contexto histórico maior, representado
pelo direito comparado. Isso porque, como se verá melhor, foi
adotado no direito brasileiro um modelo de tutela executiva (das
obrigações de fazer e não fazer) idêntico no seu princípio
fundamental, àquele do direito norte-americano, atribuindo-se ao
juiz, no § 5.º do art. 461 do CPC, poderes indeterminados para
a fixação dos meios executivos (sub-rogatórios e coercitivos)
mais adequados ao conteúdo do direito a ser satisfeito.11
Sobre essa matéria, o professor Araken de Assis conclui que o
ordenamento brasileiro caminha no sentido do Contempt of Court:
Caminha o ordenamento, portanto, nos rumos do Contempt of
Court, que a generalização da eficácia mandamental tanto clama.12
398
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
Existem outros doutrinadores de grande renome que defendem
a adoção desse sistema no Brasil, muito embora acharem que tal
sistema só poderia ser recepcionado no ordenamento jurídico
brasileiro mediante algumas alterações legislativas, cada autor
possuindo diferentes razões. São os casos dos professores Kazuo
Watanabe, Ovídio Batista e da professora Ada Pelegrini Grinover.13
2.3.3. Nossa opinião. Análise do texto do art. 5º, inciso LXVII,
da Constituição Federal de 1988.
Para se chegar a uma embasada opinião acerca do tema,
necessária se faz uma ponderação no que tange à origem do
dispositivo constitucional em voga, o inciso LXVII do art. 5.º da
Constituição Federal de 1988. Façamos, então, uma breve
retrospectiva dos dispositivos correlatos a ele na história das
constituições brasileiras para vermos a sua evolução, nunca se
afastando das peculiaridades relacionadas ao momento social e
político vivido em cada época.
A Constituição Imperial de 1824 e a primeira Constituição
Republicana, de 1891, autorizavam a utilização pelo juiz do instituto
da prisão civil, desde que a lei previsse tal medida para o caso em
espécie. Vejamos, então, os dispositivos constitucionais que
tratavam da matéria:
CONSTITUIÇÃO IMPERIAL DE 1824:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos
Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança
individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do
Imperio, pela maneira seguinte.
[...]
O que fica disposto acerca da prisão antes de culpa formada,
não comprehende as Ordenanças Militares, estabelecidas como
necessárias á disciplina, e recrutamento do Exercito; nem os casos,
que não são puramente criminaes, e em que a Lei determina
todavia a prisão de alguma pessoa, por desobedecer aos
Bruno Garcia
399
mandados da justiça, ou não cumprir alguma obrigação
dentro do determinado prazo. (grifos editados)
CONSTITUIÇÃO DE 1891:
Art 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
§ 13 – A exceção do flagrante delito, a prisão não poderá
executar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os
casos determinados em lei, e mediante ordem escrita da
autoridade competente. (grifos editados)
Após 1891, a ideologia liberal continuou a ganhar ainda mais
terreno, influenciando muito fortemente todos os países do mundo,
sobretudo os da Europa, berço do direito brasileiro. Com isso, a
Constituição de 1934, promulgada ainda na “democrática” primeira
fase da Era Vargas, inconscientemente, atendeu aos ditames liberais,
rompendo bruscamente com os valores do período imperial e da
República Velha. É esse o contexto que fez com que a Constituição
Federal de 1934 vedasse radicalmente, sem qualquer ressalva,
a utilização da prisão civil, como forma de coibir os possíveis
arbítrios dos magistrados, o que era uma grande preocupação
liberal. Transcrevamos então, o mencionado dispositivo da
Constituição de 1934:
Art 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à
liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade,
nos termos seguintes:
[...]
30) Não haverá prisão por dívidas, multas ou custas. (grifos
editados)
Superado aquele momento de ruptura que a promulgação da
Constituição de 1934 representou, percebeu-se o radicalismo
400
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
garantista que havia sido implementado naquela constituição e,
com o término da Segunda Guerra Mundial, ganhou destaque o
Estado intervencionista em detrimento do há muito decadente
Estado Liberal. Resolveu-se, então, quando da promulgação da
Constituição de 1946, ainda sob os resquícios dos valores liberais
que perduram, inclusive, até os dias atuais, promover ressalvas
àquele dispositivo que vedava toda e qualquer prisão civil por
dívida, multa ou custas:
Art 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
32 – Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o
caso do depositário infiel e o de inadimplemento de
obrigação alimentar, na forma da lei. (grifos editados)
É de se observar, pois, que o constituinte, naquela oportunidade,
ressalvou hipóteses em que a prisão civil seria cabível, já indicando
assim uma relativização do direito à liberdade, elegendo outros para
serem colocados à frente daquele, e evidenciando assim a não
absolutidão do direito à liberdade, assim como não o era nenhum
outro direito fundamental. A Constituição de 1967 reproduziu ipsis
literis o supratranscrito dispositivo, no seu art. 150, § 17:
Art 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
[...]
§ 17 – Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas,
salvo o caso do depositário infiel, ou do responsável pelo
inadimplemento de obrigação alimentar na forma da lei.
(grifos editados)
Bruno Garcia
401
Na Constituição de 1988, como já dito, o inciso LXVII do art. 5.º
apenas suprimiu as locuções “multa ou custas” e “na forma da lei”:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável
pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação
alimentícia e a do depositário infiel;
Ora, da análise feita no capítulo mencionado e aqui recuperada,
extrai-se que o inciso LXVII, do art. 5.º da Constituição Federal de
1988 reproduziu o art. 150, § 17 da Constituição de 1967,
suprimindo-se apenas as locuções na “forma da lei”, empregada
no final do texto, e “multa ou custas”, que, ao lado da palavra dívida,
compunham as espécies de prisão civil que estariam vedadas pela
ordem constitucional posta à época. Diante da supressão noticiada,
torna-se necessário que sejam investigadas as causas e intenções
do legislador constituinte ao praticá-la. São dois os vieses
interpretativos do tema: o legislador constituinte de 1987/1988
veio corrigir uma atecnia da Constituição de 1967, com o intuito
de enxugar o texto constitucional, pois que multa e custas são
espécies de dívida e vinham sendo tratadas como coisas distintas;
ou, realmente, a intenção foi a de vedar apenas a prisão civil por
dívida, estando multa e custas fora do conceito de dívida adotado,
ampliando-se assim as hipóteses de prisão civil constitucionalmente autorizadas.
Diante dessa dúvida, cumpre trazer à colação novamente os
ensinamentos do professor Pontes de Miranda, que comentou as
ressalvas das expressões “multas” e “custas” no parágrafo 17 do art.
150 da Constituição de 1967, propondo, por meio de interpretação
do dispositivo, alternativas de sanções para superá-las:
402
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
A exclusão da prisão por multa não compreende: as penas
alternativas – prisão ou pena pecuniária; a pena de prisão por
desvio de haveres individuais ou de sociedade, ou outra pessoa
jurídica, para que se evite a execução das multas; a pena de
prisão como pena de reincidência, tendo sido a primeira pena
de multa. O mesmo há de se entender quanto a custas: o desvio
de haveres para fraudar a execução constitui infração à parte,
suscetível da pena de prisão.14
Ao que nos parece, fazendo uma análise histórica do dispositivo,
a supressão em comento veio para acabar com qualquer dúvida
existente e foi feita com o fito de ampliar as hipóteses autorizativas
da prisão civil, visto que, ao contrário do sistema penal brasileiro
que tem caminhado no sentido do abolicionismo das prisões, no
âmbito civil, é perceptível um forte movimento em favor da efetividade
da tutela jurisdicional, com sua elevação ao status de direito
fundamental, e, junto com isso, a ampliação das possibilidades de
utilização da prisão civil como instrumento para tanto.
Ademais, cumpre fazer uma defesa prévia da nossa opinião antes
que se invoque o argumento de que ela seria conservadora, já que
restauraria o tratamento dado à prisão civil da Constituição Imperial
de 1824, obviamente que guardadas as devidas peculiaridades
daquele sistema constitucional e o atual.
Pois bem, fazendo-se uma análise da evolução da tutela
executiva desde o seu surgimento na Roma Antiga, observou-se
que os sistemas executivos, em muitos momentos da história,
oscilaram aos extremos por várias vezes, constituindo um
movimento cíclico, de alternância entre os modelos existentes. Tanto
isso é verdade que, o sistema executivo atualmente adotado pelo
nosso Código de Processo Civil, após as sucessivas reformas a
que foi submetido, remonta aos tempos da executio parata e da
per officium iudicis, datadas da Idade Média. Isso se deu após ter
ocorrido um suposto “aprimoramento” do sistema, que deu origem
ao sistema desenvolvido por Liebman e inicialmente adotado pelo
Bruno Garcia
403
nosso Código de Ritos. Ocorre que, para que se impute a um
sistema as qualidades de conservador ou avançado, é mister que
não sejam afastados os aspectos contextuais (jurídicos e
sociológicos), nem o momento histórico que se vive.
Diante disso, considerando o momento atual do nosso país em
que é da ordem do dia a preocupação com a efetividade da tutela
jurisdicional – vide a sua elevação ao status de direito fundamental
-, pode-se considerar um avanço – e não um retrocesso, como
muitos podem pensar – o retorno, mesmo que parcial e por outras
razões, da autorização constitucional para que, em algumas
situações limítrofes, seja utilizada a prisão civil de uma determinada
pessoa “por desobediência aos mandados da justiça, ou não
cumprir alguma obrigação dentro do determinado prazo”,
como previa a Constituição de 1824.
Cumpre ressaltar que os valores sociológicos atuais não são
mais aqueles de 1824, bem como as causas dessa autorização
de utilização da prisão civil como medida coercitiva também são
outras, visto que, em 1824, a prisão civil servia como instrumento
de repressão de um Estado absolutista, enquanto que,
paradoxalmente, esse mesmo instituto da prisão civil, no contexto
atual, serviria como um instrumento de fortalecimento do Estado
Democrático de Direito, que faz com que seus comandos
normativos e jurisdicionais sejam cumpridos. Devemos advertir
também que o que ora se propõe não é uma prisão civil com
caráter punitivo, e sim eminentemente coercitivo, cujos efeitos são
cessados imediatamente quando do cumprimento da decisão
judicial na espécie.
3. Conclusão
Tudo quanto dissertado conduz ao entendimento de que o
conceito de dívida deve ser dado através de uma interpretação
restritiva (apenas dívidas pecuniárias), ampliando-se as hipóteses
404
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
de cabimento da prisão civil, quer pela própria evolução do
tratamento da matéria nas constituições brasileiras, quer pela
imposição do contexto histórico atual. Essa tese abre caminho
para que o magistrado, em determinados casos, homenageando
o direito fundamental à tutela executiva, em último caso, utilize-se
do instituto da prisão civil como medida coercitiva inominada
autorizada pelo parágrafo 5.º do art. 461 do CPC.
Mesmo que se adira à tese restritiva da prisão civil, considerando
que o inciso LXVII da Constituição Federal de 1988 quis vedar
toda e qualquer espécie de prisão civil, ressalvadas apenas aquelas
hipóteses expressamente excetuadas, não se pode ignorar o fato
de que nenhum direito fundamental é absoluto, nem mesmo o direito
à liberdade, podendo haver, portanto, no caso concreto,
ponderações das normas jusfundamentais conflitantes no sentido
de uma sobrepor-se à outra, mitigando-a. Afora isso, outro
argumento que merece destaque é o fato de que o próprio poder
constituinte originário relativizou o direito fundamental à liberdade
no momento que ressalvou a possibilidade de prisão civil nos casos
de depositário infiel e débito alimentar. Ora, a previsão de tais
ressalvas, por si só, já se configuram em uma evidente opção do
legislador em colocar outros interesses à frente da liberdade
individual do cidadão brasileiro, cujos motivos – se políticos ou
não – por ora não discutiremos. Daí pergunta-se: será que os
interesses resguardados nas mencionadas ressalvas - prisão civil
por alimentos e, sobretudo, por depositário infiel – são mais
louváveis e carentes de proteção do que outros porventura em
questão numa lide, tais como os direitos fundamentais à vida e à
efetividade?
A resposta, definitivamente, não pode ser dada em apartado às
peculiaridades de cada suporte fático, nem para ampliar as
hipóteses de cabimento da prisão, muito menos para negar a
possibilidade dessa ampliação. É de se concluir, portanto, que
Bruno Garcia
405
jamais poderia haver uma resolução em tese acerca da
possibilidade da utilização ou não da prisão civil como medida
coercitiva atípica no caso concreto, já que do outro lado,
invariavelmente, há de estar o direito fundamental à efetividade (ou
do acesso à justiça substancial), além de outros possíveis que se
constituam como o direito material tutelado naquele determinado
“case”. Deve, portanto, o conceito de dívida ser dado de acordo
com a ponderação dos interesses envolvidos na questão, para
que se possa chegar à conclusão da possibilidade ou não da
utilização da prisão civil em outros casos que não os de depositário
infiel e devedor de alimentos, cujas permissões se encontram
expressamente previstas no inciso LXVII do art. 5.º da Constituição
Federal de 1988.
4. Referências
AMENDOEIRA JR., Sidnei. Poderes do juiz e tutela jurisdicional:
a utilização racional dos poderes do juiz como forma de obtenção
da tutela jurisdicional efetiva, justa e tempestiva. São Paulo: Atlas,
2006. p. 149-150.
ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 7.ª ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Comentários ao Código de
Processo Civil, vol. IV: arts. 332 a 475. 2.ª ed. rev. e atual. Rio de
Janeiro: Forense: 2003.
Dicionário Aurélio. Disponível no endereço eletrônico
200.225.157.123/dicaureliopos/home.asp?logado=true - 5k –.
Acessado no dia 02 de setembro de 2007.
GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do
credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003.
Índice Fundamental do Direito. Disponível no endereço http://
dji.com.br/processo_civil/divida.htm. Acessado no dia 02 de
setembro de 2007.
406
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de
Processo Civil, vol. 3: execução. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007. p. 84-85.
MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição Federal de 1967.
Rio de Janeiro: Forense, 1987.
TALAMINI, Eduardo. Prisão Civil e Penal e “Execução Indireta” (A
Garantia do art. 5.º, LXVII, da Constituição Federal). In Leituras
Complementares de Processo Civil. DIDIER JR., Fredie (Org.). 5.ª
ed. rev. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2007.
5. Notas
1
DICIONÁRIO AURÉLIO. Disponível no endereço eletrônico 200.225.157.123/
dicaurelio
aureliopos/home.asp?logado=true - 5k –. Acessado no dia 02 de setembro de 2007.
aurelio
2
Índice Fundamental do Direito. Disponível no endereço http://dji.com.br/
processo_civil/divida.htm. Acessado no dia 02 de setembro de 2007.
3
TALAMINI, Eduardo. Prisão Civil e Penal e “Execução Indireta” (A Garantia do art.
5.º, LXVII, da Constituição Federal). In Leituras Complementares de Processo Civil.
DIDIER JR., Fredie (Org.). 5.ª ed. rev. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2007. 289
4
TALAMINI, Eduardo. Prisão Civil e Penal e “Execução Indireta” (A Garantia do art.
5.º, LXVII, da Constituição Federal). In Leituras Complementares de Processo Civil.
DIDIER JR., Fredie (Org.). 5.ª ed. rev. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2007. p. 299.
5
AMENDOEIRA JR., Sidnei. Poderes do juiz e tutela jurisdicional: a utilização racional dos poderes do juiz como forma de obtenção da tutela jurisdicional efetiva, justa
e tempestiva. São Paulo: Atlas, 2006. p. 149-150.
6
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil, vol.
IV: arts. 332 a 475. 2.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense: 2003. p. 149-150.
7
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, vol.
3: execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 84-85.
8
GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003. p. 136
9
MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição Federal de 1967. Rio de Janeiro:
Forense, 1987. p. 266.
10
AMENDOEIRA JR., Sidnei. Poderes do juiz e tutela jurisdicional: a utilização racional dos poderes do juiz como forma de obtenção da tutela jurisdicional efetiva, justa
e tempestiva. São Paulo: Atlas, 2006. p. 146-147.
Bruno Garcia
407
11
GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003. p. 122
12
ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 7.ª ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 122.
13
AMENDOEIRA JR., Sidnei. Poderes do juiz e tutela jurisdicional: a utilização racional dos poderes do juiz como forma de obtenção da tutela jurisdicional efetiva, justa
e tempestiva. São Paulo: Atlas, 2006. p. 148-149.
14
MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição Federal de 1967. Rio de Janeiro:
Forense, 1987. p. 266.
408
O conceito de “dívida” empregado no inciso LXVII do Art. 5.º...
REVISITANDO A DIALÉTICA GESELLSCHAFT UND
GEMEINSCHAFT TÖNNIESIANA
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira1
1
Acadêmico de Direito da UFBA.
I
Propomos, como paradigma deste breve ensaio, o confronto
entre as idéias de Gesellschaft und Gemeinschaft, societas e
communitas, sociedade e comunidade, deixadas pioneiramente a
nós pelo sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, que, através de
sua obra (1947) publicada em 1887, influenciou, principalmente,
os trabalhos de investigação da escola sociológica de Chicago
(1915 - 1940) e as obras de Max Weber e Georg Simmel.
Tais concepções nos remetem a buscar que tipo de racionalidade
vivenciamos no direito hoje. Assim, estas breves linhas têm como
humilde objetivo servir como primeiros passos filosóficos para
futuros vôos mais altos na temática da Filosofia do Direito e da
Hermenêutica Filosófica, no que tange as concepções de
comunidade e sociedade. Buscar saber as distinções entre estas
não se reduz a mero capricho semântico de pouca relevância, mas
sim distinção que vai repercutir diretamente na forma de julgar do
intérprete do direito, a depender da concepção a que ele esteja
vinculado.
O ponto de partida para esta teoria é a “interação” (TÖNNIES,
1947). O contínuo processo de interações humanas dá-se através
da “vontade”, que seria, antes de tudo, uma “vontade natural”:
unidade biológica dirigida por instintos, orientada por motivações
de origem orgânica como a nutrição, a autopreservação e a
reprodução; aquela vontade humana no estado mais “bruto”, a zoé
grega, a vida nua2 em seu anonimato, concepção esta que vai
409
beber de fontes aristotélicas que entendiam o homem como animal
gregário e vivente. O conceito de vida para os gregos tinha dois
termos distintos morfológica e semânticamente: a zoé, simples
fato de viver em comum a todos os seres vivos - animais, homens
e deuses; e a bíos, forma ou maneira de viver própria de um indivíduo
ou de um grupo (AGAMBEN, 2002). Desta forma, aquela “vontade
natural”, através de ações executadas em múltiplas relações,
quando assume o sentido de conservação - ou destruição, por
exemplo - dá origem a uma “união”. Pois bem, fixemos então que
o tipo de “vontade” humana vai originar o tipo de “união” formado
por estes homens. Assim, esta “vontade natural” daria origem à
comunidade-Gemeinschaft, ao passo que um outro tipo de vontade
humana, a “vontade arbitrária”, originaria a formação da sociedadeGesellschaft, já que esta vontade, por ser arbitrária, transcederia
os determinantes do “orgânico”, assumindo o caráter bíos grego,
deliberativo, propositivo e racional.
Na societas a vontade parte de representações artificiais e ideais
sobre o mundo ao seu redor e os homens e é motivada sempre por
finalidades exteriores às relações estabelecidas socialmente. Já na
communitas as relações entre os homens teriam valor por si só, não
dependendo de propósitos exteriores a elas. Assim, considerando
tais aspectos, podemos afirmar que aquela “união” fundada na idéia
de Gemeinschaft é concebida como entidade natural e durável, ao
passo que incidindo nos ideais da Gesellschaft se assume uma
entidade artificial e mutável, submetida a interesses individuais. Este
confronto pode ser traduzido na visão de Foucault, que relembra que
para Aristóteles, “por milênios, o homem permaneceu um animal
vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno
é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente”
(FOUCAULT apud AGAMBEN, 2002, p. 11).
410
Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana
II
A noção de sociedade está relacionada com a idéia de
humanidade civilizada e progressista própria dos filósofos do
iluminismo como Diderot, Montesquieu e Kant. Esta visão nos leva
à concepção de uma racionalidade abstrata3, em que o homem se
vê vinculado ao contrato social (Cf. ROUSSEAU, 1996); uma razão
que se pretende livre (Cf. MCINTYRE, 1988) e ganha força com os
estudos jusnaturalistas do século XVIII, a partir da releitura do
contratualismo. Assim, a sociedade é criada a partir de uma idéia de
pacto social, através de uma emancipação de interesses, processo
este que vai culminar em uma crise de valores, o que vai exigir que o
homem trate suas convicções como opções de fins, de preferência.
O que é importante notar aqui é que a societas não tem projeto
além daquela forma de viver que permite a convivência dessas
diferenças e que permita hierarquizar estes interesses diversos.
Para a teoria da societas os homens permanecem separados
apesar de todas as “uniões” das quais participem, nas quais
interajam, já que cada vontade se configuraria como uma unidade
autônoma no aspecto moral, unidade esta auto-suficiente,
independente (TÖNNIES, 1947). Cresce a importância da unidade,
dando-se ao indivíduo restrito o protagonismo da razão. Importante,
ainda, observar que esta vontade autônoma está para si em um
permanente estado de tensão com as demais, sendo a perturbação
de outras vontades entendida como um ato hostil, o que vai remontar
um cenário construído pelo iluminismo, que privilegiara a autonomia
da vontade, em face da responsabilidade, dando aos direitos do
homem um caráter individualista. Assim, exacerbam-se as atenções
para a autonomia – na tentativa de expurgar o fantasma do
absolutismo – sem se preocupar, contudo, com os deveres que
agora sabemos que são conseqüentes do exercício de direitos.
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira
411
Tal concepção se coaduna àquela racionalidade liberalista
exposta por McIntyre (1988) que se pretende livre e universal. Esta
concepção baseada na Gesellschaft, que fora criada ainda na prémodernidade, aprisionou o homem ao contrato social,
homoneigizando a razão. Esta sociedade teria, então, valores
universais - naturais do homem - que vinculariam a todos,
independente de qual cultura tivessem. É a idéia moderna de direito.
Ou seja, os grupos humanos, a partir das idéias fundadas no
fim da pré-modernidade, abandonam paulatinamente a comunidade
em direção à modernidade e à idéia de sociedade, seguindo a
proposta de universalidade de valores, de forma a consagrar o
projeto de hospitalidade universal de Kant (1988, p. 127-140),
fundado basicamente nas idéias do direito de visita (das
Besuchsrecht) – aquele direito de ser acolhido, recebido por outro
Estado – e na de Jus cosmopoliticum (Weltre publik Weltbürger),
que expressa o direito de todos, de forma cosmopolita. Ora, se
de uma lei abtrai-se toda a matéria, ou seja, todo o objeto da
vontade - como motivo determinante -, nada mais resta a não ser a
simples forma de uma legislação universal (KANT, 1992).
Contudo, antes de prosseguir, cabe a nós perguntar: até que
ponto o movimento de passagem do Gemeinschaft ao
Gesellschaft não respondia às aflições coletivas e pessoais em
relação aos desafios de um povo pulverizado que buscava se
articular em Estado-Nação para concretizar um projeto de unidade
geopolítica?
Primeiramente, este suposto projeto da societas, como por nós
já dito, teria única e exclusivamente como finalidade possibilitar a
convivência de diferentes “vontades” em uma mesma “união”. E
para possibilitar esta passagem e mudança de paradigma em
direção à sociedade foi adotado o modelo de unidade geopolítica,
que podemos chamar de cívico-territorial, desenvolvendo a idéia
412
Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana
de correlação entre povo e território – historic territory and legalpolitical community and equaty.
Através da fixação destes objetivos, o homem se organizou em
Estado e através de processos de subjetivação, na passagem entre
o mundo antigo e o moderno, o indivíduo foi levado a objetivar o
próprio eu e a constituir-se como sujeito, ganhando status de
cidadão. Entretanto, ao mesmo tempo, quase que sem perceber,
este indivíduo, que se livrara do absolutismo, se vinculou a um
poder de controle externo, “e não transferiu suas próprias
escavações, como teria sido até mesmo legítimo esperar, ao que
poderia apresentar-se como o local por excelência da biopolítica
moderna: a política dos grandes Estados totalitários do
Novecentos” (AGAMBEN, 2002, p. 125). Desta forma, o que estava
no centro da luta com o absolutismo, perceba-se, não era a bíos
grega, a vida qualificada de cidadão, mas sim a zoé, o simples
fato de viver, comum ao homem e ao animal, a própria vida nua em
seu anonimato (AGAMBEN, 2002).
Afirmamos isto, pois a liberdade na época moderna vai assumir
outro significado, diferente daquele entendido na época histórica
precedente. Neste embate com o antigo regime, o que se busca
defender não é propriamente o homem livre, com suas prerrogativas
e os seus estatutos, e nem ao menos simplesmente homo, mas
sim o corpus. Esta figura vai se estabelecer como o novo sujeito
da política e a democracia moderna vai nascer propriamente como
reivindicação e exposição deste “corpo” - habeas corpus ad
subjiciendum, derevás ter um corpo para mostrar (Agamben, 2002,
p. 129-130). Como prova desta mudança de paradigma, com a
colocação do corpus no protagonismo da política moderna,
podemos citar a figura do habeas corpus, que, na sua origem, era
usado para assegurar a presença do réu no processo, impedindo
que ele se subtraísse ao juízo, entretanto em uma nova roupagem
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira
413
moderna passou a ser enxergado como uma obrigação para o
“xerife” de exibir o corpo do réu e motivar sua detenção (AGAMBEN,
2002, p. 130). Além disso, temos ainda a consagração, no direito
processual, do princípio de que toda execução é real, dando
liberdade ao corpo do devedor, passando a execução a recair
apenas sobre os bens deste. Ou seja, ser cidadão, mais do que
tudo, passou a ser ganhar o direito de ser incluído para ser excluído.
O homem passa a ser cidadão quando ele deixa a condição res
para tornar-se réu, e deixa suas impressões digitais registradas
como símbolo de sua inclusão do sistema da societas, onde ele
terá direito a toda uma máquina que por ele trabalha e a ele confere
direitos: um defensor público, um tribunal do juri... O homem é
incluído, somente para logo após ser excluído.
Imbuída deste complexo processo de cambio de racionalidades,
a Gesellschaft transforma o antigo “súdito” em cidadão, dando
origem àquilo que Habermas chamou de “nação de cidadãos”
(1996). O que é imperioso atentar é que, pela primeira vez, o
nascimento, a vida nua como tal, torna-se o portador imediato da
soberania – interação povo-território (Agamben, 2002), o que
contrapõe abruptamente aquela idéia de racionalidade historicizada
presente na pré-modernidade.
Na Grécia antiga, por exemplo, o portador da soberania era a
bíos, ou seja, aquela vida política qualificada, sendo a zoé confinada
como mera vida reprodutiva. A formação desta bíos grega teve
início com a crise das comunidades gentílicas – proveniente de
genos, famílias coletivas constituídas por um grande número de
pessoas sob a liderança de um patriarca-pater – em que a terra
deixou de constituir propriedade coletiva, sendo, a partir daí, dividida
de modo desigual entre os membros dos genos.
Esta evolução da vida política se acentuou com a crise da realeza
homérica, quando a aristocracia progressivamente se apropriou
das prerrogativas do poder, relegando aos descendentes da
414
Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana
realeza apenas funções religiosas. Nesse primeiro passo, mesmo
que ainda nas mãos da aristocracia, o poder começou a sair da
esfera do privado - onde se localizava sob controle do rei - e
avançou no sentido do estabelecimento da ordem pública. O poder
não é mais a pessoa; agora, o poder é a função. Para o exercício
desta, escolhe-se por eleição indivíduos que exercerão esses
cargos por um período determinado. O poder - a arché – passou,
então, a circular entre a comunidade que possuía plenos direitos
de cidadania. Nessa transição entre a monarquia e a nascente pólis
aristocrática, surge a concepção de que o poder do Estado deveria
estar sujeito ao interesse público e que esse público – a
comunidade cidadã – devia exercê-lo por si mesmo, e não delegar
a uma autoridade real com poderes ilimitados.
A história política de Atenas, entre os séculos VIII e IV, vai
caracterizar-se por um crescente processo de alargamento das
prerrogativas políticas entre o grupo dos homens livres, resultando
no regime democrático ateniense, denominado pelos mesmos, não
como democracia, mas como “isonomia” – a garantia da igualdade
perante a lei. A peculiaridade desse regime é instaurar um complexo
sistema de circulação, rotatividade e controle do poder,
assegurando maiores níveis de participação aos cidadãos, evitando
a concentração de poder e submetendo-o à vontade pública,
fazendo com que este fosse exercido não em nome do interesse
de particulares, mas em prol da maioria dos cidadãos. Nesse novo
regime, desenvolveu-se um sistema de participação pelo qual a
maioria da população pertencente à categoria dos cidadãos atua
em algum momento da vida como governante. Dissolvem-se as
fronteiras entre governante e governado, uma vez que um se
confunde com o outro. A nação de cidadãos se vê dona de suas
próprias decisões e responsável pela execução das mesmas.
Portanto, era cidadão aquele que possuía uma vida qualificada,
uma vida política – como os demiurgos, classe que reunía aqueles
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira
415
homens originários dos genos. Todos estes homens eram políticos.
Sistema de isonomia, lembra-se, meramente formal: perante a lei.
Contudo, os escravos, tidos como bens móveis, geralmente
prisioneiros de guerra e as mulheres mesmo nascidas no território
grego não possuíam direitos políticos e por isso não eram
considerados cidadãos. Desta forma, como ressalta Marilena Chauí
(2000), menos de 10% dos habitantes da pólis tinha direito à
cidadania. Ou seja, o sistema democrático-isonômico grego se
fundava, justamente, na condição de igualdade perante a lei dos
cidadãos, mas, ao mesmo tempo, se alicerçava na total
desigualdade material entre os homens. Aí se revela a ruptura
traumática entre as concepções de homem e cidadão (!), zoé e
bíos, que fora desafiada já por Sócrates quando questionara,
perante aos cidadãos gregos, porque homens que falavam,
respiravam e olhavam como eles podiam ser considerados coisa.
Os direitos destes cidadãos, na fase moderna, sob esta influência
da societas, encontraram abrigo nas Declarações de Direitos, que,
como aponta Agamben, ao contrário de simbolizar a defesa de
princípios éticos eternos, através de proclamações gratuitas de
valores metajurídicos, “representam aquela figura original da
inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estadonação. Aquela vida nua natural... [que] entra agora em primeiro plano
na estrutura do Estado e torna-se, aliás, o fundamento terreno de
sua legitimidade e da sua soberania”. Desta forma, se observarmos
atentamente, “um simples exame do texto da declaração de 1789
mostra, de fato, que é justamente a vida natural, ou seja, o puro
fato do nascimento, a apresentar-se aqui como fonte e portador
de direito” (AGAMBEN, 2002, p. 134). Reafirmamos insistentemente
esta realidade, apenas porque se faz impossível seguir em direção
às posteriores análises deste ensaio se não compreendermos que
o fundamento de todo o desenvolvimento e da vocação nacional e
biopolítica do Estado moderno nos séculos XIX e XX não é o
416
Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana
homem consciente como sujeito político, mas sim o fato do
nascimento, a vida nua daquele em seu anonimato. É este homem,
vinculado a um contrato social e controlado externamente, que
será posto como protagonista da política moderna de sociedades.
Assim, os Estados nacionais acabam por privar a vida nua de
qualquer valor político e “os direitos do homem, que faziam sentido
apenas como pressuposto dos direitos do cidadão, separam-se
progressivamente destes e são utilizados fora do contexto da
cidadania, com o suposto fim de representar e proteger uma vida
nua que vem a encontrar-se, em proporção crescente, expulsa às
margens dos Estados-nação, para ser então posteriormente
recodificada em uma nova identidade nacional” (Agamben, 2002, p.
139). É como se os cidadãos fossem apenas aqueles que tivessem
condições de exercer a soberania dada pelo Estado-nacional,
sujeitos estes que teriam seus direitos próprios – direitos do cidadão
–, ao passo que os direitos dos homens estaria relegado àqueles
que não são capazes de serem portadores da soberania estatal,
àqueles representantes da vida nua, ao homo sacer.
Apoiando-nos nas idéias de Marx, podemos observar que se
opera, então, uma separação entre humanitário e político, entre
homem e cidadão, dando origem a duas concepções distintas de
povo que vão dominar toda a época moderna: a vida nua, a zoé
(povo) e a vida política, a bíos (Povo). Ou seja, as duas concepções
de vida gregas passam a viver simultaneamente, num contínuo
processo de inclusão/exclusão. Assim, a partir da Revolução
Francesa, o “Povo” torna-se o único depositário de soberania e o
“povo” torna-se uma presença incômoda, pois carrega consigo
uma fratura biopolítica fundamental: “ele é aquilo que não pode
ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao
conjunto no qual já está desde sempre incluído” (Agamben, 2002,
p. 184). Conclui-se, assim, que aquela mesma razão universal,
discurso dominante da Gesellschaft, que se propõe incluir, também
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira
417
exclui. Ao tentar estabelecer a convivência entre as diferentes e
singulares vontades arbitrárias em uma determinada “união” inclusão -, o que acaba por acontecer é que, através daqueles já
citados atos de hostilidade, consequência da presença em um
mesmo círculo ambiental unitário de distintas vontades, os agentes
politizados excluem aqueles naturais.
Neste momento, antes de passarmos à análise das
comunidades, é necessário realizarmos uma análise fundamental
acerca da releitura do mito da fundação da cidade moderna, de
Hobbes a Rosseau, reflexão proposta por Agamben, quando afirma
que o:
...estado da natureza é, na verdade, um estado de exceção, em
que a cidade se apresenta por um instante (que é, ao mesmo
tempo, intervalo cronológico e átimo intemporal) tanquam
dissoluta. A fundação não é, portanto, um evento que se cumpre
de uma vez por todas in illo tempore, mas é continuamente
operante no estado civil na forma da decisão soberana. Esta,
por outro lado, refere-se imediatamente à vida (e não à livre
vontade) dos cidadãos, que surge, assim, como o elemento
político originário, o Urphänomenon da política: mas esta vida
não é simplesmente a vida natural reprodutiva, a zoé dos gregos,
nem o bíos, uma forma de vida qualificada; é, sobretudo, a vida
nua do homo sacer e do wargus, zona de indiferença e de
trânsito contínuo entre o homem e fera, a natureza e a cultura.
(AGAMBEN, 2002, p-115)
Ou seja, aquele “povo” estaria permanentemente subjulgado
a um estado de exceção, incluído na esfera do biopoder. Na Idade
Moderna, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos do
poder estatal e a política se transforma em biopolítica. Aí, uns são
políticos e outros são vida nua em seu anonimato. Tal processo
desenboca, apenas como elemento exemplificativo, na sociedade
nazista alemã de Hitler, imbuída do paradigma que significa valores
como fins, em que os hebreus representaram fielmente aquilo que
nomeamos preteritamente como homo sacer – vida matável e
418
Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana
insacrificável -, fazendo as vezes do “povo”, o desprivilegiado da
nova soberania biopolítica. O extermínio deste povo não vai
configurar uma série de execuções capitais, tampouco um sacrifício,
mas única e exclusivamente a realização de uma mera
“matabilidade” que era inerente à condição de hebreu como tal. “A
verdade difícil de ser aceita pelas próprias vítimas, mas que mesmo
assim devemos ter coragem de não cobrir com véus sacrificiais, é
que os hebreus não foram exterminados no curso de um louco e
gigantesco holocausto, mas literalmente, como Hitler havia
anunciado, ‘como piolhos’, ou seja, como vida nua” (AGAMBEN, 2002,
p. 121). Vida a vida. Existêntia a existência. Uma a uma. Realidade
que nos chama atenção para o fato de que este extermínio se
localizou não na dimensão do direito ou da religião, mas sim
naquela da biopolítica.
Desta forma, neste cenário biopolítico, os tempos de hoje nada
mais seriam senão uma tentativa de reparar aquela fissura deixada
pelo modelo de sociedade universal que dividiu o povo, tentando
igualá-los. Esta tentativa, então, coaduna, através de quaisquer
horizontes por nós presenciados atualmente - sejam de direita,
sejam de esquerda, sejam capitalistas, sejam socialistas - com a
união de todos em prol de um único projeto, que busca, por sua
vez, produzir um povo uno e indiviso, já que a distinção de “povo”
e “Povo” revelou a faceta da exclusão e, por conseguinte, da miséria.
Esta verdadeira obsessão que o homem moderno tem pelo
desenvolvimento é tão eficaz em nosso tempo porque vai coincidir
com o projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura (AGAMBEN,
2002). Entretanto, é preciso ter coragem para dizer que é impossível
que a sociedade atinja a isonomia, pois esta é desde sempre,
como vimos, fundada no paradigma da desigualdade. Norberto
Bobbio (1996) coaduna com esta posição, afirmando que o máximo
que pode ser atingido pela Gesellschaft é uma igualdade formal –
a posta pela lei -, mas nunca uma igualdade material – fundada
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira
419
nas vivências, da prática. Ora, já na Grécia antiga os detentos do
poder descobriram que aquele sistema democrático poderia
sustentar esta desigualdade presente entre os homens. A lógica
da racionalidade da sociedade dos tempos de hoje segue a mesma
e é justamente concluindo isto que Marilena Chauí (2000) deixa
claro que o regime democrático moderno retorna à sua matriz grega.
O fracasso do modelo de sociedade para curar aquela malfadada
fratura entre “Povo” e “povo” nos revela uma verdadeira crise de
identidade do Direito. Ora, se crise não fosse não estaríamos a
tanto debatendo e (re)estudando este tema. E para crises se
buscam soluções, se buscam saídas. Respostas estas que,
sobretudo, não podem, sob nenhum prisma, reduzir a extensão
das possibilidades, tampouco impor a estas territórios estanques.
São necessárias, contudo, áreas de escape que consigam
realmente respeitar a estrutura heterotópica que os diversos projetos
e discursos compõe.
III
Para isto, ainda que apenas para surpreender as vozes do
sistema, admitimos como uma tentativa de reconhecimentomapping aquele “filtro de inteligibilidade” já exposto por Hegel,
em sua Filosofia do Direito, e oriundo de uma releitura realizada
por Aroso Linhares (2007): o regresso da comunidade. Regresso
não àquela “bruta” Gemeinschaft pré-moderna, mas apenas à
possibilidade de reinventar a communitas na plenitude de seus
aspectos simbólico-culturais - não naturais -, possibilidade esta
que assumiria a comunidade na racionalidade constitutiva
historicizada do seu processo de realização.
Começaremos, a partir daqui, então, a esboçar uma releitura
daquela comunidade de valores, entretanto, agora, preocupada em
absorver uma fundamental lição do século XX: a experiência da
historicidade constitutiva, dada através de construções culturais,
420
Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana
recusando, assim, de logo, aquela racionalidade teorética,
característica marcante da Gesellschaft. Trataremos, aqui, de buscar
recuperar a racionalidade jurídica prático-jusprudencial-poiética,
com apoio na tópica e na retórica. Recuperar para que não nos
lamentemos mais de sermos órfãos do normativismo e, por fim,
tentarmos nos livrar da síndrome do menor abandonado.
Necessitamos, assim, trazer novamente a esta dialética a
racionalidade sujeito-sujeito: aquela matriz de razão do pensamento
que quando enxerga o problema no direito, vê fundamentalmente
os sujeitos. Ou seja, mais do que institutos, discutiremos
argumentos, sem por isso – para increduliadade daquelas vozes –
deixar de encarar o direito como jus, mas sim, enxergando-o além
deste limitado horizonte, para reconhecê-lo como experiência de
realização, quando visto através da lente da filosofia prática
(LINHARES, 2007). Postura esta em contraponto à resposta do pai
da filosofia do direito, Hegel, a um aluno seu, durante uma
exposição, em que, ao ser questionado por este como o mestre
podia falar sobre a fenomenologia do espírito com bombas caíndo
ao redor e se isto não conflitaria com a realidade, respondera:
azar da realidade. Conheceremos, então, novamente o direito,
contudo, agora, através de um discurso racional que busca
sustentar o caso concreto.
A Gemeinschaft se mostra, então, retomando o pensamento
Tönniesiano, como aquela “união” formada através de valores –
racionalidade prática – e não aquela “união” da societas, formada
a partir de representações ideiais e artificiais dos homens –
racionalidade teorética. Ou seja, para a communitas o que vale é a
interação que se dá através da “vontade natural” do homem
(TÖNNIES, 1947). Através desta vontade as relações humanas
ganhariam valor por si mesmo, sendo, portanto, intrínsecas, sem
depender de propósitos exteriores ou ulteriores a elas, concebidas
pelos agentes em “interação” como entidade durável e natural, ao
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira
421
passo que a “vontade arbitrária” se pautaria na diferença entre
meios e fins, pautada por interesses individuais, constituindo, assim,
uma entidade artificial e mutável. De fato, a idéia de comunidade
revela no seu sentido a participação dos homens que a compõem
num núcleo aglutinado de valores (bem) que lhes são comuns, ao
passo que a sociedade enuncia antes a aceitação por parte dos
seus membros de um conjunto de normas (deveres) que regulam
a relação entre eles.
Notamos, nitidamente, como a teoria liberal, desde o pensamento
de Kant até as teorias de Rawls, estabelece a primazia do dever e
do direito sobre o bem, revelando aquela racionalidade abstrata e
universal, que provocara a ruptura entre “povo” e “Povo”. Em
contraponto, a teoria social-comunitária, a Gemeinschaft, desde
Aristóteles, com seu pensamento de homem gregário e político,
até McIntyre e suas teorias de razão comunitária e liberal dá aos
valores a primazia sobre o direito e os deveres.
Em Tönnies, tanto quanto em Durkheim, comunidades se
caracterizam por uma similaridade básica e uma identidade de
valores e atitudes entre todos os seus membros. Não somente
todos compartem os mesmos valores e atitudes, mas este fato é
conhecido e vivido por todos; a communitas é transparente e existe
um sentimento generalizado de pertencer ao mesmo todo. O oposto
é aquela idéia que já vimos: a Gesellschaft, em que as interações
se baseiam na especificidade dos papéis, na ausência de
afetividade, no universalismo, na auto-orientação e na ausência de
características sociais adquiridas, para utilizarmo-nos das “variáveis
padrão” de Parsons (1952). Podemos comparar a idéia de
comunidade, àquela de solidarité mécanique – solidariedade
baseada nas identidades –, ao passo que a societas seria a
solidarité organique – baseada nas diferenças e nas
complementaridades (DURKHEIM, 1995, p. 85-96)
422
Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana
Desta forma, uma entidade comunitária existiria muito antes da
constituição social de indivíduos e seus fins – sem restringir-se a
condições genéticas. Surgiria através de uma união natural e até
mesmo orgânica do homem à sua pátria. Aqui se faria presente aquela
cultura holista, fundada em hombres que se sienten y saben como
perteneciéndose unos a otros, fundados en la proximidad natural de
sus espíritus (TÖNNIES, 1942, p. 45), de modo que estas relações de
comunidade prescindiriam, pelo menos a priori, da necessidade de
igualdade e liberdade de vontades. Na Gemeinschaft, fruto da cultura
do povo que ela representa, os homens permaneceriam unidos apesar
de todas as separações e este elo de união seria composto pelos
valores em comum a esta cultura, a esta comunidade, revelando um
caráter prático-poiético que vai se contrapor àquela concepção
abstrato-artificial-teorética da societas, que, de maneira intrínseca, se
vincula à idéia de Estado, como espírito humano projetado e vinculado
àquele já dito controle externo.
As relações comunitárias teriam, então, um forte poder de
construir, através de um processo historicizado, identidades locais,
culturas, revelando um cenário apto a mudanças e a participar das
dinâmicas de sociabilidade, que vão levar em consideração o
aspecto singular, o aspecto daquela comunidade em específico,
daquela cultura pontual. Pensamento vinculado a uma cultura do
povo-folk que, como já vimos, se contrapõe àquela idéia de uma
civilização do Estado (TÖNNIES, 1947, p. 304), que se articula através
de identidades extra-locais, revelando o aspecto universal, aquele
ideal de humanidade (ELIAS, 1993).
Así hay que entender todo derecho comunal como producto
del espíritu humano, pensador: un sistema de ideas, reglas,
normas, comparable, como tal, a un órgano o obra, surgido por
la reiterada actividad correspondiente de si mismo, por ejercicio,
como modificación de un substancial de la misma índole ya
anteriormente existente, progresando de lo general al especial.
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira
423
De esta suerte, es fin de sí mismo, aunque en relación necesaria
con aquél todo a que pertenece y donde procede, que es él
mismo manifestándose de modo peculiar. Con ello se presupone
una humanidad unida como existencia natural y necesaria; es
más, se presupone un protoplasma de derecho como producto
originario y necesario de la vida y pensamiento conjuntos de la
humanidad (TÖNNIES, 1947, p. 201-202)
Desta forma, apoiando-nos no pensamento de McIntyre (1988),
observamos que a razão na communitas se confessaria vinculada
a esta identidade local, a este aspecto singular do homem, estando,
portanto, comprometida com esta realidade, com estes valores.
Diferente da societas, onde esta mesma razão se pretende livre
desvinculada da identidade local, buscando, mais do que isso, a
universalização das idéias, a internacionalização abstrata do
pensamento – conclusões próximas àquele conceito de
comunidades de idéias formulado por Robert Fowler (1995).
Já que a idéia da Gemeinschaft parte do princípio de que existem
valores que são comuns a seus membros, as atitudes do agente
podem ser apenas duas: preferi-los ou preteri-los. Não há nenhum
espaço, nesta racionalidade, para aquela conduta neutra defendida
pela proposta liberal de Estado neutro. A vinculação dos membros
da comunidade é existencial; não através de um contrato social,
mas sim a partir de um estado4 social. A solidariedade, como nos
diz Weber (1994), é subjetivamente sentida pelos seus membros,
enquanto que na sociedade se limita somente ao prescrito pelas
normas legais, à razão teorética abstrata.
Posto isto, cabe-nos uma reflexão acerca do tema debatido,
pois, sem nenhuma sombra de dúvidas, a interpretação que vamos
dar aos princípios formadores das Constituições estatais
dependerá de como enxergarmos o ambiente em que se opera o
sistema jurídico. Rogo, ainda, para que com esta leitura - apesar
de ponto de vista atraente - não se faça uma dicotomia absoluta
424
Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana
entre sociedade e comunidade, pois se assim procedermos
estaremos nada mais do que reafirmando a modernidade, que
possui uma imensa dificuldade em somar concepções. Não
partamos de “sociedade versus comunidade”, mas sim busquemos
com elas aprender um caminho rumo à pós-modernidade, em que,
mais do que extremista, cabe ao intérprete ser humilde, por assim
dizer, já que o importante não é compor uma teoria universal, nem
gerar um homem natural, mas sim um homem cultural-tradutor:
aquele que olha a cultura alheia, a respeita e insere em sua cultura
aqueles valores que lhe convier.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida
nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002.
BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 2. ed. Rio de Janeiro:
Ediouro, c1996.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. SP: Cortez, 2000
DURKHEIM, Emile. Preponderância progressiva da solidariedade
orgânica. In Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 1. 7. ed.
São Paulo: Ática, 1995.
ELIAS, N. O processo civilizador. Vol. I. Rio de Janeiro: Zahar,
1993.
FOWLER, Robert Booth. Community: Reflections on Definition. In
New Communitarian Thinking: Persons, Virtues, Institutions, and
Communities. London: University Press of Virginia, 1995.
HAB E R MAS, Jürgen. The European Nation- State - Its
Achievements and its Limits. On the Past and Future of Sovereignty
and Citizenship. In Benedict Anderson e Gopal Balakrishnan (orgs.),
Mapping the Nation. Londres: Verso, 1996.
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução:
Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1988.
Cláudio Azevêdo da Cruz Oliveira
425
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. 4. ed. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1992.
LINHARES, José Manuel Aroso. A representação metanormativa
dos discursos do juiz: o testemunho crítico de um diferendo?
Mensagem recebida por: [email protected] em 02 out. 2007.
MACINTYRE, Alasdair. Whose Justice? Which Rationality? Notre
Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 1988.
PARSONS, Talcote. The social system. London: Tavistock, 1952.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
TÖNNIES, Ferdinand. Comunidad y Sociedad. Buenos Aires:
Losada, 1947.
____________. Principios de Sociologia. Mexico: Fondo de Cultura
Economica, 1942.
WEBER, Max. Relações comunitárias étnicas. In Economia e
Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília:
Editora da UNB, 1994.
Notas
2
Vida nua para o filósofo italiano Giorgio Agamben significa aquela vida que é
matável – exterminável -, mas, ao mesmo tempo, insacrificável do homo sacer. Para
esta figura do direito romano arcaico, a vida humana é incluída no ordenamento
unicamente sob a forma de sua exclusão – matabilidade. Ou seja, a vida que se
pode matar sem cometer homicídio, entretanto não pode ser sacrificada; a vida
exposta à morte.
3
TÖNNIES é categórico ao afirmar que “sociedad no es otra cosa que la razón abstracta”
(1947, p. 72)
4
Não confundir com Estado-nação. A expressão é aqui utilizada como modo de ser
ou estar.
426
Revisitando a dialética Gesellschaft und Gemeinschaft Tönniesiana
A SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS NO
CASAMENTO DO MAIOR DE SESSENTA ANOS1
Ciro de Lopes e Barbuda
Graduando em Direito pela Universidade Federal da Bahia
(2007.2).
“Não sei... se a vida é curta
Não sei...
Não sei...
se a vida é curta
ou longa demais para nós.
Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.”
– Cora Coralina
Sumário: 1. Introdução. 2. Histórico. 3. Da ratio legis do instituto. 3.1.
Incompatibilidades interdisciplinares: problemáticas sociais, etárias e morais.
3.2 Incompatibilidades jurídicas: União Estável, Estatuto do Idoso e Súmula
n.° 377 do Supremo Tribunal Federal. 4. Conclusões necessárias. 5. Fontes
de consulta.
Resumo: Exame da constitucionalidade da separação compulsória de bens
para casamento com maior de sessenta anos de idade, estabelecida pelo art.
1.641, II do Novo Código Civil (Lei n.° 10.406/2002). Análise histórica,
teleológica e sociológica do instituto, confrontando-o com o atual
ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-Chave: Direito de Família. Casamento. Regimes de bens. Separação
obrigatória. Idoso. Separ77ação por implemento de idade.
427
1. Introdução
O presente artigo tem por finalidade discutir a
constitucionalidade da restrição à livre escolha do regime
matrimonial de bens para o contraente maior de sessenta anos,
imposta pelo artigo 1641, inciso II do vigente Código Civil (Lei
Federal n.° 10.406/2002). Também, analisar o impacto sóciojurídico do referido dispositivo legal, sobretudo em face da Súmula
n° 377 do Supremo Tribunal Federal (STF) e da recente aprovação
do Estatuto do Idoso (Lei Federal n.° 10.741/2003). Finalmente,
propor uma alternativa mais técnica, coerente e justa, que discipline
o direito patrimonial no casamento do cônjuge idoso à luz do Texto
Constitucional.
2. Histórico
A obrigatoriedade do regime da separação de bens para o
casamento do idoso já figurava no revogado Código Civil de 1916
(Lei n.° 3.071/1916), que impunha essa limitação, em caráter
protetivo ou punitivo, dentre outras hipóteses (incs. I, III e IV do
parágrafo único do art. 258) sempre que o contraente fosse maior
de sessenta ou a contraente, maior de cinqüenta anos de idade
(inc. II daquele mesmo dispositivo legal). O professor e exdesembargador paulista Washington de Barros Monteiro lembra
que essa regra foi herdada do direito romano, em cuja Lei Papia
Poppaea proibia-se, até mesmo, o casamento entre as pessoas
com aqueles limites de idade. Não obstante, já no séc. IV d. C.,
essa despropositada norma foi revogada pelo imperador
Constantino, por atentar contra a esfera de liberdade dos cidadãos
romanos. (MONTEIRO, 1997, p. 180)
É preciso, também, aludir à vetusta discriminação perpetrada
pelo idealizador do extinta Lei Civil, Clóvis Beviláqua, ao impor o
regime de separação legal para o homem com sessenta anos,
428
A separação obrigatória de bens no casamento...
mas para a mulher de cinqüenta. À luz do princípio da isonomia,
consagrado no caput do art. 5° da vigente Constituição Federal
de 1988, essa norma padeceria de evidente inconstitucionalidade,
ferindo de morte o inciso I do mencionado artigo, que estabelece
serem homens e mulheres iguais em direitos e obrigações, nos
termos da Constituição, bem como o § 5° do art. 226 da Estatuto
Fundamental da República, que prescreve a igualdade de direitos
e deveres conjugais entre as pessoas dos sexos masculino e
feminino. Exatamente por conta disso, aduz Sílvio Venosa que “o
novo Código, em atendimento à perfeita igualdade constitucional
do homem e da mulher, estabelece a idade de 60 anos para ambos
os sexos” (VENOSA, 2003, p. 175).
A incomunicabilidade dos bens amealhados na constância do
matrimônio, nos casos de separação compulsória, contudo, sempre
foi muito polêmica, despertando doutrinariamente posicionamentos
favoráveis e contrários à meação dos aqüestos. Data de 1964 a
Súmula n.° 377 do Supremo Tribunal Federal, a qual, ipsis litteris,
define que: “No regime de separação legal de bens, comunicamse os adquiridos na constância do casamento”. A aplicabilidade
deste enunciado pretoriano será examinada ulteriormente, neste
artigo.
3. Da ratio legis do instituto
Nesse ponto, há que se perguntar qual a razão de ser encontrada
por Beviláqua – e endossada pelo Código Civil de 2002 – para
legitimar a obrigatoriedade do regime de separação de bens para
os idosos. Festejado doutrinador esclarece a esse respeito que
(…) o legislador compreendeu que, nessa fase da vida, na qual
presumivelmente o patrimônio de um ou de ambos os nubentes
já está estabilizado, e quando não mais se consorciam no
arroubo da juventude, o conteúdo patrimonial deve ser
peremptoriamente afastado. A idéia é afastar o incentivo
Ciro de Lopes e Barbuda
429
patrimonial do casamento de uma pessoa jovem que se consorcia
com alguém mais idoso. (VENOSA, 2003, p. 175)
O civilista baiano Orlando Gomes pontua que “tal restrição se
explicava e justificava porque tal regime [comunhão universal de
bens], importando comunicação de todos os bens presentes e
futuros, poderia estimular a realização de casamentos de pessoas
idosas no interesse de enriquecimento instantâneo do parceiro”
(GOMES, 1999, p. 175).
A ampla literatura jurídica explica que a separação legal é regime
matrimonial de bens que se impõe por interesse público, possuindo
finalidade protetiva (em relação aos maiores de sessenta anos e
àqueles que carecerem de suprimento judicial para convolar as
núpcias) ou punitiva (para os que se casam em inobservância das
causas suspensivas do art. 1523 do Código Civil de 2002), e,
por conseguinte, independentemente da vontade das partes. É dizer,
o regime de separação efetua-se sem necessidade de manifestação
expressa dos contraentes em sede de pacto antenupcial,
formalidade exigida na separação convencional de bens (arts. 1687
e 1688 do Código Civil de 2002), entretanto dispensada, no regime
compulsório de separação, por tratar-se de imposição da lei.
Data venia, não se sustenta a opinião segundo a qual a
obrigatoriedade da separação de bens por implemento de idade
tem por escopo defender a terceira idade de aventureiros. Parece
que essa regra restritiva de direitos é absolutamente dispensável
e preconceituosa, criando muito mais estorvos, constrangimentos
e incoerências do que vantagens para os idosos. É temerário que
o legislador, gratuitamente, presuma que todo aquele que contrai
matrimônio com um maior de sessenta anos seja um aproveitador,
tendo os escusos fins de amealhar o quinhão patrimonial que lhe
caiba no divórcio ou na sucessão mortis causa do cônjuge idoso
(em suma, dando o vulgo “golpe do baú”).
430
A separação obrigatória de bens no casamento...
Tampouco se pode aceitar que o legislador, outrossim, presuma
a incapacidade absoluta do maior de sessenta anos para realizar
um dos mais importantes atos da vida civil, que, como os demais,
traz implicações patrimoniais, mas que, sobremaneira, afeta direitos
potestativos do cidadão. Essa intromissão da lei autonomia da
vontade do idoso colide frontalmente com o art. 1º, III e o art. 5°,
I, X e LIV da Lei Maior. A seguir, delinear-se-ão os principais
paradoxos decorrentes da exegese art. 1641, II, do Código.
3.1 Incompatibilidades interdisciplinares:
problemáticas sociais, etárias e morais
É sabido que a separação obrigatória contida no art. 1641, inc.
II do Código Civil de 2002 quer precaver-se do jovem que se
casa com o idoso somente para obter vantagem econômica. É
forçoso admitir, todavia, que a imposição legal da separação de
bens acaba por prejudicar, por tabela, aquele nubente com mais
de sessenta anos que se consorcia com outro de igual faixa etária.
Desse modo, abre-se a possibilidade de ser punido um “inocente”
somente para que não fique sem punição um suposto “culpado”,
opção legislativa que, num regime constitucional ancorado no
devido processo legal, é inadmissível.
O ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, Arnaldo Rizzardo, assinalando a excessiva cautela do
legislador de 2002, ao recepcionar a separação obrigatória por
implemento de idade do Código de 1916, opina que mais correto
“apresentar-se-ia excepcionar a obrigatoriedade do regime de
separação de bens se ambos os nubentes fossem maiores de
sessenta anos” (RIZZARDO, 2005, p. 665).
A hipótese supracitada, de casamento entre dois cônjuges
idosos, ganha ainda mais importância, se se levarem em
consideração as últimas pesquisas estatísticas nacionais. Paloma
Ciro de Lopes e Barbuda
431
Braga Araújo de Souza, advogada baiana, em recente artigo
publicado virtualmente, verbera sobre isso:
Segundo dados do censo demográfico realizado pelo IBGE
em 2000, mais de 8% da população é formada por idosos,
sendo boa parte deles provedores de seus lares, com uma
renda média que equivalia a pouco mais de três salários mínimos.
(...) O desejo de estabelecer uma comunhão de vida permeada
pelo afeto e colaboração mútua é inerente à maior parte dos
seres humanos, independente da idade. No Brasil, com a
expectativa de vida média de 71,3 anos, é muito comum que
esse desejo ocorra depois dos 60 anos. (SOUZA, 2007, p. 3)
Ademais, as modernas medicina, psicologia e ciências sociais,
especializadas, respectivamente, nas áreas da gerontologia e
geriatria, da psicologia do desenvolvimento e da sociologia do
envelhecimento, não mais encaram o amor e o sexo na terceira
idade como um tabu, ou uma patologia, mas sim como um
fenômeno perfeitamente normal, aliás, necessário à saúde somáticopsíquica do ser humano. Com a tendência de aumento da
longevidade do brasileiro, é previsível que, cada vez mais, pessoas
idosas, depois de estados de viuvez ou solteirice, decidam
consorciar-se com novos parceiros, recomeçando uma vida
conjugal e sexual. Os impedimentos de ordem física que, no século
passado, obrigavam “senhores” e “senhoras” a abdicar do amor,
resignando à “sala de espera da morte”, hoje, não representam
mais nenhum óbice, posto que o mercado dispõe de
incomensuráveis alternativas para mitigar os efeitos da menopausa
e andropausa e cultivar, saudavelmente, a libido na velhice.
Desse modo, são de duas naturezas apenas os entraves que
subsistem, hodiernamente, para os relacionamentos da terceira idade:
a) moral, devido ao pudor com que alguns idosos ainda encaram
o assunto na velhice, frente ao forte preconceito social, ao medo
de retaliações familiares e comunitárias e, mesmo, à desinformação
e vergonha que, amiúde, as pessoas idosas têm a respeito de
432
A separação obrigatória de bens no casamento...
seus corpos, num meio social onde se privilegiam a aparência e a
estética;
b) jurídica, cujo art. 1641, II do CC, em xeque, é o maior exemplo.
Por sua vez, ainda que o casamento envolva um idoso e uma
pessoa com menos de sessenta anos, nada impede que essa
união dê-se pelas nobres razões do afeto recíproco, visando à
comunhão de vida e à colaboração mútua. Cite-se o quarto
casamento do maior gênio do cinema mudo, Charles Chaplin,
milionário sexagenário, quando conhecera a sua futura e devotada
esposa, Oona O’Neill, de apenas 18 anos, com quem Chaplin
conviveu o resto de sua vida, nas mais absolutas felicidade e “feliz
idade”, e de cuja relação ainda advieram oito filhos. Quão absurda
não seria qualquer restrição ao direito patrimonial desse casal,
levando-se em conta apenas a idade?
Transcendendo o excessivo moralismo católico impregnado na
legislação de família derrogada, é definitiva a lição de Silvio
Rodrigues, ao acrescentar, ainda, na vigência do Código Beviláqua,
que inexiste qualquer antijuridicidade na atração de uma pessoa
mais jovem por uma mais idosa, para cuja aproximação a existência
de patrimônio apenas concorre como um ingrediente a mais, nada
impedindo que daí resulte um casamento tão lídimo e cúmplice
quanto qualquer outro:
(…) A tutela excessiva do Estado, sobre pessoa maior e capaz,
decerto é descabida e injustificável. Aliás, talvez se possa dizer
que uma das vantagens da fortuna consiste em aumentar os
atrativos matrimoniais de quem a detém. Não há inconveniente
social de qualquer espécie em permitir que um sexagenário ou
uma qüinquagenária ricos se casem (sic) pelo regime da comunhão,
se assim lhes aprouver. (RODRIGUES, 1998, p. 357)
Vê-se, destarte, que resta de todo desproporcional e contrária
ao princípio da razoabilidade a imposição do regime de separação
para nubentes a partir de sessenta anos. Além de destilar
Ciro de Lopes e Barbuda
433
preconceito e aniquilar direitos fundamentais do idoso, essa
restrição revela-se especialmente maléfica, ao alargar os números
do descaso de um país em que o tratamento ao idoso ainda é tão
precário e desrespeitoso, cujas quilométricas filas do Sistema
Único de Saúde e da Previdência vêm, constantemente, demonstrar
o abandono da Administração Pública e da sociedade para com a
terceira idade.
3.2 Incompatibilidades jurídicas: União Estável, Estatuto
do Idoso e Súmula n.° 377 do Supremo Tribunal Federal
É com perplexidade que, no sistema jurídico-civil pátrio, constatase que a união estável, entre idosos, recebe mais proteção do
Estado do que o casamento civil, do ponto de vista do direito
patrimonial. Na união estável, o regime legal de bens é a comunhão
parcial, não havendo nenhuma ressalva quanto aos maiores de
sessenta anos, ao passo que, no matrimônio onde um dos
contraentes é idoso, por força do inc. II do art. 1641 do Estatuto
Civil, a separação de bens é o regime matrimonial compulsório.
Tal contradição evidencia a atecnia legislativa, ao estatuir a
separação obrigatória de bens por implemento de idade, pois, se
a união estável de maiores de sessenta anos é um minus, e a ela
se aplica, em não havendo contrato que estipule regime diverso
(cf. art. 1.725 do Código Civil), o regime de comunhão parcial,
para o casamento, que é um plus, um ato jurídico que deixa óbvia
a vontade das partes de constituírem economia comum e assumirem
socialmente a condição de casados, com mais razão dever-se-ia
subsumir a previsão contida no art. 1.640 do Diploma Cível, a fim
de que, em caso de silêncio, vigore a comunhão parcial no
casamento com cônjuge idoso, como sucederia em qualquer outro
casamento válido.
Portanto, a separação de bens por implemento de idade incentiva
a convivência de idosos sob o regime da união estável, em
434
A separação obrigatória de bens no casamento...
detrimento do casamento, postura que caminha na contramão da
Carta Magna, que, no art. 226, § 3°, reconheceu a união estável
como entidade familiar protegida pelo Estado, destacando, em
seguida, a obrigação de a lei facilitar a sua conversão em casamento.
Em sendo a união estável uma relação fática tutelada juridicamente,
e em caráter supletivo em relação ao matrimônio, padece de
inconstitucionalidade a previsão de benefícios aos companheiros
que sejam negados aos casados, que firmaram relação jurídica
sob os olhos da lei e submeteram-se aos processos de habilitação
e celebração do casamento, cingindo-se ao preenchimento de
todos os requisitos legais. No mesmo sentido, o seguinte
entendimento de especialista em Direito Civil:
(…) os cônjuges que se casaram ou vierem a se casar sob o
regime de separação obrigatória de bens estarão numa situação
inferior à dos conviventes, aos quais são asseguradas as mesmas
regras do regime de comunhão parcial, o que implica na (sic)
comunicabilidade ou na meação dos bens adquiridos na
constância da união estável, não se podendo olvidar que, dentre
as formas de constituição de família, o legislador constituinte
deu preferência ao casamento em relação a (sic) união estável,
tanto que permite a conversão desta naquele. E mais. O
legislador infraconstitucional em harmonia com essa preferência,
em vários pontos, inclusive em sede de direito sucessório, atribuiu
mais direitos ao cônjuge do que ao convivente. Basta ver que o
cônjuge supérstite, na ordem de vocação hereditária, prefere
os parentes colaterais do autor da herança e o convivente com
estes concorre. (NEGRÃO, 2005, p. 3)
No dia 1º de outubro de 2003, foi sancionada pelo Presidente
da República a Lei Federal n.° 10.741, que instituiu o Estatuto do
Idoso, em complemento à Política Nacional do Idoso, concebida
pela Lei n.° 8.842/94. O Estatuto, já nos arts. 2º e 3º, assegurou a
proteção dos direitos fundamentais do idoso, entre eles os da
liberdade, da dignidade e do respeito. O parágrafo único, inc. IV,
do mesmo art. 3º estabeleceu que a garantia de prioridade no
Ciro de Lopes e Barbuda
435
atendimento e efetivação dos direitos da pessoa com idade igual
ou superior a sessenta anos compreende a “viabilização de formas
alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com
as demais gerações”. Ainda, o art. 4º é taxativo, ao determinar que
“Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência,
discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado
aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da
lei”. Não contente, o legislador previu, no art. 10, que “É obrigação
do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade,
o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos
civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e
nas leis”, delimitando, ainda, nos parágrafos daquele mesmo
dispositivo legal, que o direito à liberdade do idoso compreende
a “participação na vida familiar e comunitária”, que “o direito ao
respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica
e moral”, e que “É dever de todos zelar pela dignidade do idoso,
colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
Possui claridade solar, destarte, o intuito de proteção ao
hipossuficiente que teve o legislador do Estatuto do Idoso, ao
colimar a aplicação de sanções administrativas e penais àqueles
que infringirem as novas prerrogativas do maior de sessenta anos.
Por último, há que se debruçar sobre a temática da atual vigência
e, sendo o caso, da extensão da aplicabilidade da Súmula n.° 377
do Colendo STF. A questão reside na possibilidade, ou não, de, no
casamento em que vigore, por força da lei, o regime obrigatório de
separação de bens, comunicarem-se entre os cônjuges os bens
aquinhoados durante o conluio matrimonial. E, em caso de
comunicabilidade, se se incluem somente os bens provenientes do
esforço comum, ou todos os supervenientes ao enlace matrimonial.
O jurisconsulto Caio Mário da Silva Pereira sustenta que a
redação do art. 1641 do Código não dá margem às amenizações
436
A separação obrigatória de bens no casamento...
da Súmula n.º 377 do STF, a qual, por conseguinte, estaria
prejudicada no novo ordenamento civil (PEREIRA, 2004, p. 195).
Tal não é a orientação, no entanto, da jurisprudência mais atual,
eis a ementa do acórdão que julgou o REsp n.° 442629/RJ, em
02.09.2003, da lavra da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça
(STJ), tendo por Relator o Min. Fernando Gonçalves:
CIVIL. REGIME DE BENS. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA.
AQÜESTOS. ESFORÇO COMUM. COMUNHÃO. SÚMULA
377/STF. INCIDÊNCIA.
1. No regime da separação legal de bens comunicam-se os
adquiridos na constância do casamento pelo esforço comum
dos cônjuges (art. 259 CC/1916).
2. Precedentes.
3. Recurso especial conhecido e provido.
Para eminente civilista, porém, “a exegese mais correta é a que
sustenta a comunicabilidade dos aqüestos, quando formados pela
atuação do marido e da mulher. Se na sociedade de fato prevalece
tal solução, quanto mais no casamento, que é um plus”
(RIZZARDO, 2005, p. 662). Tal corrente, que parece não ser a
preferível, encontra muitos adeptos doutrinária e
jurisprudencialmente. Leia-se, verbi gratia, antigo acórdão da lavra
da Corte Constitucional:
Casamento. Regime de bens. Separação legal. Os bens havidos,
na constância do casamento, por um dos cônjuges, em virtude
de herança, não se comunicam. A Súmula 377 refere-se à
comunicação de aqüestos, no regime de separação legal. Não
é invocável, quando se cuida de bens adquiridos, na constância
do matrimônio, não pela cooperação de ambos os cônjuges,
mas por herança. Código Civil, arts-259 e 258, parágrafo único,
inciso I. Sendo de separação legal o regime de bens, no desquite
litigioso, não é de assegurar meação, quanto aos bens havidos
por herança, na constância do casamento. Negativa de vigência
do art-259, do CCB, que não se verifica. Recurso extraordinário
Ciro de Lopes e Barbuda
437
não conhecido. (STF - RE 93168/RJ, 1ª Turma, Relator: Min.
Néri da Silveira, julgado em 18.10.1984).
Embora seja posicionamento minoritário, aqui se adota a
comunicabilidade dos aqüestos, como regra, nos casos de
separação obrigatória, a qual se já revela um instituto falível e falido.
Abstrai-se, assim, a necessidade de “esforço comum”, conceito
jurídico indeterminado e assaz relativo. Em 2006, o STJ cunhou o
seguinte acórdão, cuja ementa é reproduzida integralmente, por
representar o início da consolidação de uma mudança de paradigma:
União estável. Dissolução. Partilha do patrimônio. Regime da
separação obrigatória. Súmula 377 do Supremo Tribunal
Federal. Precedentes da Corte.
1. Não há violação do art. 535 do Código de Processo Civil
quando o Tribunal local, expressamente, em duas oportunidades,
no acórdão da apelação e no dos declaratórios, afirma que o
autor não comprovou a existência de bens da mulher a partilhar.
2. As Turmas que compõem a Seção de Direito Privado desta
Corte assentaram que para os efeitos da Súmula nº 377 do
Supremo Tribunal Federal não se exige a prova do esforço comum
para partilhar o patrimônio adquirido na constância da união. Na
verdade, para a evolução jurisprudencial e legal, já agora com o
art. 1.725 do Código Civil de 2002, o que vale é a vida em comum,
não sendo significativo avaliar a contribuição financeira, mas, sim,
a participação direta e indireta representada pela solidariedade
que deve unir o casal, medida pela comunhão da vida, na presença
em todos os momentos da convivência, base da família, fonte do
êxito pessoal e profissional de seus membros.
3. Não sendo comprovada a existência de bens em nome da
mulher, examinada no acórdão, não há como deferir a partilha,
coberta a matéria da prova pela Súmula nº 7 da Corte.
4. Recurso especial não conhecido. (STJ - Resp 736627/PR,
3ª Turma, Relator: Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julgado
em 11.04.2006).
Cabe, en passant, referir o auto-explicativo art. 45 da Lei n.°
6.515/1977 (Lei do Divórcio), que excetua o regime de separação
438
A separação obrigatória de bens no casamento...
legal em duas hipóteses: a) se, antes do casamento, houve
convivência, anterior a 28.06.1979 (data da Emenda Constitucional
n° 9, que inseriu o divórcio na Constituição de 1969), que durou
mais de dez anos; b) se, dessa convivência, independentemente
de sua perduração, resultaram filhos.
4. Conclusões necessárias
Em artigo da Internet, tece-se brilhante comentário sobre o regime
da separação obrigatória de bens para o maior de sessenta anos:
A imposição do regime de separação obrigatória de bens ao
maior de sessenta anos revela-se completamente equivocada
pois parte de premissas falsas. A primeira delas é a de que o
novo casamento se dará entre pessoas de idade muito diversas
e por um provável interesse econômico. A segunda é a de que
na constância desse casamento não haverá esforço comum
para aquisição / preservação do patrimônio do casal. (SOUZA,
2007, p. 3)
A partir desta inferência e do quanto se discutiu anteriormente,
conclui-se que:
a) O instituto da separação legal de bens pelo implemento da
idade de sessenta anos (art. 1641, I I do Código Civil) é
flagrantemente inconstitucional, transgredindo os princípios da
isonomia, da dignidade da pessoa humana, da honra, da
proporcionalidade, do devido processo legal (acepções formal,
na condição de limite processual, e substancial, na condição de
vedação à edição de atos legislativos arbitrários), do contraditório
e ampla defesa, da função social da propriedade, do direito de
herança, da especial proteção da família por parte do Estado, da
igualdade do exercício de direitos relativos à sociedade conjugal
pelo homem e pela mulher e do dever geral de amparo aos idosos;
b) É inadmissível que o legislador presuma, in abstracto, a máfé do cônjuge mais jovem ou a incapacidade do cônjuge idoso,
para efeito de atrelar o casamento entre eles ao regime compulsório.
Ciro de Lopes e Barbuda
439
Somente in concreto, através de um processo judicial, no qual
sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa, é que respeita
a democracia a interferência na esfera jurídica dos cidadãos – no
caso, anulando o casamento, se esse negócio jurídico for maculado
por fraude, ou interditando o idoso, se houver prova de sua
incapacidade. Dessarte, urge se promovam as reformas legislativas
necessárias a estender o regime de bens legal ao casamento do
cônjuge a partir dos sessenta anos, fato que, de per si, não
configura motivo jurídico plausível para operar tal discrímen;
c) É notória e inquestionável a antinomia entre as regras do art.
1641, II da Lei 10.406/2002 e da Lei 10.741/2003, sendo que a
aplicação da primeira implica colisão direta com o art. 4º da última,
o que pode ensejar, de plano, a responsabilização dos culpados.
Uma vez que o Código Civil é norma geral e anterior, prevalecem,
pelos critérios da especialidade e da posterioridade, as disposições
legais do Estatuto do Idoso;
d) Permanece em vigor a Súmula n.° 377 do Pretório Excelso,
cuja melhor interpretação é dada por corrente do STJ que dispensa,
para comunicar os aqüestos no regime de separação obrigatória,
a existência de concurso de esforços entre os cônjuges.
Finaliza-se o presente artigo com um pensamento estrangeiro e
uma homenagem brasileira. O primeiro é de autoria do escritor
francês Henry de Montherlant, que diz que: “Os velhos morrem,
porque já não são amados”. A segunda é por nós endereçada à
poetisa goiana, Cora Coralina, cujo poema “Não sei” serviu de
epígrafe para este trabalho e cuja vida serve de exemplo para todos.
Tendo publicado o primeiro livro aos 75 anos de idade e jamais
tendo desistido do amor nos 20 anos de sobrevida, Coralina, cujo
nome artístico também poderia ser Coragem, ensina que o idoso
merece, especialmente, respeito e atenção.
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A separação obrigatória de bens no casamento...
5. Referências
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Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito
de família. 34. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 2
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a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Jus Navigandi, Teresina,
ano 9, n. 697, 2. jun. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/
doutrina/texto.asp?id=6828>. Acesso em: 12.03.07.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 14. ed.
de acordo com o Código Civil de 2002. Rev. e atualizada por
Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 5.
R IZ ZAR DO, Arnaldo. Direito de família: Lei n° 10.406, de
10.01.2002. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 23. ed. rev.
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SOUZA, Paloma Braga Araújo de. Da inconstitucionalidade material
do art. 1641, II, do Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 11,
n. 1349, 12 mar. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 3. ed.
São Paulo: Atlas, 2003. (Coleção direito civil, v. 6).
Notas
1
Trabalho apresentado no III Jornadas Brasileiras de Direito Privado & I Congresso
Baiano de Direito de Família, realizado em 30 e 31 de março de 2007, para o II
Concurso de Artigos JusPODIVM de Direito Privado.
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