TERRAS DE USO COMUM E IDENTIDADES COLETIVAS: RESSIGNIFICANDO O CONCEITO E A FUNÇÃO DA PROPRIEDADE. Gilsely Barbara Barreto Santana RESUMO Estudos de vários campos de conhecimento apontam, na ocupação territorial brasileira, a existência de grupos sociais que historicamente estabeleceram relações de uso comum com os recursos naturais, os quais, aliados às construções identitárias, conformam teoricamente os conceitos de territorialidade ou processos de territorialização. Tais grupos sociais são diversos e distintos, dimensionando a complexidade dos referidos processos, bem como, a construção das identidades coletivas inseridas no processo político, ou seja, os símbolos, os saberes, as tradições e até mesmo as exclusões são politizadas, ampliando e construindo direitos. Assim sendo, o presente artigo pretende articular as experiências em torno do reconhecimento das terras de uso comum no Brasil e a ressignificação do conceito e função da propriedade, tendo como horizonte normativo e hermenêutico a Constituição Federal de 1988 e o paradigma que a mesma se fundamenta e, como experiência empírica à luta quilombola no Brasil e os elementos envoltos na mesma. Assim sendo, pretendemos repensar o conceito e a função da propriedade, com enfoque numa concepção principológica e aberta de direito e da constituição, inserindo-as num horizonte de disputas por construções de projetos de sociedade. Advogada, mestranda em “ Direito, Estado e Constituição” pela Universidade de Brasília- Unb, [email protected]. As terras de uso comum: algumas problemáticas. Povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, seringueiros, fundos de pasto, faxinais, dentre outros, formam “grupos” e “movimentos” que explicitam as relações de uso comum estabelecidas com os recursos naturais.Tais grupos sociais estão distribuídos no território nacional, alguns com abrangência nacional, outros regionais e locais; dimensionando a diversidade dos mesmos, estas simbolizadas nas idéias de populações locais/tradicionais e terras de uso comum. As terras de uso comum referem-se a apropriação coletiva e ou comunal dos recursos naturais, formas de vida consideradas ultrapassadas e inexistentes da estrutura fundiária brasileira, em face do projeto de nação que considerou a terra e os demais recursos naturais como bens mercantis apropriáveis individualmente, simbolizado na Lei de Terras de 1850. ( Silva:1996) ( Almeida: 2006 ). A emergência desses grupos na esfera pública com o recente processo de redemocradizatação no Brasil vêm apontando a contemporaneidade desses “fenômenos” na configuração fundiária, rediscutindo os critérios de acesso e legitimação da propriedade, além de apontarem desafios na construção de políticas públicas que levem em contas as especificidades. Assim sendo, as terras de uso comum referem-se a grupos sociais que historicamente estabeleceram relações de uso comum com os recursos naturais, os quais, aliados a processos identitários conformam teoricamente os conceitos de territorialidade (Souza Filho: 2003) ou processos de territorialização (Almeida: 2006). Neste aspecto, os elementos identitários ou a (re)construção de identidades coletivas assumem relevância na luta por reconhecimento nas terras de uso comum, já que, as identidade não são fixas e homogêneas, mas construídas politicamente, sendo os símbolos, os saberes, as tradições e até mesmo as exclusões são politizadas, ampliando e construindo direitos. (Hall:2005 ) Logo, as terras de uso comum assinalam um conjunto de questões para vários campos do conhecimento. A historiografia se pergunta como tais grupos e suas relações foram esquecidas e ou excluídas da construção da estrutura fundiária brasileira. A geografia investiga a espacialização dos daqueles. A etnografia se debruça sobre os modos de ser, fazer e viver de tais grupos e suas possíveis peculiaridades. As ciências ambientais investigam as relações com os recursos naturais, os conhecimentos e saberes acumulados pelos mesmos. E o direito? A relação de tais grupos com o direito se manifesta de diversas maneiras, a exemplo das normatividades produzidas e especialmente na luta dos grupos por direitos, isto é, a percepção enquanto sujeitos de direitos e a conseqüente luta por reconhecimento. Contudo, apesar de tais aspectos, o direito é visto e vivenciado como obstáculo para garantir o direito dos grupos. O obstáculo que o direito simboliza refere-se, sobretudo, a contraposição que tais lutas apontam ao processo concentrador, privatista, mercantil e elitista da estrutura fundiária brasileira, guardadas as especificidades e os elementos conjunturais atinentes aos grupos em questão. Os elementos referidos envoltos na questão das terras tradicionalmente ocupadas impõem um repensar o direito, assim sendo, dialogaremos com a propriedade, Constituição e o paradigma que a mesma se fundamenta. Com e para além da “propriedade” Os trabalhos empíricos apontam que as tradições, imemorialidade, a religiosidade, as relações com os recursos naturais dentre outros aspectos, perpassam as relações estabelecidas pelas comunidades com o espaço, aspectos vivenciados no cotidiano, conformando o conceito de território. O território agrega elementos de um passado, presente e futuro, ou seja, o espaço atual é decorrente de histórias e tradições imemoriais, acrescido de processos muitas vezes inidôneos de apropriação do espaço por terceiros, logo, o território é uma espécie de projeto futuro que tenta reconciliar com passado inscrito numa luta presente por sonhos e expectativas. Ressalte-se que o território como as identidades se inserem em processos políticos, nos quais, as tradições e os saberes são politizados, assim, território é recurso e abrigo no entender de Milton Santos (1998), isto é, recurso é a técnica e abrigo a dimensão política. A idéia de propriedade é considerada inapropriada enquanto significante para o(s) significado(s) do território, logo, se fundamenta e propõe um “estatuto próprio de direitos das comunidades” (Santana: 2004) ou a “função social da terra” (Souza Filho: 2003) para apreciar os limites referidos. Nestas análises, o território confronta-se com a propriedade tradicionalmente concebida como um bem mercantil, pois aquele além de ultrapassar uma concepção contratualista da terra e dos recursos naturais, configura-se enquanto um direito coletivo. (Souza Filho: 2003) A idéia de propriedade, concebida como “bem mercantil” e “natural” remonta a modernidade européia com a teoria do direito subjetivo e a concepção liberal de Estado1. Com contribuições distintas, tal ideário começa a ser elaborado pelos filósofos cristãos 1 Alguns estudos fazem a referência a propriedade na denominada História Antiga ou em períodos anteriores, contudo, entendemos que a propriedade como um direito individual esteja ligada a modernidade, período que com o humanismo se afirma a concepção de um individuo, para além das tradições vinculantes de períodos históricos anteriores. Ressalte-se que esse horizonte é concebido a partir de uma “história do ocidente” e enquanto tal apresenta limites. como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho (propriedade imanente à natureza humana) e posteriormente consolidada com os filósofos liberais, em destaque, Locke (direito natural com fundamento no trabalho). ( Marés:2003) ( Campos Júnior:2004) Desde dessa época havia discussões se a propriedade era um direito natural e positivo. No entanto, com ou sem Estado, a propriedade a partir da modernidade foi se configurando como um direito individual, absoluto e exclusivo. (Marés:2003) (Campos Júnior:2004). Ressalte-se a importância da codificação na afirmação da concepção privatista de propriedade, pois, a partir do século XIX, com as codificações o contexto social foi sendo fragmentado pela esfera normativa, havendo uma concepção que os códigos regulavam a vida privada e a constituição a vida pública. Assim sendo, a propriedade era um elemento regulado pelos códigos. (Lôbo:1999 ), (Tepedino: 2000) e ( Canotilho: 2000) As contradições da dinâmica social trouxeram elementos para a critica a propriedade, a título de exemplo, a crítica marxista a idéia de propriedade relacionando com os interesses da burguesia enquanto classe hegemônica (Marx e Engeles:2005). O idéario patrimonial e privatista de propriedade possibilitaram violências diversas aos contextos sociais, especialmente a concentração fundiária e a mercantilização dos recursos naturais. No que tange ao Brasil, essa concepção de propriedade instrumentalizou um projeto de nação que excluiu e ou dificultou o acesso à terra aos grupos sociais não hegemônicos, como a população negra e os povos indígenas. (Silva:1996) Logo, o reconhecimento das comunidades quilombolas se insere num contexto de transformações diversas, no plano filosófico, histórico e político, simbolizado na esfera pública com a Constituição Federal de 1988. A mesma dimensiona os desafios para o direito numa sociedade diversa, pluriétnica e complexa, assim, a propriedade passa a ter um caráter publicista, devido a função social e uma série de aspectos ou limitações que vinculam o direito de propriedade com a questão ambiental, a cultura etc, portanto, a propriedade não pode ser mais compreendida e exercida como algo individual, ilimitado e absoluto. Esse horizonte paradigmático compreende a constituição como uma “comunidade de princípios”, assim sendo, inexiste propriedade versus direitos territoriais ou propriedade em contraposição a questão ambiental,por exemplo, explicitada nas idéias de “colisão de direitos fundamentais” ou “conflitos de valores”, mas o desafio de efetivar uma gama de direitos e princípios aparentemente contraditórios. Assim sendo, esse horizonte hermenêutico se insere num contexto filosófico e epistemológico de intensas mudanças, isto é, questionamento acerca de uma pretensa superioridade e neutralidade do cientifico, simbolizada no positivismo (Kuhn:2006), (Bachelard:1988). Ressalte-se que esses questionamentos vêm de diversos “ramos”, isto é, lingüística, teoria critica, hermenêutica, desconstrução, estética dentre outros que com suas especificidades possuem como substrato filosófico reflexões sobre a idéia do sujeito e da razão. (D‟ Agostini: 1999) O direito também se insere nesta perspectiva e ou mudança de paradigma, assim sendo, o questionamento da idéia de “lei” e “norma jurídica”, do objeto e das fontes do direito, a fragilidade das fronteiras disciplinares e a questão da legitimidade dos sistemas jurídicos, são aspectos relevantes nas reflexões contemporâneas sobre o direito. Tais aspectos e desafios apontam a superação da dicotomia entre constituições formais e materiais, estas inseridas respectivamente nos paradigmas do Estado de Direito e Estado Social, afirmando assim, o paradigma do Estado Democrático de Direito. (Netto: 2003). A complexidade das sociedades contemporâneas explicita a dificuldade da „lei”especificar todas as situações sem homogeneizar a heterogeneidade do contexto social. Assim sendo, repensar o direito é uma forma de lidarmos com essa complexidade, havendo vertentes teóricas importantes, como a que insere o direito numa “dialética social” (Lyra Filho:1995) ou numa “teoria discursiva-comunicacional” (Habermas: 2003). Nesta perspectiva, questões como “princípios”, “interpretação”, “hermenêutica”, “aplicação” e “legitimidade” ganham relevância como possibilidade de vivenciarmos e podermos densificar as situações concretas enquanto singulares, especificas e datadas, nos desvinculando da “ crença na capacidade de racionalmente, por intermédio da fórmula lei, regularmos a vida moral, ética e jurídica, de sorte a ficarmos livres de problemas no campo da aplicação normativa” ( Netto, 2003, p.157 ) Assim sendo, tais aspectos afirmam uma perspectiva de direito enquanto algo aberto e vivenciado nas situações concretas. (Netto: 2003), deslocando a questão da adequação normativa para a aplicação, assim sendo, partindo da experiência quilombola dialogaremos com essa dimensão teórica. Notas sobre a questão quilombola. As análises contemporâneas, partindo da apreensão dos quilombos como uma das formas da resistência negra no Brasil escravista (Reis e Silva: 1989), assinalam que os processos sociais relativos à questão racial na sociedade brasileira são dialéticos e dotados de complexidade (Chalhoub:1990). Assim sendo, como parte da resistência negra, os quilombos também foram diversos e distintos, conforme estudos historiográficos que apontam a variedade da organização social dos quilombos (Reis e Gomes: 1996). Tais estudos são importantes na reflexão sobre o conceito de quilombos, já que, os mesmos referiram, por um lado, os limites da definição estatal através do Conselho Ultramarino de 17402, na qual, associava-se o quilombo à existência de elementos como fuga, quantidade mínima de pessoas, isolamento, rancho e inexistência de pilões (Almeida: 2004). Por outro lado, fizeram a critica aos estudos que polarizavam os quilombos, como uma referencia heróica e vanguardista de resistência negra (Reis e Silva: 1989). 2 A definição do Conselho Ultramarino é uma resposta ao Rei de Portugal da sua consulta sobre o que era quilombo e o Conselho assim responde “Toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. ,(Almeida: 2004) Dessa forma, na atualidade, ressalta-se também a diversidade de organizações sociais da população negra no campo brasileiro, tendo esses agrupamentos relações históricas, diretas ou não, com os quilombos que existiram na vigência do regime escravista. (Almeida: 2002). Tal diversidade, exposta em denominações como terra de preto, mucambo, comunidades negras rurais (Andrade e Treccani: 1999), dimensiona a contemporaneidade dos quilombos, imprecisamente posta na expressão “remanescentes de quilombos” do art.68 ADCT. (Silva: 2000) As comunidades quilombolas se inserem na discussão das terras tradicionalmente ocupadas, havendo, dentre outros aspectos, recorrências etnograficamente observadas quanto à relação com os recursos naturais, como a não compreensão da terra como bem mercantil; o uso da terra que não obedece a padrões de parcelamento mercantis; a interação mais harmoniosa com o meio ambiente e os laços de parentescos consangüíneos ou por afinidade como a base da organização social (Silva: 2000). Assim sendo, o ser quilombola é re-elaborado no processo político, no qual, direitos são construídos e ampliados. O crescente número de comunidades que autoidentificam como quilombolas e a diversidade destas apontam a inexistência de uma identidade moldurada. Ressalte-se ainda que muitas comunidades quilombolas agregam outras identidades, como trabalhadores rurais, pescadores, extrativistas, estas acionadas em momentos políticos distintos. Assim sendo, Stuart Hall explicita essa identidade móvel “O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornado fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas” (Hall, 2005, p.12) Apesar dos descaminhos da atuação estatal, o texto constitucional do art.68 da ADCT vem sendo “densificado” na relação entre o Estado, por meio de diversos órgãos, as comunidades quilombolas, as entidades de assessorias e outros segmentos da sociedade. Nesse processo, reitere-se que algumas questões foram afirmadas, em destaque o principio da auto-identificação3 dos grupos como possibilidade do “texto legal” dialogar com a diversidade e complexidade das comunidades quilombolas, reconhecendo-as nas singularidades, ao invés, do enquadramento das suas diferenças. Contudo, para uma visualização das problemáticas das terras de uso comum, especialmente a questão quilombola, faz-se necessário o dimensionando do significado do Estado-Nação e a critica ao monismo estatal frente aos desafios de repensar o direito. Pluralismo jurídico, identidade nacional e diferença. Alguns estudos historiográficos4 vêm apontando uma nova significação para a esfera normativa, ou seja, a lei como expressão legal dos conflitos vivenciados na sociedade (Motta, 1998, p.82). Apesar da imprecisão da palavra “lei”, tais estudos explicitam o que está além do “texto legal” sendo uma perspectiva importante para compreensão do fenômeno jurídico em sua complexidade. Assim sendo, o texto legal e suas possibilidades interpretativas se inserem em processos sócio-históricos, já que, as “escolhas normativas” e “aplicação e justificação” não são aleatórias, se inserindo no contexto das disputas sociais. Portanto, as modificações no texto legal e no horizonte interpretativo podem ser percebidas com a transformação do conceito de quilombo da definição do Conselho Ultramarino ao art. 68 da ADCT. Logo, algumas práticas normativas e suas possibilidades interpretativas foram descartadas ou preteridas em nome de conceitos “hegemônicos”, “civilizados”, “evoluídos”. Assim sendo, se entendemos o reconhecimento das comunidades como um 3 O principio da auto-identificação foi regulamentado nos art. 1 e 2 da Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, aprovado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 07/06/1989, esta ratificada pelo Brasil. 4 Partindo da referência de E. Thompson, uma nova geração de historiadores brasileiros rediscute o papel da legislação na sociedade escravista, a título de exemplo Márcia Motta, Silvia Lara, Maria Lucia Lamonier, Sidney Chalhoub, João Reis etc. processo para além do texto constitucional, faz-se necessário o diálogo com a crítica ao monismo estatal e a desconstrução da idéia de Estado-Nação . O Estado-nação é decorrente da construção histórica do “nós”, tendo em vista, o sacrifício de outros grupos, ou seja, “ a essência de uma nação reside no fato de todos os indivíduos terem muitas coisas em comum, e igualmente que todos tenham esquecido bem as coisas. A memória fundadora da unidade nacional é, ao mesmo tempo e necessariamente, esquecimento das condições de produção desta unidade: a violência e o arbítrio originais e a multiplicidade de origens étnica. ( Renan, apud Poutignat, 1998, p. 36). Quanto à realidade brasileira, a construção da identidade nacional, marcada pela idéia de convivência pacifica entre o branco, o negro e o índio - a noção de democracia racial -, significou o escamoteamento das diferenças e conflitos étnico-raciais.(Santos: 2002) e (Munanga:2004) Tal construção no plano das idéias teve a influência do pensamento racial do século XIX5, que incorporado à realidade nacional, fomentou um conjunto de mitos, distorções e invenções acerca do ser negro, os quais, dificultaram à população negra o acesso aos direitos e garantias do processo de democratização (Schwarcz:1993) e (Santos: 2002) Os elementos étnicos-raciais que configuram a denominada “questão multicultural” vêm questionar a idéia de nação como algo unificado, revelando a identificação nacional como algo forjado e construído com o escamoteamento das diferenças, desestabilizando as fundações do Estado Constitucional Liberal. (Hall: 2003). Hall faz uma “desconstrução” da identidade nacional britânica, esta vista como uma “verdadeira nação” apontando as fissuras na constituição da mesma e afirmando a 5 O racismo esteve relacionada ao desenvolvimento das teorias raciais do século XIX, conforme apontado por Hannah Arendt (1989), contudo, algumas teorias questionam essa idéia como os teóricos do “sistema mundial”, em destaque, Walter Mignolo(2003) e Aníbal Quijano(2002); além dos estudos de Cheik Anta Diop (1999) sobre os egípcios. heterogeneidade da “nação britânica” entendendo a idéia de uma nação como um projeto, portanto, o autor afirma: “esses discursos devem incrustar profundamente e enredar o chamado estado „cívico‟ sem cultura, para formar uma densa trama de significados, tradições e valores culturais que venham representar a nação. É somente dentro da cultura e da representação que a identificação com esta „comunidade imaginada‟ pode ser construída. Todos os modernos Estado nação liberais combinam a chamada forma cívica racional e reflexiva de aliança intuitiva, instintiva e étnica à nação” (Hall: 2003, p. 78) O Estado-nação é também alvo de críticas, em face da sua relativização, isto é, Quijano (2002) aponta a “não consolidação” dessa forma de estado e a “ não mundialização da mesma” , de outro modo, o autor afirma que a idéia de estado- nação deve ser observada a luz da colonialidade do poder, portanto, apenas os países do centro vivenciaram tal projeto político; aspecto questionável quando Hall explicita o “ caso britânico” e sua formação heterogênea. Milton Santos (1998), afirma que o Estado-Nação sempre teve margens, não sendo, uma novidade tais “descobertas” que animam os autores pós-coloniais, assim sendo, o mesmo para além da visão “culturalista” propõe uma inserção desse questionamento da nação dentro da geopolítica, pois o entende, como uma imposição do processo de globalização perverso, propondo uma outra globalização. (Santos: 1998) e ( Santos:2006 ) As peculiaridades da “questão multicultural” - o questionamento da unidade do Estado-Nação etc-, são importantes para dimensionarmos o contexto sócio-político de reconhecimento das “diferenças”, sendo fecundo, a ótica de análise do pluralismo jurídico, isto é, a crítica ao monismo jurídico - o Estado como centro único do poder político e fonte exclusiva de toda produção do Direito. (Wolkmer:1997) Reconhecer o direito das comunidades quilombolas inscritos no pluralismo jurídico é importante, pois a categoria permite esse desvelamento de uma teoria política e jurídica que conformou a idéia do Estado-Nação e as incongruências referidas. De outro modo, o pluralismo jurídico permite tornar visível grupos sociais que foram invisibilizados do tecido social em face da pretensão de unificação, homogenização e assimilação. Assim sendo, em que pese às diversas conceituações acerca do pluralismo jurídico, não o entendemos como a afirmação ou o requerimento de ordens jurídicas distintas, estanques e incomunicáveis, mas sobretudo, por possibilitar a explicitação das diferenças e a descentralidade do Estado como fonte do direito, sendo um elemento a mais para repensar o direito. O referencial analítico envolto no paradigma do Estado Democrático de Direito-a dimensão principiológica, ao invés, de um sistema jurídico sistematizado por regras aponta o desafio de garantir direitos aparentemente contraditórios, deslocando em parte as questões trazidas pelo o pluralismo jurídico para o campo da justificação e aplicação de tais princípios aos casos concretos. Por outro lado, reitere-se que as “escolhas normativas” e as “possibilidades interpretativas” se inserem no contexto disputas por projetos de sociedade, portanto, a ótica do pluralismo jurídico possibilita-nos olhar as experiências normativas e interpretativas que historicamente foram esquecidas e ou silenciadas. Neste aspecto, as relações que as comunidades quilombolas estabeleceram com os recursos naturais, de forma não homogênea e estanque, explicitam a nocividade social da compreensão da propriedade como “bem mercantil” e ou “direito absoluto e pleno”, possibilitando-nos agregar elementos para ressignificação do conceito e função da propriedade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os direitos das comunidades quilombolas referem-se ao reconhecimento jurídico formal da diferença, esta integrante do direito à igualdade. Para tanto, a hermenêutica e o desenvolvimento de instrumentos técnico-jurídicos são importantes na superação da matriz liberal e individualista acerca da propriedade, ao invés de um enquadramento e uma descaracterização, o reconhecimento das identidades coletivas nos seus “modo de ser, fazer e viver”. O reconhecimento das comunidades quilombolas perpassa por inter-relações e interfaces tanto na relação do Estado com as comunidades, quanto internamente nas especificidades desses atores sociais envolvidos. Logo, desde a construção e ampliação dos direitos à interpretação e aplicação, os lugares ocupados são distintos, mas requerem e afirmam uma perspectiva de direito para além da idéia de “lei” e da sua centralização no Estado como fonte do direito. Em que pese esse horizonte teórico e paradigmático, mais uma vez reitere-se que as “escolhas normativas” e possibilidades interpretativas se inserem no contexto de disputas por “projetos de direito” ou “projetos de sociedade”. Assim sendo, tal ótica de análise não é um “fim em si mesmo”, mas um instrumental teórico que possibilita repensar o direito, seus limites e abusos e talvez suas possibilidades emancipatórias. REFERÊNCIA ALMEIDA, A. W. Quilombos e Novas Etnias. In O‟ DWEYER, E. C.(org). 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