O Projeto de Lei 373/2015 propõe a inserção de um inciso V no art. 302 do Código de Processo Penal, para acrescentar-lhe mais uma hipótese de flagrante, o “flagrante provado”. Segundo o texto de justificativa do projeto, a nova hipótese busca abranger os casos em que, em tempo indeterminado, sejam obtidas provas pós-fato criminoso, mas com “real convicção probante” e “forte valor convincente”, como o reconhecimento da vítima, de terceiro ou, ainda, a confissão. “Art.302 (...) V- É encontrado, tempo depois, reconhecido pela vítima, por testemunha do crime pessoalmente, ou por terceiro, que o reconheça por filmagem ou foto da ação criminosa, ou por ter sido encontrado e confessado o crime. ” 1. Flagrante provado não é flagrante. O estado de flagrância, previsto no artigo 302 do CPP e definido em seus incisos, tem como características essenciais a atualidade e a visibilidade. A própria etimologia da palavra flagrante remete àquilo que queima e é justamente pela atualidade do cometimento de infração penal que se permite a dispensa dos requisitos das prisões processuais. Nesse sentido, mesmo as figuras dos incisos III e IV1 do art. 302 do CPP - que fogem à flagrância literal, ou seja, à constatação de um crime enquanto ocorre ou logo após ocorrido - têm em comum a condição temporal de imediatidade, pela simples e inafastável razão de que quanto maior o tempo, menos segura a presunção. A redação do PL 373/2015, ao contrário, estende indefinidamente o período dentro do qual uma pessoa pode ser presa sem mandado judicial e não se limita ao significado específico do termo flagrante, descaracterizando o instituto. 2. Flagrante provado não garante domínio visual dos fatos. Se por um lado a prisão em flagrante justifica-se em alguns casos pela possibilidade de cessação da infração e, em todos, pela convicção quanto à materialidade e a autoria, por outro, demanda um domínio visual dos fatos (seja do fato criminoso, da fuga ou da posse de produtos ou armas do crime) que o “flagrante provado” está longe de garantir. A pretensa inovação do PL 373/2015 é, por isso, incapaz de evitar a perseguição de pessoas meramente suspeitas e a restrição arbitrária de liberdade. 1 Hipóteses da perseguição ininterrupta “logo após” ao cometimento ou a de ser encontrado o sujeito “logo depois”, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir a autoria. Brasília - Andresa Porto ([email protected]) – (61) 8590-3348 São Paulo - Janaína Homerin ([email protected]) ou Nathalie Fragoso ([email protected]) (11) 3106-4637 ou (11) 950 837 624 www.redejusticacriminal.org 3. O PL 373/2015 acaba com o controle judicial da prisão. Segundo a norma constitucional brasileira, ninguém será preso senão por ordem escrita e fundamentada de uma autoridade judiciária ou em flagrante delito. Ao expandir as hipóteses de flagrante, sem referência, aliás, ao significado técnico e específico do termo, o projeto resulta na dispensa da avaliação prévia do cabimento e da necessidade da prisão por uma autoridade judicial, bem como da emissão de uma ordem escrita e motivada, para submeter um indivíduo à privação de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. A criação do flagrante provado subtrai assim competências à autoridade judiciária, prejudica o controle judicial da atividade policial e esvazia a garantia contra prisões ilegais (Art. 5º, LXI). Por prescindir de provimento jurisdicional, a prisão em flagrante é e deve permanecer limitada em suas hipóteses, como forma de garantia à liberdade pessoal. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; Além disso, ao expandir de forma irrestrita as hipóteses em que se caracteriza “flagrante delito”, o PL 373/2015 fere a inviolabilidade do domicílio e da privacidade, direitos constitucionais que só podem ser restringidos mediante decisão judicial fundamentada ou flagrante delito (art. 5º, XI). XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; 4. Flagrante provado é inconstitucional. As situações que o PL 373/2015 se propõe a englobar já estão contempladas pelo direito brasileiro. Isso porque havendo provas da existência do crime e indícios de autoria, bem como justificada necessidade de garantir a ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, o juiz pode decretar a prisão preventiva. Desse modo, a previsão de flagrante provado é uma estratégia de restrição antecipada do direito à liberdade, que flexibiliza as garantias constitucionais do devido processo legal e da presunção de inocência. É expansão excessiva e incoerente da possibilidade de prisão pré-cautelar. A Constituição Federal determina que ninguém será privado da liberdade, sem o devido processo legal. Excepcionalmente, como decorre do texto constitucional e da sistemática processual penal, é permitida a prisão Brasília - Andresa Porto ([email protected]) – (61) 8590-3348 São Paulo - Janaína Homerin ([email protected]) ou Nathalie Fragoso ([email protected]) (11) 3106-4637 ou (11) 950 837 624 www.redejusticacriminal.org cautelar se necessária a fins legal e restritivamente estipulados. O flagrante provado, portanto, é materialmente inconstitucional e absolutamente incompatível com a atual disciplina das prisões cautelares, na forma da lei 12.403/2011, segundo a qual a liberdade deve ser a regra e a prisão, a exceção. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; O projeto ignora a sistemática processual penal brasileira e seus pressupostos, ignora as garantias constitucionais do direito à liberdade pessoal e se propõe a fins que o ordenamento jurídico brasileiro não reconhece defensáveis. Deve, por isso, ser imediatamente arquivado. 5. Sobre o voto separado ao PL 373/2015 Cogitar da possibilidade de criação de um instituto como o flagrante provado é já uma iniciativa, sob o ponto de vista dogmático, incoerente, assistemática e, sob o ponto de vista criminológico, de potenciais consequências nefastas. Cogitar da conversão obrigatória da prisão em flagrante – inclusive na modalidade provada - em preventiva, seja qual for a hipótese formulada pela norma, chega a ser mais preocupante. Nisso consiste o voto separado, VTS 1 ao PL 373/2015, apresentado em 15 de setembro de 2015, na previsão da conversão obrigatória da prisão em flagrante em preventiva para indivíduos reincidentes em crimes dolosos. Uma vez que a prisão cautelar é instrumental, excepcional e pautada pelos crivos da necessidade e da adequação previstos nos incisos do artigo 282 do Código de Processo Penal, o texto do voto destoa da legislação processual brasileira e das normas constitucionais e convencionais em que se baseia. A proposta do voto, ademais, subtrai ao magistrado a decisão acerca do cabimento da cautelar, viola o direito à presunção de inocência, reforça a estigmatização e vulnerabilidade de egressos do sistema carcerário, antecipa a pena e nos faz retroceder ao ano de 1967, quando a conversão obrigatória foi abolida no Brasil. IV – Converter a prisão em flagrante em preventiva, quando se tratar de crimes dolosos, embora afiançáveis, quando o réu tiver sido condenado por crime da mesma natureza, em sentença transitada em julgado. REDE JUSTIÇA CRIMINAL Brasília - Andresa Porto ([email protected]) – (61) 8590-3348 São Paulo - Janaína Homerin ([email protected]) ou Nathalie Fragoso ([email protected]) (11) 3106-4637 ou (11) 950 837 624 www.redejusticacriminal.org