Gilles Deleuze, leitor de Pierre Menard, autor do Quixote Christian Fernando Ribeiro Guimarães Vinci Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP Resumo Procuraremos pensar a conexão estabelecida entre literatura e filosofia no interior do pensamento de Gilles Deleuze. Tendo claro que o veio literário não é utilizado pelo filósofo francês apenas como uma ilustração de ideias, mas como um elemento não-filosófico importante para criação de uma filosofia da diferença, buscaremos pensar a importância da metodologia escritural elaborada por Pierre Menard, personagem de um conto de Jorge Luis Borges, citada por Deleuze no prefácio de Diferença e Repetição. Por meio de uma tal apropriação, será possível apontarmos alguns elementos metodológicos da escrita deleuzeana. Palavras-chave: escrita, não-filosófico, diferença A literatura sempre ocupou um lugar de destaque no pensamento de Gilles Deleuze. Leitor inveterado, não raro deparamos com citações e análises de seletos literatos ao longo de toda a sua obra, tanto as individuais quanto aquelas escritas em parceria com Félix Guattari. Conforme aponta François Zourabichvili (2008), para Deleuze, a literatura não possui relevância apenas enquanto ilustração de uma ou outra ideia, mas por ser o elemento não-filosófico, ao lado do cinema e tantas outras artes, capaz de arrastar o pensamento até os seus limites, fomentando uma nova imagem de pensamento. No plano de imanência da filosofia deleuzeana, portanto, cabe à literatura um importante papel no processo de implosão tanto do senso comum quanto do bom senso. Em Sacher-Masoch: o frio e o cruel, por exemplo, vemos um filósofo interessado em imiscuir as linhas da literatura com as linhas da clínica. Visando acabar com os preconceitos médicos e psiquiátricos que culminaram na interdependência entre sadismo e masoquismo, Deleuze procura em um ponto fora da clínica o elemento capaz de fundar uma nova sintomatologia desses ditos estados patológicos (DELEUZE, 2009). Esse ponto é a literatura de Masoch e Sade. Ora, porque isso seria importante para o pensamento deleuzeano? Desde Nietzsche e a Filosofia, temos claro que para o filósofo francês a crítica da imagem do pensamento dominante passa necessariamente por uma crítica das patologias sociais – ponto que será radicalizado nas obras escritas posteriormente em parceria com Félix Guattari. A literatura, nesse primeiro momento, fornece a interpretação de certos sinais da crise da qual padecemos e permite vislumbrarmos uma chance de ultrapassarmos certas configurações molares. Posteriormente, o saber literário seria integrado em um projeto mais ambicioso, sendo retirado do campo da crítica para o campo da própria clínica – movimento que Sacher-Masoch anunciava, mas sem chegar ao extremo dessa enunciação. Em 1968, com Diferença e Repetição, a pesquisa de novos meios de expressão por parte de Deleuze acabará por incorporar muito do campo literário, sobretudo os procedimentos elaborados por alguns escritores seletos – Kafka, Borges, Masoch, Melville etc. –, na tentativa de erigir um pensamento sem imagem. A literatura e alguns de seus procedimentos, assim, passaram a ser um elemento propulsor do pensamento, por permitir atingir o limite do pensável, esse espaço no qual habitam as diferenças selvagens. Em prólogo ao livro de 1968, o filósofo francês anuncia que a renovação da filosofia deve necessariamente lançar mão de engenharias de pensamento oriundas de searas não-literárias. ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Aproxima-se o tempo em que já não será possível escrever um livro de Filosofia como há muito tempo se faz: “Ah! O velho estilo...”. A pesquisa de novos meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje, relacionada à renovação de outras artes, como, por exemplo, o teatro ou o cinema. (DELEUZE, 2006, p. 18) Nesse momento, o exemplo procedimental para lidar com a História da Filosofia, para quebrar certos elementos implícitos que impedem a apreensão da diferença por ela mesma – conforme denúncia realizada em livros anteriores e objeto específico do livro Diferença e Repetição –, sem perder de vista o veio criativo tipicamente deleuzeano, partirá do conto de Jorge Luis Borges, Pierre Menard, autor do Quixote. Menard, talvez, não interesse a Deleuze graças ao feito de ter transcrito o Quixote literalmente, ou seja, ter criado um simulacro. Mas, a engenharia menardiana, capaz de demonstrar o caráter contingente do livro de Cervantes e ao mesmo tempo tornar a cópia infinitamente mais rica do que o “original”, traz inúmeros pontos de contato com o projeto deleuzeano e justifica o interesse do filósofo por um tal método. Até que ponto a lida com a História da Filosofia em Diferença e Repetição leva a cabo um tal método? Muito se escreveu acerca dos duplos de Deleuze e não será nosso intento engrossar essas páginas; antes, procuraremos pensar como ocorre no pensamento deleuzeano a apropriação de certas engenharias literárias, ou mais especificamente, como Menard integra o plano de imanência da filosofia de Deleuze. Para tanto, procuraremos apreender os elementos básicos da engenharia menardiana bem como sua operação no interior de alguns capítulos de Diferença e Repetição. Pierre Menard, em sua busca por reproduzir o Quixote “palavra por palavra e linha por linha” (BORGES, 1996, p.52), dispõe de um método que imagina ser relativamente simples, qual seja: “conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra os turcos, esquecer a história da Europa entre os anos de 1602 e 1918, ser Miguel de Cervantes” (BORGES, 1996, p.52). Ora, claro está que Menard deveria não apenas ser Cervantes, assumir a essência definidora de um tal homem, mas antes habitar o âmago do problema enfrentado por Cervantes, ser Cervantes como uma forma de imiscuir-se com as forças que atravessaram tal personagem. Guardadas as devidas proporções, temos aqui um primeiro ponto de contato considerável com a metodologia filosófica deleuzeana, esboçada, sobretudo, em seu primeiro livro, Empirismo e Subjetividade. Para Deleuze, cada ideia filosófica deve ser questionada não pelo que ela diz ou faz ou quer, por meio de uma psicologia ficcional das intenções do teórico (Deleuze, 2012); antes, devemos buscar “desenvolver até o fim as implicações necessárias de uma questão formulada” por um ou outro filósofo. Ao revisitar Hume, Deleuze não procura entender o que disse, fez ou quis esse empirista inglês, mas experimentar seu pensamento, levando as questões postas por esse pensador até as últimas consequências. No caso em questão, Deleuze chega à leitura de que em Hume, o dado jamais é constituído pelo sujeito – tal como é tido por certo pelo senso comum – e sim o contrário. As implicações disso para a imagem de pensamento almejada por Deleuze são consideráveis, mas não buscaremos discutir isso agora. Menard deseja algo similar: experimentar o Quixote, ou seja, vivenciar as implicações que conduziram Cervantes à atitude limite de escrever uma obra imortal. Contudo, esse empreendimento enfrentou muitos obstáculos. Menard percebe, logo em princípio, que um tal projeto demandaria uma atitude mais radical. Não se tornar um escritor do século XVII em pleno século XX, isso soaria como uma diminuição, mas “chegar ao Quixote mediante as experiências de ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br Pierre Menard”. Essa constatação, convém assinalar, marcou a primeira diferença visível no texto: a supressão do prólogo biográfico constante na segunda parte do Dom Quixote. Produzir um simulacro do Quixote em pleno século XX, levando em consideração os problemas e questões pertinentes a este século e não ao do “original” do XVII – e o uso de aspas se faz necessário, uma vez que a imortalidade da obra e a possibilidade de apropriações infinitas impedem que haja de fato um original –, apenas nos conduzem à uma constatação: o caráter contingencial do Quixote. Ou seja, o que resta da obra de Cervantes não é uma essência ou uma imagem a qual devemos nos reportar com reverência, mas a criação incessante de sentidos conforme se dá sua leitura. Desse modo, como não há recognição de uma obra anterior, resta apenas um gesto criativo: abertura de novas possibilidades interpretativas por meio da mera reprodução, simulação. Ora, desnecessário dizer que esse objetivo é similar àquele almejado por Gilles Deleuze em relação à História da Filosofia. Seu intuito jamais foi resgatar a essência do pensamento de Hume, Bergson, Nietzsche ou Spinoza, dizer aquilo que eles disseram, mas produzir algo novo, uma nova imagem do pensamento, ao dizer justamente aquilo que eles disseram. Menard fornece a metodologia perfeita para tanto. A reprodução de textos clássicos da filosofia em Deleuze ocorre por vezes de maneira literal, tal como ocorre com Aristóteles no primeiro capítulo de Diferença e Repetição, mas implicando o autor com uma história e um contexto que não era originalmente o dele – deslocando o texto, portanto. Esse procedimento, menardiano por excelência, é por vezes imperceptível, mas apenas possível ao retirar a filosofia do reino da doxa e transpô-la para um veio literário carregado de afectos outros. Apenas imiscuindo Quixote e Aristóteles, Deleuze consegue quebrar com a representação e conduzir nosso pensar para outras searas... quiçá, mais potentes. Referências Bibliográficas BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor do Quixote”. In: ___________. Ficções. Rio de Janeiro: Globo Editora, 1999. p.48-57. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. São Paulo: Graal, 2006. ____________. Empirismo e Subjetividade. São Paulo: Editora 34, 2012. ____________. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2009. ZOURABICHVILI, François. “L’écriture littérale de L’Anti-OEdipe”. In: CORNIBERT, N.; GODDARD, J.-C. (ed.). Ateliers sur L’Anti-OEdipe. Milão: Mimesis, 2008. p.247-2. ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br