ANTONIO LOPES FILHO TRANSFORMANDO A LEPRA EM HANSENÍASE A ÁRDUA TENTATIVA PARA A ELIMINAÇÃO DE UM ESTIGMA MONOGRAFIA APRESENTADA AO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM GESTÃO DE INICIATIVAS SOCIAIS DA COPPE - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO REQUISITO PARCIAL PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE ESPECIALIZAÇÃO. RIO DE JANEIRO 2004 ii LOPES FILHO, ANTONIO Transformando a Lepra em Hanseníase. A árdua tentativa para a eliminação de um estigma. [Rio de Janeiro] 2004 vii, 28, 29,7cm (LTDS/PEP/COPPE/UFRJ, Especialização, Gestão de Iniciativas Sociais, 2002. Monografia – Universidade Federal do Rio de Janeiro – COPPE 1. Lepra 2. Hanseníase 3. Preconceito 4. Estigma I. COPPE/UFRJ II. Título (série) iii AGRADECIMENTOS Muitas pessoas participaram, de alguma forma, para que este trabalho fosse produzido. Eu gostaria de destacar algumas, pela sua influência direta. Em primeiro lugar, a Deus, a quem busco servir e consagrar tudo o que faço. À minha esposa Creusa, pelas horas em que meu isolamento compulsório diante do notebook gerou interrupções e sacrifícios em nossos momentos de feliz e sólida vida a dois, cultivada ao longo dos últimos 25 anos. Ao Professor José Bittencourt, pelo seu incentivo inicial. Quando nem imaginávamos como começar, nos abriu, de forma didática e simpática, as portas para os primeiros traços do trabalho, principalmente através de seu, cuidadosamente elaborado, Manual. Aos Professores que, no encontro presencial, por dois dias nos balizaram para um trabalho bem elaborado, ouvindo-nos pacientemente e, de forma elegante, corrigindo nossas falhas. Finalmente, a minha gratidão à Professora Luciana Badin, minha orientadora, pelo incentivo que me deu desde o encontro presencial, quando ainda não sabia se estaria me orientando. Seu interesse pelo tema e a confiança que depositou em meu trabalho, foram elementos básicos para levantar o ânimo e a determinação. A todos os demais professores, coordenadores e atores do sistema SESI/COPPE que de forma direta e indireta me proporcionaram cursar a Especialização em Gestão de Iniciativas Sociais, a minha gratidão. iv RESUMO A lepra é uma doença que, de acordo com as pesquisas conhecidas, pode ter mais de 4.600 anos. Cercada de fatalidade mística, tida como castigo ou conseqüência do pecado, tem marginalizado as pessoas que a contraem durante todos esses anos. Impiedosamente depositados em catacumbas e leprosários, os doentes sofriam uma morte antecipada, onde o corpo continuava a sofrer o estado mórbido da alma. No século XX, com a descoberta do bacilo causador da doença, e com as pesquisas realizadas com drogas, gradativamente os pacientes de lepra foram vislumbrando um horizonte, onde a cura e a recuperação social se tornavam cada vez mais atingíveis, até que, com a introdução do tratamento poliquimioterápico, na década de 80, a cura foi finalmente alcançada. Muitas ações no Brasil, governamentais e da sociedade organizada, nasceram nos últimos 30 anos. Dentre elas, destacam-se a implementação do esquema de tratamento recomendado pela OMS com PQT, a legislação substituindo a utilização do nome lepra por hanseníase e as ações de organizações não governamentais, financiando projetos e sensibilizando autoridades e população para a reintegração da pessoa atingida pela hanseníase. Nosso trabalho pretende, de forma simples, mostrar a história dessa transformação e os primeiros resultados colhidos na transformação da lepra em v hanseníase. Pretendemos mostrar que embora a tarefa seja árdua, há compensações em se lutar contra o preconceito e o estigma que acompanham a doença ao longo do tempo. vi SIGLAS E ABREVIATURAS AIFO - Associazione Italiana Amici di Raoul Follereau, AIFO - Itália ALM – American Leprosy Missions - USA CERPHA – Comissão Evangélica de Reabilitação de Pacientes de Hanseníase DAHW - Deutsche Lepra-Tuberkulosehilfe (DAHW) - Alemanha IEDS – Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária ILEP – The International Federation of Anti-Leprosy Associations LEPRA - British Leprosy Relief Association, LEPRA Inglaterra M. Leprae – Mycobacterium leprae MORHAN – Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase NLR - Netherlands Leprosy Relief, NLR - Holanda OMS – Organização Mundial de Saúde (WHO) ONGs – Organizações não governamentais PQT – Poliquimioterapia RJ – Rio de Janeiro SES – Secretaria Estadual de Saúde SP – São Paulo WHO – World Health Organization (OMS) vii SUMÁRIO Apresentação 1 Capítulo 1 – A doença 5 Capítulo 2 – Transformando a lepra em hanseníase 13 Capítulo 3 – Estigma e preconceito – tratamento além da cura 21 Conclusão 26 Bibliografia 28 1 APRESENTAÇÃO Foi em 1974, meu primeiro contato com a lepra1. Contador, atuando como profissional liberal, tinha, entre meus clientes, uma organização não governamental, naquela época mais conhecida como entidade filantrópica, a CERPHA – Comissão Evangélica de Reabilitação de Pacientes de Hanseníase. A CERPHA, era um pequeno escritório “facilitador”, no Brasil, do trabalho da ALM – American Leprosy Missions, uma organização norte-americana, de fundamentos cristãos, que desde 1906 arrecada recursos de pessoas físicas e jurídicas, nos Estados Unidos, para financiamento de projetos de combate à hanseníase no mundo. Comecei a entender a lepra, através da elaboração dos orçamentos anuais para os projetos. O Rev. Jorge Oliveira de Macedo2, à época do envio de orçamentos para a ALM, convidava-me para assessorá-lo na elaboração dos mesmos. Através das necessidades do campo, íamos construindo os projetos e, ao fazê-lo, eu conhecia, gradativamente, e à distância, a lepra. De 1974 a 1985, conheci uma lepra de tratamento longo, já à base da sulfona, com esperança de cura, onde os pacientes diagnosticados o iniciavam, porém sem prazo definido para alta. A expectativa, na maioria das vezes, era de tratamento para o resto da vida. As deformidades causadas pela ação do bacilo no sistema nervoso 1 Atualmente denominada hanseníase. Jorge Oliveira de Macedo foi Secretário Executivo da CERPHA até junho de 1992, quando se aposentou como Superintendente Geral. 2 2 periférico3, progrediam. Os paciente eram internados em hospitais-colônia. No Ministério da Saúde, o órgão responsável pelo controle e normatização das ações contra a lepra denominava-se Divisão Nacional da Lepra. Já no início da década de 80, o termo hanseníase passou a fazer parte do vocabulário dos profissionais de saúde. A CERPHA tinha sua atuação centrada na reabilitação física, financiando oficinas ortopédicas em diversos estados do Brasil, que, de forma artesanal, preparavam próteses e adaptação de calçados para proteção dos pés insensíveis4 dos portadores de hanseníase. Em 1985, o Ministério da Saúde do Brasil determinou a utilização do tratamento recomendado pela OMS - Organização Mundial de Saúde através da PQT poliquimioterapia5 que proporciona a cura da hanseníase em um período máximo de 2 (dois) anos. Em 1986, fui convidado a assumir a Superintendência de Administração da CERPHA em tempo integral. Nessa ocasião, a ALM, representada pela CERPHA, assinou convênios tri-partite com o Ministério da Saúde e com as Secretarias Estaduais de Saúde para financiamento do Projeto Nacional de Implantação do Tratamento PQT6, onde foram treinadas equipes de Centros Nacionais de Referências7. 3 O bacilo ataca os nervos das extremidades da pele, principalmente nos pés, mãos e face. O bacilo M. Leprae, ao danificar o sistema nervoso periférico, causa a insensibilidade e, por causa desta, as mãos, pés e face sofrem danos resultando em atrofia, úlceras e mutilações. 5 Combinação de três drogas: Dapsone, Clofazimine e Rifampicina em doses auto-administradas e supervisionadas. 6 Abreviação do termo “poliquimioterapia”, utilizada nos documentos e literatura sobre o tratamento. 7 Unidades regionais com equipes completas em condições de implementar o tratamento e o controle dos pacientes. Normalmente uma equipe ideal é formada de médico(a) dermatologista, enfermeiro(a), auxiliares de enfermagem, laboratorista, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional. 4 3 Participando de reuniões com autoridades de saúde, avaliações de programas e visitas de campo, tive contato direto com a hanseníase e suas conseqüências sociais. No campo, ouvindo o paciente e o profissional de saúde, vendo o tratamento ser ministrado, assistindo as sessões de curativo e tratamento de úlceras, presenciando o exame inicial e o diagnóstico das pessoas atingidas pela hanseníase, tocando o paciente – e como o toque é importante - aprendi sobre a doença. Mais ainda, participando do momento emocional da transmissão do diagnóstico ao paciente e comovendo-me com as reações atônitas de seus parentes próximos, pude, real e literalmente, me envolver com a hanseníase. Eu ví a lepra de perto e senti os seus efeitos. Ouvi os lamentos dos seres humanos que ao serem informados que possuíam uma doença curável em dois anos, contrastando com a agradável surpresa da cura iminente, eram “contaminados”, pelo preconceito arraigado na sociedade. “Contagiados” por uma doença conseqüentemente muito pior, incurável e segregadora: o estigma. Este, acompanha o cidadão que um dia foi, e não mais está, contaminado pelo bacilo M. Leprae8, possivelmente para o resto de sua vida como uma marca. Uma marca profunda que não dói na pele, porque a esta não chegou a atingir, graças ao tratamento tempestivo, mas dói na alma, a dor aguda da “marca a ferro e fogo” como a gritar: leproso! Diante da espetacular virada do século XX, com a descoberta do tratamento que cura e das mudanças promissoras de um futuro “limpo” para o antigo leproso “imundo”; Frente às modificações no comportamento das autoridades e da sociedade, 8 Denominação científica do Mycobacterium leprae, bacilo que provoca a hanseníase. 4 que hoje chama de hanseníase à lepra incurável, é que me proponho a elaborar este trabalho. Nele pretendo contar um pouco da história dessa mudança, através da minha experiência pessoal junto às autoridades sanitárias, às pessoas atingidas pela hanseníase com seus desesperos, esperanças e vitórias e também com as pessoas imbuídas de amor ao próximo, profissionais de saúde e doadores de recursos, que mais por paixão que por compaixão, moveram as engrenagens que estão transformando a lepra em hanseníase. Não ouso um trabalho científico. Me atrevo a contar a história do que vi e ouvi. Este simples trabalho apresenta a doença como eu a conheci, conta as transformações que presenciei e mostra um pouco das dificuldades que foram enfrentadas e que ainda se apresentam, fruto do preconceito, diante das pessoas atingidas pela hanseníase. 5 CAPÍTULO 1 A DOENÇA Origem A lepra é uma doença muito antiga. Definir quando se tornou conhecida é uma tarefa difícil, devido às características que foram “moldando” a lepra contemporânea. Já nos primórdios dos tempos bíblicos há referências à lepra, embora sejam conhecidos, hoje, fatores diferenciadores entre a lepra bíblica, mais abrangente e o “mal de hansen” 9 com especificidade cientificamente determinada. “O termo “lepra” apareceu na bíblia pela primeira vez na Septuaginta, aproximadamente 200 a.C. A Septuaginta é uma tradução do Antigo Testamento hebraico para o grego pelos 72 sábios reunidos em Alexandria. Estes sábios eram anciãos judeus, bem familiarizados com os costumes e práticas da comunidade judaica. Diante do termo não traduzível tsaraath estes sábios... buscaram a maior proximidade disponível na língua em que eles estavam traduzindo. Eles escolheram “lepra”. (ALM – 1998) A maioria dos historiadores contemporâneos referem-se à lepra como originária da India no século XV a. C., mas há indícios da doença na China, aproximadamente no ano 2.600 a. C. “...há referências bastante claras com relação à Hanseníase em livros muito antigos. Ao que parece, essa doença 9 Ou hanseníase como é conhecida a doença em nossos dias. Esse nome é relacionado ao pesquisador norueguês em microbiologia que isolou o bacilo da lepra – o M. Leprae, no século XIX. 6 já era conhecida na Índia em 1500 a.C., e no Regveda Samhita (um dos primeiros livros sagrados da Índia), a Hanseníase é denominada de KUSHTA. Contudo, na China, referências muito antigas sobre essa doença, como aquela que é feita em um dos tratados médicos chineses mais antigos, o Nei Ching Su Wen, dão conta de descrições compatíveis com pacientes portadores de Hanseníase, por volta de 2600 a.C . (Ghidella, 2003)” Historicamente, a lepra é conhecida, através dos tempos, como uma doença cercada de fatalidade mística. Pregada como fruto do pecado, como castigo, ela solidificou o estigma que veio “marcando” as pessoas por ela atingidas com o marginais quase que sem caráter humano. Na Bíblia Sagrada, a Lei Mosaica determina que os portadores da lepra deveriam ser isolados do convívio social e declarados impuros. DANIELSSEN, (1848) citado por ARVELLO (1997) a eles se refere como os que “merec em as cerimônias dos defuntos e são verdadeiros mortos em vida”. Diz ainda, referindo-se aos doentes de lepra no passado, ARVELLO (1997): “Durante as guerras, são eliminados sem piedade nos países ocupados; são queimados para purificar seu corpo e sua alma e os leprosários servem mais para isolá-los, para seqüestrá-los da vida do que para curá-los.” 7 Características e formas clínicas Chegamos ao século XX e a lepra continua uma doença com características singulares, sem conhecimento de cura e sendo “ tratada” em estabelecimentos de saúde especiais, os conhecidos leprosários, autênticos depósitos de doentes cujos muros são verdadeiras fronteiras, a isolar o desconhecido. Esse isolamento, em parte, é responsável pelas lendas e histórias fundamentadas no desconhecido. Somente aqueles que atravessaram essas fronteiras, hoje extintas, conheceram essa enfermidade. Suas características se compõem de lesões dermatológicas visíveis e definidas. Primariamente, é provocada pelo bacilo Mycobacterium leprae, ainda não cultivável. Não é hereditária e seu desenvolvimento depende do sistema imunológico da pessoa infectada. A fonte de contágio é o ser humano e aquele se dá pelo contato com a pele e pelas vias aéreas superiores10, tanto a eliminação como a contaminação. O bacilo tem um crescimento lento e o desenvolvimento da doença pode levar até 15 anos. A hanseníase possui formas clínicas, derivadas de duas principais: a paucibacilar11, que se manifesta através de poucas manchas dormentes, esbranquiçadas ou avermelhadas e a multibacilar12, a forma contagiosa cujos pacientes sem tratamento, eliminam os bacilos através do aparelho respiratório superior (secreções nasais, gotículas da fala, tosse, espirro). O paciente em tratamento regular ou que já recebeu alta, não transmite.13 10 A mucosa nasal. Paucibacilar significa poucos bacilos. 12 Multibacilar significa uma grande quantidade de bacilos. 13 GALLO. 2004. 11 8 De acordo com GALLO (2004), os sinais e sintomas mais freqüentes são: a) sensação de formigamento, fisgadas ou dormência nas extremidades. b) manchas brancas ou avermelhadas, geralmente com perda da sensibilidade ao calor, frio dor e tato; c) áreas da pele aparentemente normais, que têm alterações da sensibilidade e da sudorese; d) caroços e placas em qualquer local do corpo; e) diminuição da força muscular (dificuldade para segurar objetos). Diagnóstico e tratamento O diagnóstico clínico é feito através de exame da pele e dos nervos periféricos. Excepcionalmente, conforme GALLO (2004) são feitos exames laboratoriais como baciloscopia e biópsia cutâneas. Até meados do século XX, não havia tratamento. Os doentes eram totalmente isolados do convívio social e familiar em depósitos humanos conhecidos como leprosários. Apesar desse isolamento, casos novos de lepra continuavam a surgir no seio da sociedade. A partir dessa constatação, pesquisas começaram a ser realizadas e o desenvolvimento de medicamentos quimioterápicos trouxeram um avanço no tratamento. Até a década de 40, no século passado, a doença era tratada com óleo de chaulmoogra, medicamento fitoterápico natural da Índia, que era administrado através de injeções ou por via oral. Este medicamento, aliado ao isolamento, eram as formas de se tratar a hanseníase (GALLO, 2004). No final da década de 40, passou-se a utilizar a sulfona nos pacientes internados, buscando a eliminação do bacilo M. Leprae. Esse 9 tratamento resultou nas primeiras conclusões de que o isolamento do paciente não era o tratamento ideal. “Um outro dado importante neste contexto foram as deliberações apresentadas ao final do 7º Congresso Internacional de Lepra, realizado em 1958, em Tóquio, e que refletem este momento vivido pela ciência: foi ratificado que a forma de contágio não era hereditária e havia possibilidade de cura com os antibióticos e sulfas. O isolamento em leprosários não deveria ser mais recomendado como fundamental no tratamento da hanseníase, pois os medicamentos químicos dariam ao paciente o bem estar necessário, fora dos muros do leprosário.” (GALLO, 2004) grifo meu. Em 1962, através de decreto 968 de 07/05/6214, o Brasil considerou extinto o isolamento do paciente para o tratamento da lepra. Na década de 70, a OMS recomenda ao Brasil o tratamento com PQT, o que veio a ser implementado gradualmente, por decisão do Ministério da Saúde, a partir de 1985. 14 GALLO, 2004 10 Dados da doença no Brasil e no mundo O Brasil é o segundo país, no mundo, em casos de lepra, ficando atrás apenas da Índia. Os dados oficiais mais recentes da OMS, indicam que no mundo, existiam ao final de 2002, 443.608 casos em registro ativo15. Destes, 344.377 na Índia e 71.139 no Brasil. Os demais casos localizavam-se em países da África e Ásia. Dois principais índices são considerados no controle dos dados da lepra no mundo: prevalência16 e incidência17. De acordo com as normas da OMS, para que a doença seja considerada eliminada como problema de saúde pública, é necessário que esse índice seja igual ou menor do que 1/10.000. A tabela abaixo nos mostra a situação mundial da doença, em 31/12/2002, conforme dados da OMS: Países com alta endemia no início de 200318 Região Índia Brasil Madagascar Moçambique Nepal Tanzânia TOTAL 15 Casos registrados ao final de 2002 (razão por 10.000) 344.377 71.139 6.602 7.136 7.291 7.063 443.608 (3.3) (4.1) (4.0) (3.6) (3.0) (2.1) (3.4) Casos novos diagnosticados em 2002 (razão por 100.000) 473.658 (46.0) 38.365 (22.3) 5.482 (33.4) 5.830 (29.1) 13.830 (56.5) 6.497 (19.0) 543.662 (41.9) A hanseníase é uma doença controlada por notificação compulsória, ou seja, ao ser diagnosticada, deve ser notificada às autoridades de saúde que as mantém em registro individual. 16 Prevalência – indica a quantidade de doentes em registro ativo. O índice mede a quantidade de casos por 10.000 habitantes. 17 Incidência – refere-se aos casos novos detectados no ano. O índice mede a quantidade de casos novos por 100.000 habitantes. 18 WHO, Leprosy Elimination Project: Status Report 2003. Geneva. 2004 11 A história da lepra, no Brasil, demonstra uma mudança profunda nos dados controlados pelo Ministério da Saúde, com um impacto extremamente positivo graças às ações desencadeadas no ano de 1985 com a implantação da PQT. Com isso, a prevalência, que era de pouco mais de 16/10.000, caiu para pouco mais de 4/10.000 em 2002. Quanto à incidência, ou casos novos detectados anualmente, a curva apresenta-se estável e em ligeira ascendência, devido às ações de busca ativa19. Essa ascendência na curva da incidência é vista positivamente e tende ao declínio futuro, quando toda a população estiver sob controle endêmico. Na tabela abaixo, podemos ver as curvas da prevalência e da incidência, no período de 1985 a 2002. BRASIL: Dados progressivos da prevalência e da incidência 19 Busca ativa é a denominação das ações desencadeadas pelos profissionais de saúde junto à comunidade, através de campanhas, investidas programadas e convites aos parentes e pessoas de convívio próximo dos pacientes. 12 De acordo com a OMS, a lepra, ou hanseníase, será considerada eliminada como problema de saúde pública, quando a prevalência alcançar o índice 1/10.000, ou seja, um doente para cada 10.000 habitantes. Dois estados brasileiros já eliminaram. São eles Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Por outro lado, estados como Mato Grosso, Amazonas e Pará, ainda mantêm uma taxa elevada. Sendo o Brasil um país de grandes contrastes, inclusive em características de vida regionais, os cuidados ainda demandam atenção, principalmente nas regiões norte, nordeste e centro-oeste. Podemos afirmar que o Brasil está prestes a alcançar a eliminação doença como problema de saúde pública. Aliás, já o teria alcançado, não fossem as interrupções dos programas nacional, estaduais e municipais, pela visão, sem foco, das autoridades governamentais, que os vêem apenas com os olhos dos benefícios políticos de curto prazo e, conseqüentemente priorizando “lucros” advindos de programas outros com forte apelo emocional e dividendos em votos. Há um velho jargão que transita no “ambiente” da hanseníase: “lepra não dá voto!” Conseqüências: Orçamentos públicos que não saem do papel, desencadeando interrupções de ações de ponta e falta de infraestrutura básica como equipes médicas e remédios. Não fossem os recursos injetados, fartamente, pelas organizações não governamentais, ainda estaríamos apresentando índices de prevalência e incidência desanimadores. Mas, obstáculos são desafios. Não podemos negar que estamos vislumbrando os dias bons, quando a lepra será história e a hanseníase lembrança. 13 Capítulo 2 TRANSFORMANDO A LEPRA EM HANSENÍASE Em 1995, o governo brasileiro, legislou proibindo a utilização do termo “lepra” em “ documentos oficiais da Administração centralizada e descentralizada da União e dos Estados-membros” 20. A partir de então, o termo designativo para a doença passou a ser “hanseníase”. Tal medida, fez parte de ações conjuntas dos órgãos governamentais de saúde, das organizações da sociedade civil atuando no combate à doença, dos profissionais de saúde e assistência social e de movimentos ativistas de pessoas atingidas, também, pela doença. Na verdade, essas ações fizeram parte de um movimento ainda de maior contexto, nascido a partir da implementação, em 1985, do tratamento da hanseníase com poliquimioterapia – PQT, combinação de três drogas, a saber: Rifampicina, Dapsona e Clofazimina21. Esse tratamento proporciona a cura da doença em um prazo de seis a vinte e quatro meses, dependendo do tipo clínico. Mas, até que esta nova era para uma doença e para as pessoas por ela atingidas chegasse, há uma história triste de sofrimento, preconceito e profundas marcas! Eis o impressionante diálogo entre dois marujos de um veleiro ao passar, defronte a ilha de Molokai22, no oceano Pacífico, em uma cena do filme Molokai – A Ilha Maldita: 20 Lei 9.010 de 29 de março de 1995 – “Dispõe sobre a terminologia oficial relativa à hanseníase e dá outras providências” 21 Ministério da Saúde – “Normas Técnicas para a Eliminação da Hanseníase no Brasil” – Brasília - 2001 22 Molokai, ilha do arquipélago do Havai, local para onde, no século XIX, eram enviados compulsoriamente os doentes de lepra da região. 14 “ Personagem 1: - A podridão! Personagem 2: - Coisa pior do que essa não deve existir (cospe). Personagem 1: - Cuidado homem! Não queremos terminar nessa terra. Personagem 2: - Prefiro virar comida de tubarão e que meu nome fique maldito para sempre, antes de colocar meus pés nesses rochedos” (MOLOKAI A ilha Maldita, 1959) A lepra é mais do que uma doença. É um mito do terror! Através da história da humanidade, carregou consigo, as marcas da punição, do pecado, do desprezo, do imundo, da marginalização e até do deboche através de piadas de gosto duvidoso. Ainda quando criança, escutei que a lepra era uma doença que apodrecia o corpo, que se perdia em pedaços. A curiosidade pelo bizarro, provocou, nos seres humanos através dos tempos, uma imagem terrível de uma doença que hoje sabemos ser resultado, como outras, de deficiências imunológicas combinadas com falta de higiene e, conseqüentemente, proliferação de bacilos. 15 Abro a minha Bíblia Sagrada. Época: 1450 – 1410 a. C. Livro de Levítico23. Do capítulo 11 ao 27, encontro uma série de leis sobre a pureza. O capítulo 13 é relacionado à lepra. Ao ler este capítulo pela primeira vez, o indivíduo é tomado por um misto de surpresa e espanto. “Quem ficar leproso, apresentando quaisquer desses sintomas, usará roupas rasgadas, andará descabelado, cobrirá a parte inferior do rosto e gritará: - Impuro! - Impuro! (Levítico 13:45) Mas há que se ter cuidado na interpretação sobre o contexto e o momento em que este foi escrito. Também deve-se considerar o processo de tradução dos textos originais bíblicos. No hebraico a palavra tsaraath não denotava uma doença específica, mas aparentemente incluía outras afecções. A palavra referia-se principalmente a “ imundice”, associada às proibições de marcas e manchas. Por exemplo para que um animal fosse sacrificado, ele deveria ser perfeito, se não fosse, ela era um tsaraath. Se uma pessoa tivesse qualquer dermatose ou erupção na pele esta pessoa era considerada um tsaraath. (ALM, 1998) 23 Levítico, título em Português, derivado da tradução grega do Antigo Testamento (a Septuaginta) que significa “relativo aos levitas”. O livro de Levítico, embora seja um manual para os sacerdotes (que eram da tribo de Levi), muitas de suas leis dizem respeito a todos os israelitas. O livro de Levítico faz parte dos cinco livros da Bíblia Sagrada denominados o Pentateuco (livros da lei). 16 Ano de 1988. Em uma de minhas inúmeras visitas ao Hospital Estadual Curupaiti24, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, pude conversar com o Sr. J.25, um homem passando dos 70 anos, mas com aparência de 90. Estava sentado em uma rústica cadeira de rodas, seu único meio de locomoção. Pernas amputadas, resultado do avançado grau de deformidades causados pela insensibilidade, que por si gerou as úlceras plantares26 e estas, gangrenadas, provocaram a série de amputações gradativas. Na extremidade de um dos braços, uma ponta de amputação cicatrizada de forma rude à altura do punho. O outro braço, um pouco maior, terminando com uma mão em garra, mirrada, cujos dedos irregulares e disformes, assemelhavam-se a cinco pequenos caroços, alguns com milimétricos cacos de unhas. Na face, atingida pelas atrofias que deformaram seu nariz, pálpebras e orelhas, um grosso óculos escuros de lentes pretas escondiam seu olhar sem vida e sem brilho. A lepra também tirara a visão do Sr. J. Contou-me ele: “Fu i mandado de casa, no nordeste, para cá com 17 anos. Meu pai me embarcou em um navio e me disse que eu viria a um médico para tratamento no Rio de Janeiro e que voltaria. Eu estava muito debilitado, também por uma pneumonia não curada. Foi uma longa viagem que fiz, sustentado pela certeza da volta para o seio da família. Nunca mais voltei. Com lepra, fui internado neste hospital e daqui não mais saí. Passei por todos os tipos de tratamento. Hoje, não carrego mais o bacilo. Tomo o remédio que cura27. Mas esse remédio chegou tarde para mim. 24 O Hospital Estadual de Curupaiti, em Jacarepaguá, foi, no passado uma das maiores colônias de doentes de lepra do Brasil. Hoje, transformado em hospital geral com especialização em hanseníase, abriga o IEDS – Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde do RJ. A área utilizada pela antiga colônia foi doada aos antigos pacientes portadores de sérias incapacidades físicas pelo Governo do Estado. É a chamada área asilar. Dentro dessa área também se encontram os pavilhões que abrigam os antigos pacientes com sérias deformidades. 25 J. representa um nome fictício para o personagem real, poupado de identificação por ética profissional. 26 Feridas nas solas dos pés, às vezes profundas, permitindo até a exposição dos ossos. 27 O Sr. J. refere-se ao tratamento PQT. 17 O Sr. J. casou-se dentro do leprosário. Atrás dos muros delimitadores das colônias, os costumes, dentro das possibilidades, eram seguidos como na sociedade normal. Havia a igreja, a escola, o clube, o cinema, os esportes, e em alguns, o cassino. E assim corria a vida dentro das colônias. O Sr. J. teve uma filha. Mas sobre ela não teve o pátrio poder. Ela foi-lhe extraída e enviada ao preventório28, onde eram colocadas todas as crianças, filhas de leprosos, desde o nascimento, para evitar o contato com a doença. O Sr. J. não mais teve contato com sua filha. Contou-me o Sr. J. que só a viu um dia e assim mesmo de longe. Foi no dia do casamento dela. Ele, vivendo em condições de acesso à sociedade por força de lei que extinguiu o isolamento em 1962, mas, ao mesmo tempo segregado pelos “muros” do preconceito e da incapacidade de locomoção que o limitaram ao “território” do Curupaiti 29, contando com a ajuda caritativa de amigos anônimos, conseguiu chegar à frente da igreja na qual sua filha contraía matrimônio. Do lado de fora, do outro lado da rua, pôde ver, comovido, parte de si seguir a vida normal que a lepra a ele não permitiu. O Sr. J. já não vive, mas viveu o suficiente para assistir, sem ver, o início da transformação da lepra em hanseníase. Ele morreu já sabendo que não teve lepra, mas hanseníase. Ele se foi, consciente de que a geração de pessoas atingidas pela hanseníase de hoje, não terá seus membros amputados. Nem ao menos deformados. Não terão que se locomover por cadeiras de rodas, nem cobrirão os olhos. Não serão chamados de imundos, lazarentos, morféticos. Isso é muito bom. É comovente. Eu conversei com o 28 Instituição onde são internadas crianças filhas de tuberculosos ou morféticos (leprosos) para afastá-las do contágio (Dicionário Aurélio, 1999) 29 Hospital Estadual Curupaiti, antiga colônia de leprosos, hoje Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária, onde funciona um centro de referência nacional para pesquisas e tratamento da hanseníase. 18 Sr. J. várias vezes. Eu sei que ele morreu feliz. A propósito, o Sr. J. tinha sempre um simpático sorriso nos lábios. Nunca o vi triste. Incrível! A lepra dos leprosários, dos preventórios, do isolamento, das deformidades, das úlceras, começou lenta e gradualmente a dar lugar à hanseníase. Sem dúvidas, a mudança do nome ajudou. Até porque o “terrível” conhecido é pior do que a novidade desconhecida. Mas há que se cuidar para que não apresentemos essa mudança com um tom de eufemismo. É obvio que a simples mudança de um nome não traz solução para uma terrível marca. Há que se fazer acompanhar a mudança com ações concretas e práticas de conscientização, verdade, informação e sedimentação. E, a história mostra que mudanças tais, vindas de autoridades governamentais, “recheadas” de usuais “temperos” político -demagógicos, trazem um “sabor” de desconfiança. Neste ponto, entram as organizações não governamentais, saídas do seio da própria sociedade organizada, da comunidade e dos movimentos de base, contando ainda com o suporte de outras organizações internacionais co-irmãs que representam um papel preponderante no sucesso da transformação. Com o apoio técnico e financeiro das ONGs30 o Ministério da Saúde e as Secretarias Estaduais de Saúde do Brasil desenvolveram, paralelamente à implementação do tratamento PQT, ações de educação em saúde para as pessoas atingidas pela doença e para a comunidade em geral. 30 ONG – Organização Não Governamental 19 No período compreendido entre 1986 e 2001, realizei mais de 100 (cem) visitas de campo31. Foi uma experiência extraordinária. Embora a doença fosse a mesma, o cenário era o mais variado. Visitei muitos centros de saúde das grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza, Cuiabá, Curitiba e outras, onde as instalações, embora precariamente conservadas pelas autoridades governamentais, permitiam a atuação de equipes completas de atendimento aos pacientes e ex-pacientes, inclusive com atendimento laboratorial. Também estive nos municípios pequenos e pobres, com postos precários, em casas de madeira, com deficiência de equipes, mas com um bom impacto no tratamento dos pacientes da região, muitos viajando quilômetros à pé para tomar a dose supervisionada32. Também conheci as longas viagens do Bill Woods33 e da Irmã Ângela34 pelos rios da Amazônia, debaixo de chuva e sol, a distribuir nas populações ribeirinhas, em viagens que não duravam menos do que 20 dias, as embalagens de filmes fotográficos que, após o uso, transformavam-se em práticos frascos de remédios, nos quais eram colocados, em tiras de esparadrapos, os nomes dos pacientes e a dosagem. Cada viagem era uma aventura. Aventura portadora da cura! Graças às viagens do Woods e da Irmã Ângela, os índices de prevalência da hanseníase na Amazônia estão sendo “derrubados”. 31 Visitas aos projetos financiados por nossa organização alocados em todos os 27 estados da federação. Dose do tratamento PQT, tomada mensalmente na presença de um profissional de saúde, quando também são entregues as cartelas com os remédios a serem tomados em casa. 33 Dr. William John Woods, médico irlandês que chegou ao Brasil na década de 60 como missionário cristão e aqui decidiu estudar medicina em Manaus e no Rio de Janeiro, tornando-se um grande hansenólogo, especialista em oftalmologia. Foi, por muito tempo, Coordenador do Programa de Hanseníase do Estado do Acre. 34 Maria Ângela Alcade Torrecilla, enfermeira de origem Espanhola, missionária católica atuante em Manaus, tendo também ocupado por várias vezes o cargo de Coordenadora do Programa de Controle da Hanseníase do estado do Amazonas e de Diretora do Instituto de Dermatologia Tropical Alfredo da Matta, em Manaus. Irmã Ângela hoje está aposentada, mas... continua atuando como voluntária no combate à hanseníase. 32 20 Como em todo o mundo, hoje podemos dizer que a terrível lepra não passa de uma doença curável chamada hanseníase e que, se detectada precocemente, não deixará marca nenhuma além das anotações inseridas na ficha do posto de saúde. 21 Capítulo 3 ESTIGMA E PRECONCEITO Tratamento além da cura “Os doentes ficavam à beira do caminho a coletar as moedas que os passantes atiravam das janelas dos carros, sem parar, porque naquele lugar, até o ar era contaminado pela presença dos míseros leprosos” (Trecho da narração do documentário “Onde mora a Esperança”, ILSL, 1940) A doença tem cura. Está sendo eliminada, no mundo, como problema de saúde pública. Quebrada a cadeia de transmissão, ela passa a ser uma doença sem conseqüências epidemiológicas, tratada de forma ambulatorial e totalmente controlada. Tudo isso é real. Faz parte de nossos dias. Podemos então ficar tranqüilos e esquecer? Não. Há uma “doença” arraigada no seio da sociedade, que infelizmente não pode ser tratada com drogas ou terapias. Falo do preconceito, célula básica do estigma que eterniza doenças curadas, “pecados” pagos e penas cumpridas. Década de 80. Em visita a um dos centros de referência para o tratamento da hanseníase e da tuberculose na baixada fluminense - RJ, entro em uma sala em processo de reforma, que em passado recente estava equipada de forma preconceituosa para o atendimento médico de pacientes de ambas as doenças. Os chamados “parlatórios”, onde os médicos atendiam os pacientes atrás de uma proteção de vidro. 22 O processo de quebra do preconceito é lento. Na sociedade, no próprio paciente e em sua família e também nos profissionais de saúde. Tive oportunidade de conversar com médicos e enfermeiros que, apesar dos estudos, pesquisas e comprovações sobre a cura da hanseníase, ainda mantêm dúvidas. Procuram esconder ou disfarçar seus medos e temores. Mantêm hábitos sutis de proteção. Haviam, em um passado bem recente, quando a cura já era conhecida, salas de atendimento médico cujas cadeiras onde os pacientes sentavam eram acorrentadas às paredes, para manter, de uma forma velada, o paciente a distância “segura” do profissional. Há que se utilizar o tratamento do preconceito e do estigma. Ele será longo e penoso. Mas é preciso que se utilize. Aliás, ele já está em plena utilização e eu o tenho presenciado. Trata-se do tratamento além da cura. Temos assistido ao progresso lento mas gradativo do processo de sensibilização da sociedade e dos profissionais de saúde, que aos poucos vai vencendo o preconceito e amenizando a visibilidade do estigma. Primeira metade da década de 90. Em uma de minhas visitas ao Estado do Amapá, onde nossa organização estava viabilizando um projeto de financiamento de capacitação das equipes de saúde para o tratamento e a prevenção da hanseníase, me foi relatado pela Coordenadora do Programa Estadual de Dermatologia Sanitária, um fato acontecido durante um curso de capacitação de uma equipe de um posto de saúde proveniente de uma cidade do interior do estado. A médica responsável pelo posto de saúde, pediatra, no primeiro dia de treinamento, ao ter contato com as formas da 23 hanseníase e ouvir sobre os exames dermatológicos e neurais35 a serem realizados nos pacientes foi categórica: “ – Eu não colocarei minhas mãos em leproso!” O curso decorreu normalmente durante duas semanas. A equipe foi sendo sensibilizada e conhecendo melhor sobre a doença, seu tratamento e sobretudo, aprendendo a lidar com a situação preconceituosa remanescente, mesmo após a cura. Voltaram para a cidade do interior. Contou-me a Coordenadora Estadual que, pouco mais de um mês após o curso, um automóvel estaciona diante do Centro de Referência de Macapá, onde os casos mais difíceis de serem diagnosticados são examinados por equipe de profissionais e exames complementares são realizados para que se tenha um diagnóstico correto. Do carro, sai a médica “que disse não colocar as mãos em leproso”, conduzindo pelos braços uma senhora paciente de hanseníase, para confirmar o diagnóstico. Sim, a Doutora não estava colocando suas mãos em leproso. Ela estava “abraçando” uma pessoa portadora de hanseníase, em demonstração clara de que havia vencido o preconceito em menos de 60 dias. Ela havia percebido que de há muito, a lepra havia se transformado em hanseníase e que o melhor tratamento após a cura é o toque. O toque que derruba preconceitos. O toque que “apaga” estigmas. O estigma é a causa principal do prejuízo sócio-econômico que as pessoas afetadas pela hanseníase experimentam. Superar este estigma é passo essencial para a reintegração na sociedade36. 35 Um dos exames neurais é realizado através de pressão exercida com os dedos sobre os nervos da parte posterior do braço. É importante a sensibilidade do examinador ao espessamento do nervo, sintoma da inflamação causada pelo bacilo. 36 ILEP – “ Guia para a Reabilitação Sócio-Econômica das Pessoas Afetadas pela Hanseníase – Londres – 1999. 24 Hoje temos no Brasil ONGs que canalizam seus esforços não no sentido de promover a cura da hanseníase, que já vem sendo promovida com sucesso pelo Ministério da Saúde e pelas Secretarias Estaduais e Municipais de saúde, mas com foco na reabilitação integral37 da pessoa atingida pela hanseníase. Das que tive contato e que desenvolvem projetos de reintegração social acompanhados de ações de sensibilização e conscientização, destaco: MORHAN, ALM, DAHW, AIFO, LEPRA e NLR. Em 1994, durante uma visita de supervisão aos projetos financiados pela American Leprosy Missions no Estado de São Paulo, estivemos no centro de referência de tratamento da hanseníase na cidade de Taubaté. Ali, entrevistamos alguns pacientes e seus familiares e conversamos com os profissionais de saúde daquela unidade. Através de uma das Assistentes Sociais, trabalhando com os pacientes em tratamento PQT e seus familiares, soubemos que haviam dez pessoas atingidas pela hanseníase trabalhando na fábrica de uma das grandes montadoras de veículos naquela cidade. E para uma feliz surpresa, dois desses pacientes trabalhavam no refeitório daquela fábrica. Um dos maiores exemplos que gosto de utilizar sobre integração social e derrubada do preconceito, foi dado por Jesus Cristo durante seu ministério terreno, quando quebrando todas as atitudes preconceituosas e hipócritas da época, conviveu no ambiente de um leproso - Simão. Alguns estudiosos e intérpretes da Bíblia levantam a hipótese de Simão ter sido um dos leprosos curados por Jesus38. Mas isso não está nas escrituras. Outros interpretam Simão como curado, mas ainda mantendo o estigma do leproso. Diz o texto: 37 Reabilitação integral, também denominada holística, trabalhando os aspectos sociais, econômicos,emocionais e espirituais. 38 Bíblia Sagrada, Evangelho de Lucas 17:11-19 25 “E stando Jesus em Betânia, reclinado à mesa na casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele certa mulher com um frasco de alabastro contendo um perfume muito caro...” (Marcos 14:3) Ora, em uma época quando os leprosos eram tratados como imundos e assim deveriam se identificar aos gritos, o Mestre Jesus Cristo dá o exemplo de integração social, sentando-se à mesa com uma pessoa atingida pela hanseníase. Muito ainda há que se fazer. O preconceito é uma das piores doenças da humanidade. Seu combate se dá através de ações de sensibilização, informação e vigilância, constantes e incansáveis. Suas raízes são resistentes, mesmo além da cura. Inegavelmente, podemos afirmar que testemunhamos uma nova era. Um novo tempo em que as pessoas outrora desesperançadas a esperar dia a dia o seu fim através de um apodrecimento material e social, hoje podem olhar com certeza para esse quadro como sendo uma pintura de uma era de terror e dor já ultrapassada. A cura existe! As deformidades podem ser evitadas. O convívio social já é real. A lepra se transformou na hanseníase, doença às vésperas de ser considerada eliminada como problema de saúde pública no Brasil. 26 CONCLUSÃO A lepra, durante séculos aterrorizou a humanidade de forma cruel. Foi considerada castigo pelos pecados, punição divina, carma, necessidade de purificação espiritual e outras formas de justificativas. O sofrimento imposto aos portadores da doença passou dos limites humanos suportáveis da dignidade e da resistência. A marginalização cruel e injustificada, “carimbou” a doença com um estigma de raízes profundas, alimentadas pela seiva do preconceito que se multiplica na humanidade, inclusive em nossos dias, de forma geométrica. O leproso imundo do passado, apedrejado e segregado em catacumbas e depósitos semelhantes a aterros sanitários, esperando a morte física, lenta e gradual, enquanto vivenciando já o gosto amargo da morte moral e social, transformou-se no portador de hanseníase contemporâneo. Essa transformação trouxe uma significativa melhora de vida e esperanças de cura com vida normal. Mas, a sombra do estigma continua a persegui-los. A lepra transformou-se em hanseníase. A podridão-castigo, deu lugar ao bacilo M. Leprae. O tratamento dolorido com óleos e centenas de agulhadas de resultado duvidoso, foi substituído pela potente PQT que mata o bacilo na primeira dose e proporciona a cura em poucos meses. Os muros dos leprosários foram postos abaixo, dando lugar à re-inserção social. E é aqui que o foco de nossas ações sociais devem começar. A humanidade, movida pelo preconceito, tem uma tendência e reconstruir muros invisíveis, onde não necessários. Estigmatizar as pessoas atingidas pela hanseníase que já obtiveram a cura, é condenar sucessivamente um réu pelo crime já pago. É inserir uma marca em lugar nenhum. 27 Lutar e sensibilizar a sociedade pela reabilitação sócio-econômica da pessoa atingida (no passado) pela hanseníase, é a necessidade primordial do governo, das empresas e das organizações sociais. Não poderá haver justiça social enquanto houver um ex-paciente de hanseníase estigmatizado. Essa deve ser a batalha da vez: O tratamento além da cura! 28 BIBLIOGRAFIA A Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. Sociedade Bíblica Internacional. 2000; AMERICAN LEPROSY MISSIONS. Informações para Pastores e Professores de Estudos Bíblicos. Versão autorizada para o Português. Rio de Janeiro 1998; ARVELLO, J.J. Prevenção de Incapacidades Físicas e Reabilitação em Hanseníase. São Paulo, ALM International Inc. 1997; DANIELSSEN, D.C. & BOECK, W. Traite de la spédalkhed. Chez J. B. Bailliere. Paris, 1848 apud ARVELO, J. J. Prevenção de Incapacidades Físicas e Reabilitação em Hanseníase. São Paulo, ALM International Inc. 1997; GALLO, MARIA EUGÊNIA NOVISKI. Especial sobre Hanseníase. Disponível na INTERNET via http://www.fiocruz.br/ccs/glossario/hanseniase.htm Site consultado em maio de 2004; GHIDELLA, Cassio Dr. Hanseníase. /www.geocities.com/hanseniase. 2003; LUCIA, LUIS. Molokai A Ilha Maldita. Filme. Europea de Cinematografia, Espanha, 1959. ILEP. – “ Guia para a Reabilitação Sócio-Econômica das Pessoas Afetadas pela Hanseníase – Londres – 1999; WHO. Leprosy Elimination Project: Status Report 2003. Geneva. 2004 Disponível na INTERNET via http://www.who.int/lep/Reports/s20042.pdf Site consultado em junho de 2004;