Gerenciamento de impressões e construção do imaginário organizacional como instrumentos de dominação: o caso Parmalat Gustavo Quiroga Souki1 Luiz Marcelo Antonialli2 Resumo O presente trabalho objetivou oferecer uma visão crítica sobre as relações existentes no setor leiteiro, a partir de um modelo teórico desenvolvido com base nas teorias do gerenciamento de impressões, do imaginário organizacional e das organizações vistas como instrumentos de dominação. Em tal modelo, verifica-se que as organizações utilizam-se das estratégias de gerenciamento de impressões com o objetivo de construir um imaginário organizacional positivo que, em última instância, favorece o exercício da dominação. A multinacional italiana Parmalat é apresentada como exemplo da aplicação prática desta teoria como instrumento de dominação na cadeia produtiva do leite no Brasil. Palavras-chave: Cadeia produtiva do leite, poder, multinacionais. 1. Introdução O setor agroindustrial brasileiro vem sendo bastante influenciado por uma série de transformações que vem ocorrendo nos últimos tempos. Tais transformações se estendem desde as esferas tecnológicas e econômicas até as políticas, culturais e sociais. Como parte integrante do setor agroindustrial brasileiro, o complexo agroindustrial do leite (CAL), tem sido uma das indústrias mais afetadas pelo mutante contexto atual, que trouxe consigo uma série de novas demandas, gerando riscos e oportunidades para as organizações. Particularmente após o início da década de 1990, quando o CAL, que até então sofria uma grande intervenção por parte do governo federal, foi desregulamentado, uma série de mudanças ocorreram, alterando as relações econômicas, sociais e políticas entre os atores que o compõem. Tal desregulamentação incentivou diversas empresas multinacionais a investirem no setor, abrindo espaço para a entrada de grande quantidade de produtos originários de outros países, muitas vezes subsidiados na origem, o que criou uma grande instabilidade para os diversos elos dessa cadeia. Além disso, as estratégias de ação adotadas pelas multinacionais, amparadas pela histórica inadequação das políticas para o setor leiteiro trouxeram uma série de modificações na estrutura e na dinâmica do CAL. Dentre as empresas multinacionais que investiram grandes quantias no país, afetando sobremaneira o CAL, destaca-se a italiana Parmalat. O presente trabalho tem por objetivo oferecer uma visão crítica sobre as relações existentes no setor leiteiro, com base nas teorias do gerenciamento de impressões e do imaginário organizacional. Além disso, recorre-se ao modelo teórico proposto por Morgan (1996), de que as organizações podem ser vistas como instrumentos de dominação, para demonstrar como as multinacionais impõem seu poder, gerando profundas alterações no setor leiteiro. 1 Doutor em Administração, Professor do Mestrado Profissional em Administração da FEAD – Minas (Centro de Gestão Empreendedora). Rua Engenheiro Alberto Pontes, 411 Apto. 802 Bairro Estoril. Belo Horizonte – MG. CEP: 30.455-740. [email protected] 2 Doutor em Administração, Professor do Mestrado Profissional em Administração da FEAD – Minas (Centro de Gestão Empreendedora). Rua Chicago 450/201, Bairro Sion, Belo Horizonte - MG, CEP: 30.315-520. [email protected] Esse trabalho está dividido em seis seções. A primeira seção faz uma breve introdução ao trabalho, apresentando o problema e o seu objetivo. A segunda seção discute sobre o modelo teórico proposto por Morgan (1996), de que as organizações podem ser vistas como instrumentos de dominação. Na terceira seção, discute-se sobre as teorias do gerenciamento de impressões e do imaginário organizacional. A metodologia do trabalho é apresentada na quarta seção. Na quinta seção, o caso Parmalat é apresentado como exemplo do uso do gerenciamento de impressões e da construção do imaginário organizacional como instrumentos de dominação no CAL brasileiro. Finalmente, na sexta seção, seguem as conclusões do trabalho. 2. As organizações como instrumentos de dominação Conforme Freitas (1997), torna-se difícil compreender as organizações de forma independente do contexto e da época em que se inserem. Assim, as organizações são mais bem compreendidas quando estudadas num contexto social e temporal específicos. Luxemburg (1960) e Morgan (1996), afirmam que ao longo da história, organizações têm sido associadas a um processo de dominação social nos quais indivíduos ou grupos encontraram forma de impor a sua vontade sobre os outros. Isto se torna bastante evidente quando se traça a evolução histórica da empresa moderna, desde as suas raízes na antigüidade até o seu papel no mundo hodierno. Na visão de alguns teóricos organizacionais, esta combinação de realização e exploração tem sido uma das características mais marcantes das organizações ao longo dos tempos. Embora desde o século XV já se pudesse observar a existência de organizações multinacionais, apenas no final do século XIX e início do XX foi possível testemunhar o crescimento e a proliferação de tal tipo de organização, acompanhando os desenvolvimentos verificados na economia do mundo capitalista (Morgan, 1996). Nos dias de hoje, muitas organizações multinacionais são maiores e mais poderosas do que nações inteiras. No entanto, ao contrário dos países, freqüentemente tais empresas têm demonstrado responsabilidade apenas sobre seus próprios interesses, não se preocupando com problemas que geram aos países que as recebem. Particularmente no caso do Terceiro Mundo, com bastante freqüência, tais empresas não tem tido a devida preocupação em relação à população local. Assim, em função de mudanças estratégicas, freqüentemente comunidades inteiras que se dedicavam ao trabalho a elas são sumariamente descartadas conforme o interesse do capital (Morgan, 1996). Paralelamente, tais organizações exercem grande influência sobre a política e a economia de muitos países, com o objetivo de aumentar a sua lucratividade. No caso brasileiro, a figura do lobista vem sendo cada dia mais difundida, tanto na esfera legislativa quanto na executiva. Com isso, as organizações buscam legitimar a sua forma de atuação por meio de leis, o que caracteriza o tipo racional-legal de dominação proposto por Max Weber. De acordo com Morgan (1996), a criação de empresas multinacionais tende a eliminar a agricultura local, a indústria e o artesanato tradicional, criando uma classe trabalhadora sem posses para um mercado de trabalho não especializado. Os trabalhadores rurais passam então a trabalhar em fábricas por salários de subsistência, exatamente como ocorreu na Europa e na América do Norte séculos atrás. Desta forma, ainda nos dias de hoje, assim como aconteceu no início da Revolução Industrial, as pessoas têm sido retiradas de suas terras de forma legal e, até mesmo ilegal, e do seu modo de vida tradicional, sendo transformadas em uma classe operária pobre que luta por salários de subsistência em fábricas em um regime de exploração, ganhando pouco e trabalhando muito. Para Luxemburg (1960) e Morgan (1996), as organizações “assaltam” os países que as recebem em termos de recursos e de mão-de-obra, o que as caracteriza como um instrumento de dominação que visa maximizar os interesses egoístas de uma elite as custas dos interesses de uma maioria desprivilegiada. Até mesmo uma análise superficial da forma de atuação das multinacionais no Terceiro Mundo permite concluir o poder monolítico que elas exercem. Tais organizações se engajam em diferentes formas de integração vertical como meio de obterem propriedade ou controle sobre matérias-primas críticas e outras fontes de suprimento. Muitas vezes, tais organizações fazem conluios por meio de cartéis que regulam as relações entre as organizações filiadas, com a finalidade de estabilizar e controlar os ambientes que, de outra maneira, poderiam ser incertos e ameaçadores. A redução do nível de competição proporcionada pela formação de cartéis permite um nível maior de segurança e rentabilidade para elas. Com isso, o poder do principal executivo dessas organizações torna-se, com freqüencia, maior que o de políticos democraticamente eleitos. Rodrigues (2001) complementa tal afirmativa mencionando que, cada dia tem se tornado mais evidente o aumento do poder político das grandes corporações privadas sobre os governos, o que representa uma ameaça inclusive às democracias. Na área econômica, a vigorosa e rápida movimentação de capitais entre as bolsas de valores, totalmente isenta de preocupação ética, moral e, principalmente social, imobiliza os governos, que se tornam reféns dos agentes econômicos, por serem obrigados a oferecer condições para que eles invistam seu capital. Assim, quanto mais os governos tentam controlar as práticas das multinacionais, menos atrativos eles tornam seus países aos olhos dos investidores. Além disso, muitas vezes, as multinacionais utilizam os registros contábeis em benefício próprio, disfarçando o excesso de lucro para evitar pagar os impostos devidos às nações hospedeiras. Diversas formas de desviar recursos financeiros também têm sido constantemente relatadas pela imprensa. Como conseqüência, a ação política, monetária, fiscal, tributária e social dos governos fica limitada pelos interesses das grandes corporações, fazendo com que tanto a população local quanto os governantes assistam, de forma impotente, o crescimento da exclusão social, da desigualdade e da iniqüidade. Verifica-se, portanto, a existência de uma relação de dependência e dominação entre os governos locais e tais organizações (Morgan, 1996). Os defensores das multinacionais normalmente as julgam como forças positivas para o desenvolvimento econômico das nações em que se instalam, criando empregos, trazendo capital, tecnologia e especialização para comunidades ou países que poderiam ter dificuldades em se desenvolver por conta própria. Todavia, o que se verifica na realidade é que, dado o imenso poder das multinacionais, os países que as recebem freqüentemente se vêem na contingência de contar com um certo grau de benevolência no que dez respeito à questão da sua responsabilidade social (Morgan, 1996). Além disso, as multinacionais têm sistemas altamente centralizados de decisão, o que faz com que os interesses da corporação, normalmente relativos à lucratividade, ao crescimento e ao desenvolvimento estratégico, ocupem lugar de destaque na tomada de decisão, enquanto os interesses dos anfitriões sejam relegados a um plano secundário. Assim, quando variáveis estratégicas indicam que seria mais interessante à multinacional reduzir seus investimentos em um tipo particular de indústria, fechar determinada fábrica ou reestruturar internacionalmente as operações, as conseqüências destas ações podem ser devastadoras para as comunidades ou países envolvidos. Para Freitas (1997), a “confirmação” do capitalismo como a “única” via capaz de promover o desenvolvimento econômico amplificou a legitimação da ideologia neoliberal, fazendo com que o econômico assumisse um papel preponderante, passando a subordinar todas as demais esferas da vida social, inclusive a política, que tem se transformado numa simples gestora de índices econômicos. Tal autora complementa mencionando que, quando o econômico é o critério decisivo, as empresas são capazes fazer coisas completamente absurdas sob o ponto de vista do cidadão, como queimar safras inteiras para se elevar o preço do produto, independente da fome à sua volta; aplicar o capital no mercado financeiro, reduzindo a atividade produtiva e empregadora; mudar para um outro país onde a estrutura de custos seja mais barata, não importando a massa desempregada que elas deixam atrás de si; apoiar campanhas de todos os candidatos a uma mesma eleição para garantir a “simpatia” e os “favores” futuros; incentivar guerras dos dois lados para vender mais armas; substituir pessoas por máquinas, não apenas porque as máquinas são mais velozes e “erram” menos, mas por todas as implicações que a presença do trabalhador apresentam; fazer lobbies para defender a aprovação de alguns projetos que lhes garantam privilégios específicos, em detrimento do preço a ser pago pelos demais; enfim, a ética das empresas têm se limitado ao que lhes garante a permanência e a vitória no jogo imposto pelo modelo capitalista. 3. O gerenciamento de impressões e o imaginário organizacional Teoricamente as organizações deveriam ser agentes da melhoria da qualidade de vida da humanidade. No entanto, até mesmo os economistas mais liberais têm reconhecido que algumas dessas organizações, particularmente as multinacionais, vêm ampliando em vez de reduzir as diferenças sociais (Morgan, 1996). Freitas (1997) destaca que o que tem se verificado na atualidade é uma tentativa das organizações em transmitir uma imagem de racionalidade, de transparência, de produtividade e de resultado que as demais organizações presentes no corpo social devem seguir. Tal autora afirma ainda que tais organizações têm se beneficiado da atual crise de identidade vivida pelos indivíduos na sociedade ocidental, o que favorece a ampliação do papel das organizações modernas enquanto fornecedoras de identidade tanto social quanto individual. Assim, por meio de um imaginário específico, onde a organização aparece como grande, potente, nobre, perfeita, consegue-se satisfazer os anseios narcisísticos de seus membros, prometendo prover-lhes de reconhecimento, de amor, de identidade, além de curá-los de suas imperfeições e fragilidades. Numa sociedade onde é exaltada a importância da imagem, da aparência, do consumo, da superficialidade, as organizações modernas, particularmente as multinacionais, encontram um terreno fértil para se marcar como a grande referência, que propõe uma forma de vida de sucesso e uma missão nobre a realizar. Paralelamente, as empresas procuram incutir na mente dos cidadãos que o Estado (falido e desacreditado) deve restringir-se a oferecer as condições necessárias de infra-estrutura e deixar que elas se ocupem de garantir os empregos, a competitividade dos mercados e a potência da nação neste mundo globalizado (Freitas, 1997). Conforme Mendonça, Vieira e Espírito Santo (1999), assim como as pessoas individualmente buscam transmitir uma imagem positiva, evitando mostrar os aspectos negativos, as organizações também procuram gerenciar as impressões que a sociedade faz delas. Wood Jr. (1999), complementa tal afirmativa mencionando que o gerenciamento de impressões fundamenta-se na premissa de que a construção da imagem afeta a percepção das pessoas. Assim, por meio artifícios culturais veiculados pela mídia de massa, as organizações buscam transmitir uma imagem positiva, que vai enraizar-se num imaginário próprio que é repassada para a sociedade como um todo. Freitas (1997) destaca que diversas organizações modernas, em busca de um adequado gerenciamento de impressões, vêm adotando discursos de cidadania, colocando-se como defensoras da cultura e da ecologia, enquanto outras se apresentam como guardiãs da ética, dos valores morais e sociais mais elevados; outras procuram mostrar-se como racionais, dinâmicas, potentes e flexíveis, o que as torna capazes de estar constantemente se superando; além das que utilizam o discurso de serem uma grande família. Gardner e Cleavenger (1998) destacam ainda que as organizações podem adotar as seguintes estratégias de gerenciamento de impressões: insinuação, autopromoção, intimidação, exemplificação e suplicação, no sentido de serem percebidas, respectivamente, como competentes, moralmente confiáveis, perigosas e merecedoras de pena (Quadro 1). Quadro 1. Estratégias de gerenciamento de impressões. Estratégias Insinuação Autopromoção Exemplificação Intimidação Suplicação Definição / Descrição As organizações utilizam-se dessa estratégia para transmitir uma imagem mais atrativa e simpática que outras. As organizações utilizam-se dessa estratégia para transmitir uma imagem de competência, com destaque para habilidades ou aptidões específicas. As organizações utilizam-se dessa estratégia para transmitir uma imagem de serem moralmente confiáveis, devendo ter seu exemplo seguido por outras organizações e pelas pessoas de maneira geral. As organizações se apresentam como perigosas, sendo capazes e prontas a gerar sofrimento para a audiência. As organizações se apresentam como desamparadas e precisando de ajuda, de forma a legitimar a solicitação de ajuda de terceiros. Fonte: Adaptado pelos autores com base no modelo de Gardner e Cleavenger (1998). Para as multinacionais, que freqüentemente são acusadas de provocarem desemprego, de sonegarem impostos, de influírem politicamente nos governos dos países onde se instalam, de concorrerem deslealmente e de causarem danos ecológicos, a utilização adequada das estratégias de gerenciamento de impressões para criar um imaginário organizacional favorável, via comunicação de massa, passou a ser um instrumento de gestão imprescindível (Morgan, 1996). 4. Metodologia O presente trabalho caracteriza-se como de natureza exploratória e descritiva, sendo que se optou por utilizar a metodologia qualitativa. Assim, por meio de pesquisas documentais (documentos oficiais, fontes estatísticas e publicações administrativas) e bibliográficas (jornais, revistas, livros, anais de congressos, teses e dissertações), além de sites na Internet, foram levantadas as informações necessárias para a construção do modelo teórico utilizado na pesquisa (Figura 1) e para o estudo de caso da multinacional Parmalat que como exemplo ilustrará tal modelo. Figura 1. Modelo teórico de análise do gerenciamento de impressões e a construção do imaginário organizacional como instrumentos de dominação. O modelo teórico proposto foi desenvolvido com base nas teorias do gerenciamento de impressões, do imaginário organizacional e das organizações vistas como instrumentos de dominação. Em tal modelo, verifica-se que as organizações utilizam-se das estratégias de gerenciamento de impressões (insinuação, autopromoção, intimidação, exemplificação e suplicação) com o objetivo de construir um imaginário organizacional positivo, mostrando-se como racionais, honestas, confiáveis, éticas, competentes, potentes, dinâmicas, eficientes, nobres e perfeitas, exemplos de sucesso, perigosas ou merecedoras de pena. O imaginário organizacional positivo criado na mente das pessoas favorece tais organizações a exercerem a sua dominação (Souki et al, 2001). No que se refere às técnicas utilizadas para o levantamento das informações, Marconi & Lakatos (2003) sugerem que os pesquisadores recorram a pesquisas documentais e bibliográficas com o objetivo de obter elementos prévios sobre o campo de interesse, identificar problemas e orientar para outras fontes de coleta de informações. Tais autoras destacam que a pesquisa documental pode ser escrita, por meio de documentos oficiais, fontes estatísticas, publicações administrativas e documentos particulares, ou incluir também fotografias, objetos, vestuário, folclore, etc. A pesquisa bibliográfica, por sua vez, inclui materiais oriundos da imprensa escrita (jornais e revistas), meios audiovisuais (rádio, fitas, televisão e CD’s), material cartográfico (mapas e gráficos), publicações (livros, anais de congressos, teses, dissertações, publicações avulsas), entre outras. A opção por um estudo de caso deve-se ao fato de que esse é um tipo adequado de pesquisa quando se deseja analisar em profundidade múltiplas dimensões de um objeto ou de um problema. Diversos autores ressaltam a importância e as características dos estudos de caso em pesquisas na área de administração, dentre os quais pode-se destacar Morgan e Smirich (1980), Yin (1981), Yin (1990), Campomar (1991), Godoy (1995). Assim sendo, tal tipo de pesquisa é útil quando se deseja examinar detalhadamente um ambiente, um simples sujeito ou uma situação particular; quando há pouca possibilidade de controle sobre os eventos estudados e; quando o foco de interesse é sobre fenômenos atuais, que só poderão ser analisados dentro de algum contexto da vida real (Godoy, 1995). Yin (1990) corrobora com tal perspectiva, destacando que o estudo de caso é uma forma de se fazer pesquisa social empírica ao investigar um fenômeno atual dentro de seu contexto de vida real, em que as fronteiras entre o fenômeno e o contexto não são claramente definidas e na situação em que múltiplas fontes de evidências são usadas. 5. O gerenciamento de impressões e a construção do imaginário organizacional: o caso Parmalat A Parmalat foi fundada por Calisto Tanzi no ano de 1961, em Collecchio, cidade próxima à Parma, considerada como a capital gastronômica da Itália. Na época, o fundador da empresa passou a desafiar o monopólio do setor leiteiro que existia no país. A fábrica logo se transformou no primeiro produtor de leite de marca e começou a desenvolver os seus produtos usando o método de pasteurização em altas temperaturas (UHT3) e embalagem asséptica impermeável ao ar, luz e germes (Observatório Social, 2001 e Invertia, 2004). A empresa vivenciou um rápido processo de expansão e de internacionalização, principalmente por meio de aquisições e parcerias, passando a atuar em 31 países dos cinco continentes, tais como: Portugal, Espanha, Inglaterra, Hungria, Romênia, Ucrânia, Rússia, China, Estados Unidos, Canadá, México, Venezuela, Uruguai, Argentina, Chile, Brasil, República Dominicana, Austrália, Índia, entre outros. No Brasil, a Parmalat iniciou as suas atividades em 1972, por meio da associação com os Laticínios Mococa S.A. Apenas em 1977, foi inaugurada a primeira unidade industrial da Parmalat no país, na cidade de Itamonte, em Minas Gerais. Desde então, empresa realizou uma série de transações, envolvendo a compra ou a fusão com outros laticínios, o que fez com que ela passasse a figurar como a segunda maior captadora de leite do país (Parmalat, 2004a; Observatório Social, 2001 e Indústria, 2002). A Parmalat buscou também se diversificar, ampliando a sua linha de produtos, passando produzir diversos derivados do leite (leite em caixinha, leite condensado, iogurtes, bebidas lácteas, leite em pó, sorvetes, etc.), atomatados (molhos, catchup, polpa e extrato de tomate), sucos, biscoitos, massas, chás, isotônicos, cereais matinais, café torrado e moído, sobremesas, água engarrafada, entre outros produtos (Parmalat, 2004a; Parmalat, 2004b e Observatório Social, 2001). Além das estratégias de expansão geográfica e de diversificação da linha de produtos, a empresa adotou ainda uma postura mercadológica bastante agressiva. De acordo com Parmalat (2004b), diversos exemplos dessa afirmativa podem ser citados: - na década de 1980, com a entrada de Nelson Piquet na equipe Brabham de Fórmula 1, patrocinada pela Parmalat, buscou-se reforçar a imagem da companhia no Brasil; - na década de 1990, a Parmalat desenvolveu projetos de co-gestão com times de futebol como o Palmeiras (São Paulo) e o Juventude ( Rio Grande do Sul); - o sucesso do lançamento da campanha publicitária denominada "Mamíferos", em 1997, tornou a marca bastante conhecida pelos consumidores. Em quase três anos de campanha, a empresa distribuiu mais de 15 milhões de mamíferos de pelúcia; - o jogador de futebol Ronaldinho, então na Internazionale de Milão, passou a estrelar as campanhas institucionais da empresa; - em 2003, a Parmalat Brasil patrocinou a minissérie "Casa da Sete Mulheres", produzida e veiculada pela Rede Globo. Ao longo dos anos, a Parmalat despendeu verdadeiras fortunas no afã de criar um imaginário específico a seu respeito na mente dos consumidores, por meio de materiais promocionais como folders, brindes, cartazes e outdoors, em propagandas e patrocínios na televisão, em revistas e jornais, além do seu site na Internet. Por meio do gerenciamento das impressões, a Parmalat utiliza diversos recursos no intuito de obter uma maior identificação do consumidor com a organização. Assim, seja por meio da estratégia de insinuação, procurando transmitir uma imagem mais atrativa e simpática que outras empresas; por meio da estratégia de autopromoção, buscando transmitir uma imagem de competência; ou ainda por meio da estratégia de exemplificação, com o objetivo de transmitir uma imagem de organização moralmente confiável e que deve 3 O UHT (Ultra High Temperature) é um método de tratamento térmico, no qual o leite é aquecido até 145ºC por três segundos e resfriado rapidamente (www.itambé.com.br). ter seu exemplo seguido por outras organizações e pelas pessoas de maneira geral, a Parmalat conseguiu criar um imaginário positivo a seu respeito na mente dos consumidores. Entende-se, portanto que, seja patrocinando atletas e equipes esportivas, eventos culturais, ressaltando a qualidade de seus produtos e demonstrando-se interessada pela preservação do meio ambiente e relacionamento com a comunidade, a Parmalat sempre buscou criar um imaginário de mantenedora da moral, da ética e da saúde da população. Por esta razão, tal organização tenta vender, via comunicação de massa, a idéia de que a sociedade deve não apenas depositar total confiança nelas, mas espelhar-se no seu modelo de sucesso. Diversos exemplos dessa natureza são apresentados no site da empresa na Internet, sendo que palavras utilizadas são cuidadosamente selecionadas (grifos nossos nas citações a seguir) por constituírem-se em clichês do pop management, conforme destaca Wood Jr. (1999). “A Parmalat tem plena consciência do impacto causado pela empresa no seu meio, seja na cadeia de negócios de que faz parte, seja na comunidade ou na sua relação com meio ambiente. Por isso, sua atuação na área de responsabilidade social inclui desde investimentos em segurança e métodos de preservação ambiental até o desenvolvimento de projetos a partir do Instituto Parmalat, que concentra as ações sociais da empresa. Entre as diversas iniciativas tomadas pela empresa, estão a criação de um comitê de Responsabilidade Social, programas de incentivo ao voluntariado corporativo e a associação ao Instituto Ethos, entidade que reúne empresas que visam ao desenvolvimento de suas atividades de forma socialmente responsável. Por meio dessas ações a Parmalat procura construir relacionamentos sérios e duráveis com clientes, fornecedores, comunidades e colaboradores, pois acredita que elas são fundamentais para a evolução sustentável da empresa e para o desenvolvimento de um futuro melhor para toda a sociedade”. “A qualidade sempre foi a principal preocupação da Parmalat. Preocupação que não se limita em, somente, fornecer produtos de qualidade, mas, também, em produzi-los respeitando o meio ambiente e a vida humana envolvida nesse processo.Com base nessa filosofia, a Parmalat vem desenvolvendo uma série de medidas que visam a aprimorar as ações de preservação ambiental e aumentar a consciência de todos os colaboradores no que diz respeito ao meio ambiente, à saúde e à segurança no trabalho.Com seriedade e inteligência, o Grupo Parmalat busca atender à legislação, aplicar métodos de preservação ambiental e promover o bem estar completo de todos os seus colaboradores, fazendo da preservação ambiental e da segurança no trabalho ingredientes indispensáveis a seus produtos. Assim, a Parmalat espera cumprir com sua responsabilidade social, garantindo produtos de qualidade, sem agredir à natureza e respeitando a vida daqueles que os produzem, dando às gerações futuras a oportunidade de desfrutar dos recursos naturais e traçar suas próprias medidas de prevenção”. (Parmalat, 2004b) De acordo com Aprender virtual (2004), o Instituto Parmalat “... tem por objetivo desenvolver e incentivar projetos nas áreas de educação e saúde, que auxiliem adolescentes e famílias de baixa renda, na busca de autonomia, inclusão social e resgate dos valores humanos e de cidadania, proporcionando às crianças e adolescentes novas perspectivas em relação à escola, à família e à comunidade, priorizando sempre a proposta educacional”. A utilização da imagem da família é também freqüentemente observada em seus materiais promocionais, onde bebês e crianças são vistos convivendo de maneira saudável e harmoniosa com jovens, adultos e idosos. Associado a isso, a divulgação de receitas e informações sobre a saúde (valores nutricionais dos produtos, além de produtos light e dietéticos) e segurança no lar tem sido utilizada pela Parmalat para conquistar as donas de casa. “A marca Glória promoveu um concurso de receitas que teve a premiação final no mês de maio de 2003, e que foi entregue no programa "Mais Você" da Rede Globo, apresentado por Ana Maria Braga, reforçando o lado culinário dos produtos alimentícios”. “... segurança é algo que deve chegar a nossas casas, onde existem muitos riscos e poucos recursos. Sendo assim, a atenção e o conhecimento são indispensáveis à prevenção de acidentes domésticos. Por isso, preparamos algumas dicas de Segurança no Lar que podem e devem ser seguidas por todos”. (Parmalat, 2004b) Com o objetivo de cunhar o imaginário de que é uma empresa de sucesso junto aos consumidores, ressalta que a sua marca representa qualidade e confiabilidade, avalizada inclusive por profissionais da área de saúde. “Mais uma vez, a Parmalat é a marca de leites mais lembrada pelos consumidores brasileiros. A empresa obteve, pela quinta vez, o Prêmio Top of Mind 2002, na categoria Leite. Essa premiação, realizada pelo jornal "Folha de S. Paulo", é feita com base em pesquisas com consumidores de todo o país, destacando as marcas mais lembradas pelo público em 35 itens. Os dados do Top of Mind mostram também a força da Parmalat na região Sul (onde foi citada por 32% dos entrevistados) e nas grandes capitais e regiões metropolitanas (onde foi citada por 29% dos consumidores).Essas informações refletem como o investimento feito pela Parmalat em qualidade, tecnologia e comunicação têm sido efetivo. Em uma outra pesquisa, feita entre os assinantes da revista Seleções, a Parmalat foi escolhida como a marca mais confiável na categoria Leites, recebendo o prêmio Pesquisa Marcas de Confiança - Trusted Brands 2003. Essa premiação ocorre anualmente e elege as marcas, instituições, políticas governamentais e profissionais mais confiáveis em 48 categorias”. “Aqui você encontra reunidas informações relevantes para médicos, nutricionistas, professores de educação física e demais profissionais da área de saúde”. (Parmalat, 2004b) No afã de mostrarem-se racionais, inovadoras, potentes, dinâmicas e capazes de estar constantemente sempre se superando, a empresa destaca que: “Esse tipo de assistência traz uma série de benefícios para o produtor (como menor índice de descarte de leite, aumento da produção total e da lucratividade), gera produtos de qualidade superior para a empresa e, conseqüentemente, um leite de sabor diferenciado para o consumidor”. “Eles obtêm total assistência para gerar o melhor leite, recebendo desde orientação para o manejo e nutrição do gado leiteiro até técnicas de higienização do ambiente, armazenagem e transporte do produto. Isso resulta em aumento da produtividade, gerando lucro para quem produz e qualidade para o leite que você consome”. “Hoje já são 139 centros de produção e cerca de 34.800 colaboradores espalhados por 30 países. Em todos eles, a Parmalat mantém a mesma filosofia de nutrir a vida, levando inovação, prazer e bem-estar ao consumidor”. (Parmalat, 2004b) Com base em amplas pesquisas de marketing, a Parmalat desenvolve mecanismos bastante confiáveis de estratificação do público-alvo, o que favorece em grande escala a adoção de estratégias de gerenciamento de impressões que, em última instância, criam um imaginário organizacional específico, devido a uma maior aproximação entre a identidade individual e a organizacional. O atual slogan da empresa afirma que “cada corpo tem o Parmalat que precisa”. Além disso, a empresa ressalta que: “Cada pessoa tem uma particularidade alimentar, que varia de acordo com a faixa etária, estilo de vida e outras características. Os leites produzidos pela Parmalat se adequam a diversos tipos de consumidor, de acordo com suas necessidades nutricionais, incluindo desde leites com baixas calorias, leites enriquecidos até leites sem lactose”. (Parmalat, 2004b) A aproximação entre a identidade da organização e dos stakeholders (investidores, fornecedores, funcionários, etc.), é também fomentada pela Parmalat, conforme se observa nas seguintes frases: “Tudo isso, mais o posicionamento da empresa quanto à ética empresarial e à responsabilidade social, faz com que funcionários, fornecedores e parceiros compartilhem o nosso orgulho e a paixão de ser Parmalat” . “Desde 1996, a Parmalat vem desenvolvendo uma política de orientação aos produtores, com realização de visitas técnicas, palestras e encontros”. “... são realizados atendimentos por demanda e Dias de Campo, reuniões em que são demonstradas novas tecnologias que promovem maior interação entre técnicos e produtores”. (Parmalat, 2004b) Verifica-se, portanto, que diversas estratégias para o gerenciamento de impressões como as de insinuação, de autopromoção e de exemplificação, muito bem exploradas por Gardner & Cleavenger (1998) e Mendonça, Vieira & Espírito Santo (1999), têm sido utilizadas como uma forma inteligente de marketing pela empresa para atingir os seus objetivos. 5.1 Parmalat: a face repugnante4 O recente escândalo envolvendo a Parmalat, ocorrido em dezembro de 2003, mostrou ao mundo uma outra face de uma empresa que, até então, era conhecida pela qualidade de seus produtos e pela competência com que administrava a sua imagem. Conforme destaca Áureo (2004: p.1): “Às vésperas do Natal constatamos incrédulos que a Parmalat migrara rapidamente das páginas econômicas para as policiais, expondo uma sórdida rede internacional de fraudes contábeis e de lavagem de dinheiro”. Nesse sentido, Parduan & Blecher (2004) assinam uma matéria especial sobre a empresa na Revista Exame, intitulada “Não é hora de chorar: a filial brasileira da Parmalat luta pela sobrevivência em meio ao escândalo que abala a matriz”. Na página 24, consta a imagem de uma criança vestida como um “leãozinho” (mamífero) chorando e segurando uma caixinha de leite Parmalat entre as mãos! Isso porque a empresa vem sendo acusada de manipular a sua contabilidade, de desviar dinheiro para paraísos fiscais, de falsificar documentos, de atrasar ou suspender pagamentos aos fornecedores e de não recolher impostos, conforme mostram as seguintes frases: “Vai levar tempo até que os promotores italianos encarregados de investigar o escândalo da Parmalat consigam esclarecer como uma companhia de ótima reputação, com ações recomendadas à clientela pelos bancos de investimento e fiscalizada por mais de uma empresa de auditoria pôde se transformar de uma hora para outra no pivô de uma das maiores fraudes empresariais da Europa. As primeiras conclusões indicam que a cúpula da multinacional italiana praticou nos últimos anos o mais clássico dos crimes do colarinho 4 A expressão “face repugnante” é uma alusão ao nome do capítulo 9 do livro Imagens da Organização, de Gareth Morgan, intitulado “A face repugnante: as organizações vistas como instrumentos de dominação”. branco, que consiste em maquiar o balanço. A empresa aparentemente sobrevalorizava seus bens de forma a obter lucros contábeis mais elevados que os verdadeiros. Forjando resultados satisfatórios, a Parmalat se habilitava a novos créditos junto aos bancos, financiando assim sua política agressiva de crescimento. A aparência de empresa sólida permitiu à companhia captar empréstimos de 5 bilhões de dólares nos últimos três anos. O mundo da Parmalat caiu quando ela não foi capaz de honrar uma dívida de alguns milhões de dólares. Em pouco tempo, ficou evidente que os bons números só existiam no papel. Agora que os balanços começam a ser analisados com lupa, o rombo vem se materializando”. (Peres & Rydlewski, 2004) “O caso da Parmalat, porém, é considerado ainda mais grave. Estima-se que as dívidas da empresa, também em processo de falência, ultrapassem os 14 bilhões de euros e que ela tenha acobertado prejuízos da ordem de 400 milhões de euros anuais desde o início dos anos 90”. (Baima, 2004) "A dificuldade é a natureza opaca de seus livros, combinada com o risco de má conduta corporativa. ... nossa maior preocupação é que esses caras manipulem sua contabilidade". (Reilly & Galloni, 2003) “O fundador e ex-presidente da Parmalat, Calisto Tanzi, já foi indiciado criminalmente, por falsidade ideológica, agiotagem e fraude ao sistema financeiro. Segundo promotores, há evidências claras de que houve fraude contábil e de que era falso o documento em que a Parmalat afirmava ter € 3,95 bilhões (R$ 15 bilhões) em uma conta nas Ilhas Cayman, paraíso fiscal localizado no Caribe”. (Milkpoint, 2003a) “... a situação do grupo é muito, mas muito pior do que se pensa, porque também teriam sido falsificados documentos que atestariam a existência de negócios de centenas de milhões de euros". “... a Parmalat suspendeu o pagamento a fornecedores de leite, levantando no mercado preocupações quanto à saúde financeira das operações brasileiras”. (Milkpoint, 2003b) “Até agora, o caso envolvia fraudes na Itália e dificuldades financeiras no Brasil. Mas o brejo onde a vaca da Parmalat foi se meter começa a se revelar ainda mais fundo. As informações, não oficiais, são de que a operação brasileira não recolhe um tostão de impostos desde 1997”. (Braga, 2004) Apesar do intenso trabalho da Parmalat para transmitir uma imagem positiva, a realidade percebida pelos diversos elos da cadeia produtiva do leite tem sido diferente do discurso veiculado para a sociedade em geral. Há bastante tempo, a relação entre a empresa e os produtores de leite tem sido marcada pelo poder, pelo oportunismo e pela dominação. Práticas como aviltamento de preços do leite aos produtores, dumping5 e formação de cartel envolvendo a Parmalat têm sido relatadas pela imprensa (Minas Gerais, 2002). "... a atuação da Parmalat levou a uma queda de preços pagos ao produtor, e à transferência de renda do setor primário para outros elos da cadeia produtiva". (Balbi, 2003) 5 O termo dumping refere-se à venda de produtos ao exterior por um preço inferior ao praticado no mercado doméstico. De fato, conforme destacam Bortoleto e Wedekin (1990), verifica-se, historicamente, um baixo poder de barganha dos produtores de leite nas relações com as indústrias de leite, o que justifica o fato de que os preços do leite ao produtor no mercado interno venham consistentemente caindo ao longo dos anos, conforme mostra a Figura 2. 0,50 0,45 Valores (R$/kg) 0,40 0,35 0,30 0,25 0,20 0,15 0,10 0,05 0,00 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 Figura 2. Evolução do preço do leite pago ao produtor. Fonte: Adaptado de dados da Revista Agroanalysis (1998). Porcentagem Bortoleto et al. (1997) comprovam a existência de uma forte assimetria de poder nas relações entre os elos do CAL, mostrando que a proporção da renda em tal setor vem, ao longo dos anos, caindo para os produtores e aumentando para a indústria (Figura 3). 100,0 90,0 80,0 70,0 60,0 50,0 40,0 30,0 20,0 10,0 0,0 Produtor Indústria Tendência (Produtor) Tendência (Indústria) 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 Anos Figura 3. Proporção de renda entre os produtores e a indústria. Fonte: Adaptado de dados de Bortoleto et al. (1997). O poder de barganha das indústrias de leite (dentre elas a Parmalat) em relação aos produtores de leite é bem destacado por Campos Filho (2003): “Em 1991, o Governo tinha uma intervenção total no agronegócio do leite, tabelando os preços. Depois lavou as mãos, deixando o agronegócio por conta das forças do mercado, dentro de um modelo de liberalismo inspirado por Adam Smith. Com certeza se Adam Smith fosse vivo hoje, faria uma revisão do seu livro "A Riqueza das Nações", pois era inteligente o bastante para ver a diferença da realidade do mundo quando escreveu o livro e a realidade do mundo globalizado de hoje, com empresas com alta concentração de poder econômico, chegando às vezes a ser maior que o PIB de alguns países”. O envolvimento da Parmalat com a prática de dumping na cadeia do leite também foi levantado e, após um processo de investigação, verificou-se que as importações de leite oriundo da Argentina, Uruguai, Nova Zelândia e União Européia, durante julho de 1998 e junho de 1999, foram realizadas com sob condições de dumping, causando danos aos produtores brasileiros, como a queda nos preços, no faturamento e margens de lucro negativas, além de aumentar a participação no mercado doméstico. De acordo com Milkpoint (2001: p.1), “O dumping ficou caracterizado com a venda ao exterior do produto por um preço menor que o praticado no mercado doméstico. A medida é uma vitória da Confederação Nacional da Agricultura contra o movimento das indústrias lácteas multinacionais com subsidiárias no país. Essas empresas, entre elas as gigantes como Nestlé, Parmalat, New Zealand Dairy Board, Sancor e Mastellone Hermanos (Sereníssima), são acusadas pela CNA de formação de um oligopólio para reduzir os preços do leite in natura no mercado interno em prejuízo dos produtores”. Pode-se destacar ainda o envolvimento da Parmalat na formação de cartel com outras indústrias de laticínios. Conforme o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do preço do leite, instaurado pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais, verificou-se a existência de um cartel de empresas do setor de laticínios, que manipulava o preço do leite pago ao produtor, forçando uma queda no valor do principal insumo da indústria de lácteos, sem que essa redução fosse repassada ao consumidor final (Minas Gerais, 2002). “Outra prática suspeita, que se comprovou ao final dos trabalhos, é que as empresas de determinada região se reúnem para combinar preços mediante a estipulação de um teto a ser pago aos fornecedores, o que configura fraude à concorrência por formação de cartel”. (Minas Gerais, 2002: p. 37) No relatório final da CPI do preço do leite ,conduzido pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais, é recomendado “... que se determine a quebra de sigilo fiscal das indústrias Nestlé, Parmalat, Itambé, Vigor, Danone e Paulista...” (Minas Gerais, 2002: p. 53). De acordo com Riva, Santos e Fonseca (2000: p.1), “... é importante destacar, que nos últimos anos, vem ocorrendo uma tremenda concentração na área de captação e processamento de leite no nosso país, levando a uma oligopolização desse segmento, devido à expansão e predominância no mercado de grandes empresas como Parmalat, Nestlé, Elegê e Fleschmann Royal. Nessas circunstâncias, o poder de barganha do produtor fica absolutamente comprometido”. Cabe, no entanto, ressaltar que, atualmente, a percepção da existência de uma dissonância profunda entre o discurso da Parmalat e a realidade não é um privilégio dos fornecedores de leite, se estendendo pelos demais elos da cadeia produtiva do leite. As cooperativas de produtores e os pequenos laticínios, por exemplo, têm sido vítimas de ações predatórias das grandes multinacionais que atuam no setor de laticínios do país, como, por exemplo, a Parmalat. Conforme destaca Áureo (2004): “Ainda está viva na memória dos consumidores a bem-sucedida campanha sobre mamíferos, com a qual a italiana Parmalat fixou sua imagem no mercado brasileiro de lácteos. A aparência terna e o apelo infantil dos bichinhos ocultavam a verdadeira face de atuação da empresa na captação do leite nos produtores e nas cooperativas. Ali imperava a lei da selva, sem lugar para filhotes. Briga de bicho grande, com sobrevivência do mais forte. O que se viu na seqüência foi um comportamento de predador, com fusões e aquisições e, em vários casos, fechamento de cooperativas e laticínios de pequeno e médio portes”. “... a Parmalat entrou no país comprando pequenos laticínios - que depois fechava e ia para outra região - desarticulando o processo produtivo de leite”. (Balbi, 2003) “... chegou a pagar preços dez vezes maiores, para captar fornecedores e dizimar os pequenos laticínios das regiões onde montou suas oito fábricas”. (Braga, 2004) No que se refere aos investidores da Parmalat, o que se verificou após o escândalo foi a interrupção dos negócios da empresa nas bolsas de diversos países do mundo e uma queda abrupta no valor das ações, com elevados prejuízos financeiros para os acionistas (Figura 4). Figura 4. Evolução comparativa do valor das ações da Parmalat e a média da Bovespa (entre abril de 2003 e março de 2004). Fonte: Invertia (2004). Os funcionários da Parmalat (estrategicamente intitulados como colaboradores) têm hoje consciência de que o seu comprometimento com relação à empresa era unilateral, pois “... o processo de reestruturação que a Parmalat do Brasil vem fazendo teve como saldo, além do fechamento de fábricas, centros de distribuição e postos de captação de leite, a demissão de mais de 1,3 mil pessoas entre novembro de 2000 e agosto de 2001”. (Observatório Social, 2001). “A Parmalat planeja reduzir sua força de trabalho pela metade com a venda ou o encerramento de operações em 20 países ...” (Suzzi & Wynn, 2004) “O plano de reorganização mundial da Parmalat - que no final de 2003 revelou um buraco de bilhões de euros em seu balanço - prevê que a companhia terá menos de 17 mil empregados, contra os 32 mil atuais...” (Suzzi & Wynn, 2004) Na tentativa de levantar os recursos financeiros necessários para sobreviver, a Parmalat passou então a utilizar a estratégia de suplicação, na qual se apresenta como desamparada e precisando de ajuda, de forma a legitimar a solicitação de ajuda de terceiros e a estratégia de intimidação, na qual se apresenta capaz e pronta a gerar sofrimento para a audiência. Tais estratégias vêm sendo utilizadas para pressionar governos e bancos dos países nos quais opera, destacando a sua importância social e econômica. As frases a seguir demonstram essa afirmativa: “Parmalat pressiona governo e ameaça fechar as portas no Brasil... para conseguir a edição de uma MP (medida provisória) que crie condições para que a empresa receba uma injeção de recursos necessária para evitar a paralisação total de suas fábricas dentro de dias”. (Sandrini & Futema, 2004) Sobre as pressões da Parmalat sobre o governo, o relator substituto da comissão especial da Câmara que analisa o caso afirmou que “... a Parmalat usa suas dificuldades para pressionar o governo a ajudar a mantê-la funcionando ao mesmo tempo em que mantém um processo desinformativo sobre sua real situação financeira”. (Gazeta, 2004) “... Evaristo Machado Neto, presidente da Ocesp (Organização das Cooperativas do Estado de São Paulo), lamentou que o BNDES conceda empréstimo a multinacionais - que depois vão à concordata -, enquanto mantém grande rigidez nos empréstimos às cooperativas de laticínios.... enquanto há cooperativas trabalhando durante 50 anos, gerando emprego e desenvolvimento regional, uma multinacional como a Parmalat, que só visa obter ganhos para si própria, obtém recursos de um banco de desenvolvimento". (Balbi, 2003) “O interventor da Parmalat italiana Enrico Bondi enviou ontem um fax ao Banco Sumitomo Mitsui sugerindo que a instituição empregue recursos financeiros e humanos para evitar a falência, sob pena de sofrer as conseqüências de suas ações ou omissões. De acordo com o advogado Thomas Felsberg, contratado pela matriz, a carta é um primeiro aviso de que o banco será responsabilizado por tudo que acontecer com a empresa”. (Marques, 2004) 6. Conclusões O presente trabalho teve por objetivo oferecer uma visão crítica sobre as relações existentes no setor leiteiro brasileiro. Para tanto, foi proposto um modelo teórico com base nas teorias do gerenciamento de impressões, do imaginário organizacional e das organizações vistas como instrumentos de dominação. Tal modelo destaca que as organizações podem recorrer a estratégias de gerenciamento de impressões (insinuação, autopromoção, intimidação, exemplificação e suplicação) com o objetivo de construir um imaginário organizacional positivo, mostrando-se como racionais, honestas, confiáveis, éticas, competentes, potentes, dinâmicas, eficientes, nobres e perfeitas, exemplos de sucesso, perigosas ou merecedoras de pena. O imaginário organizacional positivo criado na mente das pessoas favorece tais organizações a exercerem a sua dominação. A multinacional italiana Parmalat foi tomada como exemplo da utilização de estratégias de gerenciamento de impressões para a criação de um imaginário organizacional específico, que, em última instância, favoreceu ações como abuso de poder econômico, fraude ao sistema financeiro, manipulação dos registros contábeis, desvio de dinheiro para paraísos fiscais, falsificação de documentos, não recolhimento impostos, formação de cartel, dumping, agiotagem, aviltamento dos preços do leite, atraso e não pagamentos aos fornecedores, desarticulação de bacias leiteiras regionais, prejuízos aos acionistas, pressões sobre governos e instituições financeiras, entre outras práticas ilícitas. De fato, o recente escândalo envolvendo a Parmalat mostrou ao mundo uma outra face de uma empresa que administrava a sua imagem com bastante competência. Conforme Freitas (1997), citando Guerreiro Ramos “não se pode culpar o leão por ser carnívoro”. No entanto, cabe a seguinte recomendação às empresas do setor: um mínimo de ética e de responsabilidade empresarial e social é fundamental para uma relação efetivamente recíproca e duradoura com os demais envolvidos diretamente ou indiretamente com o setor em que atuam (fornecedores, clientes, concorrentes, parceiros, governos, etc). Não basta divulgar que a empresa tem plena consciência do impacto causado no seu meio, seja na cadeia de negócios de que faz parte, seja na comunidade ou na sua relação com meio ambiente. Para construir relacionamentos sérios e duráveis com clientes, fornecedores, comunidades e colaboradores, visando à evolução sustentável da empresa, é preciso bem mais que um discurso imponente com palavras cirurgicamente selecionadas. A cadeia produtiva do leite no Brasil está, historicamente, farta de medidas pontuais que visam apenas remediar os problemas ocorridos e subsidiar os interesses de minorias privilegiadas. Para promover o desenvolvimento sustentável da cadeia produtiva do leite, não basta seguir a cartilha imposta pelas grandes multinacionais de laticínios, favorecendo a reprodução das relações de poder existentes. Nesse sentido, sugere-se ao governo brasileiro um maior rigor na fiscalização das ações das empresas multinacionais atuantes no país e critérios mais justos na liberação de recursos dos bancos de desenvolvimento. Não se espera do governo brasileiro uma panacéia que irá resolver todas as históricas chagas do setor leiteiro no país. No entanto, o governo deve conscientizar-se que seu papel não é apenas de mero gestor de índices econômicos, mas também de promotor e coordenador do desenvolvimento socioeconômico sustentável das cadeias produtivas do país. Para tanto, o legislativo e o executivo devem trabalhar em prol dos interesses nacionais e não de uma classe privilegiada e interesseira de organizações multinacionais, que visam exclusivamente os seus lucros. É, portanto, imprescindível adotar uma abordagem mais sistêmica, com vistas a evitar que escândalos dessa natureza se tornem mais freqüentes. Aos produtores e associações, sugere-se que busquem estabelecer uma maior união, com o objetivo de incrementar seu poder de barganha em relação aos outros elos do CAL e exigir que o governo faça sua parte, oferecendo as condições mínimas para que eles possam ser competitivos. Tudo isto deverá fazer parte da agenda dos produtores que desejarem manter-se na atividade. Quanto aos consumidores, cabe lembrar que grande parte dos problemas enfrentados pelas pessoas na atualidade (desigualdade social, criminalidade, tráfico de drogas, desemprego e fome) têm, em grande parte, suas origens nas formas de atuação das grandes corporações multinacionais. Assim sendo, recomenda-se que os consumidores tenham cautela na interpretação do discurso veiculado por tais organizações. Acredita-se que uma postura de consumidor cidadão pode contribuir sobremaneira com uma efetiva responsabilidade empresarial e social por parte das empresas. Finalmente, pode-se concluir que o modelo teórico proposto (gerenciamento de impressões e a construção do imaginário organizacional como instrumentos de dominação) pode fornecer importantes e consistentes subsídios para explicar a forma de atuação das multinacionais na cadeia produtiva do leite no Brasil. 7. Referências bibliográficas APRENDER VIRTUAL. 2004. Disponível em: www.aprendervirtual.com/ver_noticia.php? Acesso em: 27 mar 2004. ÁUREO, C. A lição da Parmalat. 2004. Disponível em: http://www.amazonia.org.br/ef/opiniao/print.cfm?id=95938 Acesso em: 27 mar 2004. BAIMA, C. Impérios modernos em queda: série de crises nos maiores grupos econômicos da Itália abala confiança no país. 2004. Disponível em http://www.italiaoggi.com.br/not01_0304/ital_not20040223a.htm Acesso em: 28 mar 2004. BALBI, S. 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