estabilização e distribuição da renda: rompendo o círculo vicioso

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ESTABILIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DA
RENDA: ROMPENDO O CÍRCULO
VICIOSO
Gesner Oliveira
Há um consenso acerca do fato de que o Brasil só retomará o crescimento se os problemas de estabilização forem superados. Ou seja, é preciso estabilizar para crescer. Por outro lado, persistindo a performance medíocre de crescimento dos anos 80 (2% em média no período 1980/89),
será difícil pensar numa melhoria da distribuição da renda. Neste sentido,
é preciso crescer para distribuir.
Se o governo Collor, ou qualquer outra administração, pudesse se
ater exclusivamente às prioridades acima, não haveria muita dúvida quanto à seqüência da ação: estabilizar-crescer-distribuir pareceria a ordem natural das coisas. Contudo, os sintomas de que o problema é mais complexo se manifestam logo no ponto de partida. Como estabilizar? Programas
de estabilização de diversos matizes foram encetados sem sucesso nos últimos dez anos. Uma inflação média anual superior a 200% no período
1979/89 e a estagnação da renda per capita ao nível de 1979/80 atestam
a sucessão de frustrações na tentativa de deter a inflação e retomar o
crescimento.
O debate em torno dos programas antiinflacionários tem dado ênfase excessiva ao desenho técnico dos planos, em detrimento de uma maior
atenção aos fatores que influenciam sua viabilidade política. Restam evidentemente inúmeras arengas acerca de como baixar a inflação, ou de como resolver o problema dos estoques das dívidas interna e externa. Cada
brasileiro tem sua escalação predileta para a Itália. Cada economista se dá
o direito de escolher uma combinação particular de controles fiscal e monetário e de política de rendas. Mas a questão central reside em assegurar
a vontade política para a execução do plano.
Este artigo pretende mostrar que o perfil distributivo de um país
afeta a disposição de estabilizar a economia. Se isto for verdade, será preciso distribuir para estabilizar. Mas como distribuir sem antes crescer? E
como crescer sem antes estabilizar?
114
NOVOS ESTUDOS N° 26 - MARÇO DE 1990
As três condições acima — necessárias porém insuficientes — compõem o circuito perverso em que estamos metidos. Os próximos parágrafos discutem cada uma delas em ordem decrescente de consenso (ou obviedade). Pouca gente teria coragem de argumentar que é factível retomar
o crescimento sem domar a inflação e equacionar o problema externo.
A relação entre crescimento e distribuição é mais controversa. Por fim,
há muito que investigar acerca dos aspectos distributivos da estabilização.
Seria ingênuo supor que estas linhas conteriam o tão almejado busílis. Fica apenas o aprendizado amargo das desilusões do passado. Mas
a partir delas é possível derivar as recomendações de política sumariadas
na seção final.
Estabilizar para crescer
Não há registro de economias que tenham conseguido manter uma
trajetória sustentada de crescimento com uma inflação elevada. Nada indica que o Brasil constituirá exceção, sobretudo quando se considera o
nível já atingido pela alta de preços no país. O novo governo assumirá
num momento em que as expectativas inflacionárias estarão em torno
de 58.000% a.a.!
O que sim é peculiar ao Brasil é a capacidade do sistema econômico de se adaptar às inconveniências do processo inflacionário ao invés
de erradicá-lo. Resta saber até que ponto o custo desta convivência teimosa com a inflação terá que se elevar para que um ajuste profundo pareça vantajoso à maioria dos setores sociais.
Crescer para distribuir
Nos anos 70, durante os quais a economia brasileira cresceu 9%
ao ano, criticava-se o regime autoritário pela atenção exclusiva ao crescimento econômico, em detrimento da distribuição da renda. Os dados revelam um aumento sistemático na desigualdade durante o período 1960/80,
embora a relação deste fenômeno com as variáveis de política econômica
seja mais complexa. O índice de Gini, por exemplo, passou de .497 em
1960 para .598 em 1970 e permaneceu em .59 em 19801. No âmbito internacional, é difícil detectar regularidades entre distribuição e perfil distributivo. Um mesmo ritmo de crescimento pode estar associado a múltiplos padrões de distribuição.
A realidade dos anos 80 colocou os críticos numa posição defensiva. Reivindica-se tão-somente um crescimento mínimo capaz de impedir
um agravamento dos problemas estruturais de desemprego e pobreza
absoluta.
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(1) Dados de G.M. Sedlacek , "A Evolução da Distribuição da Renda entre
1984 e 1987", Perspectivas da Economia Brasileira: 1989 (Rio de Janeiro,
1989). Ver também R. Bonelli e G. Sedlacek, "Distribuição de Renda: Evolução no Último Quarto
de Século", Mercado de
Trabalho e Distribuição
de Renda: uma Coletânea
(Rio de Janeiro, 1988).
ESTABILIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DA RENDA
Teme-se, em particular, o caráter regressivo de recessões nos moldes daquelas enfrentadas em 1981 e 1983. A dispensa concentrada no tem-po
de milhares de trabalhadores agudiza o desemprego estrutural. No mer-cado
formal, os assalariados de menor qualificação amargam a falta de tra-balho
em maior escala, pois são aqueles mais facilmente recrutáveis numa
recuperação subseqüente. No setor informal, a procura diminui e aumenta a oferta de trabalhadores disponíveis, ávidos por recompor seus rendimentos familiares.
Há indicações de um aumento da desigualdade durante os anos 80.
Segundo a mesma fonte utilizada acima, o coeficiente de Gini teria
passa-do de .587 em 1984 para .602 em 19872. As evidências acerca do
impac-to regressivo da recessão não são inequívocas, uma vez que parece
ter ha-vido uma queda da concentração no ano de 1981; de qualquer
modo, tal redução foi claramente revertida em 1983, que também foi
caracterizado por queda do nível de atividade.
Distribuir para estabilizar
Há um relativo consenso entre os analistas acerca do que precisa
ser feito para estabilizar a economia. Persiste, contudo, muita incerteza
sobre se o pacote necessário será efetivamente implementado. O problema é que a história brasileira reforça o ceticismo. Há uma tradição de resistência à implementação de planos de estabilização. O fato de o Brasil
nunca ter cumprido os acordos com o Fundo Monetário Internacional
(FMI) serve de ilustração. Um contra-argumento aceitável é o de que é
muito difícil implementar os programas do FMI, e que o Brasil não está
sozinho no grupo de desobedientes. Mas tampouco planos que não
receberam o carimbo do Fundo, como o Cruzado, foram implementados
de maneira satisfatória3.
Cabe indagar o que está por trás desta resistência. Que tipo de país
apresenta esta característica? A situação da distribuição da renda é um fator importante. A justificativa é intuitiva: quando a repartição da renda é
muito injusta torna-se difícil legitimar a imposição de sacrifícios, ainda
que temporários, aos setores menos favorecidos. A desigualdade gera intolerência que, por sua vez, reduz a flexibilidade da economia para ajustar seu fluxo global de rendimentos.
Jeffrey Sachs usou uma evidência indireta que corroboraria essa
hipótese4. Segundo este autor, os países com maior concentração da renda apresentariam menor probabilidade de cumprir regularmente os contratos da dívida externa. Isto revelaria uma maior dificuldade em efetuar
o ajuste macroeconômico.
A tabela abaixo contém uma evidência mais direta. A partir de
uma amostra de 40 países menos desenvolvidos aplicou-se um modelo Logit.
Trata-se de um método de regressão no qual a variável dependente (y) é
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(2) O mesmo autor reportou uma melhora na distribuição em 1986, presumivelmente associável
aos efeitos do Plano Cruzado. No entanto, informações preliminares de
pesquisa em andamento
conduzida por Lauro Ramos e utilizando um universo distinto, não indicam melhora em 1986
Agradeço a este último
autor pelos comentários e
informações acerca da
evolução recrute da distribuição da renda.
(3) Uma retrospectiva interessante da política econômica da República se
encontra em M.P. Abreu,
A Ordem do Progresso
(Rio de Janeiro, 1990). É
possível lê-lo sob a ótica
da resistência à implementação de sucessivas
tentativas
de
estabilização.
(4) Ver J. Sachs, Social
Conflict and Populist Policies in Latin America
(Cambridge, 1989). A evidência estatística original
se encontra em A. Berg e
J. Sachs, The Debt Crisis:
Structural Explanations of
Country Performance
(Cambridge, 1988). A evidência é indireta porque
não relaciona a concentração da renda a indicadores da política econômica propriamente dita,
mas apenas à probabilidade de reescalonamento
da dívida externa.
NOVOS ESTUDOS nº 26 - MARÇO DE 1990
discreta. No exercício em questão, y = 1 se o país não foi ao FMI; y = 2
se o país foi ao Fundo e resistiu à implementação de acordo selado com
aquele organismo; e, finalmente, y = 3 se o país obedeceu 5.
Fatores que influenciam a probabilidade de
resistência a programas de estabilização
Variável
Coeficiente
estimado
Concentração de renda
Choque externo favorável
Crescimento passado
Abertura comercial
Poder fiscal
Constante
0,15
-0,12
-0,12
0,07
-0,10
5,10
Estatística T
2,08
-2,21
-0,29
1,30
-1,34
1,32
Fonte dos dados: International Financial Statistics.
Países: Argentina, Bangladesh, Barbados, Brasil, Chile, Colômbia, Coréia, Costa do Marfim, Costa Rica, Egito, Equador, Espanha, Filipinas, Gabão, Honduras, Hungria, Índia, Indonésia, Irlanda, Israel, Iugoslávia, Jamaica, Madagascar, Malásia, Mali, México, Panamá, Paquistão, Peru, Quênia, São Salvador, Senegal, Sri Lanka, Tailândia, Tunísia, Turquia, Uruguai, Venezuela, Zâmbia, Zimbabwe.
Observações: "resistência" se refere à não obediência as políticas de
crédito acordadas com o FMI. "Concentração da renda" é medida
pelo percentual da renda dos 10% mais ricos. Detalhes sobre a metodologia podem ser obtidos com o autor.
Importa verificar que fatores afetam a probabilidade de um país escolher uma das três alternativas acima e, em particular, optar pela resistência à política de crédito previamente acordada com o FMI. A utilização
de programas do Fundo no caso permite compor uma amostra ampla com
diferentes países submetidos a programas com razoável grau de uniformidade. Além do grau de concentração da renda, foram testadas as seguintes variáveis independentes:
i) magnitude dos choques externos recentes — medidas de austeridade são tanto menos palatáveis politicamente quanto maior for a contribuição do choque externo para os problemas macroeconômicos do país;
ii) tradição de crescimento — o crescimento acelerado tem constituído uma das válvulas de escape para o conflito distributivo e uma das
fontes de legitimação política. Na medida em que a memória de expansão
sistemática se consolida, emerge uma tradição de crescimento acelerado.
Tal fenômeno diminui a tolerância da sociedade a períodos de recessão;
iii) poder fiscal do Estado — a estabilização requer vultosas transferências intersetoriais de recursos e uma menor utilização do poder de "senhoriagem". Um Estado destituído de uma sólida base fiscal encontra di117
(5)Ver, entre outros, G. S.
Maddala, Limited Dependent and Qualitative Variables in Econometrics
(Cambridge, 1983), para
uma discussão do Logit.
Ver G. Oliveira, The Brazilian Experience with the
IMF, (Berkeley, 1989) para um detalhamento deste tipo de exercício.
ESTABILIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DA RENDA
ficuldades em promover as transferências necessárias, bem como em diminuir o financiamento inflacionário;
iv) abertura da economia — o isolamento da economia é um fator
permissivo da resistência na medida em que abre a possibilidade para uma
maior divergência entre preços nacionais e internacionais. Além disso, num
contexto de barganha em torno da dívida externa, o maior grau de autarquização diminui as perdas potenciais de uma solução não cooperativa
com os credores.
Verificou-se que o grau de concentração da renda, ao lado da magnitude dos choques externos, constitui fator relevante para determinar as
chances de implementação dos programas em questão. Chamou atenção
a robustez do resultado: a distribuição da renda persiste como uma variável importante utilizando-se diferentes "proxies" e modelos estatísticos.
A interpretação dos resultados acima exige cautela. Em primeiro lugar, porque, apesar da utilidade da detecção de regularidades estatísticas,
seria errôneo assumir sua validade para a totalidade dos casos nacionais.
Em segundo lugar, algumas variáveis político-institucionais relevantes não
são passíveis de quantificação precisa. Em terceiro lugar, há várias limitações para a comparabilidade dos dados de diferentes países. Em quarto
lugar, as conclusões de política não são imediatas, conforme discutido na
próxima seção. Assim, exercícios dessa natureza servem para fornecer pistas
para a análise histórica e institucional. Nunca para substituí-la 6 .
Ilusões à esquerda e à direita
Uma interpretação ingênua dos resultados anteriores é a de que bastaria promover uma melhora do perfil distributivo para alcançar o consenso necessário à estabilização. No entanto, os parâmetros distributivos
são muito rígidos. Na maior parte dos países, a distribuição pessoal da renda
varia pouco, e apenas lentamente.
Ademais, seria irrealista supor uma melhora substancial na distribuição funcional concomitante com o esforço estabilizador. A mudança
na estrutura de preços relativos tende a gerar uma combinação de perda
de salário direto real e aumento do desemprego, sendo improvável que
ocorra uma redução prolongada nas margens de lucro. As experiências
de estabilização com objetivos redistributivos ambiciosos (Peru de Alan
Garcia e Chile de Allende, por exemplo) redundaram em fracasso.
Por outro lado, a ausência de visão de longo prazo não é monopólio das coligações de esquerda ou alianças nacional-populistas. A imposição de um ajuste profundo sem nenhuma preocupação com políticas de
rendas e medidas compensatórias tem pouca viabilidade num regime democrático. E num contexto autoritário não asseguraria uma solução de
longo prazo, posto que uma piora sensível nos parâmetros distributivos
tenderia a aumentar a resistência à estabilização.
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(6) A resistência à implementação de programas de
estabilização é tema de
pesquisa ora em andamento
no
Cebrap.
Pretende-se aperfeiçoar a
aplicação do Logit, bem
como complementá-la
com
uma
análise
histórico-institucional de
algumas experiências
nacionais.
NOVOS ESTUDOS nº 26 - MARÇO DE 1990
Na realidade, a repressão prolongada de demandas sociais durante
regimes autoritários está freqüentemente na origem da formulação de objetivos inconsistentes de política em períodos subseqüentes de abertura.
A pesada herança da "Nova República" é ilustrativa a este respeito.
Saídas possíveis
Não é fácil romper o círculo vicioso descrito no início. Mas é impossível ignorar o aspecto distributivo da estabilização. Três recomendações são pertinentes. Em primeiro lugar, a percepção prospectiva da situação distributiva importa mais do que a condição real. Seria preciso persuadir os setores menos favorecidos de que há perspectivas de melhora
a médio e longo prazos. A reorientação dos gastos sociais e indicações de
possibilidades de aumento do salário indireto são importantes neste
sentido.
Em segundo lugar, será preciso transmitir a noção de que todos os
grupos estão contribuindo com uma cota proporcional de sacrifício. Daí
a importância de efetuar um profundo corte racionalizador de despesas
públicas, promover uma reforma patrimonial, aumentar a carga tributária
e negociar uma redução das transferências externas. A simultaneidade destas medidas não importa apenas pela magnitude do rombo. Cumpre também consagrar a idéia de que, se não todos, pelo menos muitos, estão pagando a conta.
Em terceiro lugar, será necessário dispor de um conjunto de medidas distributivas emergenciais para atenuar o impacto de uma possível recessão sobre os grupos de baixa renda. Além do seguro-desemprego, isto
envolveria a formação de frentes de trabalho, incentivos a acordos entre
empresas e empregados para redução da jornada de trabalho, e esquemas
de prioridade para recontratação, distribuição de alimentos e retreinamento
da força de trabalho. O financiamento destes programas viria de um empréstimo compulsório e/ou de crédito especial dos organismos
internacionais.
A consecução das políticas listadas acima requer maior sofisticação
nos contratos. Cumpre, por exemplo, elaborar cláusulas de natureza contingencial para alargar o horizonte de planejamento dos agentes e ampliar
as agendas corporativas para alcançar soluções de compromisso. É impossível prever se Estado e sociedade civil serão maduros o suficiente para
enfrentar este desafio dos anos 90. Mas é certo que o elemento surpresa
e o arbítrio — tão presentes nos anos 80 — não são os ingredientes apropriados de política econômica. Seria desejável que as autoridades da próxima década soubessem substituí-los pela transparência dos planos e pelo
alargamento dos espaços de negociação.
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Gesner Oliveira é pesquisador do Cebrap.
Novos Estudos
CEBRAP
Nº 26, março de 1990
pp. 114-119
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