Discussão As glomerulonefrites são decorrentes de processo inflamatório agudo renal podendo ser primárias e secundárias. As secundárias são aquelas nas quais uma doença sistêmica é a responsável pelas alterações glomerulares encontradas; as primárias são devidas às doenças próprias renais. A glomerulonefrite difusa aguda (GNDA) ou glomerulonefrite proliferativa difusa aguda, uma glomerulopatia primária, apresenta como fisiopatologia a infiltração de células inflamatórias e proliferação de células residentes do glomérulo, acometendo assim a função renal (1). Por apresentarem manifestações clínicas semelhantes, as doenças glomerulares têm o diagnóstico definido por biópsia renal, sendo desta forma a incidência subestimada, pois há necessidade de estrutura física e profissional para a realização desta, ficando circunscrita a grandes centros especializados, que contenham patologistas renais e profissionais treinados para a realização de tal procedimento. O Registro Paulista de Glomerulopatias (RPG) com registros iniciado desde 1999 até a presente data, notificou 3267 doenças glomerulares e destas 2,5%, correspondem a glomerulonefrites difusas agudas (GNDA). Destes 2,5%, apenas 8% estão em pacientes acima de 60 anos e somente 0,4 acima de 80 anos. Polito e col. Relataram nos seus estudos que 2,2% dentre 9617 biópsias em rins nativos foram de pacientes idosos com GNDA (4,9). A incidência de glomerulopatias em idosos tem variado bastante nas diversas séries analisadas: de quase nula a 25% (3,8). 21 Um estudo retrospectivo realizado no Departamento de Patologia da Unifesp avaliou os achados histopatológicos renais em idosos (idade maior ou igual a 60 anos) no período de 1996 a 2003 com 113 casos apresentando as glomerulopatias primárias (45,1%) como as mais prevalentes. (vide TABELA 1) Tabela 1- Dados demográficos e histológicos. Características clínicas IDADE (ANOS) SEXO (%) FEMININO MASCULINO CLASSIFICAÇÃO HISTOLÓGICA GLOMERULOPATIA PRIMÁRIA DOENÇAS RENAIS SECUNDÁRIAS PATOLOGIA NÃO GLOMERULARES OUTRAS DADOS DEMOGRÁFICOS E HISTOLÓGICOS 66 mais ou menos 6 45,1 54,8 45,2 35,4 9,7 9,7 J Bras Nefrol 2010; 32(3); 286-291 Neste estudo a GNDA representou apenas 7,8% das glomerulopatias primárias (3). O protótipo da GNDA é a glomerulonefrite pós- infecciosa, sendo a mais comum a pós-estreptoccócica, acometendo prevalentemente crianças e adultos jovens. 22 É menos comum em países desenvolvidos por diminuição da infecção por estes patógenos (1 5). O agente causador mais comum é o Streptococcus beta hemolítico do grupo A de Lancefield, sendo os sorotipos mais comuns o: 1 2,12 e 60. Foram também relatados outros patógenos associados a esta afecção como: Staphylococcus spp, E.coli, Pseudomonas, Proteus mirabilis, Salmonella typhi, vírus Epstein Barr, Citomegalovírus, Toxoplasma, Plasmodium Falciparum; entre outros (5). Em um estudo com avaliação retrospectiva de 109 casos de biópsias renais de glomerulonefrite pós-infecciosa em pacientes com idades igual ou maior a 65 anos, realizado no Departamento de Laboratório de Medicina e Patologia da Clínica Mayo, em Rochester, Minnesota (EUA) e Departamento de Patologia da Universidade Columbia, Nova York (EUA) no período de 2000 a 2010 apresentou a prevalência do Staphylococcus, foi o agente causador mais prevalente (Tabela 2) (6). Tabela 2- Agentes infecciosos (109 pacientes) Agente infeccioso Nº de pacientes (%) Staphylococcus Streptococcus 50 (46) 17 (16) E. coli 5 (5) Pseudômonas 2 (2) Actinetobacter 1 (1) Serratia marcesnces 1 (1) Proteus 1 (1) Enterobacter cloacae 1 (1) Cândida Klebsiella 1 1 (1) (1) J AM Soc Neprol 22: 187-195 2011. 23 Os sítios mais comuns de infecção da glomerulonefrite pósinfecciosa são pele, pulmão, vias aéreas superiores e trato urinário, contudo, pode-se apresentar como endocardite bacteriana, shunt ventrículo-peritonial infectado, pneumonia por micoplasma, hepatite viral, mononucleose infecciosa, prostatite, osteomilelite, cisto pancreático infectado. No estudo citado acima, realizado nos EUA, em idosos, as infecções de pele foram as mais prevalentes (28%). Já as infecções as infecções de vias aéreas superiores (10%), foram as mais prevalentes em crianças e adultos. Causas não infecciosas como: lúpus eritematoso sistêmico, púrpura Henoch-Scholein, Poliangeíte Nodosa, Granulomatose de Wegener também podem levar a glomerulonefrite difusa aguda. Há poucos dados na literatura sobre a evolução das glomerulonefrites difusas agudas a longo prazo. Moroni e col, 2002, avaliaram o prognóstico a longo prazo de glomerulopatias associadas à infecção em adultos com seguimento por 20 anos (1979 a 1999). Foram acompanhados 50 adultos com média de idade de 54 anos, destes pacientes da Itália e Suécia apenas um paciente apresentou como sítio infeccioso uma diarréia febril, sintomatologia apresentada pela paciente do caso descrito. A diarréia, como causa da GNDA, não é descrita como freqüente, ao contrário, é rara e há escassos casos na literatura para esta apresentação da doença. Em 1966, um estudo retrospectivo, que analisou adultos com idades entre 53 a78 anos, descreve a diarréia como uma das causas possíveis para GNDA. No nosso caso, não temos como provar que a diarréia foi o desencadeador da GNDA. No entanto, era a única manifestação 24 infecciosa que a paciente apresentou previamente à doença renal. Mais atípico ainda foi o fato de que a coprocultura identificou Cândida albicans, patógeno não comum como causador de doença. Uma vez que a paciente se mantinha com febre e diarréia intermitente na internação, mesmo após o uso inicial de Ciprofloxacina, optamos por administrar Fluconazol para tratamento da Cândida. A partir daí a paciente parou de apresentar febre e diarréia. Assim sendo, não podemos deixar de considerar esta diarréia inicial como agente causador da GNDA. Depois de vários dias de internação a paciente volta a apresentar diarréia, mas já com outras características: sem febre e contínua. Neste momento já havia sido feito uso de vários antibióticos, e atribui-se então à diarréia de origem da colite pseudomembranosa, confirmada pela presença de Clostridium nas fezes e membranas na colonoscopia. Síndrome nefrítica (edema, hipertensão e hematúria geralmente macroscópica) é o quadro clínico habitual da GNDA. Pode se apresentar também como síndrome nefrótica (edema, proteinúria acima de 3,5g/d e hipoalbuminemia) e outras formas como: hematúria macroscópica recorrente, hematúria microscópica isolada, proteinúria subnefrótica isolada, todas elas com ou sem hipertensão (1). Mas estas formas de apresentação não são as mais características da doença em geral. 25 Uma forma não usual e mais dramática de apresentação clínica da GNDA pode ser a ocorrência de síndrome nefrítica associada à perda rápida e progressiva da filtração glomerular (dias a semanas), com necessidade de diálise. Essa forma de apresentação corresponde ao que denominamos glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP), que ocorreu com a paciente relatada. Diante de uma suspeita de glomerulopatia, a investigação diagnóstica para tal envolve: análise do sedimento urinário com urina tipo I, urocultura, pesquise de dismorfismo eritrocitário, proteinúria de 24 horas, além de exames que avaliam a função renal e exames de imagem. Análise do sedimento urinário apresenta dismorfismo eritrocitário, cilindros hemáticos e leucocitários. A hematúria foi o achado urinário mais prevalente, em dois grandes estudos, como mostra a figura 1. Vale a pena salientar que a hematúria, na maioria das vezes, ou não é percebida pelo paciente ou é descrita pelo paciente com urina mais escura que o normal, uma vez que raramente se apresenta como sangue vermelho vivo e avermelhado na urina. A maioria das vezes é oligo ou assintomático e é um achado no exame de urina. A leucocitúria é comum e é reflexo do processo inflamatório glomerular, de modo que a urolcultura é negativa. O consumo de complemento por via alternativa, particularmente da fração C3 ocorre em 90% dos casos (6,7). No caso de infecção pós-estreptococcócica, podemos encontrar os anticorpos circulantes a enzimas do estreptococo, tais como anti-estreptolisina O, antideoxirribonucleose B, anti-hialurinidase. 26 Figura1- Análise do sedimento urinário na GNDA Clin J AM Neprol 3:674-681, 2008 Explorada a análise clínico/laboratorial o diagnóstico histológico deverá sempre que possível, ser confirmado pela biópsia renal. A avaliação histopatológica por biópsia renal é o método de investigação capaz de estabelecer diagnóstico definitivo. Além disso, as informações obtidas por meio de biópsias renais não identificam apenas o diagnóstico específico como também índices prognósticos. O diagnóstico de glomerulopatias em idosos, conforme citado no início deste texto, pode ser subestimado em idosos, uma vez que os sintomas podem ser atribuídos a doenças sistêmicas, como prostatismo, por exemplo, (3). 27 Além disso, diante da presença de comorbidades, muitos ainda mantêm uma atitude conservadora com relação a procedimentos invasivos nessa população, pelo risco de complicações (3,11). Mesmo em pacientes muito idosos, com idade superior a 80 anos, não existe contra-indicação formal à biópsia renal desde que critérios de segurança sejam obedecidos (3 4,12). Em uma análise realizada na Espanha, com registro de glomerulopatias em uma coorte de 14.190 biópsias de rim nativo de 112 unidades renais da Espanha entre 1994 a 2006, foram realizadas biópsias em 3 diferentes faixas etárias, sendo uma delas: os idosos (idade >65 anos) e não mostrou contra-indicações pela idade(12). Neste mesmo estudo, Gomez e col. analisaram as principais indicações da realização da biópsia, sendo a insuficiência renal aguda a terceira indicação (16,9%) com a síndrome nefrótica em primeiro lugar (37,3%). (3,4,6,12) (figura 2) Figura 2- Freqüência principais síndromes renais que necessitaram de biópsia durante o período do estudo C J AM Neprol, 2008 28 Dentre a faixa etária mais prevalente na insuficiência renal aguda, os idosos representaram 32,9% seguidos pelos adultos com 12,5%. E 90% das biópsias com IRA apresentavam sedimentos urinários com anormalidades (12). A explicação talvez seja porque a insuficiência renal aguda em idosos é uma desordem freqüente e o aumento desta incidência nesta faixa etária é uma somatória de fatores tanto histológicos e funcionais: distúrbios na auto-regulação, redução do número de glomérulos e capilares, fragilidade tubular. O fato de os idosos apresentarem vários fatores contribuindo para o aparecimento da insuficiência renal aguda (IRA) é também um fator que confunde o diagnóstico, e é comum subestimar as glomerulonefrites, sobretudo a GNDA, como possibilidade causal para a IRA deste paciente. É comum então, protelar a realização da biópsia, o que contribui para evolução da doença renal. Somado a isso, considerando-se os maiores riscos do procedimento em idosos e as alterações urinárias como leucocitúria e hematúria, muito freqüentes neste pacientes e não atribuídas à doenças glomerulares e nem à outras morbidades como: prostatismo, cistites crônicas, coleta inadequada, etc, o diagnóstico de glomerulopatia fica ainda mais menosprezado e então, sub-diagnostiacado. Para tanto, devemos insistir na coleta seriada do sedimento urinário (urina tipo I, urocultura, dismorfismo eritrocitário) assegurandose da forma antisséptica adequada da coleta e da forma correta de armazenamento e envio ao laboratório. 29 Uma vez persistentes as anormalidades do sedimento urinário e afastando-se infecção do trato urinário, o diagnóstico de glomerulonefrite sempre deve ser considerado. Firmada a suspeita diagnóstica e, principalmente diante de evolução para IRA, biópsia renal deve ser considerada e realizada sempre que não houver contra-indicação para tal, como por exemplo: discrasias sanguíneas, rim único, dentre outros. Análise da biópsia com microscopia óptica de pacientes com glomerulonefrites difusa aguda mostra presença de glomérulos grandes, com hipercelularidade mesangial e endotelial difusa associada a infiltrado neutrofílíco. Pode haver crescentes, sendo rara a forma crescêntica (presença de crescentes >50% glomérulos) (1, 5,6) (figura 2). Figura 2- glomerulonefrite difusa aguda. 30 A imunofluorescência evidencia depósitos de imunocomplexos com padrão granular difuso sendo típico o achado de IgG e C3 em mesângio e capilares. (1,5, 6) (figura 3) Figura 3- imunofluorescência na GNDA Na microscopia eletrônica pode haver presença de corcovas, ¨humps¨, até 92% dos achados nas biópsias com GNDA. (6) (figura 4) Figura 4- microscopia eletrônica com visualização de ¨humps¨. 31 A evolução costuma ser benigna com resolução espontânea em crianças e adultos, contudo a despeito do tratamento a evolução em idosos tem pior prognóstico. (6,7) O tratamento da GNDA é eminentemente clínico. Antibioticoterapia direcionada para o agente causador isolado em cultura e/ou para o mais prevalente empiricamente se a infecção estiver presente, e suporte clínico. Como já comentamos, a GNDA costuma ter evolução benigna, principalmente a GNPE. No entanto, diante das formas rapidamente progressivas, como foi o caso da paciente em questão, elas devem ser tratadas como tal, e então a imussupressão deve ser considerada. Corticóide e citostáticos (como a Ciclofosfamida) são os agentes mais utilizados. Há poucos trabalhos com GNDA em idosos, de tal modo que não há consenso sobre imunossuprimir ou não. Há trabalhos na literatura que inclusive apontam que a corticoterapia não foi favorável, como demonstra Nasr e col, 2011 e outros demonstram algum benefício, como Moroni e col, 2002 (6,7). Desta maneira o paciente deve ser conduzido como qualquer portador de GNRP, com o tratamento específico para tal, que consiste na imunossupressão, sempre que não houver contra-indicação formal como: presença de infecção ativa ou neoplasias, por exemplo. O caso relatado apresenta manifestação atípica da glomerulonefrite difusa aguda, pois epidemiologicamente ocorre fora da faixa etária comum, com história clínica pouco sugestiva: (hematúria macroscópica, edema e diarréia febril intermitente). 32 Sintomas foram sugestivos de GNRP, contudo, a evolução pouco comum para GNDA. A paciente em 20 dias evolui para anúria e com necessidade de hemodiálise. Realizada biópsia renal e diagnosticada GNDA com crescentes. Apesar do tratamento com Metilprednisolona e Ciclofosfamida. Tratamento este instituído conforme clínica de glomerulopatia rapidamente progressiva, até o momento não recuperou função renal. Também há poucos trabalhos sobre a evolução da GNDA em idosos. Em 2002, na Itália e Suécia, Moroni e col, em um estudo retrospectivo de 20 anos avaliou o prognóstico a longo prazo dos pacientes com glomerulopatia associada à infecção em adultos, de 1979 a 1999. Avaliaram 50 adultos com idade média de 54 anos, todos com proteinúria, hematúria e pelo menos 2 critérios clínico-laboratoriais (episódio recente de infecção, anti-estreptolisina > 250UI/l, redução de complemento), E 2 critérios histológicos (proliferação difusa e/ou glomerulonefrite exsudativa; dominância em depósito granular de IgG e/ou C3 subepitelial na imunofluorescência, presença de ¨humps¨na microscopia eletrônica): Foram dividos em 2 grupos: GRUPO I (29 PACIENTES) Sem doenças de base GRUPO II (21 PACIENTES) Portadores de comorbidades severas: cirrose, neoplasia, diabetes mellitus, DPOC talassemia, alcoolismo 33 O tratamento foi baseado em corticoterapia Metilprednisolona por 3 dias e prednisona por mais, aproximadamente, 6 meses e foi aplicado da seguinte forma: COM TRATAMENTO 24 pacientes 13 do grupo I e 11 do grupoII SEM TRATAMENTO 21pacientes Indicação: presença de insuficiência renal e/ou proliferação extracapilar na biópsia renal em > 30% glomérulo. Os resultados obtidos durantes os 20 anos de observação, seguem na Tabela 3. Tabela 3: status renal de 49 pacientes na ultima observação. GRUPO I Completa remissão 18(64%) Remissão parcial 5(18%) Insuficiência renal 3(11%) Diálise 2(7%) GRUPOII 3(14%) 5(24%) 9(43%) 3(14%) TOTAL 21(43%) 10(20%) 13(27%) 5(10%) Os objetivos desta análise eram: (1) avaliar o prognóstico a longo prazo de adultos que foram hospitalizados por causa de glomerulonefrite pos-infecciosa nos 20 anos propostos. E toda a análise sugere fortemente que o prognóstico a longo prazo em adultos é pior. 34 E identificar fatores preditores do prognóstico renal. Apenas a ausência de comorbidades prévias foram estatísticamente significativas. Houve evidência de que a presença de crescentes foram preditores de mal prognóstico. (2) avaliar o espectro da doença ao longo dos anos, que não demostrou nenhuma alteração significativa. Em conclusão este estudo demonstrou que glomerulonefrite associada à infecção em adultos, particularmente naqueles com comorbidades deve ser considerada como doença severa. A paciente em questão apresentou o quadro severo de insuficiência renal aguda dialítica, apresentava como comorbidade apenas Hipertensão arterial, gastroenterite se provável manifestando quadro com infeccioso diarréia, prévio anúria e seria a edema. Apresentou hematúria, sendo esta apresentação a mais comum alteração do sedimento urinário da GNDA. Foi relatada pela paciente como macroscópica, sangue vivo, o que não é muito comum na apresentação clínica da doença. A decisão para realização de biópsia renal foi acertada para definição diagnóstica, tratamento e prognóstico. A despeito do tratamento específico, evolui sem melhora da função renal, o que corrobora com os dados da literatura quanto à evolução da GNDA em idosos. 35