O que traz de novo o Reappraisal of European Guidelines on Hypertension Management da Sociedade Europeia de Hipertensão? Nestes anos após a publicação das 2007 Guidelines for the Management of Arterial Hypertension, da European Society of Hypertension (ESH) em conjunto com a European Society of Cardiology (ESC)(1) continuou a haver intensa investigação sobre a fisiopatologia, a metodologia de diagnóstico e a terapêutica da hipertensão arterial (HTA). Muito rapidamente foram surgindo numerosos comentários consistentes, com base nos dados de estudos entretanto publicados e em revisões e meta-análises precisas, o que levou à publicação, em 2009, de um documento emanado de uma Task Force da ESH, o Reappraisal of European Guidelines on Hypertension Management(2). Este documento reforça alguns dos princípios contidos nas Guidelines de 2007, nomeadamente no que se refere ao diagnóstico das lesões de órgão-alvo, às vantagens do tratamento correcto na redução da morbi-mortalidade e à escolha dos medicamentos e associações, mas apresenta algumas diferenças na abordagem da HTA. Abordaremos de forma abreviada para o clínico prático as principais diferenças, começando por noções de carácter geral, seguidas de comentários para situações específicas. Fátima Ceia Directora do Serviço de Medicina III do Hospital de S. Francisco Xavier/Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, Prof.ª Agregada da Faculdade de Ciências Médicas da UNL/ Regente da Unidade Curricular de Terapêutica Geral 1. Fármacos, associações e como introduzi-los no tratamento Bloqueadores adrenérgicos Duas meta-análises recentes bem como o seguimento prolongado de 20 anos dos doentes diabéticos tratados com captopril versus atenolol, do UKPDS, vieram de certo modo reabilitar os betabloqueantes (BB). Apesar de se manter alguma controvérsia, convem lembrar que os bloqueadores adrenérgicos de que hoje dispomos são muito heterogéneos nas suas características, podendo algumas ser particularmente benéficas. Por exemplo, o nebivolol, para além da vasodilatação, é menos bradicardizante (o que tem melhor efeito na PA central em comparação com o atenolol, por exemplo); melhora a sensibilidade à insulina e parece também melhorar o débito coronário e o enchimento ventricular nos hipertensos. O carvedilol, também com efeito vasodilatador, parece ser responsável por menos casos de diabetes inaugural (embora este efeito tenha sido verificado em estudos de insuficiência cardíaca (IC). Todavia, é sabido que a associação BB+diurético favorece o aparecimento da diabetes pelo que os BB devem ser reservados para os doentes que deles necessitam por razõess específicas (por exemplo, IC com disfunção sistólica do VE ou doentes com disritmias rápidas). Diuréticos tiazídicos As tiazidas têm numerosos efeitos metabólicos que, à partida, não as indicam para tratamento da HTA. Na realidade, nunca foram estudadas apropriadamente, mas os vários estudos com tiazidas não mostraram efeitos benéficos, em comparação com os moduladores dos canais do cálcio (MCa) ou com os inibidores da enzima de conversão da 22 Recebido para publicação: Fevereiro de 2012 Aceite para publicação: Fevereiro de 2012 Revista Factores de Risco, Nº24 JAN-MAR 2012 Pág. 22-25 angiotensina (IECA), nem as associações com tiazidas se mostraram sempre benéficas. De notar que os efeitos podem ser benéficos com dose baixa, mas não com dose alta. associação IECA+tiazida ou BB+tiazida (estudos Syst-Euro, HOT, ASCOT e ACCOMPLISH). IECA+ARA Continua a não haver evidência da vantagem da sua associação (ONTARGET); por outro lado, o risco de elevação da creatininemia e de hipercaliemia torna-se claramente maior. IECA e antagonistas dos receptores da angiotensina (ARA) Até à data, não surgiu nada de diferente do já conhecido e incluído nas Recomendações(1) sobre a utilidade destes fármacos no tratamento da HTA. Não se provou que reduzissem a diabetes inaugural (estudos ONTARGET, TRANSCEND, PROFESS) nem a ocorrência de fibrilhação auricular (estudos TRANSCEND, PROFESS, I-PRESERVE e, mais recentemente, CAPRAF e GISSI-AF). Associações em dose fixa Continuam a ser recomendadas, porque aumentam a adesão à terapêutica. Existem actualmente associações de dois fármacos em diversas combinações, com diversas dosagens, o que facilita a prescrição individualizada. Moduladores dos canais do cálcio (MCa) Estudos recentes vieram ilibar estes fármacos do suposto aumento de eventos coronários. No que se refere à IC, convem considerar que alguns MCa não são apropriados para o tratamento de doentes com disfunção sistólica ventricular, mas os estudos que incluíram doentes com IC e função sistólica ventricular preservada não mostraram efeitos adversos. Novos fármacos estão em análise neste momento, nomeadamente o inibidor da renina, o aliscireno, fármaco prometedor de introdução muito recente e, como tal, ainda em observação. No que se refere ao escalonamento dos fármacos, os autores do Reappraisal(2) concordam com o preconizado nas Recomendações de 2007(1), isto é, deve ser escolhido o fármaco ou associação de fármacos de acordo com o doente, com efeitos benéficos e adversos previsíveis, mas com algumas diferenças em grupos particulares, que a seguir serão mencionados. Associações de mais do que dois fármacos Cerca de 15 a 20% dos doentes requerem mais do que dois fármacos para que se obtenha o controlo da PA. Nestes casos, parece lógico associar IECA, MCa e tiazida, embora os BB ou os α-adrenérgicos possam ser considerados, em situações individualizadas. Até agora, referimos aspectos gerais anotados no Reappraisal(2). É feita uma chamada de atenção para a dualidade entre o tempo de duração dos estudos, habitualmente curto, e a duração de vida dos doentes, que se tornam diferentes com o passar do tempo, com novas patologias, com o envelhecimento e, por vezes mesmo com uma tendência “expontânea” para a redução dos valores da PA. O clínico tem de ter estes aspectos sempre bem presentes. Estudos de seguimento prolongado, recentemente publicados, (extensões do UKPDS, HYVET, SHEP e Syt-Euro) vieram reforçar estes factos bem como a necessidade de tratar desde o início de forma adequada(3). O doente real, que geralmente não é “apenas” um hipertenso ideal, põe alguns problemas que importa agora abordar. A desmitificação do conceito “the lower is the best” aplicado ao tratamento da HTA é um dos aspectos que se reveste de uma enorme importância prática(4), por vários motivos: - redução da angústia de médicos e doentes por não se conseguir atingir o que antes se pensava ser o valor-alvo para a situação; - evicção de danos colaterais eventualmente relacionados com pressão arterial reduzida “excessivamente”, sobretudo sem fundamento em qualquer estudo com desenho adequado para esse objectivo, particularmente nos diabéticos. nos coronários e nos idosos. - redução dos custos do tratamento. Iniciar o tratamento com uma associação de fármacos? É conhecido que muitos doentes requerem terapêutica combinada, para que seja atingida a PA-alvo. Todavia, não existe evidência de que se deva iniciar a terapêutica com uma associação de fármacos, nos doentes com PA elevada e alto risco. Por outro lado, parece sensato fazê-lo, tendo em conta os benefícios de obter uma redução da PA em relativamente pouco tempo. Não parece provável – nem útil, que venha a surgir um estudo desenhado para comparação destas duas atitudes, pelo que, mais uma vez, a decisão cabe ao clínico, alicerçado nas Recomendações e nas características de cada doente. Associações de fármacos que se devem preferir Estudos mostraram que a associação de indapamida com IECA (perindopril) tem maior benefício na prevenção do novo AVC (PROGRESS), no objectivo final conjunto de lesões macro e micro-vasculares em diabéticos (ADVANCE) e na redução da PA e de eventos cardiovasculares (CV) em idosos (HYVET). Vários estudos demonstraram os efeitos benéficos sem maior % de efeitos adversos, da associação de diversos IECA com diversos MCa, nomeadamente em comparação com a 2. Abordamos agora algumas situações com especificidade, em particular os idosos e os doentes com morbilidades associadas: a diabetes mellitus, a doença coronária e o AVC prévio, segundo os autores do Reapppraisal e também considerando alguns estudos entretanto publicados. 23 O que traz de novo o Reappraisal of European Guidelines on Hypertension Management da Sociedade Europeia de Hipertensão? «Parece ser possível a prevenção primária da nefropatia diabética, bem como a redução da sua progressão, quando já presente, mesmo em diabéticos normotensos, com o recurso a IECA, ARA ou MCa». Vários estudos com desenho apropriado demonstraram que a redução dos valores da PA diminui o risco de novo AVC, quer em hipertensos quer em normotensos. Os resultados de estudos mais antigos, como o PROGRESS, foram confirmados por outros mais recentes, como o ONTARGET. Se um doente tiver apenas doença cerebrovascular, parece haver um corpo de evidência favorável a que seja obtida e mantida uma PA sistólica (PAS) vizinha dos 120 mm Hg e <80 mm Hg para a PA diastólica (PAD), desde que, evidentemente, não existam sintomas atribuíveis a hipotensão, ortostática ou não.(1,2,6). Este objectivo não é partilhado no tratamento do hipertenso com doença coronária. A análise, nos ensaios, dos motivos de saída dos doentes, bem como os resultados de análises post-hoc de vários estudos, evidenciaram que o atingir valores de PAS até 120-125 mm Hg e PAD de 70-75 mm Hg traz benefício claro na redução dos eventos cardiovasculares agudos. Todavia, para valores inferiores observa-se um acréscimo de eventos coronários agudos, o fenómeno da curva em J. Assim, o Reappraisal aconselha prudência no tratamento destes doentes, indicando como valores-alvo 130-139/80-85 mm Hg, provavelmente mais perto dos valores mais baixos(2). São claramente necessários mais estudos, com objectivos e desenho especialmente dirigidos a este problema. É sabido que a prevalência de doença coronária nos doentes hipertensos com AVC é elevada. Assim o seu tratamento constitui um desafio claro ao clínico e dá grande relevo a esta nota de prudência: que valores será sensato tentar obter nestes doentes? Claramente, é necessária uma estratificação precisa das lesões de órgão-alvo e do risco cardiovascular, uma individualização terapêutica e um acompanhamento adequado. Os autores do Reappraisal chamam a atenção para um outro aspecto importante: os estudos duram habitualmente no máximo alguns anos. Parece provável que, há medida que os anos passam, o controlo da PA se acompanhe de uma melhoria progressiva, lenta, daquelas lesões – como mostram os estudos SHEP e UKPDS, o que pode ajudar a estabelecer o valor da PA mais adequado para cada doente. No que se refere aos idosos, a extensão do estudo HYVET, à semelhança da do Syst-Eur e da análise de um subgrupo do SEHP(3) veio mostrar as vantagens do controlo da HTA mesmo nos muito idosos. A terapêutica com indapamida, em associação ou não com perindopril, permitiu uma redução significativa do AVC e dos eventos cardiovasculares, numa população de octogenários não debilitados e sem défice cognitivo, nos quais a PA média obtida foi de 143/76 mm Hg, sendo mínimos os efeitos adversos, quer metabólicos quer a hipotensão ortostática. Não é possível saber se valores de PA mais baixos seriam igualmente bem tolerados. De notar que os participantes do estudo apresentavam frequentemente à entrada PA média de 160/80 mm Hg, atestando da necessidade destes doentes iniciarem tratamento farmacológico, o qual deverá permitir-lhes uma vida mais longa com qualidade: autonomia e actividade. Todavia, é preciso não esquecer que a população do estudo HYVET era uma população de octogenários hipertensos “saudáveis”, isto é, sem qualquer outra patologia conhecida, activos, sem défice cognitivo. Não existe nenhum estudo que prove as vantagens da mesma abordagem em idosos frágeis, com défice cognitivo, com patologias associadas. Também não existe nenhum estudo que incluísse idosos com HTA de grau 1, nem a PA foi reduzida para < 140 mm Hg, pelo que os autores recomendam vivamente que estes aspectos sejam sempre considerados(2,3). No que se refere aos diabéticos hipertensos, consideremos os três pontos seguintes: - Parece ser possível a prevenção primária da nefropatia diabética, bem como a redução da sua progressão, quando já presente, mesmo em diabéticos normotensos, com o recurso a IECA, ARA ou MCa. - Não existe evidência da necessidade de tratamento hipotensor em diabéticos com PA no grau normal/alto. Todavia, e considerando o antes referido, parece legítimo iniciar um daqueles fármacos, dada a protecção conferida, especialmente ao rim. - Não existe evidência consistente que baseie a utilidade de baixar a PA até <130/80 mm Hg.nos diabéticos hipertensos, como anteriormente se havia afirmado. A terapêutica anti-hipertensiva parece afectar os vários órgão-alvo de maneira diferente. Como dissemos, existe evidência da prevenção e da redução da progressão da nefropatia, mas o mesmo não sucede quanto à neuropatia e os resultados de vários estudos são diferentes quanto às lesões do sistema ocular (estudos UKPDS, DIRECT, ADVANCE). No Quadro 1 resumimos as principais atitudes a reter no que se refere ao tratamento dos diabéticos hipertensos e as diferenças em relação às Recomendações de 2007(2, 5, 6). 24 Revista Factores de Risco, Nº24 JAN-MAR 2012 Pág. 22-25 Quadro 1 Terapêutica anti-hipertensiva nos diabéticos • Nos diabéticos, a terapêutica farmacológica deve ser sempre iniciada se a PA for ≥ 140/90 mm Hg. Não existem estudos que claramente indiquem iniciar a terapêutica na PA normal-alta, se bem que aquela possa ter de ser prescrita por outros motivos (microalbuminuria, por exemplo) dados os efeitos nos órgãos-alvo. • O objectivo tradicionalmente proposto para os hipertensos diabéticos – 130/80 mm Hg não tem suporte em nenhuma evidência e é muito difícil de atingir em muitos doentes. Assim, é sensato propor apenas que se tente obter uma redução confortável da PA. • As meta-análises mostram que todas as classes principais de anti-hipertensores nos diabéticos tem efeito protector cardiovascular, provavelmente pela redução da PA. • Nos diabéticos, com muita frequência é necessária uma associação de fármacos para controlo da PA. Os ARA devem ser incluídos, por estar demonstrado que tem um maior efeito protector quanto ao início/progressão da nefropatia. • O controlo metabólico “apertado” em associação com o controlo tensional aumentam a protecção, em particular do rim. • O controlo da glicemia não deve contudo ser brusco e a monitorização cuidadosa dos doentes é indispensável, pelos riscos da hipoglicemia • As lesões microvasculares da diabetes respondem de forma diferente à protecção conferida pelos anti-hipertensores. Está provada para o rim, mas a evidência não é consistente no que se refere ao sistema ocular e à neuropatia. tem-nos abertos horizontes de expectativa quanto às nossas atitudes, actuais e para o futuro. Em conclusão, o Reappraisal of European Guidelines on Hypertension Management apoia-nos com notas de prudência e sensatez no tratamento de hipertensos que são muito frequentes na nossa prática clínica. Ao mesmo temo, man- Fátima Ceia Quadro 2 O que não se sabe: muitas das decisões para o tratamento da HTA não têm suporte em medicina baseada na evidência, i.e. não existem ainda estudos de grandes populações e com desenho adequado para responder aos problemas. Esses estudos são aguardados com grande expectativa(2). • Devem ser prescritos fármacos hipotensores a todos os doentes com HTA de grau 1, com risco cardiovascular total relativamente baixo ou moderado? • Devem ser prescritos fármacos hipotensores aos idosos com HTA de grau 1? Deve o tratamento hipotensor ter como objectivo atingir valores < 140/ 90 mm Hg, também nos idosos? • O tratamento hipotensor deve ser iniciado em diabéticos e em doentes com doença cerebrovascular quando a PA está ainda no nível normal/alto? Deve o objectivo terapêutico ser PA ≤ 130/80 mm Hg, nestes doentes? • Nas várias situações clínicas, quais são os valores mais baixos e seguros da PA que devem ser obtidos? • As características de estilo de vida, que se sabe que baixam a PA, também reduzem a morbilidade e a mortalidade? Referências blbiográficas* 4. Arguedas JA. Blood pressure targets: are clinical guidelines wrong? Curr Opin Cardiol 2010; 4: 350-4. 5. The ACCORD Study Group. Effects of intensive blood pressure control in type 2 diabetes mellitud. N Engl j Med 2010; 362: 1575-85. 1. Mancia G, De Backer G, Dominiczak A et al. Guidelines for the managemente of arterial hypertension: the Task Force for the Managemenet of Arterial Hypertension of the European Society of Hypertension (ESH) and of the European Society of Cardiology (ESC). J Hypertens 2007; 25; 1105-1187. 6. Garcia-Touza M, Sowers JR. Evidence-base hypertension treatment in patients with diabetes. J Clin Hyperten 2012; 14: 97-102. 2. Mancia, G, Laurent S, Agabiti-Rosei E et al. Reappraisal of European Guidelines on Hypertension Management: a European Society of Hypertension Task Force. J Hyperten 2009; 27: 2121-2158. * Optámos por apresentar como referências bibliográficas as 2007 Guidelines for the Management of Arterial Hypertension e o Reappraisal of European Guidelines on Hypertension Management, complementando com alguns estudos publicados após 2009, cuja leitura se recomenda. 3. Beckett N, Peters R, Tuomilehto J et al. Immediate and late benefits of treating very elderly people with hypertension: results from active treatment extension to Hypertension in the Very Elderly randomized controlled trial. BMJ 2012; 344: d7541:1- 25