A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO DESTERRITORIALIZAÇÃO CAMPONESA, RETERRITORIALIZAÇÃO QUILOMBOLA: AS TERRITORIALIDADES AFRO-BRASILEIRAS ENQUANTO ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA SOCIOTERRITORIAL DOS QUILOMBOS DO ALAGADIÇO, MINAS NOVAS - VALE DO JEQUITINHONHA-MG RAPHAEL FERNANDO DINIZ1 MARIA APARECIDA DOS SANTOS TUBALDINI2 Resumo: No presente texto são abordados os processos de des-re-territorialização de grupos étnicos tradicionais do Vale do Jequitinhonha/MG a partir de reflexões sobre as estratégias de resistência criadas contra as invasões de seus territórios. Através do uso de metodologias qualitativas, o estudo foi realizado em três comunidades quilombolas do Município de Minas Novas: Quilombo, Santiago e São Pedro do Alagadiço, as quais vivenciaram, a partir da década de 1980, um trágico e perverso processo de compressão territorial. Constatou-se que o reconhecimento enquanto “comunidades quilombolas” representou um marco histórico para as suas famílias, pois foi por meio deste ato que elas foram reconhecidas como grupos culturalmente diferenciados e, assim, puderam construir estratégias de resistência que lhes permitiram permanecer num território que é, dialética e indissociavelmente, material e imaterial, espaço de reprodução socioeconômica e sociocultural. Palavras-chave: Des-re-territorialização; Comunidades Quilombolas; Vale do Jequitinhonha/MG Abstract: This paper aims to examine the deterritorialization and reterritorialization processes of traditional ethnic groups of the Vale do Jequitinhonha region (Minas Gerais state, Brazil) based upon the analysis of their strategies against invasions of their territories. Through qualitative methodologies, this research was carried out in three 'quilombolas' communities in Minas Novas municipality. They were: Quilombo, Santiago and São Pedro do Alagadiço, which all experienced a tragic and perverse territorial compressional process since the 1980s. It was found that the recognition as 'quilombolas' communities represented a historical achievement for their families, since through such act they were recognized as distinct cultural groups. As a consequence, they were also able to build their own resistance strategies that have allowed them to remain in a territory which is, dialectically and inextricably, material and immaterial, and has been a space for their socioeconomic and sociocultural perpetuation. Key-words: Deterritorialization and Reterritorialization; Quilombolas communities; Vale do Jequitinhonha region Estamos chegando do ventre das Minas, estamos chegando dos tristes mocambos, dos gritos calados nós somos, viemos cobrar [...] Estamos chegando do chão dos quilombos, estamos chegando no som dos tambores, dos Novos Palmares nós somos, viemos lutar (Milton Nascimento, canção: “A de Ó”, álbum: “Missa dos Quilombos”, 1982). 1 – Introdução Ao longo de sua formação geo-histórica, o Vale do Jequitinhonha mineiro foi palco de recorrentes e trágicos processos de desterritorialização de grupos étnicos tradicionais residentes em seu espaço rural. Mais recentemente, com a 1 - Discente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Presidente Prudente-SP. Bolsista FAPESP (Processo Nº 2013/25725-8). E-mail de contato: [email protected] 2 Profa. Titular dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail de contato: [email protected] 7116 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO implementação de políticas de desenvolvimento para a região voltadas à ocupação das chapadas pela monocultura do café e pelo “reflorestamento” com eucaliptos, tais processos se intensificaram, provocando conflitos fundiários, êxodo rural, superexploração dos trabalhadores rurais e impactos socioambientais diversos. Frente a este contexto, buscamos no presente artigo, produto de uma pesquisa de mestrado desenvolvida em comunidades remanescentes de quilombos desta região (DINIZ, 2013), refletir sobre as estratégias de resistência socioterritorial criadas pelos sujeitos rurais para enfrentamento dos problemas originados com a invasão de suas terras. A pesquisa foi realizada em três comunidades quilombolas localizadas na região do Alagadiço, Município de Minas Novas: Quilombo, Santiago e São Pedro do Alagadiço (FIG. 1), as quais vivenciaram, a partir da década de 1980, um trágico e perverso processo de compressão territorial arquitetado por grileiros, latifundiários e pela empresa estatal ACESITA Energética. Quase vinte anos após as primeiras invasões, as famílias destas comunidades, antes consideradas apenas como “camponesas”, foram reconhecidas como “remanescentes dos quilombos”, fato que se traduziu num importante marco de sua reterritorialização material e simbólica. FIGURA 1: Território das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Alagadiço, Município de Minas Novas, Vale do Jequitinhonha/MG. Fonte: DINIZ (2013). 7117 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Para um melhor entendimento desse processo, que qualificamos como desterritorialização camponesa e reterritorialização quilombola, recorremos ao uso de metodologias que se nortearam pelo diálogo aberto e participativo com os sujeitos pesquisados, empregando técnicas que nos permitiram enxergar o “seu mundo” através das “lentes” pelas quais eles o lêem: Diagnóstico Rural Participativo (DRP); histórias de vida; entrevistas semi-estruturadas e a observação e participação em determinadas atividades por eles desenvolvidas 3 (QUEIROZ, 1988; WOORTMANN, 2004; FARIA & FERREIRA NETO, 2006). Com efeito, foi possível compreender melhor as territorialidades e temporalidades afro-brasileiras destes sujeitos, relações essenciais de suas experiências espaço-temporais e da organização e reprodução de seus territórios. Nos tópicos a seguir, abordaremos de forma mais aprofundada estas e outras questões atinentes aos processos de des-re-territorialização vivenciados pelas famílias destes quilombos, buscando demonstrar como os elementos da identidade, da cultura, da memória e das territorialidades e temporalidades afro-brasileiras se constituíram em importantes estratégias de resistência e re-existência socioterritorial dos sujeitos pesquisados. 2 – Desterritorialização camponesa, Reterritorialização quilombola: velhos sujeitos, novas identidades Os territórios são constantemente construídos, destruídos e reconstruídos. Os processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (TDR) são dialéticos e indissociáveis e estão a todo instante produzindo novos e velhos territórios em diferentes escalas e dimensões. Por este motivo, a organização territorial humana não ocorre apenas por meio de um único processo, mas sim dos três em consonância: des-re-territorializações (HAESBAERT, 2006; FERNANDES, 2009; SAQUET, 2009). Entendemos, neste sentido, que ao invés de tratar os sujeitos desterritorializados apenas como seres passivos, vítimas e dominados, é preciso considerá-los enquanto sujeitos reterritorializadores e protagonistas de suas próprias 3 É oportuno destacar que esta pesquisa foi realizada com a anuência das comunidades quilombolas e do Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG): PROJETO CAAE – 0606.0.203.000-11 – Ministério da Saúde. 7118 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO histórias, enquanto sujeitos que buscam sua inclusão frente a projetos de “modernização” e “desenvolvimento” que insistem em considerá-los como “nãohumanos”, “selvagens” ou “resquícios de um campesinato em vias de extinção”. São sujeitos que não só impõem limites aos projetos dos “estranhos”, mas que possuem, sobretudo, uma capacidade inquestionável de “recriação e regeneração de ideias e modos de vida” (MARTINS, 1993, p. 12). Ademais, é oportuno ressaltar que o território é aqui compreendido enquanto um espaço produzido e apropriado por relações de poder estabelecidas entre distintos e contraditórios agentes e sujeitos sociais num determinado espaço-tempo (RAFFESTIN, 1993; HAESBAERT, 2006; FERNANDES, 2009; SAQUET, 2009). Está presente em diferentes níveis de escala – do micro ao macro, e é constituído por múltiplas dimensões – materiais, imateriais, políticas, econômicas, simbólicas, etc. Esta perspectiva de análise caminha no sentido de conceber o território enquanto um conceito híbrido (HAESBAERT, 2006), onde sociedade-naturezaespaço-tempo-política-economia-cultura estão intimamente vinculados e se reproduzem a partir de complexas, indissociáveis e conflitivas relações de poder. Desse modo, o território é compreendido enquanto um conceito que apresenta uma multiescalridade e uma multidimensionalidade (HAESBAERT, 2006; FERNANDES, 2009; SAQUET, 2009). Tendo como referência basilar essas concepções teórico-conceituais, analisamos em nossa pesquisa o processo de formação geo-histórica dos territórios quilombolas da região do Alagadiço em Minas Novas-MG, ocorrido entre princípios do século XX e os dias atuais. O processo de ocupação destes territórios pelas primeiras famílias quilombolas ocorreu a partir de meados da década de 1930, quando a Fazenda do Alagadiço foi dividida em vários terrenos, os quais foram vendidos a baixos preços pelos herdeiros de seu antigo proprietário, Hermenegildo Pimenta. As terras que hoje correspondem à comunidade do Quilombo foram adquiridas por José Ferreira de Souza (Zé Tiolino) e José Moreira de Souza (Zé Moreira), a São Pedro do Alagadiço por Onorato Moreira Costa e a Santiago por Adrião Rodrigues Soares, Isaías Rodrigues dos Santos e Cesário Pereira dos Santos. Estes sujeitos eram, em 7119 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO sua maioria, negros que migraram de outros quilombos de Minas Novas em busca de terras para constituírem suas famílias e preservarem suas tradições culturais. A partir disso, teve início a constituição de comunidades onde a maior parte de seus moradores tem um parentesco em comum, podendo ser consideradas hoje como comunidades parentais. Através das redes de parentesco que se formaram dentro e entre as próprias comunidades, somadas às relações de compadresco estabelecidas entre a maioria de seus moradores, os sentimentos de pertencimento e identidade foram se edificando e se fortalecendo entre as novas famílias que iam se constituindo nestes quilombos. Portanto, além de serem sentimentos ligados a uma terra, a um território, pertencimento e identidade só se justificam quando são também associados à genealogia dos indivíduos que ali residem, ou seja, quando se adota a “assinatura” (sobrenome) das famílias formadoras destas comunidades: Moreira de Souza, Ferreira de Souza, Moreira Costa, Rodrigues Soares, Rodrigues dos Santos e Pereira dos Santos. Nesse sentido, torna-se oportuno realizar um primeiro apontamento acerca das territorialidades destes sujeitos: as relações parentais enquanto condição essencial para o processo de territorialização de suas famílias, permitindo certa coesão entre os grupos de indivíduos e constituindo, ao longo dos tempos, relações identitárias baseadas na genealogia de cada morador destes territórios. Até por volta da década de 1970 o território de Quilombo e Santiago estava sob o domínio de seus primeiros formadores. Com a chegada de um paulista na região, chamado Oswaldo Montenegro, os terrenos pertencentes aos moradores destas duas comunidades foram vendidos a este sujeito a preços irrisórios. Já em São Pedro do Alagadiço, seus moradores optaram por manter inegociável o domínio daquelas terras, objetivando, com isso, garantir as condições necessárias para a reprodução de suas famílias. Embora tivessem negociado suas terras, os moradores de Quilombo e Santiago não precisaram sair de casa para procurarem outro lugar para trabalhar e morar. Continuaram residindo e trabalhando nos mesmos terrenos onde já haviam estabelecido suas residências e roças, tornando-se funcionários da nova Fazenda do Alagadiço, que passou a ser propriedade não de Oswaldo Montenegro, seu novo formador, mas sim de italianos que vieram ao Brasil com o intuito de construir uma 7120 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO “grande obra de beneficência” para cuidar de crianças carentes, pedido deixado em testamento pelo seu pai, o engenheiro Pietro Salini. A chegada dos italianos representou um marco histórico de profundas, memoráveis e nostálgicas transformações para as famílias residentes em toda a região da Fazenda do Alagadiço. Hospital com atendimento médico-odontológico especializado e gratuito para os funcionários da Fazenda, para moradores das comunidades vizinhas e, inclusive, para indivíduos de outras localidades mais distantes; emprego com carteira assinada para mais de 500 homens e mulheres de Quilombo, Santiago, São Pedro e de outras comunidades; escola com refeições diárias e uniformes gratuitos para os estudantes; estradas vicinais bem cuidadas; pista de pouso etc. Estas foram algumas das principais mudanças ocorridas na região do Alagadiço com a chegada dos italianos. Nóis era todo mundo fraquinho... quando esse povo italiano entrou aqui, o pessoal não tinha nada... depois foi e miorou a situação... eles era um povo muito bão, ajudava memo o povo da comunidade. Depois dos italiano todo mundo ficou rico (AGRICULTORA QUILOMBOLA, 60 anos, Comunidade Remanescente de Quilombos do Quilombo, Município de Minas Novas, Vale do Jequitinhonha/MG, setembro de 2012). No entanto, a partir de fins da década de 1980 as atividades desenvolvidas no Alagadiço pela Família Salini começaram a cessar. A escola teve sua administração transferida para a Prefeitura Municipal de Minas Novas e o hospital passou a realizar apenas exames médicos e cirurgias de menor complexidade. A produção de alimentos nas lavouras foi sendo pouco a pouco abandonada pelos administradores que ficaram no comando da Fazenda e, com o falecimento do último italiano que ali residia, o médico Dr. Lino, todas as suas atividades cessaram por completo em meados dos anos 1990. De acordo com um ex-funcionário da parte administrativa da Fazenda, os motivos para o encerramento de suas atividades foram as ações do Ministério Público italiano contra a Máfia Siciliana Cosa Nostra, que levaram à prisão vários mafiosos na Itália e em outros países, dentre os quais o principal chefe do grupo criminoso, Tommaso Buscetta, escondido no Alagadiço à época das investigações. O [Tommaso] Buscetta ficou um ano aí escondido no Alagadiço. E ele foi preso aí no Alagadiço. Ele morava no Rio [de Janeiro]. Ele estava escondido. Ele fugiu e escondeu aí. A Polícia Federal pegou e prendeu ele e do Brasil ele foi extraditado. Mas foi tudo em sigilo. Eu estou te falando 7121 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO porque eu tinha acesso a esse processo (EX-FUNCIONÁRIO DA FAZENDA DO ALAGADIÇO, novembro de 2012). De acordo com este ex-funcionário, as “ações filantrópicas” realizadas pela Família Salini no Alagadiço eram uma esta estratégia de dissimular os crimes cometidos pelos italianos na Fazenda, destacando-se a lavagem de dinheiro. A produção da Fazenda era doada pras entidades filantrópicas, saíam caminhões carregados era pra doação. Aí eles emitiam uma nota de 100 toneladas de batata pra São Paulo. 1 milhão de sacas de soja... E não tinha nada. Eles lavavam muito dinheiro. Lavavam extraindo nota [fiscal] com a produção da Fazenda. Eles emitiam [notas fiscais] que a Fazenda tinha produzido 10 milhões de sacas de café. Só que ela não produzia nada. Só produzia no papel (EX-FUNCIONÁRIO DA FAZENDA DO ALAGADIÇO, novembro de 2012). Além da “lavagem de dinheiro”, a Fazenda era utilizada também como esconderijo para fugitivos de condenações por crimes cometidos durante a II Guerra Mundial, produção de maconha e refino de cocaína nas dependências do hospital. A partir do momento em que Buscetta fora preso em suas instalações, as reuniões que ali ocorriam frequentemente entre os mafiosos cessaram. E, por conseguinte, todas as atividades relacionadas ao crime. A Fazenda, então “tornou-se abandonada. Acabou! Nunca mais veio um italiano ali. Até 90 ela teve atividade. Todas...” (EXFUNCIONÁRIO DA FAZENDA DO ALAGADIÇO, novembro de 2012). A partir de então, os bens e as terras em propriedade destes indivíduos passaram a ficar largados à própria sorte. Com isso, os ex-funcionários que moravam em Quilombo e Santiago tornaram-se posseiros dos terrenos que, antigamente, seus pais venderam para Oswaldo Montenegro. Já na sede da Fazenda, os tratores e maquinários deixados em desuso passaram a ser vendidos pelo seu último funcionário, J. A. A. S., que ainda hoje ali reside. Com o tempo, este sujeito passaria a negociar também vastas extensões de terras da Fazenda, sobretudo onde os posseiros de Quilombo e Santiago tinham domínio e utilizavam de forma comunal para a solta do gado, coleta de frutas nativas dos cerrados, lenha e plantas de uso fitoterápico. A partir desse momento, iniciam-se os processos de desterritorialização das famílias de Quilombo e Santiago, as quais vivenciaram um trágico e perverso processo de compressão territorial, tendo perdido uma área superior a 50% de todas as terras dominadas, que reduziu de 2.200 hectares para 975 hectares. 7122 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Ressalta-se que estes processos já vinham ocorrendo na região do Alagadiço desde o início dos anos 1980, quando as famílias de São Pedro [que residiam em terrenos fora do domínio dos italianos, ou seja, sem a proteção jurídica dos mesmos] perderam grande parte das terras de uso comunal nas chapadas com as invasões realizadas por grileiros e pela empresa estatal ACESITA Energética, interessados na formação de extensas áreas de monocultivos de eucalipto nestes terrenos. Com efeito, as invasões resultaram em severos impactos ao ambiente em que as famílias destas três comunidades viviam e trabalhavam, destacando-se a perda da rica biodiversidade animal e vegetal dos Cerrados, o assoreamento de córregos, o secamento das veredas com ocupação de suas áreas de recarga hídrica pelos monocultivos de eucalipto e também a contaminação dos recursos hídricos, alimentos e trabalhadores pelo uso agrotóxicos na atividade silvicultora. Diante dessa conjuntura, as famílias destas três comunidades se organizaram politicamente em torno da Associação dos Moradores e Produtores Rurais do Quilombo (ASPOQUI), fundada em 1996, e passaram a estabelecer relações mais próximas com outras entidades sociais e de interesses coletivos, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, a EMATER-MG e ONGs, buscando junto a elas encontrar alternativas para evitar novas invasões de terras, recuperar as áreas invadidas e implementar ações de desenvolvimento comunitário e preservação da cultura local. Em 2005, após várias reuniões organizadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) na sede da ASPOQUI, nas quais as famílias relataram a história de seus antepassados e elementos de sua cultura e identidade afro-brasileira, foi encaminhado um pedido ao governo federal pleiteando o reconhecimento de seus territórios como remanescentes de quilombos. Neste mesmo ano o pedido foi aprovado e, a partir disso, os sujeitos pesquisados passaram a vivenciar uma nova fase em sua luta pela terra, deixando de ser identificados pelo Estado apenas como camponeses, e passando a ser reconhecidos como grupos culturalmente diferenciados: quilombolas. Inicia-se, com efeito, o processo de reterritorialização quilombola das famílias de Quilombo, Santiago e São Pedro do Alagadiço. Cumpre ressaltar que ao identificar estes dois processos como desterritorialização camponesa e reterritorialização quilombola não estamos afirmando que estas famílias “deixaram de ser camponeses” e “passaram a ser 7123 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO quilombolas”. Muito pelo contrário. Elas ainda mantêm um modus operandi, vivendi e economicus típico do campesinato brasileiro (WOORTMANN, 1990a, 1990b; BOMBARDI, 2003), preservando relações de campesinidade que se caracterizam por laços profundos de solidariedade, reciprocidade e afetividade que orientam racionalidades contra-hegemônicas de resistência socioterritorial. O que pretendemos evidenciar é que no momento em que foram desterritorializados, os sujeitos pesquisados eram identificados apenas como camponeses, e, ao se reterritorializarem, passaram a ser reconhecidos oficialmente como sujeitos dos novos direitos outorgados pela Carta Magna de 1988: como membros de uma coletividade específica, com histórias, identidades, culturas, territorialidades e temporalidades singulares. A esse respeito, Almeida (2008, p.80) argumenta: A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que em décadas passadas estava associada principalmente ao termo camponês. Politiza-se (sic) aqueles termos e denominações de usos locais. [...] os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vida cotidiana. A partir do reconhecimento destas comunidades como “remanescentes de quilombos”, as invasões de terras realizadas por grileiros e latifundiários cessaram no Alagadiço. A última tentativa, em 2007, foi impedida pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG), que proibiu os invasores de entrar ou efetuar quaisquer intervenções no território quilombola, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00 (Cinco mil Reais). Como informado por uma agricultora quilombola: Tem um fazendero aí que já ia tomano e invadino essas área pra tudo aqui abaixo... mas daí, por mode da associação quilombola que nóis tem aqui, ele não arrumou tomá não... a associação não deixou né!? Chegou a fincar cerca, poste pra tomar um poco das terra aí, mas daí não conseguiu não... (AGRICULTORA QUILOMBOLA, 56 anos, Comunidade Remanescente de Quilombos do Quilombo, Município de Minas Novas, Vale do Jequitinhonha/MG, abril de 2012). Com efeito, observa-se que o reconhecimento destas comunidades como remanescentes de quilombos provocou um importante desdobramento positivo na inércia que caracterizou o trágico e perverso processo de desterritorialização dos sujeitos pesquisados: evitar que seu o território fosse invadido sem qualquer punição ou impedimento às ações perpetradas por grileiros e latifundiários. 7124 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Em 2013, o INCRA iniciou os processos de delimitação, demarcação e titulação do território quilombola, os quais permitirão às famílias do Alagadiço recuperar parte considerável das terras que foram invadidas e estão hoje ocupadas com monocultivos de eucalipto. Ademais, este reconhecimento possibilitou às famílias quilombolas não apenas obter o “título da terra”, mas também construir projetos de desenvolvimento comunitário para o fortalecimento e diversificação das estratégias de resistência socioterritorial de seus membros, destacando-se: Projeto Biojóias, voltado ao uso de espécies vegetais das matas nativas para produção de bijuterias; construção de um viveiro comunitário para produção de mudas de frutas nativas; construção de 16 tanques de piscicultura; organização de roças comunitárias; cursos de capacitação para os jovens e mulheres; acesso facilitado a programas governamentais de compra de alimentos, como o PAA e PNAE; cursos de apicultura e construção das instalações para beneficiamento do mel; aquisição de um trator de uso comunitário; edificação de uma sede para a ASPOQUI e aquisição de aparelhos eletrônicos como caixas de som, microfones, data show, computador etc. É oportuno observar que além da importância material e econômica, o reconhecimento destas comunidades como quilombolas resultou também em contribuições significativas para o revigoramento de suas manifestações culturais, como o Conjunto da Marujada, e para a valorização e preservação dos saberes e sabores locais, a exemplo das ações de resgate e/ou manutenção da produção de comidas típicas como o cuscuz, a farinha de mandioca, o beiju e o bolo de folha (ANEXO 1). Por meio dessas expressões culturais, as comunidades se tornaram ainda mais conhecidas no município, em sua região e até mesmo em locais mais distantes, como Belo Horizonte/MG e Bom Jesus da Lapa/BA, onde os membros do Conjunto da Marujada realizaram várias apresentações de suas músicas e danças tradicionais. Por fim, destacamos que após o reconhecimento da FCP as comunidades passaram a estar mais organizadas politicamente, realizando reuniões com maior frequência, participando ativamente em encontros nacionais e estaduais de Comunidades Quilombolas e organizando, pela primeira vez em 2013, o I Seminário 7125 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Local com o propósito de se elaborar um plano de trabalhos comunitários e elencar demandas que foram encaminhadas aos órgãos públicos competentes, como EMATER/MG, Câmara dos Vereadores e IEF. Percebe-se, com efeito, que a luta destes quilombos não tem a titulação de seu território como um fim em si mesma, mas representa também o anseio por melhores condições de vida, trabalho e educação para suas famílias, além de objetivar a preservação dos recursos naturais e de suas expressões culturais locais. Ou seja, o processo de reterritorialização levado a cabo nestes quilombos não se limitou à dimensão material da reconquista da terra, mas envolveu também a dimensão imaterial do território, percebida e vivenciada através das ações de preservação da cultura, da memória, dos saberes, da identidade e das relações de solidariedade e reciprocidade mantidas pelas famílias quilombolas. 3 – À guisa de conclusão Constata-se, portanto, que o reconhecimento enquanto “comunidades remanescentes de quilombos” representou um marco histórico de notável importância para o enfrentamento dos processos de desterritorialização vivenciados pelas famílias pesquisadas, visto que foi por meio deste ato que elas (re)existiram enquanto grupos culturalmente diferenciados e, assim, construíram novas e múltiplas estratégias de resistência que lhes permitiram permanecer num território que é, dialética e indissociavelmente, material e imaterial, lugar de reprodução socioeconômica e sociocultural de seus membros. Desse modo, compreende-se que o ato de “aquilombar-se” enquanto estratégia de reterritorialização não significou apenas a reconquista de terras ocupadas ilegalmente por latifundiários e grileiros. Representou, mais do que isso, a manutenção dos vínculos identitários com a sua terra, com as “assinaturas” que carregam no nome, com a cultura que está imaterializada nos saberes e sabores, na musicalidade, na religiosidade e na memória da comunidade. Este processo, contudo, ainda não se encerrou. Ele continua. E, como diz a letra da canção que abre o texto, estes sujeitos vieram lutar: Estamos chegando do chão dos quilombos, estamos chegando no som dos tambores, dos Novos Palmares nós somos, viemos lutar (Milton Nascimento, canção: “A de Ó”, álbum: “Missa dos Quilombos”, 1982, destaques acrescidos). 7126 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 4 – Referências ALMEIDA, A. W. B. de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, E. 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