desterritorialização camponesa, reterritorialização

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
DESTERRITORIALIZAÇÃO CAMPONESA, RETERRITORIALIZAÇÃO
QUILOMBOLA: AS TERRITORIALIDADES AFRO-BRASILEIRAS
ENQUANTO ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA SOCIOTERRITORIAL
DOS QUILOMBOS DO ALAGADIÇO, MINAS NOVAS - VALE DO
JEQUITINHONHA-MG
RAPHAEL FERNANDO DINIZ1
MARIA APARECIDA DOS SANTOS TUBALDINI2
Resumo: No presente texto são abordados os processos de des-re-territorialização de grupos étnicos
tradicionais do Vale do Jequitinhonha/MG a partir de reflexões sobre as estratégias de resistência
criadas contra as invasões de seus territórios. Através do uso de metodologias qualitativas, o estudo
foi realizado em três comunidades quilombolas do Município de Minas Novas: Quilombo, Santiago e
São Pedro do Alagadiço, as quais vivenciaram, a partir da década de 1980, um trágico e perverso
processo de compressão territorial. Constatou-se que o reconhecimento enquanto “comunidades
quilombolas” representou um marco histórico para as suas famílias, pois foi por meio deste ato que
elas foram reconhecidas como grupos culturalmente diferenciados e, assim, puderam construir
estratégias de resistência que lhes permitiram permanecer num território que é, dialética e
indissociavelmente, material e imaterial, espaço de reprodução socioeconômica e sociocultural.
Palavras-chave: Des-re-territorialização; Comunidades Quilombolas; Vale do Jequitinhonha/MG
Abstract: This paper aims to examine the deterritorialization and reterritorialization processes of
traditional ethnic groups of the Vale do Jequitinhonha region (Minas Gerais state, Brazil) based upon
the analysis of their strategies against invasions of their territories. Through qualitative methodologies,
this research was carried out in three 'quilombolas' communities in Minas Novas municipality. They
were: Quilombo, Santiago and São Pedro do Alagadiço, which all experienced a tragic and perverse
territorial compressional process since the 1980s. It was found that the recognition as 'quilombolas'
communities represented a historical achievement for their families, since through such act they were
recognized as distinct cultural groups. As a consequence, they were also able to build their own
resistance strategies that have allowed them to remain in a territory which is, dialectically and
inextricably, material and immaterial, and has been a space for their socioeconomic and sociocultural
perpetuation.
Key-words: Deterritorialization and Reterritorialization; Quilombolas communities; Vale do
Jequitinhonha region
Estamos chegando do ventre das Minas, estamos chegando dos tristes
mocambos, dos gritos calados nós somos, viemos cobrar [...] Estamos
chegando do chão dos quilombos, estamos chegando no som dos
tambores, dos Novos Palmares nós somos, viemos lutar (Milton
Nascimento, canção: “A de Ó”, álbum: “Missa dos Quilombos”, 1982).
1 – Introdução
Ao longo de sua formação geo-histórica, o Vale do Jequitinhonha mineiro foi
palco de recorrentes e trágicos processos de desterritorialização de grupos étnicos
tradicionais residentes em seu espaço rural. Mais recentemente, com a
1
- Discente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, Campus de Presidente Prudente-SP. Bolsista FAPESP (Processo Nº 2013/25725-8). E-mail de contato:
[email protected]
2
Profa. Titular dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas
Gerais. E-mail de contato: [email protected]
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implementação de políticas de desenvolvimento para a região voltadas à ocupação
das chapadas pela monocultura do café e pelo “reflorestamento” com eucaliptos, tais
processos
se
intensificaram,
provocando
conflitos
fundiários,
êxodo
rural,
superexploração dos trabalhadores rurais e impactos socioambientais diversos.
Frente a este contexto, buscamos no presente artigo, produto de uma
pesquisa de mestrado desenvolvida em comunidades remanescentes de quilombos
desta região (DINIZ, 2013), refletir sobre as estratégias de resistência socioterritorial
criadas pelos sujeitos rurais para enfrentamento dos problemas originados com a
invasão de suas terras.
A pesquisa foi realizada em três comunidades quilombolas localizadas na
região do Alagadiço, Município de Minas Novas: Quilombo, Santiago e São Pedro do
Alagadiço (FIG. 1), as quais vivenciaram, a partir da década de 1980, um trágico e
perverso processo de compressão territorial arquitetado por grileiros, latifundiários e
pela empresa estatal ACESITA Energética. Quase vinte anos após as primeiras
invasões, as famílias destas comunidades, antes consideradas apenas como
“camponesas”, foram reconhecidas como “remanescentes dos quilombos”, fato que
se traduziu num importante marco de sua reterritorialização material e simbólica.
FIGURA 1: Território das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Alagadiço, Município de Minas Novas,
Vale do Jequitinhonha/MG. Fonte: DINIZ (2013).
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Para um melhor entendimento desse processo, que qualificamos como
desterritorialização camponesa e reterritorialização quilombola, recorremos ao uso
de metodologias que se nortearam pelo diálogo aberto e participativo com os
sujeitos pesquisados, empregando técnicas que nos permitiram enxergar o “seu
mundo” através das “lentes” pelas quais eles o lêem: Diagnóstico Rural Participativo
(DRP); histórias de vida; entrevistas semi-estruturadas e a observação e
participação em determinadas atividades por eles desenvolvidas 3 (QUEIROZ, 1988;
WOORTMANN, 2004; FARIA & FERREIRA NETO, 2006). Com efeito, foi possível
compreender melhor as territorialidades e temporalidades afro-brasileiras destes
sujeitos, relações essenciais de suas experiências espaço-temporais e da
organização e reprodução de seus territórios.
Nos tópicos a seguir, abordaremos de forma mais aprofundada estas e outras
questões atinentes aos processos de des-re-territorialização vivenciados pelas
famílias destes quilombos, buscando demonstrar como os elementos da identidade,
da cultura, da memória e das territorialidades e temporalidades afro-brasileiras se
constituíram em importantes estratégias de resistência e re-existência socioterritorial
dos sujeitos pesquisados.
2 – Desterritorialização camponesa, Reterritorialização quilombola:
velhos sujeitos, novas identidades
Os territórios são constantemente construídos, destruídos e reconstruídos. Os
processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (TDR) são
dialéticos e indissociáveis e estão a todo instante produzindo novos e velhos
territórios em diferentes escalas e dimensões. Por este motivo, a organização
territorial humana não ocorre apenas por meio de um único processo, mas sim dos
três em consonância: des-re-territorializações (HAESBAERT, 2006; FERNANDES,
2009; SAQUET, 2009).
Entendemos,
neste
sentido,
que
ao
invés
de
tratar
os
sujeitos
desterritorializados apenas como seres passivos, vítimas e dominados, é preciso
considerá-los enquanto sujeitos reterritorializadores e protagonistas de suas próprias
3
É oportuno destacar que esta pesquisa foi realizada com a anuência das comunidades quilombolas
e do Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG):
PROJETO CAAE – 0606.0.203.000-11 – Ministério da Saúde.
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histórias, enquanto sujeitos que buscam sua inclusão frente a projetos de
“modernização” e “desenvolvimento” que insistem em considerá-los como “nãohumanos”, “selvagens” ou “resquícios de um campesinato em vias de extinção”. São
sujeitos que não só impõem limites aos projetos dos “estranhos”, mas que possuem,
sobretudo, uma capacidade inquestionável de “recriação e regeneração de ideias e
modos de vida” (MARTINS, 1993, p. 12).
Ademais, é oportuno ressaltar que o território é aqui compreendido enquanto
um espaço produzido e apropriado por relações de poder estabelecidas entre
distintos e contraditórios agentes e sujeitos sociais num determinado espaço-tempo
(RAFFESTIN, 1993; HAESBAERT, 2006; FERNANDES, 2009; SAQUET, 2009).
Está presente em diferentes níveis de escala – do micro ao macro, e é constituído
por múltiplas dimensões – materiais, imateriais, políticas, econômicas, simbólicas,
etc. Esta perspectiva de análise caminha no sentido de conceber o território
enquanto um conceito híbrido (HAESBAERT, 2006), onde sociedade-naturezaespaço-tempo-política-economia-cultura
estão
intimamente
vinculados
e
se
reproduzem a partir de complexas, indissociáveis e conflitivas relações de poder.
Desse modo, o território é compreendido enquanto um conceito que apresenta uma
multiescalridade e uma multidimensionalidade (HAESBAERT, 2006; FERNANDES,
2009; SAQUET, 2009).
Tendo como referência basilar essas concepções teórico-conceituais,
analisamos em nossa pesquisa o processo de formação geo-histórica dos territórios
quilombolas da região do Alagadiço em Minas Novas-MG, ocorrido entre princípios
do século XX e os dias atuais.
O processo de ocupação destes territórios pelas primeiras famílias
quilombolas ocorreu a partir de meados da década de 1930, quando a Fazenda do
Alagadiço foi dividida em vários terrenos, os quais foram vendidos a baixos preços
pelos herdeiros de seu antigo proprietário, Hermenegildo Pimenta. As terras que
hoje correspondem à comunidade do Quilombo foram adquiridas por José Ferreira
de Souza (Zé Tiolino) e José Moreira de Souza (Zé Moreira), a São Pedro do
Alagadiço por Onorato Moreira Costa e a Santiago por Adrião Rodrigues Soares,
Isaías Rodrigues dos Santos e Cesário Pereira dos Santos. Estes sujeitos eram, em
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sua maioria, negros que migraram de outros quilombos de Minas Novas em busca
de terras para constituírem suas famílias e preservarem suas tradições culturais.
A partir disso, teve início a constituição de comunidades onde a maior parte
de seus moradores tem um parentesco em comum, podendo ser consideradas hoje
como comunidades parentais. Através das redes de parentesco que se formaram
dentro e entre as próprias comunidades, somadas às relações de compadresco
estabelecidas entre a maioria de seus moradores, os sentimentos de pertencimento
e identidade foram se edificando e se fortalecendo entre as novas famílias que iam
se constituindo nestes quilombos. Portanto, além de serem sentimentos ligados a
uma terra, a um território, pertencimento e identidade só se justificam quando são
também associados à genealogia dos indivíduos que ali residem, ou seja, quando se
adota a “assinatura” (sobrenome) das famílias formadoras destas comunidades:
Moreira de Souza, Ferreira de Souza, Moreira Costa, Rodrigues Soares, Rodrigues
dos Santos e Pereira dos Santos.
Nesse sentido, torna-se oportuno realizar um primeiro apontamento acerca
das territorialidades destes sujeitos: as relações parentais enquanto condição
essencial para o processo de territorialização de suas famílias, permitindo certa
coesão entre os grupos de indivíduos e constituindo, ao longo dos tempos, relações
identitárias baseadas na genealogia de cada morador destes territórios.
Até por volta da década de 1970 o território de Quilombo e Santiago estava
sob o domínio de seus primeiros formadores. Com a chegada de um paulista na
região, chamado Oswaldo Montenegro, os terrenos pertencentes aos moradores
destas duas comunidades foram vendidos a este sujeito a preços irrisórios. Já em
São Pedro do Alagadiço, seus moradores optaram por manter inegociável o domínio
daquelas terras, objetivando, com isso, garantir as condições necessárias para a
reprodução de suas famílias.
Embora tivessem negociado suas terras, os moradores de Quilombo e
Santiago não precisaram sair de casa para procurarem outro lugar para trabalhar e
morar. Continuaram residindo e trabalhando nos mesmos terrenos onde já haviam
estabelecido suas residências e roças, tornando-se funcionários da nova Fazenda
do Alagadiço, que passou a ser propriedade não de Oswaldo Montenegro, seu novo
formador, mas sim de italianos que vieram ao Brasil com o intuito de construir uma
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“grande obra de beneficência” para cuidar de crianças carentes, pedido deixado em
testamento pelo seu pai, o engenheiro Pietro Salini.
A chegada dos italianos representou um marco histórico de profundas,
memoráveis e nostálgicas transformações para as famílias residentes em toda a
região da Fazenda do Alagadiço. Hospital com atendimento médico-odontológico
especializado e gratuito para os funcionários da Fazenda, para moradores das
comunidades vizinhas e, inclusive, para indivíduos de outras localidades mais
distantes; emprego com carteira assinada para mais de 500 homens e mulheres de
Quilombo, Santiago, São Pedro e de outras comunidades; escola com refeições
diárias e uniformes gratuitos para os estudantes; estradas vicinais bem cuidadas;
pista de pouso etc. Estas foram algumas das principais mudanças ocorridas na
região do Alagadiço com a chegada dos italianos.
Nóis era todo mundo fraquinho... quando esse povo italiano entrou aqui, o
pessoal não tinha nada... depois foi e miorou a situação... eles era um povo
muito bão, ajudava memo o povo da comunidade. Depois dos italiano todo
mundo ficou rico (AGRICULTORA QUILOMBOLA, 60 anos, Comunidade
Remanescente de Quilombos do Quilombo, Município de Minas Novas, Vale
do Jequitinhonha/MG, setembro de 2012).
No entanto, a partir de fins da década de 1980 as atividades desenvolvidas no
Alagadiço pela Família Salini começaram a cessar. A escola teve sua administração
transferida para a Prefeitura Municipal de Minas Novas e o hospital passou a realizar
apenas exames médicos e cirurgias de menor complexidade. A produção de
alimentos nas lavouras foi sendo pouco a pouco abandonada pelos administradores
que ficaram no comando da Fazenda e, com o falecimento do último italiano que ali
residia, o médico Dr. Lino, todas as suas atividades cessaram por completo em
meados dos anos 1990.
De acordo com um ex-funcionário da parte administrativa da Fazenda, os
motivos para o encerramento de suas atividades foram as ações do Ministério
Público italiano contra a Máfia Siciliana Cosa Nostra, que levaram à prisão vários
mafiosos na Itália e em outros países, dentre os quais o principal chefe do grupo
criminoso, Tommaso Buscetta, escondido no Alagadiço à época das investigações.
O [Tommaso] Buscetta ficou um ano aí escondido no Alagadiço. E ele foi
preso aí no Alagadiço. Ele morava no Rio [de Janeiro]. Ele estava
escondido. Ele fugiu e escondeu aí. A Polícia Federal pegou e prendeu ele
e do Brasil ele foi extraditado. Mas foi tudo em sigilo. Eu estou te falando
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porque eu tinha acesso a esse processo (EX-FUNCIONÁRIO DA FAZENDA
DO ALAGADIÇO, novembro de 2012).
De acordo com este ex-funcionário, as “ações filantrópicas” realizadas pela
Família Salini no Alagadiço eram uma esta estratégia de dissimular os crimes
cometidos pelos italianos na Fazenda, destacando-se a lavagem de dinheiro.
A produção da Fazenda era doada pras entidades filantrópicas, saíam
caminhões carregados era pra doação. Aí eles emitiam uma nota de 100
toneladas de batata pra São Paulo. 1 milhão de sacas de soja... E não tinha
nada. Eles lavavam muito dinheiro. Lavavam extraindo nota [fiscal] com a
produção da Fazenda. Eles emitiam [notas fiscais] que a Fazenda tinha
produzido 10 milhões de sacas de café. Só que ela não produzia nada. Só
produzia no papel (EX-FUNCIONÁRIO DA FAZENDA DO ALAGADIÇO,
novembro de 2012).
Além da “lavagem de dinheiro”, a Fazenda era utilizada também como
esconderijo para fugitivos de condenações por crimes cometidos durante a II Guerra
Mundial, produção de maconha e refino de cocaína nas dependências do hospital. A
partir do momento em que Buscetta fora preso em suas instalações, as reuniões que
ali ocorriam frequentemente entre os mafiosos cessaram. E, por conseguinte, todas
as atividades relacionadas ao crime. A Fazenda, então “tornou-se abandonada.
Acabou! Nunca mais veio um italiano ali. Até 90 ela teve atividade. Todas...” (EXFUNCIONÁRIO DA FAZENDA DO ALAGADIÇO, novembro de 2012).
A partir de então, os bens e as terras em propriedade destes indivíduos
passaram a ficar largados à própria sorte. Com isso, os ex-funcionários que
moravam em Quilombo e Santiago tornaram-se posseiros dos terrenos que,
antigamente, seus pais venderam para Oswaldo Montenegro. Já na sede da
Fazenda, os tratores e maquinários deixados em desuso passaram a ser vendidos
pelo seu último funcionário, J. A. A. S., que ainda hoje ali reside. Com o tempo, este
sujeito passaria a negociar também vastas extensões de terras da Fazenda,
sobretudo onde os posseiros de Quilombo e Santiago tinham domínio e utilizavam
de forma comunal para a solta do gado, coleta de frutas nativas dos cerrados, lenha
e plantas de uso fitoterápico.
A partir desse momento, iniciam-se os processos de desterritorialização das
famílias de Quilombo e Santiago, as quais vivenciaram um trágico e perverso
processo de compressão territorial, tendo perdido uma área superior a 50% de todas
as terras dominadas, que reduziu de 2.200 hectares para 975 hectares.
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Ressalta-se que estes processos já vinham ocorrendo na região do Alagadiço
desde o início dos anos 1980, quando as famílias de São Pedro [que residiam em
terrenos fora do domínio dos italianos, ou seja, sem a proteção jurídica dos mesmos]
perderam grande parte das terras de uso comunal nas chapadas com as invasões
realizadas por grileiros e pela empresa estatal ACESITA Energética, interessados na
formação de extensas áreas de monocultivos de eucalipto nestes terrenos.
Com efeito, as invasões resultaram em severos impactos ao ambiente em que
as famílias destas três comunidades viviam e trabalhavam, destacando-se a perda
da rica biodiversidade animal e vegetal dos Cerrados, o assoreamento de córregos,
o secamento das veredas com ocupação de suas áreas de recarga hídrica pelos
monocultivos de eucalipto e também a contaminação dos recursos hídricos,
alimentos e trabalhadores pelo uso agrotóxicos na atividade silvicultora.
Diante dessa conjuntura, as famílias destas três comunidades se organizaram
politicamente em torno da Associação dos Moradores e Produtores Rurais do
Quilombo (ASPOQUI), fundada em 1996, e passaram a estabelecer relações mais
próximas com outras entidades sociais e de interesses coletivos, como o Sindicato
dos Trabalhadores Rurais, a EMATER-MG e ONGs, buscando junto a elas encontrar
alternativas para evitar novas invasões de terras, recuperar as áreas invadidas e
implementar ações de desenvolvimento comunitário e preservação da cultura local.
Em 2005, após várias reuniões organizadas pela Fundação Cultural Palmares
(FCP) na sede da ASPOQUI, nas quais as famílias relataram a história de seus
antepassados e elementos de sua cultura e identidade afro-brasileira, foi
encaminhado um pedido ao governo federal pleiteando o reconhecimento de seus
territórios como remanescentes de quilombos. Neste mesmo ano o pedido foi
aprovado e, a partir disso, os sujeitos pesquisados passaram a vivenciar uma nova
fase em sua luta pela terra, deixando de ser identificados pelo Estado apenas como
camponeses, e passando a ser reconhecidos como grupos culturalmente
diferenciados: quilombolas. Inicia-se, com efeito, o processo de reterritorialização
quilombola das famílias de Quilombo, Santiago e São Pedro do Alagadiço.
Cumpre
ressaltar
que
ao
identificar
estes
dois
processos
como
desterritorialização camponesa e reterritorialização quilombola não estamos
afirmando que estas famílias “deixaram de ser camponeses” e “passaram a ser
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quilombolas”. Muito pelo contrário. Elas ainda mantêm um modus operandi, vivendi e
economicus típico do campesinato brasileiro (WOORTMANN, 1990a, 1990b;
BOMBARDI, 2003), preservando relações de campesinidade que se caracterizam
por laços profundos de solidariedade, reciprocidade e afetividade que orientam
racionalidades
contra-hegemônicas
de
resistência
socioterritorial.
O
que
pretendemos evidenciar é que no momento em que foram desterritorializados, os
sujeitos pesquisados eram identificados apenas como camponeses, e, ao se
reterritorializarem, passaram a ser reconhecidos oficialmente como sujeitos dos
novos direitos outorgados pela Carta Magna de 1988: como membros de uma
coletividade específica, com histórias, identidades, culturas, territorialidades e
temporalidades singulares. A esse respeito, Almeida (2008, p.80) argumenta:
A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao
designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que
em décadas passadas estava associada principalmente ao termo
camponês. Politiza-se (sic) aqueles termos e denominações de usos locais.
[...] os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como
designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são
representados na vida cotidiana.
A partir do reconhecimento destas comunidades como “remanescentes de
quilombos”, as invasões de terras realizadas por grileiros e latifundiários cessaram
no Alagadiço. A última tentativa, em 2007, foi impedida pelo Ministério Público do
Estado de Minas Gerais (MPMG), que proibiu os invasores de entrar ou efetuar
quaisquer intervenções no território quilombola, sob pena de multa diária de R$
5.000,00 (Cinco mil Reais). Como informado por uma agricultora quilombola:
Tem um fazendero aí que já ia tomano e invadino essas área pra tudo aqui
abaixo... mas daí, por mode da associação quilombola que nóis tem aqui,
ele não arrumou tomá não... a associação não deixou né!? Chegou a fincar
cerca, poste pra tomar um poco das terra aí, mas daí não conseguiu não...
(AGRICULTORA QUILOMBOLA, 56 anos, Comunidade Remanescente de
Quilombos do Quilombo, Município de Minas Novas, Vale do
Jequitinhonha/MG, abril de 2012).
Com efeito, observa-se que o reconhecimento destas comunidades como
remanescentes de quilombos provocou um importante desdobramento positivo na
inércia que caracterizou o trágico e perverso processo de desterritorialização dos
sujeitos pesquisados: evitar que seu o território fosse invadido sem qualquer punição
ou impedimento às ações perpetradas por grileiros e latifundiários.
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Em 2013, o INCRA iniciou os processos de delimitação, demarcação e
titulação do território quilombola, os quais permitirão às famílias do Alagadiço
recuperar parte considerável das terras que foram invadidas e estão hoje ocupadas
com monocultivos de eucalipto.
Ademais, este reconhecimento possibilitou às famílias quilombolas não
apenas obter o “título da terra”, mas também construir projetos de desenvolvimento
comunitário para o fortalecimento e diversificação das estratégias de resistência
socioterritorial de seus membros, destacando-se: Projeto Biojóias, voltado ao uso de
espécies vegetais das matas nativas para produção de bijuterias; construção de um
viveiro comunitário para produção de mudas de frutas nativas; construção de 16
tanques de piscicultura; organização de roças comunitárias; cursos de capacitação
para os jovens e mulheres; acesso facilitado a programas governamentais de
compra de alimentos, como o PAA e PNAE; cursos de apicultura e construção das
instalações para beneficiamento do mel; aquisição de um trator de uso comunitário;
edificação de uma sede para a ASPOQUI e aquisição de aparelhos eletrônicos como
caixas de som, microfones, data show, computador etc.
É oportuno observar que além da importância material e econômica, o
reconhecimento destas comunidades como quilombolas resultou também em
contribuições significativas para o revigoramento de suas manifestações culturais,
como o Conjunto da Marujada, e para a valorização e preservação dos saberes e
sabores locais, a exemplo das ações de resgate e/ou manutenção da produção de
comidas típicas como o cuscuz, a farinha de mandioca, o beiju e o bolo de folha
(ANEXO 1).
Por meio dessas expressões culturais, as comunidades se tornaram ainda
mais conhecidas no município, em sua região e até mesmo em locais mais
distantes, como Belo Horizonte/MG e Bom Jesus da Lapa/BA, onde os membros do
Conjunto da Marujada realizaram várias apresentações de suas músicas e danças
tradicionais.
Por fim, destacamos que após o reconhecimento da FCP as comunidades
passaram a estar mais organizadas politicamente, realizando reuniões com maior
frequência, participando ativamente em encontros nacionais e estaduais de
Comunidades Quilombolas e organizando, pela primeira vez em 2013, o I Seminário
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Local com o propósito de se elaborar um plano de trabalhos comunitários e elencar
demandas que foram encaminhadas aos órgãos públicos competentes, como
EMATER/MG, Câmara dos Vereadores e IEF.
Percebe-se, com efeito, que a luta destes quilombos não tem a titulação de
seu território como um fim em si mesma, mas representa também o anseio por
melhores condições de vida, trabalho e educação para suas famílias, além de
objetivar a preservação dos recursos naturais e de suas expressões culturais locais.
Ou seja, o processo de reterritorialização levado a cabo nestes quilombos não
se limitou à dimensão material da reconquista da terra, mas envolveu também a
dimensão imaterial do território, percebida e vivenciada através das ações de
preservação da cultura, da memória, dos saberes, da identidade e das relações de
solidariedade e reciprocidade mantidas pelas famílias quilombolas.
3 – À guisa de conclusão
Constata-se, portanto, que o reconhecimento enquanto “comunidades
remanescentes de quilombos” representou um marco histórico de notável
importância para o enfrentamento dos processos de desterritorialização vivenciados
pelas famílias pesquisadas, visto que foi por meio deste ato que elas (re)existiram
enquanto grupos culturalmente diferenciados e, assim, construíram novas e
múltiplas estratégias de resistência que lhes permitiram permanecer num território
que é, dialética e indissociavelmente, material e imaterial, lugar de reprodução
socioeconômica e sociocultural de seus membros.
Desse modo, compreende-se que o ato de “aquilombar-se” enquanto
estratégia de reterritorialização não significou apenas a reconquista de terras
ocupadas ilegalmente por latifundiários e grileiros. Representou, mais do que isso, a
manutenção dos vínculos identitários com a sua terra, com as “assinaturas” que
carregam no nome, com a cultura que está imaterializada nos saberes e sabores, na
musicalidade, na religiosidade e na memória da comunidade.
Este processo, contudo, ainda não se encerrou. Ele continua. E, como diz a
letra da canção que abre o texto, estes sujeitos vieram lutar:
Estamos chegando do chão dos quilombos, estamos chegando no som dos
tambores, dos Novos Palmares nós somos, viemos lutar (Milton Nascimento,
canção: “A de Ó”, álbum: “Missa dos Quilombos”, 1982, destaques acrescidos).
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RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. Tradução de Maria Cecília França. São
Paulo: Ática, 1993. Título original: Pour une géographie du pouvoir.
SAQUET, M. A. Por uma abordagem territorial. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S.
(Org.). Território e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo:
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WOORTMANN, E. O saber tradicional camponês e inovações. In: OLIVEIRA, A. U. de.;
MARQUES, M. I. M. (Org.). O campo no século XXI: território de vida, de luta e de
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2004. p. 133-143
WOORTMANN, K. Migração, família e campesinato. Revista Brasileira de Estudos de
População, Campinas, v. 7, n. 1, p. 35-53, jan./jun. 1990a.
_______________. “Com parente não se neguceia”: o campesinato como ordem moral.
Anuário Antropológico, Brasília/DF, n. 87, p. 11-73, 1990b.
ANEXO 1
Filmografia
Musicalidades e Saberes & Sabores dos Quilombos do Alagadiço. Vídeos disponíveis
em: https://www.youtube.com/user/raphael56155/videos
7127
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