Uma análise da cobertura do ataque ao Charlie

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HUMOR, LIBERDADE E DISCURSO DE ÓDIO:
Uma análise da cobertura de impressos brasileiros sobre o ataque ao Charlie Hebdo1
Bárbara Caldeira2
Marina Santos-Silva3
Resumo: Este artigo dedica-se a analisar os discursos acerca do atentado ao semanário francês
Charlie Hebdo construídos nas capas de alguns dos principais periódicos impressos do Brasil,
sendo eles Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de Minas, publicadas no dia seguinte ao ataque.
Tensionando duas visadas comunicacionais acerca do conceito de acontecimento, além de
considerações da análise do discurso sobre a noção de imaginários sócio-discursivos, o presente
texto se propõe a refletir sobre as disputas de sentidos engendradas pelas narrativas jornalísticas,
identificando de que modo franceses e muçulmanos foram representados neste contexto, além
de problematizar a temática do humor na cobertura recortada.
Palavras-chave: Charlie Hebdo. Mídia. Discurso. Acontecimento. Humor.
HUMOR, FREEDOM AND HATE SPEECH:
an analyze of the coverage of the attack to Charlie Hebdo on brazilian printed newspapers
Abstract: This article analyzes the discourses about the attack to the french newspaper Charlie
Hebdo and how it is built on the covers of some of the main newspapers in Brazil published in
the day after the outrage: Folha de S. Paulo, O Globo and Estado de Minas. Tensing two
communicational perspectives of the happening, and speech analysis considerations about
social and discursive imaginaries, this text aims to study about the meaning controversy
engendered by journalistic narratives, identifying how the french and muslim people were
represented in this context and discuss the humor in the chosen coverage.
Keywords: Charlie Hebdo. Media. Discourse. Happening. Humor.
Introdução
No dia 7 de janeiro de 2015, dois homens encapuzados invadiram a redação do
semanário Charlie Hebdo, instalada em Paris, e dispararam tiros, matando doze pessoas e
1
Trabalho apresentado no GT Dispositivos e Textualidades Midiáticas.
Bacharela em Comunição Social, habilitação Jornalismo, pelo Centro Universitário Newton Paiva. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOMUFMG). Integrante do grupo de pesquisa Tramas Comunicacionais – Núcleo de Estudos Narrativa e Experiência.
Email: [email protected].
3
Bacharela em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais (POSLING-CEFET MG). Email: [email protected].
2
deixando onze feridas, entre cartunistas, jornalistas e outros funcionários do veículo de
comunicação, além de policiais e cidadãos que passavam pelo local. Em poucas horas, o
ocorrido pautava noticiários de todo o mundo, multidões foram às ruas protestar contra o ataque
e outros milhares engajavam-se via redes sociais em solidariedade às vítimas.
A ação foi reivindicada pela célula Al-Qaeda no Iêmen, organização islâmica
fundamentalista, e seria uma retaliação ao jornal por publicar charges com Maomé, profeta
sagrado para os muçulmanos, e representar de forma jocosa adeptos da religião. Após intensas
buscas, os irmãos franco-argelinos Saïd e Chérif Kouachi, identificados como responsáveis pelo
atentado, foram mortos.
Neste artigo, pretendemos analisar aspectos da cobertura feita pela imprensa brasileira
desse acontecimento, refletindo sobre suas especificidades. Para tal, selecionamos três
expressivos jornais diários impressos, localizados no eixo sudeste, que circularam em 8 de
janeiro de 2015, dia seguinte ao ataque, sendo eles Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de
Minas. Dentro do escopo deste trabalho, nos propomos a estudar apenas as capas. Ainda que
seja uma amostragem reduzida, entendemos que as primeiras páginas dos impressos, enquanto
“portas de entrada” para o restante da edição, são sintomáticas do tratamento e da relevância
que foram atribuídos ao episódio por cada veículo. Iremos considerar os diferentes aspectos do
material, tendo em vista o conteúdo linguístico, as imagens e também os layouts das capas.
É nosso objetivo, por meio da análise dos discursos construídos pelos jornais, identificar
filtros axiológicos que indiquem como franceses e muçulmanos foram representados e perceber
quais questões foram elencadas como mais importantes na construção das notícias, nos
debruçando, também, sobre a perspectiva acontecimental do fenômeno. Dessa forma,
procuramos entender a disputa de sentidos que emergem dessas representações, os lugares de
identificação e a dinâmica comunicacional como operadora desse complexo processo, além de
perceber o atravessamento da temática do humor na cobertura recortada, observando se ele foi,
e como foi, tratado nas primeiras páginas dos jornais elencados. Além disso, visamos refletir
de que modo essas notícias contribuíram para fomentar discursos de ódio e de intolerância
frente ao evidente impasse entre franceses e muçulmanos ou se serviram para incitar a uma
tomada de posição que refletisse a complexidade do conflito.
O atentado ao Charlie Hebdo como acontecimento
Como início do percurso proposto por este artigo, problematizaremos o ataque ao
Charlie Hebdo como um acontecimento a partir de duas diferentes visadas comunicacionais
sobre o fenômeno em busca de algumas entradas que já nos ajudam a pensar nas disputas de
sentidos que tanto o episódio quanto a narratividade jornalística engendrada a partir do episódio
fazem emergir.
A primeira perspectiva acontecimental, localizada no seio pragmatista, mais
especificamente na Escola de Chicago, decorre das contribuições de G. H. Mead, que volta seu
olhar para a dimensão relacional dos atos sociais; de John Dewey, que pensa na experiência
humana como uma espécie de travessia; e de Louis Queré (2005), que desenvolve, mais
marcadamente e na esteira dos dois autores, o conceito de acontecimento. Na concepção do
francês, como ressalta Simões (2014), o acontecimento é uma “emergência que instaura
sentidos e rompe com a continuidade da experiência” (SIMÕES, 2014, p. 177).
A pesquisadora Vera França (2012), parte de Queré para conceituar acontecimentos
como “fatos que ocorrem a alguém; que provocam ruptura e desorganização, que introduzem
uma diferença. Eles fazem pensar, suscitam sentidos, e fazem agir (têm uma dimensão
pragmática)” (FRANÇA, 2012, p. 14). Nessa seara, o acontecimento está ligado, então, à ideia
de ruptura da normalidade; algo que irrompe do cotidiano e que provoca estranheza.
Esmiuçando as características do fenômeno, França afirma que:
[...] é importante lembrar que um acontecimento acontece a alguém; ele não é
independente nem autoexplicativo, não são suas características intrínsecas que fazem
o seu destaque, mas o poder que ele tem de afetar um sujeito – uma pessoa, uma
coletividade [...]. Este primeiro aspecto nos permite uma conclusão importante: os
acontecimentos se inserem em nossa experiência, na experiência humana, no âmbito
de nossa vivência. (FRANÇA, 2012, p. 13)
Debruçando-nos sobre o caráter pragmático do acontecimento — e pensando no ataque
ao Charlie Hebdo como acontecimento na perspectiva pragmatista —, temos aqui o evento
como faísca para reflexão e ação. Quais são as reflexões e ações, dessa forma, suscitadas pelo
episódio em questão? Podemos, de antemão, destacar uma das discussões que surgiram a partir
do ataque e que foi recorrente na cobertura midiática: o mote da liberdade de expressão. Diante
de tal acontecimento, essa é uma das reflexões possíveis, mas, várias outras mostram-se
pertinentes, como ponderações acerca da liberdade religiosa, a islamofobia, os limites do
humor, para citar algumas que saltam aos olhos. No exame das capas, mais adiante,
retomaremos a discussão tentando identificar tais eixos reflexivos.
França também chama atenção para o fato de que o acontecimento gera representações,
necessita ser compartilhado socialmente, o que é feito por meio de narrativas. “Acontecimentos
fazem falar; nós somos animais simbólicos, capazes o tempo todo de duplicar nossa realidade
a partir de construções imagéticas e representacionais” (FRANÇA, 2012, p. 14). Dessa forma,
é fundamental, também, observarmos os discursos de tais representações midiáticas,
especialmente quanto aos atores que nelas são colocados em ação, neste caso específico,
perceber como estão representados franceses e muçulmanos a partir do ocorrido e, em
consequência, Ocidente e Oriente.
Outra perspectiva em torno do acontecimento, construtivista, merece aqui ser
problematizada. O pesquisador Elton Antunes (2008) busca entender o discurso jornalístico da
atualidade como um “efeito de sentido produzido a partir da associação a determinadas
representações da figura de tempo”, refletindo sobre como a temporalidade incide sobre a
enunciação jornalística e repensando, assim, a noção de acontecimento. Convocando
Charaudeau (2006), Antunes afirma que a forma do discurso de informação da atualidade é por
excelência o acontecimento e que os acontecimentos, em princípio, são “representações
linguajeiras do fluxo de experiência do mundo produzidos a partir de uma fragmentação
semântica” (ANTUNES, 2008, p. 2).
Para Antunes, por mais que exista uma relação intrínseca entre acontecimento e
acontecimento jornalístico, os dois não devem ser tomados como fenômenos equivalentes, uma
vez que o jornalismo opera “em direção oposta a essa ideia de ruptura, promovendo a integração
do ‘novo’ às categorias do já existente, como construído pelo sistema de informação e pela
própria experiência social” (ANTUNES, 2008, p. 4). Parece haver, assim, um padrão que retém
alguns acontecimentos em detrimento de outros, na tentativa de certa estabilização. Nessa
acepção, os acontecimentos ocorrem e afetam alguém, constituindo-se a partir de duas visadas:
“torna-se acontecimento jornalístico ou fato a partir de um olhar que busca estabelecer o
contexto de sua emergência” (ANTUNES, 2008, p. 4), ou seja, um movimento que tenta
explicar-lhe o sentido. Mas esse olhar é, essencialmente, um duplo olhar: “o acontecimento está
na interseção entre um olhar que mostra, da instância de produção, e um olhar que vê, na
instância da recepção” (p. 4).
Em Sodré (2006), retomado por Antunes, o acontecimento não seria uma ruptura, e
sim uma marcação, uma vez que a mídia é uma maneira específica de estruturar o tempo a partir
de um ritmo, sendo a notícia uma espécie de “ritmista” que “cadencia de alguma maneira a
passagem do ‘bloco’ da vida social” (ANTUNES, 2008, p. 6). A grande questão do
acontecimento, então, estaria no sentido de atualidade: a composição textual da notícia operaria
e articularia, de alguma forma, tal sentido. Para Antunes, a atualidade não seria uma qualidade
intrínseca dos acontecimentos e, assim, da informação jornalística, mas uma forma de
apresentar-se, “propor-se como”.
Assim, como o jornalismo propõe o atentado ao Charlie Hebdo como acontecimento?
Se ele não o é a priori, como o discurso jornalístico o posiciona como um, e de grande apelo?
Refletir sob essa abordagem nos faz pensar, por exemplo, em porque o ataque ao periódico
francês foi sistematicamente abordado pela mídia e a investida do grupo islâmico Boko Haram
na Nigéria, ocorrida na mesma época e somando mais de 2 mil mortos, não reverberou da
mesma maneira4. Não se trata, aqui, de desconsiderar questões do próprio fazer jornalístico,
como a quantidade de correspondentes e a estrutura para cobertura de cada país, entre outros
aspectos, mas, sim, perceber que o gesto jornalístico — mas não apenas, para não cairmos em
uma armadilha midiacêntrica — funciona em uma dinâmica de proposição de que vejamos um
evento como acontecimento.
Imaginários sócio-discursivos
Para refletirmos sobre o modo como franceses e muçulmanos foram representados pelos
jornais brasileiros, nos valeremos do conceito de “imaginários sócio-discursivos”, do linguista
e analista do discurso Patrick Charaudeau.
Segundo Charaudeau (2007), constantemente utilizamos o termo “estereótipo” para nos
referir a ideias repetitivas, já “cristalizadas” em nossa sociedade e que são consideradas
simplificadas e generalizantes. O termo já carrega em si uma conotação pejorativa, diz de um
julgamento negativo. Em função disso, se buscamos os discursos que incidem sobre a
representação de grupos humanos, é preferível usarmos a palavra “imaginário”.
Noção que se inscreve em uma tradição filosófica e psicológica, recuperada e
reconceitualizada pela antropologia social, e que melhor atende ao quadro da análise do
discurso, imaginário é uma forma de apreensão do mundo que reflete a organização das
sociedades humanas. Através dos imaginários, construímos a significação sobre os objetos, os
fenômenos naturais, os seres humanos, seus comportamentos e relações. Cumprindo uma
função de elo social, eles seriam responsáveis por criar valores e justificar ações.
Segundo Charaudeau, os imaginários podem ser qualificados como sócio-discursivos,
pois o sintoma de um imaginário é a fala, ou melhor, os discursos circulantes que se realizam
dentro de um domínio de prática social (em nosso estudo, o discurso de informação
jornalístico), atuando de modo a sedimentar uma memória coletiva, um universo de
pensamento, os lugares de instituição de verdades. Nesse sentido, os meios de comunicação
têm papel capital para a formação e propagação de imaginários.
4
Sobre o assunto, ver: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/12/internacional/1421078918_398000.html
É importante nos determos mais profundamente em dois pontos: a conexão da
linguagem à realidade e o papel da mídia na atividade de simbolização representacional do
mundo. De acordo com Charaudeau (2007), a realidade precisa ser “formatada” para torna-se
real. Há, portanto, uma distinção entre esses dois termos: “realidade” e “real”. Enquanto o
primeiro diz do mundo empírico e fenomenológico, cuja existência independe e impõem-se ao
homem, lugar a-significante (e ainda a-significado), o segundo está ligado à atividade de
racionalização do homem por meio do exercício da linguagem. O real é o mundo construído e
estruturado através das diversas operações de nominação dos seres, caracterização de suas
propriedades, descrição das ações inseridas em um espaço-tempo e de suas causalidades.
Ainda que os meios de comunicação afirmem buscar transparência e certa autenticidade
dos acontecimentos, "os fatos não tem uma verdade em si", pois “a informação é pura
enunciação” e o que está em jogo são apenas “efeitos discursivos de real”, explica o analista do
discurso (CHARAUDEAU, 2009, p. 36). Ele diz: "É em sua encenação, num certo dispositivo,
que surge, diante daquele que é tomado por este mesmo dispositivo, uma verdade subjetiva que
tende a objetivar-se num movimento universal" (p. 169). De acordo com Charaudeau, ainda
que se apresentem como verdades indiscutíveis, o que a mídia nos oferece são “opiniões
existenciais provisórias” (p. 267).
É válido ainda ressaltar que um dos efeitos da máquina de informar é a “dramatização
dos acontecimentos” (CHARAUDEAU, 2009). Isto porque a informação se fabrica muito
depressa e a mídia é impelida a uma tomada de posição, que muitos vezes obedece a uma lógica
simplista e antagônica, segundo um “roteiro dramatizante”. Roteiro este que consistiria em:
(1) mostrar a desordem social com suas vítimas e seus perseguidores; (2) apelar para
a reparação do mal, interpelando os responsáveis por este mundo; (3) anunciar a
intervenção de um salvador, herói singular ou coletivo com o qual cada um pode
identificar-se. (CHARAUDEAU, 2009, p. 254)
Tal roteiro apresentado será um dos nortes para a análise empreendida neste artigo,
sendo observadas as dinâmicas listadas e como elas se estabelecem. De acordo com o teórico,
"a focalização dramatizante do relato midiático (...) pode transformar toda pessoa, entidade ou
instituição em herói ou em vilão" (CHARAUDEAU, 2009, p. 272). É nosso objetivo também
entender como se dá esse dualismo na cobertura de impressos brasileiros sobre o ataque em
Paris.
Qual é a graça do Charlie Hebdo? Algumas ponderações sobre humor e islamofobia
Antes de empreendermos as análises das três capas propostas por este trabalho,
acreditamos que uma breve problematização quanto ao humor e a islamofobia se faz necessária,
na tentativa de observamos alguns dos atravessamentos do acontecimento “ataque ao Charlie
Hebdo” e ponderarmos se tais questões aparecem na enunciação discursiva do acontecimento
jornalístico.
Atualmente cerca de 5 milhões de muçulmanos vivem na França, o que corresponde a
8% da população5. No entanto a integração entre esses grupos humanos esbarra em
discordâncias de ordem religiosa, cultural e sociopolítica, como corrobora o ataque em
princípios deste ano. Diante desses conflitos, emerge a necessidade de debatermos sobre como
os discursos circulantes, especialmente na mídia, contribuem para incentivar uma postura de
empatia e respeito, ou de exclusão e intolerância entre esses sujeitos.
Fundado em 1970, o Charlie Hebdo é uma publicação francesa satírica, com humor
ácido e irreverente, ao ponto de usar como slogan “journal irreponsable” (jornal irresponsável).
Sua linha editorial ataca principalmente autoridades políticas e figuras religiosas, sendo o Islã
um alvo recorrente nos últimos anos. O conteúdo do semanário poderia ser enquadrado, de
acordo com a Organização para Cooperação Islâmica (OIC), como uma manifestação de
islamofobia. Para a OIC, segunda maior organização intergovernamental do mundo, superada
apenas pelas Nações Unidas, e representante dos interesses dos muçulmanos:
Islamofobia é uma forma contemporânea de racismo e xenofobia motivada pelo medo
infundado, desconfiança e ódio aos muçulmanos e ao Islã. A Islamofobia também se
manifesta por meio de intolerância, discriminação, desigualdade de tratamento,
preconceitos, estereótipos, hostilidade e discurso público adverso. Diferenciando-se
do racismo e da xenofobia clássica, a islamofobia é baseada principalmente na
estigmatização da religião e de seus seguidores. Como tal, a islamofobia é uma afronta
aos direitos humanos e à dignidade dos muçulmanos. (SEVENTH OIC
OBSERVATORY REPORT ON ISLAMOPHOBIA, October 2013 – April 2014,
ORGANIZATION OF ISLAMIC COOPERATION, p. 10)6
Apesar de nossa análise se dedicar às narrativas jornalísticas construídas nos três
impressos brasileiros destacados, cabe a nós problematizar o humor presente nas charges do
Charlie Hebdo e a função do riso como instrumento de coerção e coesão social, uma das
perspectivas possíveis sobre o assunto, para melhor debruçarmo-nos sobre o fenômeno e sua
complexidade.
Posto isto, para entendermos os procedimentos de fabricação do humor, o que perpassa
as sátiras do Charlie Hebdo, tomamos como principal base a teoria do riso de Henri Bergson.
5
Sobre o assunto, ver http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2015/01/visao-do-isla-na-europa-e-umadificil-questao-politica-cultural-e-social.html
6
Islamophobia is a contemporary form of racism and xenophobia motivated by unfounded fear, mistrust and hatred
of Muslims and Islam. Islamophobia is also manifested through intolerance, discrimination, unequal treatment,
prejudice, stereotyping, hostility and adverse public discourse. Differentiating from classical racism and
xenophobia, Islamophobia is mainly based on stigmatization of a religion and its followers. As such, Islamophobia
is an affront to the human rights and dignity of Muslims.
De acordo com o filósofo, rir faz parte da natureza humana, mas entender o que provoca o riso
é tão difícil de apreender quanto qualquer efeito psicológico. No entanto o autor destaca três
pontos comuns presentes nas diferentes técnicas de comicidade: a humanidade, a
insensibilidade e a sociabilidade (2001, p. 4-5).
Para Bergson, se buscamos desvendar o porquê e do quê rimos, caminhamos no sentido
de entender um pouco mais sobre nós mesmos e nosso mundo. “Não existe comicidade fora
daquilo que é propriamente humano”, assegura o filósofo (BERGSON, 2001, p.1). Isso se dá
de tal modo que, mesmo quando rimos de um animal, o fazemos à medida que identificamos
nele uma atitude ou expressão que se assemelha à humana. O mesmo ocorre com os objetos.
Rimos de um chapéu, por exemplo, quando percebemos nele características próprias ao homem,
por meio da forma e do uso que a ele atribuímos.
Para que o riso ocorra, ainda é necessário que haja “insensibilidade” da parte de quem
ri. Segundo Bergson, a emoção é a maior inimiga da comicidade, enquanto a indiferença é seu
meio natural. Esse princípio é também chamado de “inteligência pura”, já que o riso só seria
possível quando os sentimentos não se sobrepõem à razão.
A respeito do terceiro fator, a sociabilidade, o filósofo afirma: “Nosso riso é sempre o
riso de um grupo” (p. 5). Entendido como um “gesto social”, o riso seria um mecanismo de
contenção e correção de comportamentos considerados desviantes. Assim, ainda que de forma
sutil e até inconsciente, o humor possui um importante papel regulatório que incide sobre as
condutas em sociedade. Rir é uma forma de represália quando percebemos uma situação de
inadequação, algo ou alguém que se distancia do senso comum, daquilo que uma maioria
acredita ser o correto. Nas próprias palavras do teórico:
(...) a sociedade não pode intervir nisso por meio de uma repressão material, pois ela
não está sendo materialmente afetada. Ela está em presença de algo que a preocupa,
mas somente como sintoma – apenas uma ameaça, no máximo um gesto. Será,
portanto, com um simples gesto que ela responderá. O riso deve ser alguma coisa
desse tipo, uma espécie de gesto social. (BERGSON, p. 14-5. Grifo do autor)
A relevância do trabalho de Bergson está não somente no fato do filósofo ter conseguido
empreender uma análise sistemática e consistente sobre a comicidade, ainda em fins do século
XIX, mas por atribuir ao riso uma função social. Sua teoria nos revela que, embora o humor
não tenha, a princípio, o propósito de ensinar, ele acaba nos ensinando, pois apenas se torna
viável se está em consonância com o funcionamento de determinada sociedade e em sintonia
com o tempo histórico. O humor é revelador das expectativas sociais e enquanto um
instrumento de vigilância e coesão social, atua de modo a reenquadrar o indivíduo segundo
valores e costumes hegemônicos. É, nesse sentido, uma censura jocosa, lugar de afirmação da
negação.
Após essa breve retomada sobre a teoria do riso, podemos entender que o humor satírico,
como o presente no Charlie Hebdo, ao ridicularizar indivíduos e ironizar suas crenças e modo
de vida, frequentemente acaba por propagar discursos de ódio. Certamente, esta é apenas uma
das abordagens e das consequências possíveis do humor. Mas é importante que a consideremos
ao tratar do último confronto entre franceses e muçulmanos, em Paris, e ao analisar o modo
pelo qual o episódio reverberou na mídia. Seguiremos, então, com a análise das três capas.
Jornal Folha de S. Paulo
Figura 1: Reprodução da capa da Folha de S. Paulo de 8 de janeiro de 2015
Em 8 de janeiro de 2015, o periódico Folha de S. Paulo (Figura 1), impresso de maior
circulação do país, estampava a manchete “Terroristas matam 12 em ataque a jornal de Paris;
multidão vai às ruas”. Logo abaixo, o bigode complementa a informação: “Polícia aponta
franceses de origem argelina como suspeitos de atentado ao semanário ‘Charlie Hebdo’, que
satiriza o Islã.” Aqui podemos ressaltar que o emprego do termo “terroristas” transmite a ideia
de que a identidade dos responsáveis e a motivação do ataque já haviam sido dadas como certas,
ao passo que a palavra “suspeitos”, em seguida, tende a relativizar essas afirmações. O excerto
“segundo testemunhas, os atiradores se identificaram como membros da Al-Qaeda, mas não
houve confirmação” reforça tal incerteza.
O assunto, desmembrado em quatro outras chamadas com diferentes enfoques, ocupou
dois terços da página e contou com três diferentes imagens como recurso narrativo, o que indica
a importância a ele conferida pelo jornal. Na porção superior, duas fotos assinalam o “roteiro
dramatizante” do qual nos fala Charaudeau. A primeira é um frame do vídeo que registra o
momento em que um policial francês, deitado no chão, está prestes a ser morto pelos homens
encapuzados. É possível perceber a desordem social ali instaurada. A figura do vilão que mata
em situação na qual a vítima aparenta estar indefesa acaba por suscitar o desejo de reparação
do mal observado pelo analista do discurso.
É interessante perceber que o reforço da cena do atentado se dá, em grande parte, por
meio dessa escolha de imagem, que presentifica o ataque e reforça a noção de que houve um
acontecimento; algo grave aconteceu. Mas essa imagem se refere ao acontecimento, como algo
externo aos processos jornalísticos? Ou essa imagem é o acontecimento por fazer parte da
narrativa construída pelo discurso do jornal? É possível delimitar? Nos parece importante dizer,
aqui, que a narrativa jornalística é entretecida por diversos eventos, de forma que é possível
dizer não de um, mas de vários acontecimentos. Na segunda imagem, vemos um cartaz com a
expressão “Je suis Charlie”, levantado na manifestação em Berlim como homenagem às
vítimas do atentado, que reforça uma polarização e demonstra a identificação de um grupo com
os vitimados. Essas manifestações não seriam, em si mesmas, acontecimentos também, visto
que convocam outros conjuntos de relações? Sobre o acontecimento que é reportado, Antunes
afirma que
Amparado por uma rede intertextual de acontecimentos outros, uma cadeia de
contextos e registros socioculturais vários, elementos cognitivos específicos,
biografias variadas, textos diversos, a identificação do “fato principal” revela-se mais
problemática do que o próprio imaginário jornalístico leva a crer. (ANTUNES, 2013,
p. 108).
A terceira imagem, disposta mais abaixo, uma charge assinada por Angeli, endossa o
posicionamento da publicação. Ao apresentar figuras com lápis nas mãos, identificados como
“Charlie Hebdo”, e o mote “Allons enfants de la Patrie”, ou “Avante, filhos da pátria”, trecho
da Marselhesa, hino nacional da França, o jornal, por meio da ilustração de um dos seus mais
célebres chargistas, deixa transparecer seu apoio ao semanário francês e seu repúdio ao ataque.
Na chamada “Atentado é ápice da violência contra a mídia, diz órgão global”, a questão
da liberdade de imprensa é levantada, e a própria escolha da frase a ser destacada indica que a
Folha compartilha desse direcionamento. No depoimento de Adão Iturrusgarai, cartunista que
publica tiras diárias na Folha de S. Paulo, há a exaltação de um dos escritores de quadrinhos
mortos no atentado, o que sugere um movimento de heroicização das vítimas: “Georges
Wolinski era minha maior influência”.
A Folha, porém, abre espaço para outra discussão, ponderando o rechaço aos
responsáveis pelo ataque quando, na chamada para a coluna de Clóvis Rossi, “Radicais
islâmicos e islamofóbicos se alimentam mutuamente e criam horror”, levanta a questão da
islamofobia. Apesar da assimetria de abordagens, é possível dizer que o periódico paulista
reconhece, em certa medida, a complexidade do ataque ao Charlie Hebdo e seu contexto.
Jornal O Globo
No dia seguinte ao do ataque ao Charlie Hebdo, o jornal carioca O Globo (Figura 2), de
forma mais explícita do que a Folha de S. Paulo, expôs seu posicionamento a favor do periódico
francês. É importante ressaltar que o assunto ocupou praticamente toda a página, apoiando-se
em sete imagens. A frase “Eu sou Charlie” está em destaque, logo acima da manchete, sem a
marcação de aspas, que indicariam uma fala atribuída a outra pessoa ou modalização
autonímica. Dessa forma, O Globo toma para si a expressão, deixando claro que está ao lado
dos chargistas mortos no atentado.
A chamada de capa, “Ataque à liberdade de expressão mata 12 em Paris”, salienta a
visão do meio de comunicação sobre o ataque: o episódio é compreendido sob a questão
principal da violência à liberdade de expressão e de imprensa e, por esse motivo, fere os órgãos
midiáticos como um todo. No bigode, “Massacre em redação de jornal satírico deixa a França
em choque”, percebemos, pelos termos “massacre” e “choque”, a gravidade do acontecimento
em uma dinâmica de ação (violência extrema) e reação (proporcional perplexidade do país
atacado e do mundo, na construção do jornal).
Figura 2: Reprodução da capa do jornal O Globo publicado em 8 de janeiro de 2015
É possível dizer que, aqui, a construção da narrativa jornalística opera em um
movimento de sugestão do que veio a ser o “ataque ao Charlie Hebdo”, reforçando sua carga
de excentricidade, relevo em relação a outros fatos que ocorrem no cotidiano. Mas, para além
do atentado ser uma ruptura da normalidade no mundo de referência, o gesto jornalístico é que
o insere em um quadro mais amplo e tenta, de alguma forma, organizá-lo. Se a normalidade do
cotidiano são os acontecimentos, atravessados e superpostos, e não o contrário, isso nos volta
para o gesto jornalístico, nesse caso, como grande articulador do acontecimento, especialmente
as primeiras páginas dos jornais que, para Antunes (2013), “misturam relato e argumento e
fabricam uma adesão a algum tipo de representação do acontecimento” (ANTUNES, 2013, p.
112).
No texto correspondente, a palavra “terroristas” é utilizada, bem como nas legendas das
imagens. A organização à qual os homens que atacaram o Charlie Hebdo pertenceriam, mesmo
que supostamente, não é citada em outros momentos, dando a informação como concluída. A
única relativização se torna aparente no trecho “segundo autoridades policiais, dois dos três
terroristas seriam os irmãos franceses (...)”, por meio da escolha do verbo “ser” no futuro do
pretérito. Em chamadas menores, a questão da liberdade de expressão é reforçada, respaldada
por atores sociais aglutinados nas figuras de “associações de jornais e ONGs”, essa última, sigla
utilizada para Organizações Não Governamentais. Até aqui, vigora a unilateralidade de
representações no jornal. O mesmo acontece com a chamada para a coluna de Veríssimo,
“Condenar a irreverência seria condenar a inteligência”, e de Míriam Leitão, “Atentado atingiu
o jornalismo, a liberdade e o futuro”.
O único contraponto, ainda que discretamente, é a chamada para a entrevista com o
pensador francês e sociólogo da Sorbonne, Michel Maffesoli, que suscita uma reflexão sobre
liberdade religiosa e respeito aos muçulmanos com a afirmação, marcada por aspas: “Não
sabemos lidar com os religiosos porque os negamos”. Nesse momento, é possível observar um
discurso controverso, ainda que sutil, na construção da notícia.
As imagens presentes na capa da edição também merecem atenção. Da mesma forma
que a Folha de S. Paulo, O Globo utiliza o frame que mostra o policial francês prestes a ser
morto e a foto de manifestantes erguendo cartazes com os dizeres “Je suis Charlie”, dessa vez,
pelas ruas da França. Mas há um recurso interessante que pode acabar provocando uma
aproximação entre o leitor e as vítimas do atentado: estão dispostas fotografias individuais dos
rostos de quatro cartunistas, classificados pelo jornal como “renomados”. As faces, três delas
com notáveis sorrisos, trazem certa noção de inocência, evidenciando para o leitor dessas
representações a polarização já descrita entre vítimas e assassinos e convidando para a
identificação com um desses grupos.
Por fim, a charge assinada por Chico apresenta um homem vestido de preto e
encapuzado, em alusão aos terroristas, segurando a cabeça da Estátua da Liberdade, que sangra
no pescoço, onde foi cortada. Além da associação imediata da imagem com o tolhimento da
liberdade, o que representaria a escultura, há outra camada de informação como pano de fundo,
uma vez que o monumento, de nome “A Liberdade Iluminando o Mundo”, é uma obra francesa,
idealizada por Édouard Lefèbvre de Laboulaye, historiador e político do país europeu 7.
Misturando referências americanas e europeias, o recurso imagético une as potências do
ocidente sob o mesmo mote, contrapondo-as com o oriente, especialmente quando lembramos,
7
Ver em http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/a_estatua_da_liberdade_e_americana__falso_.html.
Acesso em 11/02/2015
por meio de uma evocação de memória, que os norte-americanos já foram vitimados, em outro
expressivo acontecimento, por terroristas de religião islâmica.
Jornal Estado de Minas
Figura 3: Reprodução da capa do Estado de Minas de 8 de janeiro de 2015
O periódico mineiro dedicou quase que a totalidade da capa ao ataque à redação do
Charlie Hebdo. Observa-se, no alto da primeira página (Figura 3), a referência a um local e
uma data: “Paris, 7 de janeiro de 2015”. Esse recurso singulariza o episódio e lhe dá força de
um “marco histórico”, como ainda hoje é o “11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos”.
Assim, nossa memória pessoal e coletiva é acionada, trazendo uma série de imagens que se
relacionam a atos considerados terroristas, assim como o faz O Globo.
Abaixo, vê-se uma única ilustração, assinada por Son Salvador, que mostra materiais de
desenho, como lápis, borracha e canetas, cobertos por manchas vermelhas, em alusão ao sangue.
Título e bigode, ambos em caixa alta, reforçam o apelo dramático: “Tiros contra a liberdade.
Terroristas invadem jornal e matam 12 pessoas, deixando em choque a França e o mundo”.
Novamente, o enfoque da matéria recai sobre a liberdade de expressão e de imprensa.
Ao preferir uma ilustração a imagens técnicas (fotografias e frames de vídeo), como o
fizeram Folha de S. Paulo e O Globo, o Estado de Minas abdica de um estatuto indicial da
imagem, de sua força enquanto registro, para dar uma atmosfera mais emotiva à capa —
estratégia do qual nos fala Charaudeau. Pode-se dizer que as manchas em vermelho,
combinadas a palavra “tiros”, remetem o leitor ao ataque tanto quanto a imagem que mostra os
homens encapuzados prestes a matar o policial francês, deitado ao chão, usada nos outros dois
periódicos brasileiros. Em ambos os casos, incentiva-se a uma tomada de posição favorável à
causa dos franceses e contra os muçulmanos radicais. No entanto se a fotografia é uma
estratégia discursiva que permite descrever o mundo e explicá-lo segundo os princípios da
veracidade, de forte poder argumentativo (o logos), a ilustração é uma maneira de tocar o afeto
do outro para seduzi-lo, por meio da emoção (o pathos) (CHARAUDEAU, 2007).
É digna de nota a presença de grandes áreas de respiro na capa — muito diferente do
que usualmente encontramos nas primeiras páginas de jornais, abarrotadas de notícias. O
destaque dado ao episódio em Paris é tamanho, que esse praticamente não concorre com outros
acontecimentos. As demais chamadas aparecem diminutas, semelhantes a notas de rodapé. O
“choque”, do qual nos fala o título, apresenta-se materializado na própria capa do Estado de
Minas, pois o veículo se propôs a repensar seu layout para dar conta da “desordem social” ali
retratada. Os grandes espaços em branco enfatizam o tom emotivo na cobertura do episódio,
representam o “silêncio” e a incredulidade após o “massacre”, como é chamado o
acontecimento pelo veículo.
No texto que se segue, é possível ver novamente o “roteiro dramatizante” de
Charaudeau. A fim de restituir a ordem social, “a polícia francesa informou ter identificado três
suspeitos e, no fim da noite, confirmou ter conseguido prender um deles, que se entregou”.
Segundo o jornal, a comoção em torno do evento desencadeou “reações indignadas em todo o
planeta, inclusive de líderes muçulmanos”. Essa informação reforçaria um posicionamento
hegemônico e unânime contra a ação dos irmãos franco-argelinos, autores do ataque, unindo
todos em repúdio ao que ocorreu no dia anterior em Paris. O antagonismo entre “heróis” e
“vítimas”, “bem” e “mal”, aparece também na dicotomia do editorial de nome “Trevas na
cidade luz”. Na outra chamada, lê-se: “O sentimento é de profanação a um dos pilares desta
civilização: a ‘República Francesa’”, trecho do relato de uma jornalista que esteve próxima à
sede do semanário no momento do tiroteio. Vemos aqui, claramente, a identificação com
valores ocidentais, que poderiam ser resumidos na frase “Liberté, Égualité, Fraternité”
(“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”), lema que embalou os revolucionários franceses de
1.789 durante a instauração da primeira República.
Observa-se que o jornal mineiro buscou antecedentes históricos que pudessem
contextualizar o evento dentro de um panorama maior: “Desde 2006, o Charlie Hebdo é alvo
da ira de grupos radicais islâmicos, por ter publicado caricaturas do profeta Maomé. Já havia
sofrido um atentado a bomba, em 2011”. No entanto, nada se fala sobre as causas desse embate.
O Estado de Minas inclusive atenua o conteúdo publicado pelo meio de comunicação francês,
ao referi-lo como um “jornal de humor”, em vez de adjetivá-lo enquanto “satírico”, como o
fizeram Folha e O Globo.
Considerações finais
Observamos que os três jornais impressos brasileiros se posicionaram abertamente de
modo solidário aos franceses e ajudaram a repercutir um sistema de valores ocidental, no qual
prevalecem liberdades de expressão e de imprensa sobre fundamentos religiosos, sem, no
entanto, problematizar as diferenças culturais entre o continente europeu e os países árabes, e
sem questionar também o teor do humor que é produzido pelo Charlie Hebdo, o que teria
motivado o atentado. Podemos afirmar, a partir das considerações de Charaudeau (2007), que
a emergência de conflitos após as charges com o profeta Maomé revelam imaginários distintos
sobre o “sagrado” em uma e outra cultura.
Ainda constatamos, por meio da análise das três capas, que os jornais assumiram uma
lógica majoritariamente simplista e binária (bem e mal, trevas e luz), sendo que os filtros
axiológicos positivos se referiam aos franceses, ao passo que os negativos recaíam sobre os
muçulmanos. Nesse jogo de comparação, é interessante observar quais memórias coletivas
foram acionadas para se dizer de cada grupo. Enquanto que os muçulmanos foram
constantemente associados a episódios de terrorismo, os franceses tiveram seu patriotismo
exaltado, através da menção a símbolos nacionais (a Marselhesa) e a momentos de glória na
história do país (Revolução Francesa).
É importante ressaltar, no entanto, que, embora sejamos “beneficiários” de jornais que
informam e, portanto, dão forma ao acontecimento, predominando determinados recortes e
abordagens, as leituras são sempre múltiplas, não estando o sentido a cargo dos jornais ou de
seus leitores, mas daquilo que emerge desse “entre lugar”, como nos aponta a perspectiva
construtivista de Antunes (2008). No caso do atentado em Paris, grande parte da imprensa
brasileira mostrou-se inicialmente a favor do jornal satírico. Mas logo após uma comoção que
parecia mundial diante do ocorrido, posicionamentos controversos se dissiparam rapidamente
via redes sociais, demarcados, por exemplo, através da hashtag "Je ne suis pas Charlie" (“Eu
não sou Charlie”)8, a fim de contestar o humor feito pelo semanário francês.
Se tentarmos fugir à simplificação e ao antagonismo repercutido, de modo geral, pelos
jornais brasileiros, veremos que não se trata de entender a questão sobre a ótica de "heróis" e
"vilões", segundo o “roteiro dramatizante” do qual nos fala Charaudeau (2009), mas sim, de
inserir o episódio dentro de um contexto maior que diz sobre as diferenças históricas, culturais,
religiosas, sociais, políticas e econômicas dos sujeitos ali envolvidos, e que tão pouco obedece
a uma dicotomia entre Estados-Nação (França/Ocidente X países árabes/Oriente), já bastante
diluída sob a pressão de instâncias supranacionais e de movimentos migratórios.
Referências bibliográficas
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VOGEL, Daisu; MEDITSCH, Eduardo; SILVA, Gislene (ORG); Jornalismo e acontecimento, volume
4, Tramas Conceituais. Florianópolis: Editora Insular, 2013.
ANTUNES, Elton. Acontecimento, temporalidade e a construção do sentido de atualidade no
discurso jornalístico. Contemporânea, vol. 6, nº1. Jun. 2008.
BERGSON, H. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. Tradução: Angela S. M. Corrêa, 1. Ed., 2ª
reimpressão; São Paulo: Contexto, 2009.
CHARAUDEAU, P. Les stéréotypes, c’est bien. Les imaginaires, c’est mieux. In: Boyer H. (dir.)
Stéréotypage, stéréotypes: fonctionnements ordinaires et mises en scène. Paris: L’Harmattan, 2007.
FRANÇA, Vera. O acontecimento e a mídia. Galáxia, v. 12. São Paulo: Online, 2012.
ORGANIZATION OF ISLAMIC COOPERATION. SEVENTH OIC OBSERVATORY REPORT
ON ISLAMOPHOBIA, October 2013 – April 2014. Disponível em: http://www.oicoci.org/oicv2/upload/islamophobia/2014/en/reports/islamophoba_7th_report_2014.pdf
SIMÕES, Paula Guimarães. O acontecimento e o campo da Comunicação. In: Teorias da
Comunicação no Brasil: reflexões contemporâneas. Org. FRANÇA, Vera Veiga; ALDÉ, Alessandra;
RAMOS, Murilo César. Salvador; Brasília: EUFBA – COMPÓS, 2014.
8
Ver mais sobre o assunto em http://noticias.r7.com/internacional/hashtag-eu-nao-sou-charlie-cria-controversianas-redes-sociais-10012015-1
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