Economia Popular e a Sustentabilidade do Desenvolvimento Solidário* João Cláudio Tupinambá Arroyo Discorrer sobre a Economia Popular é uma tarefa complexa. Antes de tudo porque é preciso cuidar de pré-conceitos e, portanto, para se fazer entender é preciso convencer o leitor a se abrir para algo novo, e todos e todas sabem que a tendência é resistir. Depois porque é preciso enfrentar a racionalidade da economia a partir de uma outra, e a cultura ocidental deixou cada um de nós extremamente apaixonados por nossas razões. E, por fim, por se tratar de matéria econômica de grande expressão, mas ainda com poucos números. Vamos ao desafio. Miopia econométrica É comum se referir à Economia Popular genericamente como economia “informal”. Mas há quem a conceba como a economia “dos pobres”. Há ainda quem a ela se refira como economia “subterrânea”, e outros como economia “invisível”. De fato, o pré-conceito se alimenta do desconhecimento sobre algo ou alguém e como isso, em geral, incomoda, fica mais fácil destratá-lo, torná-lo menor, insignificante, “micro”, sem importância, e assim evitar ter que enxergá-lo, reconhecê-lo e considerá-lo o que vai levar a ter que respeitá-lo, aí para alguns, já é demais. A idéia de economia “informal” tem como referência a legalidade. Toda atividade econômica que não é registrada na Junta Comercial, que não tem CNPJ, é informal. E daí, desenvolve conclusões como “a economia informal não contribui com a sociedade porque não paga impostos”. Ora, mas qual a concepção econômica de quem fez a lei? Será que não é a “formalidade” estabelecida que precisa ser reformatada para ser capaz de dar conta da realidade? Quanto ao raciocínio de que ela não paga impostos, também se trata de uma distorção. Não é preciso ser especialista para saber que a única atividade econômica que paga imposto é o consumo, não há outra, já que para o produtor, todo custo, incluindo o tributário, entra na planilha de composição dos preços ao consumidor final. Bem, salário não vale porque, na verdade, já é bitributação, além de pagar no consumo, o trabalhador ainda é descontado na fonte. Mas este é outro debate. O que nos cabe aqui é dizer que quando uma costureira “informal” trabalha, além de gerar sua própria ocupação econômica, pode gerar a de outros. Ao mesmo tempo, movimenta o consumo de seus insumos e o de seus produtos por terceiros, o que irá movimentar todas as cadeias comerciais “formais” que seu negócio interage indo reforçar a indústria, em última instância. Ou seja, o tratamento como “informal”, não permite que se enxergue a Economia Popular como parte importante da economia, como peça estratégica para a solução do conjunto da problemática do desenvolvimento, desde que percebida adequadamente. A idéia de que a Economia Popular é a economia “dos pobres”, embora esteja em parte correta porque trata-se da economia do dia-a-dia da grande maioria das pessoas, reduz a percepção a algo que precisa ser superado, ligado ao atraso, à mera subsitência, em fim, que não gera riqueza. E aí está um ponto central, porque não há economia que não gere riqueza, já que todo lucro está na agregação de valor e o único fator de produção capaz de fazer isso é o trabalho, atributo de todo e qualquer ser humano economicamente ativo. Ou alguém tem dúvidas sobre a fonte popular da riqueza das grandes redes de supermercados, farmácias, magazines, shopping centers e, por tabela, de boa parte da indústria? A questão a se enfrentar é a da concentração de renda e riqueza, e aí a Economia Popular cumpre um papel fundamental porque sua riqueza é fortemente gerada na circulação, o que revela um caráter intrinsecamente distributivo. As denominações “subterrânea” ou até “invisível”, para denominar aquilo que salta aos olhas nas ruas revela, na verdade, a incompetência da econometria oficial, incapaz de aferir em números a dinâmica complexa da Economia Popular. As estatísticas oficiais não conseguem apurar e agregar os valores movimentados nas feiras livres, ou entre camelôs, por exemplo, e ninguém tem dúvidas da importância do significado econômico destas atividades, tanto pelo que movimenta de mercadorias quanto pelas ocupações que gera. Aqui, não faltaria quem acusasse, “sim, ocupações em trabalhos precários, sem direitos…”. É verdade, certa vez tentei convencer um amigo “flanelinha”, que cuidava dos carros em frente ao Banco do Povo de Belém, a vir trabalhar com carteira assinada. Depois de muito insistir, ele se compadeceu de minha ignorância econômica e me explicou com paciência que ele tinha um negócio que lhe rendia por mês 2,5 vezes mais do que o salário mínimo que eu o oferecia. Ou seja, a precarização precisa ser percebida para além do marco legal. O salário mínimo é precário. As condições de trabalho da grande maioria é precário, independente se tem carteira assinada ou não. Acontece que se não tem carteira assinada, se não tem CNPJ, não tem como contabilizar a movimentação da atividade econômica, aí, em vez de aperfeiçoar a tecnologia e a metodologia do sistema para captar a movimentação de milhões de pessoas e bilhões de reais, é mais fácil dizer que a realidade é que está errada. Se o quadro é feio, em vez de pegar os pincéis e as tintas para melhorá-lo, fecham-se os olhos. A conseqüência dramática é a de todo preconceito, transforma a vítima em réu. A recusa em enxergar a Economia Popular como uma instância própria da economia, é a recusa dos direitos de milhões de pessoas que praticam uma economia que exige uma nova abordagem tanto pela via do capital quanto, e principalmente, a do trabalho, até porque neste contexto, quase sempre estão fundidos em um amalgama econômico em que a maioria dos sujeitos também se funde como trabalhador/empreendedor. Só uma abordagem inovadora resgatará milhões da marginalidade ao mesmo tempo que os colocará em sinergia com a construção de um novo modelo de desenvolvimento capaz de gerar trabalho, emprego e renda para todos e todas. As dimensões da Economia Popular e a proposta de um novo conceito Propomos compreender a economia a partir de sua unidade atômica, a troca. A troca é um fenômeno humano – que preside inclusive a relação com o meio ambiente. Um processo baseado na identificação de objetivos comuns ou complementares entre as partes e, na confiança de que ambos serão satisfeitos com a troca. Ou seja, comprar e vender significa a mesma coisa: trocar. Apenas se chama “compra” quando se troca dinheiro por um objeto ou serviço. Se a troca é de um objeto ou serviço por dinheiro, aí dizem que houve uma “venda”. Em última instância, a troca envolve o mesmo objetivo dos dois lados: a melhoria da qualidade de vida – claro que segundo as referências de cada um. Além disso, se uma das partes não confiar que seu objetivo será satisfeito, a troca não ocorre. Daí propormos concluir que a motivação original da interação econômica é a solidariedade: objetivos comuns e confiança. Acontece que esta motivação original sofreu, e sofre, distorções a medida em que as relações humanas deixam de ser livres para se basearem em condições de dominação. O monopólio, e seus derivados, são exemplos de relações econômicas que distorcem o fundamento solidário, obrigando uma das partes a uma condição sem o direito de escolha. Na Economia Popular, apesar do conjunto do sistema econômico ser hegemonizado por complexas situações de dominação, o principal capital é a credibilidade, em função de quase sempre se tratar de mercados concorrenciais. Na Economia Popular a solidariedade é uma forte tendência intrínseca. Afinal, do que estamos tratando? Estamos tratando de um segmento da economia caracterizado, entre outros aspectos, por negócios que se estruturam a partir do atendimento direto das demandas da população e por estabelecerem giro local – movimentando majoritariamente seus insumos e produtos em um determinado território, corroborando com o dinamismo que alimenta as diversas cadeias do arranjo produtivo local, além de se comunicar com cadeias que extrapolam aquele arranjo. Aqui, entendemos por “negócios” as diversas formas de combinação entre capital e trabalho que, no caso da Economia Popular, quase sempre é hegemonizado pelo trabalho. Se observarmos as diversas cadeias produtivas que atendem a população de um bairro, por exemplo, poderemos ver que há uma interação entre a feira, a padaria, a mercearia, a danceteria, a papelaria, a loja de tecidos, a loja de móveis e eletrodomésticos, a costureira, o mecânico, o médico, o professor, a cabeleireira, o taxista, o advogado, a cooperativa etc, todos e todas empreendedores(as) populares que além de gerarem a sua própria inserção na economia, proporcionam a de muitos outros. Geram uma massa de renda e salários que alimentam o consumo no mesmo bairro, tanto no que diz respeito a parte dos insumos produtivos – já que outra parte importante interage com outros segmentos econômicos incluindo a indústria e a agricultura – quanto em relação aos produtos e serviços ofertados por eles e elas. Estamos tratando de cerca de 20 milhões de brasileiros e brasileiras, definidos pelo IBGE como “trabalhadores por conta própria”, “micro e pequenos empresários”. Segundo o Sebrae, estamos tratando do segmento que gera 80% dos postos de trabalho do país – gerando 95% dos novos postos de trabalho – e que movimenta algo em torno de 30% do PIB(Produto Interno Bruto) do Brasil. Portanto, um segmento vital para o conjunto da economia que precisa ser tratado adequadamente para que suas potencialidades sejam otimizadas, cumprindo um papel estratégico para a construção de um novo modelo de desenvolvimento que seja justo, solidário e sustentável. Onde o significado de “mercado” se confunda com o de “sociedade”, não se restringindo mais apenas aos que “podem pagar”. Onde a idéia de “riqueza” esteja associada a “distribuição” e não a “acumulação”. Enfim, onde o “trabalho” presida o “capital”. O que coloca a Economia Popular como segmento central para a construção do projeto de Economia Solidária como solução global. A importância da Economia Popular para a estruturação de um novo modelo de desenvolvimento Para os que precisam enxergar fora o que é importante no Brasil: Na França, não é permitido que grandes redes de supermercados se instalem nos grandes centros urbanos para que as mercearias, padarias, quitandas e feiras possam cumprir o seu papel. Claro que com esse, e outros apoios, oferecem serviços e produtos de alta qualidade, bem diferente de nossa realidade. Nos EUA, o empreendedorismo é visceralmente estimulado e totalmente desburocratizado para que a economia interna cumpra o papel de lastro principal que lhe confira soberania política. Na Lombardia, Itália, foram as políticas de apoio aos empreendimentos populares que alavancou a economia da região que hoje é símbolo de sucesso para todo o mundo. O “enigma chinês” também se explica por aí. Ou seja, não há como ser forte, soberano e sustentável se o desenvolvimento não vier “de baixo para cima” e “de dentro para fora”, exatamente o inverso do modelo que ainda nos hegemoniza. A Economia Popular urbana e rural, trabalhada adequadamente em sinergia com outros segmentos, poderá contribuir com as exportações, particularmente com a margem de excedentes, melhorando o perfil da Balança de Pagamentos. Combinada com o fortalecimento do mercado interno robustecerá a moeda equilibrando o câmbio. Como o incremento da Economia Popular traz um sincronismo entre a geração de empregos e produtos/serviços, tende a estabelecer uma relação entre oferta e demanda que proporcione o equilíbrio dos preços evitando a inflação. Portanto, a Economia Popular é uma das peças importantes para melhorar o perfil dos fundamentos macroeconômicos do país. No entanto, é preciso destacar que a Economia Popular se diferencia dos outros segmentos da economia por estabelecer a possibilidade mais nítida de inverter a ordem entre o econômico e o social, já que não há solução social se não for econômica. Está diretamente ligada à segurança alimentar da população, ao usufruto de direitos básicos com inserção econômica do cidadão ou cidadã, à viver com dignidade, à melhoria da qualidade de vida. Desafios para uma estratégia de fortalecimento da Economia Popular e Solidária O desafio da solidariedade. O resgate da cultura da solidariedade, que não se confunda com caridade, é central para construirmos as condições fundamentais do novo modelo de desenvolvimento, estimulando os formatos associativos entre os empreendedores populares, como cooperativas, associações, fóruns, conselhos, grupos de compra conjunta, clubes de troca etc. O desafio do financiamento. A constituição de um Sistema de Finanças Solidárias, que combine diversos produtos financeiros dirigidos aos empreendeedores populares como crédito popular/microcrédito, poupança, seguro, cartão de crédito, troca de cheque etc, é um instrumento indispensável que deve vir umbilicalmente associado à formação e à organização dos empreendedores populares. O desafio da ciência e da tecnologia. É preciso investir em pesquisa que gere tecnologias adequadas à natureza e à escala dos negócios populares, para que os produtos e serviços do segmento ganhem qualidade e competitividade. O desafio do Marketing. A adaptação do instrumental mercadológico também é fundamental para que se tenha parâmetros científicos para dialogar com a cultura de consumo, inserindo novos paradigmas culturais e éticos. O desafio do desenvolvimento local. A identificação de cadeias e a compreensão da interação destas em arranjos econômicos locais precisa ser desenvolvido através de metodologias que considerem o empreendedor popular como sujeito protagonista do processo organizativo econômico e social. *Artigo publicado na revista Teoria e Debate João Cláudio Tupinambá Arroyo, educador popular, MBA em marketing pela FGV, secretário de formação do DE-PT/PA, membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo, ex-coordenador geral do Banco do Povo de Belém, chefe de gabinete da Agência de Desenvolvimento da Amazônia(ADA/Nova SUDAM), membro do Fórum Brasileiro de Economia Solidária. [email protected] ou joã[email protected]