Procedimentos e funções do cômico de Henri Bergson em

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III Colóquio Filosofia e Literatura: do cômico - Anais do Evento
20 a 22 de março de 2013
Procedimentos e funções do cômico de Henri Bergson em
Esperando Godot de Samuel Beckett
Poliana Marques Cordeiro Costa1
Pós-graduação/UFS
Resumo: Este trabalho consiste numa construção de base filosófico-literária que procura utilizar as
ideias filosóficas de Henri Bergson, contidas no livro O Riso, como instrumental teórico
para análise realizada no texto literário Esperando Godot de Samuel Beckett. Destacando,
segundo o ponto de vista filosófico de Bergson, quais seriam os possíveis procedimentos
e funções do cômico existentes nesse texto. Para este fim o trabalho esta dividido em três
partes. A primeira parte consiste num resumo do contexto histórico da obra de Samuel
Beckett e suas principais características, bem como uma breve síntese do texto. A segunda
parte trata do contexto teórico de Bergson buscando dentro da sua sistematização relacionar seu conteúdo teórico com temas centrais que envolvem a obra Esperando Godot,
como o efeito da “distração” e o efeito do “automatismo”. Na terceira parte destacam-se
as referencias dentro do texto de Beckett que diretamente se identifiquem com os procedimentos levantados por Bergson, relacionando estas referencias ao seu estudo filosófico
sobre as comicidades de forma; sobre as comicidades de movimento; sobre a força de
expansão da comicidade; sobre a comicidade de situação; sobre a comicidade de palavras
e de suas transposições; e sobre a comicidade de caráter.
Introdução
Este trabalho consiste numa construção de base filosófico-literária que procura utilizar as
ideias filosóficas de Henri Bergson, contidas no livro “O Riso”, como instrumental teórico para
análise realizada no texto literário Esperando Godot de Samuel Beckett. Destacando, segundo o
ponto de vista filosófico de Bergson, quais seriam os possíveis procedimentos e funções do cômico existentes nesse texto. Para este fim o trabalho esta dividido em três partes. A primeira parte
consiste num resumo do contexto histórico da obra de Samuel Beckett e suas principais características, bem como uma breve síntese do texto. A segunda parte trata do contexto teórico de Bergson
Professora de Arte, Graduada em Artes Cênicas - UFPE, Pós-graduanda em Filosofia e Literatura – UFS, Mestranda
em Comunicação Social – UFS.
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buscando dentro da sua sistematização relacionar seu conteúdo teórico com temas centrais que
envolvem a obra Esperando Godot, como o efeito da “distração” e o efeito do “automatismo”. Na
terceira parte destacam-se as referencias dentro do texto de Beckett que diretamente se identifiquem com os procedimentos levantados por Bergson, relacionando estas referencias ao seu estudo
filosófico sobre as comicidades de forma; sobre as comicidades de movimento; sobre a força de
expansão da comicidade; sobre a comicidade de situação; sobre a comicidade de palavras e de suas
transposições; e sobre a comicidade de caráter.
I - Considerações sobre a peça Esperando Godot
Samuel Beckett escreveu a peça Esperando Godot em 1948 e a publicou no ano de 1952,
em francês e em 1955 em inglês. O contexto da obra é um momento pós-guerra onde é vivenciada
a Guerra Fria, o retrato da época em que foi escrito Esperando Godot reflete uma sociedade que
inicialmente fora recheada com o Positivismo e as influências Iluministas de pensamentos que se
pode definir em: “A salvação do homem esta no homem”, dava seus primeiros passos bastante
esperançosos, uma esperança que refletia o caráter de uma época, uma esperança no homem e na
sua própria capacidade de evoluir. Esta sociedade teve este ideal quebrado por vários motivos entre
eles duas guerras mundiais que resultaram num estado de confusão e crise, certa desilusão no progresso e na ciência, e crescente descrença em instituições religiosas, é este momento que Samuel
Beckett descreve com forma cômica na sua peça teatral Esperando Godot que causou grande impacto quando foi encenada.
É importante ressaltar que o teatro tradicional era baseado em moldes que preservam uma
visão clássica do teatro, onde os elementos da cena eram metodicamente respeitados e a encenação
acontecia dentro da quarta parede, seguindo uma tendência realista, onde uma parte da vida é representada no palco, de forma clara e objetiva, com regras rígidas para falar e se postar em cena, que
de forma alguma poderiam ser quebradas, aspectos totalmente diferentes da peça de Beckett que
procura propositalmente rever esta visão tradicional com novas propostas de encenação conforme
Fátima Saadi, Beckett desconstrói os elementos tradicionais do teatro como a intriga, a casualidade, o cenário ilusionista, o personagem como suporte de um sentido definido por seu passado,
e sua inserção da coletividade, mas, apesar de ser inovador e renovador Beckett, não deixa de ser
um tradicional, pelo uso que faz dos procedimentos da farsa, do circo e da Commedia dell’arte
(SAADI, 1988). Em Esperando Godot a humanidade é representada por Vlademir e Estragon em
forma de palhaços, num mundo absurdo e sem sentido. Mesmo com propostas inovadoras Beckett
utiliza formas do cômico em seu texto já conhecidas, personagens que relembram o clown, assim
analisando sua obra podemos identificar e relacionar estas formas com as ideias de Bergson.
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A peça é composta por seis personagens Estragon e Vlademir que geralmente são apresentados como mendigos, Pozzo que se apresenta ora requintado e delicado ora violento, e Lucky seu
criado aparentemente dominado por Pozzo, e dois Meninos que não possuem nomes próprios e são
apresentados apenas como meninos, também uma sétima personagem poderia ser acrescentada que
seria Godot que é sempre citado, mas nunca aparece em cena.
No primeiro ato com uma árvore em cena em um lugar sem definição nenhuma, dois amigo
se encontram Estragon e Vlademir para juntos esperarem Godot, e nessa espera envolvidos em diálogos aparentemente triviais surge o encontro com Pozzo e Lucky. Pozzo puxa uma corda que na
outra ponta está amarrada ao pescoço de Lucky. Lucky por sua vez carrega uma pesada mala que
não larga um só instante. Entende-se pela situação que Pozzo é o patrão e Lucky seu criado, estes
após conversarem com Estragon e Vlademir vão embora, segue-se o encontro com o Menino que
traz um recado de Godot - que não virá hoje, mas virá amanhã talvez, acaba o primeiro ato.
No segundo ato a mesma situação se repete Estragon e Vlademir continuam esperando conversando e novamente se reencontram com Pozzo que está cego e Lucky que está mudo, Pozzo e
Lucky vão embora de novo e a peça segue, aparece o outro Menino anunciando que Godot não viria
hoje, talvez amanhã. Estragon e Vlademir pensam em se enforcar na árvore, mas desistem, diante
da impossibilidade do ato ser simultâneo. Decidem ir embora, e parados e sem sair do lugar a peça
chega ao fim, e Godot não vem, deixando no ar os questionamentos sobre quem seria esse Godot,
porque ele não veio e tantas outas questões que não foram respondidas.
II - A obra Esperando Godot sobre a lente de Bergson
No livro O Riso, Bergson analisa pontos da comicidade de uma forma geral levantando três
observações fundamentais, primeiramente ele acredita que não há comicidade fora daquilo que é
propriamente humano (o homem ri do homem, o homem faz o homem rir) para ele se algum outro
animal ou um objeto inanimado consegue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem, à
marca que homem lhe imprime ou ao uso que o homem lhe dá, o riso é, portanto, criação e propriedade humana. Segundo, ele acredita que a insensibilidade que acompanha o riso, e a indiferença é
seu meio natural, destacando que o distanciamento de algo, para rir desse algo, é uma forma elaborada de inteligência. Em terceiro essa inteligência deve estar em contato com outras inteligências,
pois o riso humano é sempre um riso de um grupo. Bergson comenta que alguns efeitos cômicos
são relativos aos costumes e as ideias de uma sociedade em particular por isso para compreender
o riso se faz necessário colocá-lo em seu meio natural que é a sociedade sendo preciso, sobretudo,
determinar sua função útil, que seria uma função social.
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Dessa forma o riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum, o riso deve
ter uma significação social. Ele levanta a questão: Quando um grupo foca a atenção em um homem
qual deve ser o ponto em particular para qual estarão olhando? Esse ponto em particular estaria
sendo usado pelo grupo e esta utilização social do cômico pode se manifestar por coesão e, ou
também por coerção. Para uma melhor compreensão, o autor enumera algumas características e
Leis Gerais que podem nortear este processo social do cômico e como ele se manifesta, dentro de
cada Lei apresentada através de uma analise segue-se uma relação e, ou comparação com a obra
Esperando Godot.
O efeito da distração
Segundo Bergson a comicidade é exterior e acidental, o acidente reflete uma essência da
comicidade, por exemplo, quando um homem cai (sem querer, sem planejar) observa-se o que
há de involuntário na mudança, quando este sofre por que seus objetos rotineiros foram trocados
(artificialmente) experimenta-se o que há de involuntário na mudança. Criando assim o efeito do
distraído, os distraídos são como os que andam sonhando. Dessa forma é na figura do distraído
que em Bergson “a comicidade se situará, dessa vez, na própria pessoa: é a pessoa que lhe fornecera tudo, matéria e forma, causa e ocasião” (BERGSON, 2007, p. 08). Quando, pode-se visualizar
todo o processo que sofre o distraído melhor é o resultado da comicidade, pois se encontram claramente a causa e o efeito que gerou a distração, resultando na primeira Lei Geral levantada por ele:
“quando certo efeito cômico deriva de certa causa, o efeito nos parece tanto mais cômico quanto
mais natural consideramos a causa” (BERGSON, 2007, p. 09). Rir quando alguém simplesmente
cai é diferente de rir quando alguém cai porque estava distraído. Em Esperando Godot o efeito
da distração pode ser uma característica marcante das personagens, pois estas não possuem uma
perspicácia nem agilidade digna de heróis, também parecem lhe faltar àquela esperteza comum aos
anti-heróis, pois estão sempre a mercê do tempo e do acaso exclusivamente suscetíveis ao acidente,
ao inesperado.
O efeito do automatismo
Bergson destaca que há uma diferença entre cômico e drama esta diferença esta no fato da
comicidade tirar certas características de deformidade de caráter, viciosas e que se apresentam de
forma individual em cada personagem (drama), transformando-a numa característica geral (comedia):
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o vício cômico pode unir-se as pessoas tão intimamente quanto se queira, mas nunca
deixará de conservar existência independente e simples, continua sendo personagem central, invisível e presente, do qual as personagens de carne e osso ficam
suspensas em cena. (BERGSON, 2007, p. 12).
A comicidade faz que o homem conheça tão bem o vício que pode experimentá-lo daí que
vem parte do prazer. Em Bergson a comicidade dos vícios submete-se a um Automatismo que é
possível porque o cômico é inconsciente.
... é uma espécie de automatismo que nos faz rir. E é ainda um automatismo muito
próximo da simples distração. Para convencer-se, basta notar que uma personagem
cômica geralmente é cômica na exata medida em que ela se ignora. O cômico é
inconsciente. Como se usasse ao contrário o anel de Giges, torna-se invisível para
si mesmo ao torna-se visível para todos. Uma personagem de tragédia não mudara
em nada a sua conduta ao saber que a julgamos; poderá perseverar nela, mesmo com
a plena consciência do que é, mesmo com o sentimento nítido do horror que nos
inspira. Mas um defeito ridículo, ao sentir-se ridículo, procura modificar-se, pelo
menos exteriormente. (BERGSON, 2007, p. 12).
Desse automatismo segue uma rigidez, devido ao fato da vida correr entre tensão e elasticidade, e na forma como a filosofia de vida se estende onde não basta apenas buscar viver, mas
viver bem surge então o temor no homem de que ao buscar o essencial o resto fique automatizado,
e um temor em que o homem sempre tenha que se adaptar para equilibrar. Quando esta rigidez é
apresentada diante da sociedade aparece como algo excêntrico, como a representação de algo que a
preocupa de algo que ela teme, e devido ao fato de se apresentar em gesto é respondida com outro
gesto: o riso. Assim o riso não deve ser contemplado como algo puramente estético porque tem
uma utilidade social o riso é um gesto social, pois deve flexibilizar tudo o que pode restar de rigidez
criando uma zona neutra onde o homem torna-se espetáculo ao homem, numa “certa rigidez do corpo, do espirito e do caráter, que a sociedade gostaria ainda de eliminar para obter de seus membros
a maior elasticidade e a mais elevada sociabilidade possíveis” concluindo Bergson diz que “essa
rigidez é a comicidade e o riso seu castigo” (BERGSON, 2007, p. 15).
Em Esperando Godot a rigidez é traço marcante das personagens que transparecem os vícios da sociedade e de forma ingênua não são conscientes de sua situação, nas personagens é claramente perceptível sua falta de noção em relação a sua posição e o incomodo gerado por sua existência. Percebe-se na forma de tratamento com o seu próximo, e na forma como são tratados por
outros (que são apenas citados como outros) que revelam traços de violência, traços que diferencia
das relações sociais exigidas da época, indo de encontro ao que se tem de ideal de homem moderno,
ridicularizando a posição social da humanidade a classificando, ou revelando seu lado miserável
quando retratada em Vlademir e Estragon, nessa miserabilidade encontra-se o oposto do homem
civilizado, educado, e bem de vida, o ideal da sociedade representado ao avesso, revelando o temor
da sociedade na rigidez das atitudes desses personagens, que transparecem o pior do homem em
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três características importantes, a atambia (total indiferença) a afasia (traumatismo mental que
provoca a perda da fala ou a compreensão da linguagem) e a apatia (desinteresse e insensibilidade).
III - As comicidades de Bergson em Esperando Godot
Bergson sistematiza a comicidade buscando uma divisão que tente esclarecer o processo
cômico, dividindo em tipos, procedimentos e ou funções, que ele considera importante para a
compreensão da estrutura que envolve o cômico e suas principais características. Em cada parte
por ele levantada segue-se um possível referencial em Esperando Godot, onde pode ser visto este
procedimento em prática.
A Comicidade das formas
A comicidade das formas procura identificar o que originalmente seria uma figura cômica,
segundo Bergson, poderia se classificar como o que é considerado o feio – a forma do feio provinda
de uma deformidade natural, de nascença ou de uma deformidade artificial adquirida. Porém ele
enumera que não é somente por estas deformidades que a forma do cômico pode se revelar, pois
uma pessoa sem deformidade natural pode torna-se cômica segundo a Lei: “Pode-se tornar-se cômica toda deformidade que uma pessoa bem feita consiga fazer” (BERGSON, 2007, p. 17). Uma
expressão cômica do rosto é representada num gesto único e definitivo, revelando uma rigidez,
automatismo, uma distração fundamental da pessoa como se quando a alma fascinada pela materialidade de uma ação simples se projeta no corpo formando uma caricatura que não é apenas o
exagero, é a forma em si. Para Bergson toda forma humana reflete o esforço de uma alma humana
em modelar a matéria, gerando um movimento. A contorção da matéria fixa assim a expressão da
alma. Ele cita: “Se, pois quiséssemos definir aqui a comicidade aproximando-a de seu contrário,
caberia apô-la a graça, mais do que a beleza. É mais rigidez que fealdade“ (BERGSON, 2007, p.
21). A forma rígida na expressão corporal das personagens em Esperando Godot pode ser identificada quando estas se apresentam como um tipo de clown decadente que não possuem nada a
ver, nem mesmo em nuances, à graça, mas, sim a seu oposto, caricatural, desajeitado, arruinado e
completamente revestido de cômico, visualmente a forma das personagens refletem a sua alma e
todos os sentimentos confusos que esta traz.
A comicidade dos movimentos
Na comicidade dos movimentos Bergson cita a Lei – “As atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples
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mecânica” (BERGSON, 2007, p. 22). O desenho geralmente é cômico na medida da nitidez e
também da discrição com que nos leva a ver no homem um fantoche articulado. Retratando uma
imagem da pessoa e do mecanismo uma dentro da outra. Que acontece pela repetição do mesmo
gesto que é comicidade, automatismo. Também acontece ao imitar alguém, pois a ação de gestos
repetitivos de outros fica cômica, porque não representa a pessoa viva em si, mais uma parte mecanizada. Samuel Beckett usa muito desse recurso de repetição do movimento em suas personagens,
que possuem tiques de ações repentinas vezes, transparecendo certo ar de mecanicidade exagerada.
VLADIMIR
Eu sabia que este era o lugar certo. Agora nossos problemas terminaram. (Pega o
chapéu, contempla-o, arruma-o) Deve ter sido um lindo chapéu. (Ele coloca o chapéu de Lucky na cabeça, depois de dar o seu a Estragon.) Tome.
ESTRAGON
O quê?
VLADIMIR
Segure.
(Estragon pega o chapéu de Vladimir, Vladimir ajusta com as duas mãos o chapéu
de Lucky, Estragon coloca o chapéu de Vladimir no lugar do seu, que estende a
Vladimir, Vladimir pega o chapéu de Estragon. Estragon ajusta com as duas mãos
o chapéu de Vladimir. Vladimir coloca o chapéu de Estragon em lugar do de Lucky,
que estende a Estragon. Estragon pega o chapéu de Lucky. Vladimir ajusta com as
duas mãos o chapéu de Estragon. Estragon coloca o chapéu de Lucky no lugar do
de Vladimir, que estende a Vladimir. Vladimir pega seu chapéu. Estragon ajusta
com as duas mãos o chapéu de Lucky. Vladimir coloca seu chapéu no lugar do de
Estragon, que estende a Estragon. Estragon pega seu chapéu. Vladimir ajusta seu
chapéu com as duas mãos. Estragon põe seu chapéu no lugar do de Lucky, que
estende a Vladimir. Vladimir pega o chapéu de Lucky. Estragon ajusta seu chapéu
com as duas mãos. Vladimir coloca o chapéu de Lucky no lugar do seu, que estende
a Estrago. Estragon pega o chapéu de Vladimir. Vladimir ajusta com as duas mãos
o chapéu de Lucky, Estragon estende o chapéu de Vladimir a Vladimir que o pega
e o estende a Estragon que o pega e o estende a Vladimir que o pega e o joga fora.
Tudo isso num movimento vivo) (BECKETT, 1991, p. 30).
A força de expansão da comicidade
Quando a mecânica e vida estão inseridas, uma na outra, percebe-se uma imagem mais vaga
de uma rigidez qualquer aplicada sobre a mobilidade da vida. Que Bergson cita como exemplo as
roupas que despertam o riso, que é explicado pela surpresa causada pelo contraste de fantasias, disfarces sobrepostas sobre um corpo vivo, percebe-se também no exagero de cenas que representam
fatos sociais ele comenta: “Pode-se dizer que a cerimônia esta para o corpo social como o traje
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esta para o corpo individual” (BERGSON, 2007, p. 33) denunciando nessa rigidez uma expansão
da sociedade fantasiada que segue buscando uma substituição do natural pelo artificial, que reflete
também nas funções da sociedade como no automatismo do funcionário que funciona como simples máquina. Quando o mecânico se torna sobreposto ao vivo. Bergson cita a Lei – “é cômico todo
incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa quando o que esta em questão é o
moral” (BERGSON, 2007, p. 38). Quando o corpo se sobrepõe a alma, e valores são invertidos, a
forma substitui a essência. Quando se tem a transfiguração de uma pessoa em coisa têm-se a Lei –
“rimos sempre que uma pessoa nos dá uma impressão de coisa“ (BERGSON, 2007, p. 43).
A passagem gradual do confuso ao distinto é, pois, o procedimento por excelência
da sugestão. Acredito ser possível encontrá-lo no fundo de muitas sugestões cômicas, sobretudo na comicidade grosseira, quando diante de nossos olhos parece
ocorrer a transformação de uma pessoa em coisa. (BERGSON, 2007, p. 45).
Encontramos isto representado na relação de Pozzo e Lucky, onde Lucky já aparece configurado como objeto de Pozzo preso a ele por uma corda no pescoço, e vai perdendo sua humanidade se identificando como um animal de estimação, que é comandado por Pozzo, que de tal forma
absurda domina seus movimentos e até sua hora de pensar.
POZZO (num gesto magnânimo)
Não falemos mais nisto. (Puxa a corda.) De pé, porco! (Pausa.) Toda vez que ele
cai, ele dorme. (Puxa a corda.) De pé, suíno! (Barulho de Lucky levantando e pegando o equipamento. Pozzo puxa a corda.) Volta! (Lucky volta de costas.) Para!
(Ele para.) Vira! (Ele se vira. Aos dois) Meus caros amigos, estou feliz por tê-los
encontrado. (Diante da expressão incrédula deles.) Mas sim, sinceramente feliz.
(Puxa a corda.) Mais perto! (Lucky avança.) Para! (Ele para. Aos dois.) Vejam os
senhores, a estrada é longa para quem caminha sozinho durante... (olha o relógio)
durante... (calcula) seis horas... Sim é isso mesmo, seis horas a fio, sem encontrar
viva alma. (A Lucky) Casaco! (Lucky depõe a valise, leva o casaco, volta a seu lugar, pega a valise.) Segura! (Pozzo estica o chicote. Lucky avança, mas como tem
as duas mãos ocupadas, segura o chicote entre os dentes, e recua. Pozzo começa a
colocar o casaco, mas para.) Casaco! (Lucky põe tudo no chão, adianta-se e ajuda
Pozzo a vestir o casaco, recua e pega tudo de novo.) (BECKETT, 1991, p. 09).
A comicidade de situação
Na comicidade da situação Bergson comenta que a elaboração da ação cômica pode seguir
certos padrões que vão se elaborando uns nos outros formando uma imagem final ilusória, conforme sua Lei: “é cômica toda combinação de ato e de acontecimentos que nos dê, inseridas uma na
outra, a ilusão de vida e a sensação nítida de arranjo mecânico” (BERGSON, 2007, p. 51). Este
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tipo de comicidade pode ser detectado no efeito proporcionado pela surpresa causada da repetição
de movimentos de uma mesma situação que vai gradativamente se adaptando para culminar numa
imagem final, também visto na repetição de palavras que segue a Lei: “Numa repetição cômica de
palavras há geralmente dois termos presentes: um sentimento comprimido que se estira como uma
mola e uma ideia que se diverte a comprimir de novo o sentimento” (BERGSON, 2007, p. 54). Em
Esperando Godot a repetição da frase – Nada a fazer, reflete bem o estiramento deste sentimento
comprimido, sua ida e volta constante, relacionada a uma possível conclusão simples da vida, mesmo depois de algumas ações emaranhadas, e o quase esquecimento total da questão, volta assim, a
personagem a declarar a frase Nada a fazer.
No texto podemos identificar os três procedimentos citados por Bergson o primeiro a repetição de situação se percebe na dinâmica que predem as personagens quando começam um assunto
e interrompem sempre sem chegar a nenhuma conclusão precisa, voltando depois a mesma situação
inicial. Seguindo sempre a mesma sequência de frases: o que fazer? Não há nada a fazer! Vamos
embora! Não Podemos! Estamos esperando Godot! Então entram em outros assuntos corriqueiros
para depois repetir as mesmas fases. Também há a repetição de gestos cômicos:
POZZO
Recusou-se, uma vez. (Silêncio.) Dança, merda!
(Lucky depõe no chão a valise e a cesta, vem diante de Pozzo e dança. Pára.)
ESTRAGON
Só isso?
POZZO
Outra vez!
(Lucky repete os mesmos movimentos e pára.).
ESTRAGON
Isso até eu faço. (Imita Lucky, dança e quase cai.) Com um pouco de treino.
POZZO
Antigamente, ele dançava a farândola, a folgança, o vira, a jiga, o fandango. Ele
saltava. De pura alegria. Agora, isso é o melhor que ele pode fazer. Sabe como ele
chama essa dança?
ESTRAGON
A agonia do Bode Expiatório.
VLADIMIR
A evacuação difícil.
POZZO
A rede. Ele pensa que está preso numa rede. (BECKETT, 1991, p. 16).
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O segundo procedimento cômico trata da inversão de situação no segundo Ato de Esperando Godot há uma inversão no papel Pozzo que no primeiro Ato era confiante, dominador, no
segundo surge decadente, rastejante e cego, desesperado de tal forma que pede socorro a Estragon
e Vlademir. Lucky que no primeiro Ato falou muito quando pensou no segundo Ato aparece mudo.
ESTRAGON
Mande-o calar a boca! Dê um chute no saco dele!
VLADIMIR (dando uns pontapés em Pozzo)
Quer parar com isso, seu verme! (Pozzo rasteja, no meio de gritos de dor. De tempos em tempos pára, golpeia o ar com gestos de cego, chamando Lucky. Vladimir, apoiado sobre o cotovelo, o acompanha com o olhar.) Escapou! (Pozzo cai de
novo.) Caiu. (BECKETT, 1991, p. 36).
A terceira é a interferência das series que segue a Lei: “Uma situação é sempre cômica
quando pertence ao mesmo tempo a duas series de acontecimentos absolutamente independentes e
pode ser interpretada ao mesmo tempo em dois sentidos diferentes” (BERGSON, 2007, p. 71). Talvez uma interferência que nota-se no texto seja o fato de que Estragon e Vlademir sempre pensam
que Pozzo possa ser o esperado Godot, e não o é, mas a ideia que talvez seja fica expressa.
A comicidade de palavras
Baseando-se no livro de Célia Berrettini sobre a linguagem de Beckett, na análise da linguagem, encontramos em Esperando Godot uma linguagem verbal que desperta a desconfiança, e
coloca em dúvida a linguagem e seu poder de captar a realidade. Beckett utiliza-se de expressões
familiares e de gírias. O diálogo em Beckett se caracteriza pela presença de falas curtas, sendo
caracterizado por oposição, repetição, esticomítia, jogo de palavras. A progressão do diálogo é
marcada pela continuidade e descontinuidade, e pela alternância do sério para o cômico. Assim
nota-se o rompimento com a forma tradicional de escrever os textos teatrais, a forma de se comunicar ganha uma nova interpretação, e esta linguagem passa a refletir a desolação de uma sociedade
diante de seus problemas existenciais (BERRETTINI, 1977). Mesmo com este tipo diferenciado
de linguagem ainda é possível identificar as formas diversas da comicidade de palavras e as variedades possíveis do espirituoso em Esperando Godot destaca-se o efeito citado por Bergson:
“Deixar-se levar-se por um efeito de rigidez ou de velocidade adquirida, a dizer o que não se queria
dizer ou fazer o que não se queria fazer: como sabemos esta é uma grande fonte da comicidade”
(BERGSON, 2007, p. 82). Falar o que não se deveria falar como faz a personagem Estragon:
POZZO
Os senhores não são assaltantes?
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ESTRAGON
Assaltantes! Nós temos cara de assaltantes?
VLADIMIR
Pare com isso! Não vê que ele é cego?
ESTRAGON
É mesmo. Ele é cego. (Pausa.) Diz ele. (BECKETT, 1991, p. 37).
Outra lei de Bergson que se destaca no texto é: “Obtêm-se uma frase cômica inserindo-se
uma ideia absurda num molde frasal consagrado” (BERGSON, 2007, p. 83). Aqui o absurdo não é
a fonte da comicidade é apenas um meio bem simples e eficaz de revela-la. A troca da palavra por
outra que não corresponde necessariamente ao que se esperava ouvir, e depois o aparecimento da
palavra que foi trocada, substituída.
ESTRAGON
Estou procurando.
(Silêncio.)
VLADIMIR
Quem procura, ouve.
ESTRAGON
É verdade.
VLADIMIR
Isso impede de achar.
ESTRAGON
É. (BECKETT, 1991, p. 26).
A comicidade de palavras também pode ser encontrada na Lei: “obtemos efeito cômico se
fingirmos entender uma expressão no sentido próprio quando ela é empregada no sentido figurado,
materialidade de uma metáfora, a ideia expressa de forma cômica” (BERGSON, 2007, p. 85-86).
Este jogo de significado também aparece no texto de Samuel Beckett:
ESTRAGON
Engraçado. (Segura o que resta da cenoura pela raiz, e a roda diante dos olhos.) É
curioso, quanto mais se come, pior fica.
VLADIMIR
Comigo é o contrário.
ESTRAGON
Como assim?
VLADIMIR
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Eu vou me acostumando ao esterco à medida que piso nele.
ESTRAGON (depois de prolongada reflexão)
Isso é que é o contrário?
VLADIMIR
Questão de temperamento.
ESTRAGON
De caráter.
VLADIMIR
Não se pode fazer nada.
ESTRAGON
Não adianta lutar.
VLADIMIR
A gente é o que é.
ESTRAGON
Não adianta resistir.
VLADIMIR
O essencial não muda nunca. (BECKETT, 1991, p. 07).
Em relação à comicidade de palavras através do efeito de Repetição, Bergson comenta que
este pode se manifestar ao “tomar séries de acontecimentos e repeti-las em novo tom ou em novo
meio, ou inverte-las conservando ainda um dos seus sentidos, ou misturá-las de tal maneira que
seus significados respectivos interfiram uns nos outros” (BERGSON, 2007, p. 88). Esta forma pode
ser encontrada no discurso pronunciado por Lucky quando este é levado a pensar, quando se espera da personagem um momento de erudição óbvio do ato de pensar, através do jogo da repetição
e confusão e palavras Beckett cria uma cena cômica, quebrando com as expectativas. E de forma
exagerada utiliza este recurso ao seu limite chegando a extrapolar na repetição e descontinuidade
de pensamento. O texto é tão longo que depois de ser inicialmente engraçado torna-se desesperadamente enfadonho e depois ridicularmente engraçado novamente, segue apenas um trecho:
LUCKY
... a não ser o que é permitido aos cálculos humanos no fim dos tratados inacabados
inacabados de Testu e Conard fica estabelecido tabelecido tabecido o que se segue
se segue segue a saber porém não antecipemos não se sabe por quê em seguida aos
trabalhos de Poinçon e Wattman aparece também claramente bem claramente que
em vista das buscas de Fartov e Belcher inacabadas inacabadas não se sabe por quê
de Testu e Conard inacabadas inacabadas aparece que o homem contrariamente à
opinião contrária que o homem em breve enfim que enfim em breve o homem apesar dos progressos da alimentação e da defecação está começando a emagrecer e
ao mesmo tempo concomitantemente não se sabe por quê apesar do incremento da
cultura física da prática... (BECKETT, 1991, p. 17).
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Nessa fala de Lucky também e pode destacar o uso da inversão das palavras que para Bergson é o procedimento menos interessante e deve ser de aplicação fácil. Também encontramos
claramente a interferência, quando Lucky dá a mesma frase significados que se superpõem em Trocadilhos, e quando Valdemir e Estragon falam de um assunto dentro do outro, falam de se enforcar
e da solidão, do peso e das probabilidades de sucesso ou não da ação e suas consequências, tudo ao
mesmo tempo.
ESTRAGON
Vamos nos enforcar imediatamente.
VLADIMIR
Num galho? (Aproxima-se da árvore.) Não tenho confiança.
ESTRAGON
Sempre se pode tentar.
VLADIMIR
Então vá.
ESTRAGON
Você primeiro.
VLADIMIR
Não, primeiro você.
ESTRAGON
Por quê?
VLADIMIR
Você é mais leve.
ESTRAGON
Por isso mesmo.
VLADIMIR
Não compreendo.
ESTRAGON
Raciocina um pouco.
(Vladimir raciocina.)
VLADIMIR (finalmente)
Não compreendo.
ESTRAGON
Eu vou explicar. (Raciocina.) O galho... O galho... (Furioso) Mas veja se compreende!
VLADIMIR
Minha única esperança é você.
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ESTRAGON (com dificuldade)
Gogo leve; galho não quebra; Gogo morre. Didi pesado; galho quebra; Didi sozinho. (Pausa.) Enquanto que... (Procura o termo justo.).
VLADIMIR
Não tinha pensado nisso.
ESTRAGON
Se o galho enforca você, enforca a mim também.
VLADIMIR
Mas eu sou mais pesado que você?
ESTRAGON
Você que diz. Eu não sei. Há uma chance em duas. Mais ou menos. (BECKETT,
1991, p. 05).
A comicidade da transposição das palavras
Bergson destaca que mais profundo do que a inversão e a interferência é a comicidade da
transposição das palavras que segue a Lei: “obtém-se efeito cômico transpondo para outro tom a
expressão natural de uma ideia.” (BERGSON, 2007). Quando através da linguagem há uma imitação artificial de uma situação já realizada anteriormente, esta imitação é recheada com tons de
paródia, e dependendo da sua forma pode adquirir efeitos como o de degradação, que transforma
uma coisa antes respeitada em medíocre e vil. Ao imitar Pozzo e Lucky, Estragon e Vlademir produzem este efeito de transposição ridicularizando, degradando a possível seriedade da relação de
Pozzo e Lucky, criando um grande efeito cômico.
VLADIMIR
Você não quer brincar?
ESTRAGON
Brincar de quê?
VLADIMIR
De Pozzo e Lucky.
ESTRAGON
Não conheço.
VLADIMIR
Eu faço Lucky, você faz Pozzo. (Imita Lucky, curvado sob o peso da bagagem. Estragon o olha, estupefato.) Vá!
ESTRAGON
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O que é que eu devo fazer?
VLADIMIR
Xingue-me!
ESTRAGON (depois de refletir)
Canalha!
VLADIMIR
Mais forte!
ESTRAGON
Gonorrento! Espiroqueta!
(Vladimir avança e recua, dobrado em dois.) (BECKETT, 1991, p. 31).
Ainda na transposição das palavras outra forma de sua apresentação é a exageração – que
pode envolver grandeza e valor, quando se atribui exagerado valor a algo trivial, “o exagero é cômico quando prolongado e, sobretudo, quando sistemático” (BERGSON, 2007, p. 93). Ao descrever
um simples pôr-do-sol Pozzo coloca em suas palavras todo um exagero que buscar causar uma
emoção e comoção nos seus ouvintes.
POZZO (que não o escutou)
Ah, sim, a noite. (Levanta a cabeça.) Mas prestem um pouco mais de atenção, senão
nunca chegaremos a nada. (Olha o céu.) Vejam bem. (Eles olham, menos Lucky,
que cochila. Pozzo puxa a corda.) Olha o céu, seu porco! (Lucky olha.) Está bom,
já chega. (Eles param de olhar o céu.) O que tem de tão extraordinário esse céu?
Como céu? É pálido e luminoso como qualquer céu a esta hora do dia. (Pausa.) Nestas paragens. (Pausa.) Quando o tempo está bom. (Lírico) Há uma hora atrás (olha
o relógio; tom prosaico) mais ou menos (lírico) depois de ter derramado desde,
(prosaico) digamos, dez da manhã (lírico) sem descanso torrentes de luz vermelha
e branca, ele começou a perder sua refulgência e (gestos em queda lenta) a ficar pálido, mais pálido, cada vez mais pálido, mais, ainda um pouco mais, até que (pausa
dramática, largo gesto horizontal de duas mãos que se separam) Puff! Acabou. Ele
repousa. (Silêncio.) Porém (e eleva uma mão, como que pregando) atrás desse véu
de doçura e de calma (e eleva os olhos ao céu; os outros o imitam, menos Lucky)
a noite galopa (a voz se faz mais vibrante) e se abaterá sobre nós (estala os dedos)
assim! (A inspiração o abandona.) No momento que menos esperamos. (Silêncio. A
voz morna.) É assim que é neste puto deste mundo!
(Longo silêncio.)
ESTRAGON
Mas já se sabe que é assim. (BECKETT, 1991, p. 14).
Outro efeito de transposição é quando se troca o real e o ideal, “Pode-se enunciar o que deveria ser, fingindo acreditar que isso é precisamente o que é: nisso consiste a ironia” (BERGSON,
2007, p. 95). A ironia é um efeito usado por Beckett nesse texto:
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VLADIMIR
Como é que o senhor sabe disso?
POZZO
Olhe que ele está falando comigo! Daqui a pouco vamos ser amigos de infância.
(BECKETT, 1991, p. 11).
Mais uma forma de transposição das palavras seria o humour que é o inverso da ironia,
segundo Bergson “o humour no sentido restrito em que tomamos a palavra, é exatamente uma
transposição do moral para o científico” (BERGSON, 2007, p. 96). Fala-se o que realmente se quer
dizer, mas com um ar diferente de uma fala normal.
POZZO (mais calmo)
Senhores, não sei o que me aconteceu. Eu lhes peço perdão. Esqueçam-se do que
eu lhes disse. (Cada vez mais senhor de si) Eu não lembro exatamente o que foi,
mas podem estar certos de que não havia uma só palavra de verdade. (Aprumandose, bate no peito.) Tenho jeito de um homem que alguém consiga fazer sofrer? Ah?
(Procura no bolso.) O que foi que eu fiz com o meu cachimbo? (BECKETT, 1991,
p. 13).
A comicidade de caráter
A comicidade de caráter produz seu o efeito quando se ri dos defeitos de caráter e suas
ações, para Bergson a o defeito Vaidade seria o grande referencial para toda esta estrutura de caráter ruim ele cita:
assim a vaidade, forma superior de comicidade é uma elemento que somos levados a
procurar com minúcias, ainda que de modo inconsciente, em todas as manifestações
da atividade humana. Nós a buscamos nem que seja para rir. E nossa imaginação
muitas vezes a põe onde ela não tem o que fazer (BERGSON, 2007, p. 131).
Através do enrijecimento da vaidade dela se originaria o endurecimento profissional, e
fundamentaria a lógica da personagem cômica que é absurda, refletindo que, não há nada de bem,
e que o riso se fundamenta mais no mal, o riso paga mal com o mal, e tem como função intimidar
humilhando.
VLADIMIR
Não vamos perder tempo com discussões inúteis! (Pausa. Veemente) Vamos fazer
alguma coisa, já que temos essa oportunidade. Não é todo dia que precisam de nós.
Nem se trata de que nós sejamos pessoalmente solicitados. Outros poderiam tratar
do assunto tão bem ou melhor do que nós. Esses gritos de socorro que ainda soam
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em nossos ouvidos, foram dirigidos à humanidade inteira! Mas nesse lugar, nesse
momento, nós somos a humanidade inteira, queiramos ou não. Vamos fazer o melhor que pudermos, antes que seja tarde demais! Vamos representar com dignidade,
pelo menos uma vez, o papel que um destino cruel nos reservou. Que é que você me
diz? (Estragon não diz nada.) É verdade que, se ficarmos de braços cruzados, sem
fazer nada, pesando os prós e os contras, também faremos justiça à nossa condição.
O tigre se precipita em socorro de seus congêneres sem a menor reflexão. Ou então
esconde-se no recesso mais fundo da floresta. Mas a questão não é essa. O que é que
estamos fazendo aqui, eis a questão. E nessa imensa confusão, uma coisa é cristalina: estamos esperando Godot. (BECKETT, 1991, p. 34).
Beckett descreve o pensamento egoísta da humanidade em seus personagens e nas suas
falhas de caráter, essas falhas estão claramente divididas no que foi citado inicialmente sobre três
características importantes, a atambia (total indiferença) a afasia (traumatismo mental que provoca
a perda da fala ou a compreensão da linguagem) e a apatia (desinteresse e insensibilidade). Gerando um irreal ambiente e absurdo “o absurdo o cômico é da mesma natureza do absurdo dos sonhos”
(BERGSON, 2007, p. 139).
Conclusão
O texto Esperando Godot possui muitos pontos cômicos que ainda podem ser analisados
segundo a teoria filosófica de Bergson, pois este proporciona um leque vasto de procedimentos que
podem ser encaixados em diversas outras situações e falas descritas por Samuel Beckett que não
foram citadas nesse trabalho. São dois textos riquíssimos que se completam, se identificam e se explicam entre si, elaborando um dialogo muito interessante entre literatura e Filosofia. Por ser uma
peça teatral e exigir uma descrição muito visual das ações das personagens os procedimentos que
envolvem a comicidade do movimento se tornam mais fácil de perceber quando esta é encenada,
tornando-se um referencial muito bom, para a interpretação da comicidade do movimento levantada por Bergson, que cita várias peças teatrais nas explicações de seus procedimentos cômicos.
A comicidade das palavras foi muito explorada por Samuel Beckett que traz uma nova roupagem
para tipos clássicos do cômico representados na fala, no dialogo, usando uma variação de temas
existenciais e individualistas, mostrando nas personagens o recorte da sociedade e seus principais
questionamentos da época, alguns desses questionamentos ainda atuais, permanecem tal como o
texto sem muitas respostas filosóficas definidas, senão muitas tentativas.
A própria ausência de Godot e a finalização do texto sem sua chegada e sem definição de
sua não chegada, ou seja, ele não veio hoje, mas também não deixa claro que nunca virá, já consiste
numa forma de cômico que cria toda uma expectativa e no fim não a corresponde, expectativa de
tal forma frustrada que seja talvez mais ligada ao humor negro, todo o texto deixa pairar certo ar
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de humor negro, pois o riso vai se baseando na desgraça. Na desgraça final de uma quebra, numa
desilusão que não se completa inteiramente fazendo ao final surgir a esperança de que Godot virá,
junto ao desespero de que talvez também não venha, todo esse conjunto é risível tamanho o ridículo
que os personagens em não possuir a autonomia de seus destinos. Enquanto esperam as personagens experimentam todo tipo de emoções, mas é no cômico que se expressam claramente revelando
suas fraquezas na automatização, na mecanização de suas atitudes em fazer com que o tempo passe
de alguma forma, se não melhor pelo menos diferente que antes, o cômico vai revelando sua prisão
sem grades dentro de seus próprios pensamentos, e sua liberdade limitada fora de suas mentes.
Toda forma de manifestação de pensamentos e emoções tão profundas e sombrias trazidas pelas personagens, em outro contexto traria um peso dramático muito forte a obra de Samuel
Beckett, contudo o cômico ajuda, proporcionando a leveza quando se ri da situação, aliviando o
peso dessas questões permitindo que sejam vistas, analisadas sem tanta agonia, ainda que seja por
alguns momentos. Por outro lado também traz um novo ponto quando aparenta no cômico uma
perspectiva de loucura, um absurdo incapaz de se absorvido como logico ou moralmente descente, daí a angustia em não se poder livrar-se da situação em que se está inserido, sem nem mesmo
ter sido consultado ou precavido, o que descreve claramente o efeito de distração levantando por
Bergson. Enfim a peça vista de forma geral é uma piada, contada resumidamente já traz o riso, até
mesmo seu título Esperando Godot é uma frase usada com forma irônica de dizer a alguém que esta
perdendo seu tempo com algo que não sabe ao certo se vai acontecer. Para todos os pontos que se
analise o cômico esta presente e sem ele a obra não teria sentido.
Referência bibliográfica
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. São Paulo: Martins Fontes,
2007, 2 ed.
BERRETTINI, Célia. A Linguagem de Beckett. São Paulo: Perspectiva, 1977.
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução de Flávio Rangel, Revisão da tradução feita por
Tania Brandão e Moacir Chaves (1991) Disponível em: <http://www.leiabrasil.org.br/blog/
wpcontent/uploads/2008/06/esperando_godot_2.doc>. Acesso em 26 de Abril de 2013.
SAADI. Fátima. Beckett: a Prospecção do mínimo. Cadernos de Teatro do Tablado. Rio de
Janeiro: IBECC, número 121, 1988.
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