MATEMATICA - José Sebastião e Silva

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GAZETA
DE
MATEMATICA
.JORNAL DOS CONCORRENTES AO EXAME DE APTIDÃO E DOS
ESTUDANTES
DE
MATEMÁTICA
DAS ESCOLAS SUPERIORES
46
ANO XI
DEZEMBRO
1950
SUMÁRIO
A função de Dirac - Sua interpretação matemática
por
Ruy Luís Gomes
Filósofos e Matemáticos, por
José sebastião
Problêmes de dépouillements. II, par P.
e
Silva
Dufresne
Movimento Científico
Colóqui o Internacional sobre a teoria das funções de várias variáveis
p
com lexas - Congresso Luso-Espanhol para o Progresso
das Ciê ncias
Matemáticas Elementares
Pontos de exame
do curso
aptidão
complementar dos Liceus e
às
de
exames
de
Escolas Superiores
Matemáticas Superiores
Álgebra Superior - Matemáticas Gerais -Análise Infinitesimal
Notas de Matemática
Critica de Livros
Compêndio de Algebra - S.o
ciclo,
por
António AIIgll6to Lopes
Problemas
DEPOSITÁRIO: LIVRARIA SÁ DA COSTA
/
RUA GARRETT, 100 -102
/
LISBOA
GAZETA DE MATEMATICA
4
Filósofos
por
e Matemáticos
José Sebeslião e Silva
Vem já de longe o desentendimento entre matemá­
É
Génio impetuoso e desigual, que não sofria um só
certo que, em certos momentos da
instante a disciplina clarificadora do silogismo, Hegel
história, a matemática e a filosofia se têm dado as
está bem longe do ideal cartesiano das ideias claras
mãos amigàvelmente, em perfeita colaboração: basta
e distintas (<<Quand il s'agit de questions transcenden­
ticos e filósofos.
lembrar aquele dístico afixado à porta da aca,demia
tes, soyez transcendentalement clair»). Depois, entre os
de Platão: «Não entre ninguém que não saiba geome­
epígones, esta aversão à matemática torna-se uma
tria».
Descartes
e
Leibniz,
os dois grandes expoentes
regra de bom- tom, que já não convence pela sinceri­
dade.
É
o que se observa, por exemplo, em Benedetto
do racionalismo científico, foram ao mesmo tempo
Croce, o famoso filósofo italiano que tão profunda
matemáticos
influência tem exercido dentro e fora da Itália. Vale
e
filósofos.
«Les
mathématiciens
ont
autant besoin d'être philosophes que les philosophes ont
besoin d'êt1"e mathématiciens»
- afirma
Leibniz, numa
a pena folhear
a
«Lógica» de Croce, não só para
constatar a sua dificuldade em discorrer com lógica,
mas ainda para ver como são ali tratadas as ciências
catta a Malebranche.
Mas estes casos são apenas excepções.
exactas: para ele a matemática, a física, etc., seriam
Já Galileu se insurgia contra os filósofos adversá­
apenas um jogo mecânico de tórmulas e de regras,
rios da ciência, interpelando-os em termos de fina
certamente útil, mas que nada teria que ver com a
ironia: «di grazia cessíno di essere cosi aspri m'mici
actividade criadora do espírito. Segundo Croce (e nisto
delta geometria ... credevo che non si potesse essere tanto
ele está em oposição a Hegel) os conceitos empíricos
nimico di persona non conosciuta» ("por favor, deixem
e
de ser tão ásperos inimigos da geometria ... eu não
apenas «pseudoconceitos», inteiramente distintos dos
os
conceitos
abstractos da matemática
seriam
supunha que se pudesse ser tão inimigo de pessoa
«conceitos puros» ou verdadeiros conceitos. Em vão
não conhecida»).
Federigo Enriques, o conhecido geómetra e pensador,
De vez em quando, há uma esperança de reconci­
lhe pediu exemplos de conceitos puros; Croce limita­
liação. No prefácio à obra de Lusin sobre conjuntos
-se a três
analíticos, observa Lebesgue :
mos,
«Apres les premiers granels progres ele la tltéorie des
ou
quatro exemplos vagos, sempre os mes­
que nos deixam perplexos a olhar para as
nuvens: o conceito de qualidade, o conceito de beleza,
le
o conceito de finalidade, o Conceito de conceito (pre­
moment venu de se tendre la main au dessus dn targe
cisamente os mais abstractos entre todos os conceitos
La conl:ersa,tion qtli s'engagea
abstractot! ... ). A polémica entre Enriques e Croce
ensembles,
PhilMophes
fossé qui les sépare.
ressembla, eles l'abord,
et
au
Mathématiciens
Cl"urent
jeu de.ç p'ropos interrompu.ç;
ce n'éta'it que l'affaire d'un monwnt, croyait-on,
un
(aí por volta de 1911) dá-nos bem a medida da diver·
gência entre os dois tipos de mentalidade.
effort encore et l'o1/ allait se comprendl·e. Mais Zénon
d' Élée et le s07"ite du menteur furent invoqués». E logo
a seguir:
«Quand j'étal:s
étudiant, le
café
O que acontece geralmente nestes divérbios é que
o
cientista parece mais pról\imo do senso-comum: a
sua
servi nou.�
reacção perante as excentricidades de certos filósofos
abordions 'volon#ers le.� idées géne'rales: la discu8sion
é tanto ou mais vincada do que a do homem da rua.
s'échauffait et .�emblait elevoir être sans fin, lorsque
l'tln de
nous
s'écriait:
«D'abord, toi, est-ce que
tu
O mais curioso ainda é que, quando
o
leigo se põe
a fazer ciência por conta própria, tende quási sempre
existes? Je dis toi pour la cornmodité, mais moi seul
a cair no poço da filosofia (e digo "POÇO», porque,
existe. ..
geralmente, é difícil de lá sair). Como exemplo, vem
Ators nous comprenions qu'il foltait alter
travailter et
naus séparions jusqlb'a'u lendemain».
a propósito referir o caso de um general que conheci
O dissídio pode dizer-se que se tornou grave a
em Roma, pessoa culta, de convívio agradável, a
nous
partir de Hegel, com todos os metafísicos nebulosos
quem o não ter nada que faller conduzira às lucubra­
que seguiram o mesmo rumo: os idealistas român­
brações
ticos, poetas da Ideia Confusa. A pouca simpatia de
expurgar a matemática de círculos viciosos. «Na defi­
matemáticas.
Sua ocupação
favorita
era
Hegel pela matemática (que faz pensar num complexo
nição - preceituava ele - nunca deve entrar
de inferioridade) corresponde nele a uma hipertrofia
nido». E até aqui era difícil não lhe dar razão. Porém,
de certas tendências do espírito
uma das
em
prejuizo de outras.
detinições
o
defi­
que tiveram a pouca sorte de
GAZETA
DE
MATEMATICA
cair sob a sua análise foi
a
5
de um número primo.
D efinição imp ec ável à pr imeira vista: "Diz-se que
Através dos séculos se vem ob ser va ndo esta
osci­
laç ão entre os dois po los - racionalismo e intuicio­
um número diferente de um é pri mo, qua ndo só é
nismo (ou empú·ismo). Já n os bons tempos helr.nicos
divisíve l por si mesmo e pela unidade». Mas obser­
encontramos, de um lado, Heraclito (o Confuso) e os
vava o general : "Este .�i mesmo o que é sen ão o
sofistas ; do outro lado, os p it agó r icos, os e l eatas,
número primo - o definido a inte rvir na defi n ição ?
D emócri to, Platão. Dizem os empiristas : o mundo
Eis aqui um círculo vicioso!» Em seu ent ender, este
que nós ve mos é sempre di verso, sempre em movi­
e outros erros prov inham de uma deficiente funda­
mento, sempre em evolução; e n quanto a ciência pre­
m en ta ção filos ófica da aritmética e, como rem édio ,
tende dar-nos dele uma imagem permanen te e estável.
prop nn ha uma sua t eor ia u m tant o comp lica da, em
R espondem os eleatas: muda nça , movimento, o nas­
que s e fala da tendência que tem o nosso espír ito
cer e o m or rer - tudo aparência, tudo ilusão ; só o
a
agranuliz ar o real». Depois de ter ido bater à por ta de
que é estável existe, e, se os seres p ar t icu lares se
vários mat e m átic os , tornou a casa de ma u humor
tr ansformam ; o univ er so , como um to do, é im óvel ,
e
a c ab ou por publicar as suas reflexões n u ma revista
regido p or leis e t er nas e imut áve is. A frase tantas
filos ófica, com um preâmbulo conceituoso que era uma
vezes c ita da de Heraclito «Não nos b an h amos duas
tunda mestra nos matemáticos em gera l. Crei o que
vezes no mesm o rio,) tornou-se como que uma divisa
partir de
a
então se consagrou inteiramente à filosofia.
De modo nenhum eu pretendo insinuar que a obra
do empiris mo militante. E é delici oso ouvir Platão
que ixar-s e dos sofistas p ela boca de um dos seus per ­
dos metafísicos românticos tenha s i do inútil: a r e acção
sonagens: «E com efei to , ó Sócra tes, discorrer destas
ao mat ema tism o - ao racionalismo científico na sua
d ou tr in as heracliteanas ... é c oisa mais difícil do que
for ma ext rema - tornou-s e i n ev it áv el , e salutar para
di scor1"er com pessoas que tenham sido mord idas pe la
a própria ciência, p r inc ip alm ente de po is
t.arântula. Realmente estes h omen s, segundo os seus
do novo
ru mo que tomou a física. Num momento de exalta ç ão
escri tos , est ão em contí nu o moviment o ; e parar num
p oética , L apl ace teve esta frase que havia de fica r
assunto e numa p e rgun ta , e quietament e perguntar e
célebre: "Une i ntellige n c e q u i, pour un instant donné,
re spo nde r cada um por sua vez, não lhes é possível
conn aí tr ait toutes les forces dont Ia nature est ani_
de n enhu m modo. ..
mée, et la s ituation respec t ive des êtres qui la com­
p ergun tas algum a coisa,
posen t, si , d' ailleurs, elIe était ass ez vaste pour sou­
d uma aljava certas suas p al av r inhas enigmáticas e tas
Ora pois, se tu a algum deles
ei- lo que tira como
que
mettre ces donn é s à l 'a na ly se, elIe embras serait dans
dispara como flechas;
la mêm e formule les mouvements des pIus gra nds
do que disse, já és a t in gido com um outro e novo
corps de l ' un ivers et ceux du p l u s légcr atome: rien
jogo de palavras, e assim não chegas a nenhuma con­
ne s er a it incer ta in pour el Ie, et l'avenir, comme le
passé, serait pr és ent à ses yeux». Mas hoje s abemos
clusão com nenhum
clu em nada entre
e
se p ro curas que te dê conta
d el es . E nem sequer eles con­
si; porque a coisa de que se ocupam
quanto há de exagera do nesta conc ep ção mecanicista.
com mais cuidado é não deixar que nada nos seus
De res to, já nos meios cartesianos a ideia de c ons e
discursos e nos s eu s â n i m os sej a sólido e seguro,
guir um a de scr ição do mecanismo do mundo era tida
consi derando , eu crei o, que isso mesmo que é seguro
­
por s impl es mi ragem ;
· l i'z ia
Pascal: «lI faut dire eu
é e�tável; e a e s ta estabilidade eles fazem guerra de
gros c e l a se fait p ar fi gure et mo uv ements, car cel a
todos os mo dos, e de todos os lugar es a escorraçam
est vrai; mais dire quels et comp oser la machine, cela
est ridic ul e .
. .»
Temos aqui de concordar com os intuicionistas: o
como podem » . Este di álo go entre Teodoro e Sócrates
(no
Teetéto) conserva uma actualida de imp ressio ­
n a nt e.
universo não é apenas m áquin a - é também vida, é
Na Idade Média a luta reacende- se vivacíssima
também evo lução ; não é apenas causalidade, é tam­
entre nominalistas e r eal istas (os empiristas e racio­
o
nalistas de e n tão) , terminando com o triunfo do racio­
homem esqueceu-se dum pormenor essencial, irredu­
nalismo .metafísico da escolástica, o qual por sua vez
tível a formas matemáticas - que é ele mesmo, homem,
irá confluir no r acionalismo car tesi an o .
bém finalidade. Ao estud ar o mu ndo empíri co,
com tudo o que nele se c on tém de infinit o. Não se
m ec aniza a
vida, não se logific a o se nt imento, não se
Na Idade Moderna, vamos encontrar o racionalismo
de D escar tes, Leibniz e Spi n oza , frente a frente com
a uto ma tiza o espír it o livre e c r ia dor. Não se resolvem
o
pr oblem as sentimentais por meio de eq uaçõ es,
a in da
(O cartesianismo do espíri to francês e o e mp iri s mo
Mas é pr eciso também não cair no ext re mo oposto:
ocidental). Um supremo esforço de co nciliaçã o é rea­
tl
bem que tal não é possível.
empirism o
de
B a con ,
L ock e, Berkeley,
Hume.
anglo-saxó n ico são dois traços dominantes da cultura
o anti-intelectualismo, o irracionalismo c ego e desen­
lizado no criticismo de Kant, ao qual porém se segu e
freado!
a
onda avassaladora do idealismo g ermâ n ico
(o
cha-
GAZETA DE MATEMATICA
6
mado «racionalismo hegeliano» é apenas um exemplo
do ahuso que se pode fazer de certos termos... ).
Afinal, trata-se de duas tendências complementares
de Leibniz; mas os seus resultados não foram apre­
ciáveis: estava-se ainda nos primórdios da álgebra.
O sonho duma língua científica universal não
se rea­
da nos�a mente, com supremacia duma ou de outra,
lizou como o concebera Leibniz -foi mesmo reconhe­
couforme os indivíduos e conforme as circunstâncias.
cido impossível; mas que imensos, insuspeitados hori­
Do equilíbrio de ambas, da sua acç,ão alternada e
zontes se nos abriram com a nova lógica! A principio.
recíproca, resultará a fecundidade do pensamento.
os logísticos foram alvo de c rí ti cas sarcásticas, prin­
Hoje, neste mundo atormentado em que tudo parece
cipalmente por parte de H. Poincaré. Houve, sem dúvi­
oscilar, assistimos à erupção do intuicionismo sob as
da, exageros e i n ge nuidades que justificaram a troça;
mais variadas vestes: empirismo, pragmatismo, con­
mas não esqueçamos, por outro lado,
tingelltismo, evolucionismo, histolÍcismo, esteticismo,
recebeu muito a influência de
que Poincaré
seu cunhado, Emílio
voluntarismo, surrealismo, existencialismo, etc , etc.
Boutroux, o Cilósofo contigentista que precedeu ime­
(ponlue,
diatamente
neste c ámpo, os "ismos» dividem-se e sub­
-dividem-se de maneira alucinante,
tuamente).
repelindo-se
mu­
A té no âmbito de matemática - a cida­
dela da razão racionante - vemos
int u icioni smo, com. grande alarido,
introduzir-se o
Bergson na estrada do intuicionismo.
'
Hoje a lógica simbólica ri-se do anátema lançado
pelo grande matemático e pensador, que já nas
aDer­
nieres Pellsées» parece inclinado a abrandar a ironia.
determinando a
Certamente, a nova lógica tem um seu domínio limi­
divisão entre matemáticos platónicos e matemáticos
tado, e pretender sair dele será sempre pouco sensato.
Mas, pelo menos no que se refere à matemática, a sua
empiristas,
Mas entretanto, por obra de matemáticos -longe
utilidade está hoje fora de dúvida: a sua intervenção
do bulício do mundo, serenamente, sem altas pre­
em análise funcional, álgebra abstracta, etc. tornou-se
tenções - tem-se vindo a desenvolver uma actividade
fundamental. Um dos seus princi pais cultores, David
Leibniz. Refiro-me à lógica matemática ou logística,
tempos. A nova lógica oferece ao matemático uma
cujos
Frege,
férrea disciplina mental que o impede de cair em
Peano e que atinge a sua maioridade no obra monu­
divagações como aquela do general atrás mencionado.
filosófica que se liga directamente à tradi ç ão de
iniciadores
principais
foram Booie,
Hilbert, foi um dos maiores matemáticos dos últimos
Russell, «Principia Mathema­
Mas nunca é demais re petir : a matemática não é
tica)). A lógica matemática é, até certo ponto, a lógica
tudo, está muito longe de ser tu do. O matemático
mental de Whitehead
formal de
e
Aristóteles rej uvenescid a
e
reabilitada;
mas é muito mais do que isso, porque enriquecida
com alguns séculos de e xp er i ê nci a de análise algé­
deve sempre e vitar o perigo da deformação profissio­
nal, que pode ser nociva
para
a próp ri a actividade
cieutífica e já fazia dizer aos antigos: «mathema­
brica e infinitesimal, que a tornam o mais poderoso
ticus purus, purus asinus». Nas horas vagas, o seu
instrumento até hoje conhecido para a análise do
espírito deve orientar-se para outros domínios: pro­
pensame nto abstracto. Quando se instituiu o simbo­
toda a mecânica dum
certo tipo de raciocínio, surgiu a ideia de o generali­
zar, criando uma linguagem simbólica para o uso de
toda a ciência. A ideia já se tinha de certo modo
apresentado a Ramón Lull, místico c a t a I à o do
século XIII, (lue a expôs lia sua "Ars co mpen diosa
lismo algébrico, que põe a nu
inveniendi
veritatpm»; mais tarde, a mesma i,\eia
tornou-se um dos motivos
pre dilec tos
das meditaS'ões
curar na arte, na literatura, na filosofia, um equilí­
brio que foi perturb ad o (sem cair num diletantismo
dispersivo, outro perigo a evitar
I). E
ter presente o
conselho de David Hume no seu ensaio sobre o inte­
lecto h uma no :
"Sê um filósofo, mas, no meio
de toda
a tua filo­
sofia, sê aiuda e sempre um homem».
N. R.
- Artillo
pul>!icado em aiência. Revista dos Estuda"te. da
Facul�a�e de CHllldas de Llshoa, Auo 111- N.· 3,
Jal..iro-Março de 1950.
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