Sempre tem gente pra chamar de “Nós” – Uma política pública de esporte e lazer como figuração social. Joanna Lessa Fontes Silva, Brasil Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE Este trabalho é parte da tese “Sociologia Processual de uma Política Pública de Esporte e Lazer”. Nele, analisamos um projeto da política municipal de esporte e lazer de Recife (Pernambuco-Brasil) a partir do arcabouço eliasiano das figurações sociais e redes de interdependência. Aproveitando a ambiguidade do vocábulo “Nós”, o trabalho desvela os Círculos Populares de Esporte e Lazer (CPEL) em cinco camadas (ou Nós). Primeiramente, apresentamo-lo expondo as diferentes denotações que recebeu ao longo de seu desenvolvimento (projeto, programa), situando-o no movimento dinâmico de sua trajetória como figuração social. No segundo “Nós”, situamos o CPEL dentro do espaço institucional, como uma política pública, ainda como figuração social, mas submetido a padrões de relação mais rígidos forjados (e mantidos) pelos próprios sujeitos. Fazemos isso a partir dos conceitos politics, polity e policy, que tradicionalmente subsidiam a análise de uma política pública de forma a situá-la nas diversas faces do campo político. No terceiro, enfatizamos o nosso recorte teórico-metodológico, do CPEL como uma figuração social e destacamos a presença dos indivíduos a partir dos relatos dos entrevistados na pesquisa a respeito da importância do CPEL para eles, demonstrando a existência das perspectivas individuais, que perpassam toda a trajetória da figuração social. Em seguida, no quarto “Nós”, apresentamo-lo como uma proposição de intervenção político-pedagógica, que constrói padrões, desta vez não de relações sociais, mas de construções teóricas que como parte da figuração social interfere no seu desenvolvimento, principalmente a partir da importância que recebe. Por fim, no quinto “Nós”, situamos o CPEL dentro do espectro mais amplo dos fenômenos sociais que faz parte (esporte e lazer), para entendê-lo dentro da dinâmica processual amadorismo/profissionalismo. É a partir da sobreposição desses “Nós” que acreditamos poder apresentar uma fotografia mais nítida dos Círculos Populares de Esporte e Lazer como uma figuração social que representa um arranjo singular para a área de políticas públicas de esporte e lazer. Palavras-chaves: esporte, lazer, políticas públicas, figuração social Este trabalho é parte da tese “Sociologia Processual de uma Política Pública de Esporte e Lazer1”. Nele, analisamos um projeto da política municipal de esporte e lazer de Recife (Pernambuco-Brasil) a partir do arcabouço eliasiano das figurações sociais e redes de interdependência. O foco deste artigo é analisar como o projeto Círculos Populares de Esporte e Lazer (CPEL) constitui uma figuração social, no sentido eliasiano do termo. Assim, aproveitando a ambiguidade da palavra, pretendemos mostrar como ele forma ao mesmo tempo “Nós”, no sentido do pronome pessoal, “aqueles que falam/agem”, representando as diferentes pessoas que se interrelacionam dinamicamente, formando uma teia de interdependência; e “Nós”, como substantivo plural, “laços, articulações”, que representa os elos, os padrões, as construções simbólicas que 1 Este artigo constitui uma síntese do primeiro capítulo desta tese que deve ser consultada para aprofundamento do tema, tendo em vista os limites desta publicação. tiveram origem a partir destes indivíduos em interação e se desenvolveram dinamicamente na realidade social. Esta dupla de “Nós” é indissociável, a semelhança da relação entre indivíduo e sociedade discutida por Elias (suas várias obras, mas com destaque 1994), que tem como propriedade a interdependência. Assim, não é possível termos Nós sem Nós. O primeiro “Nós” – Projeto e programa Como projeto, os Círculos Populares de Esporte e Lazer (CPEL) tem o ano de 2002 como referência, quando se inicia um projeto piloto com idosos no bairro de Brasília Teimosa, cidade do Recife, Pernambuco, Brasil. Concomitantemente, outros projetos e ações eram desenvolvidos. Além do CPEL, tínhamos: os Arrastões do Lazer, o Plano de Reordenamento e Gestão Democrática dos Espaços Esportivos e de Lazer do Recife, o Plano de Normatização, Valorização e Ampliação do Quadro Docente e Funcional do Esporte & Lazer e o Esporte do Mangue. Esses projetos correspondiam aos focos principais para responder aos problemas diagnosticados pelos atuais gestores, na área de esporte e lazer no Recife 2, assim como para alinhálo com os eixos/diretrizes que orientavam o segundo ano daquela gestão municipal. Naquele momento, o CPEL era definido como: ...consiste na formação de núcleos de convivência social (voltados aos segmentos da infância, juventude, adultos e idosos) que possibilite o acesso sistemático e permanente a práticas e conhecimentos relacionados ao campo da cultura corporal & esportiva, tendo em vista à promoção dos direitos humanos, sociais, políticos e culturais das comunidades empobrecidas do Recife”. (PREFEITURA DO RECIFE, [2002a]). Ele fazia parte, junto com aqueles outros projetos, da Diretoria Geral de Esportes (DGE), um setor da recém-estruturada Secretaria de Turismo e Esportes. A DGE tinha como missão institucional e marca dentro da Secretaria o “Desenvolvimento do Esporte e Lazer Popular”, colocando-a diante da estruturação da política municipal de esporte e lazer. O CPEL era o projeto carro-chefe e logo se tornaria mais amplo, abarcando e dando a linha aos outros projetos, sendo transformado em programa. Esta mudança estava diretamente relacionada a seu embasamento político e pedagógico que continha os princípios e diretrizes que subsidiavam a política municipal de esporte e lazer de uma forma geral e não apenas para o desenvolvimento de núcleos de convivência. No Relatório da Gestão 2001-2004 temos a 2 Problemas: 1. Orçamento muito abaixo das reais necessidades, 2. Infra-estrutura, 3. Divulgação das Ações, 4. Inadequação do Modelo de Gestão para as Ações Integradas; Insuficiência do quadro docente e funcional, e de uma política de valorização do professor que atua no setor de esporte e lazer; 5. Uso privado e restrito dos espaços esportivos públicos em função dos comodatos firmados nas gestões anteriores; 6. Ausência de animação nos parques e praças da cidade; 7. Ausência de animação nos parques e praças da cidade; 8. Ausência de apoio as iniciativas populares de esporte e lazer; 9. Falta de acesso dos vários segmentos da população (especificamente a população de baixa renda) às práticas sistemáticas de esporte e lazer. 2 sistematização desta modificação, com o CPEL numa dimensão “guarda-chuva” que abriga uma série de projetos. Um estudo feito por Almeida (2010) destrincha a estrutura da política de esporte e lazer recifense, dividindo as ações em programáticas e estruturadoras. Segundo a autora, as ações programáticas são aquelas relacionadas “às atividades finalísticas, ou seja, às atividades-fim, como os programas, projetos e eventos direcionados à população” (p.73). São elas: atividades sistemáticas, atividades periódicas e atividades eventuais. Já as ações estruturadoras são aquelas “relacionadas à organização e suporte das atividades fins” (ALMEIDA, 2010, p.74), onde temos: Formação Continuada de Esporte e Lazer, Manutenção de Espaços e Equipamentos de Esporte e Lazer e Execução orçamentária. A estrutura formulada por Almeida (2010) nos dá uma perspectiva geral da forma de organização que a política pública municipal de esporte e lazer alcança 3 e sua contribuição no desenvolvimento de políticas públicas numa perspectiva geral. Ela nos ajuda a evidenciar os diferentes sentidos que o CPEL teve ao longo de sua trajetória: desde uma ação específica desenvolvida através do projeto Círculos de Convivência Social, até o formato de Programa que abrange todas as ações programáticas e ao mesmo tempo dá a direção às ações estruturadoras, com as oscilações de predominância entre eles. Entretanto, ficam vazios os espaços que mostram como esta estrutura foi construída a partir de um contexto múltiplo e diverso, repleto de teias de relações sociais interdependentes, que incorpora diferentes níveis da ação política, entre eles uma forma emergente: as políticas públicas. O segundo “Nós” – O CPEL como ação de governo A ideia de políticas públicas vem do pós-guerra, quando os governos já se colocavam diante de uma nova forma de organização que enfatizava o planejamento estatal de um lado, e de outro, o Estado era responsabilizado pela garantia dos direitos dos cidadãos. A partir de seu desenvolvimento histórico, com a consolidação do Estado de Direito, moldado pela relação demanda/direito e dentro de um contexto de transformações sociais significativas 4, efetiva-se como uma nova forma do fazer político, ou seja, “uma configuração específica de relações de poder, que seja institucionalizada, recorrente e estruturada” e que convive dinamicamente com outras formas 3 Esta estrutura se refere a 2009/2010 e será válida até 2012. Di Giovanni (2009) indica quatro fatores históricos marcantes: o primeiro, de natureza macro econômica: o questionamento da economia baseada no livre jogo das forças de mercado; o segundo, de natureza geopolítica, fim da bipolarização entre os blocos capitalista e comunista; o terceiro, de natureza política, de consolidação das democracias ocidentais (ainda que com retrocessos); o quarto, de natureza cultural e sociológica, com a incorporação dos direitos de cidadania e expectativa/atribuição da materialização deles pelo Estado. 4 3 como: o populismo, o coronelismo, o mandonismo local e o corporativismo (DI GIOVANNI, 2009, p.6). O desenvolvimento da área trará uma série de conceitos que subsidiam os estudos de análise de políticas públicas (policy analysis), sendo três deles os que definem as questões centrais para a ação governamental: a polity (a política na sua dimensão institucional; se refere aos acordos e pactos entre os diversos atores, questões mais gerais); politics (a política na sua dimensão processual, de conflitos e consensos entre os diversos atores) e a policy (a política na sua dimensão material, seus conteúdos concretos e especificidades do resultado do jogo político) (FREY, 2000; COUTO & ARANTES, 2002). Tentando analisar o CPEL por meio destes conceitos, podemos dizer que o primeiro Nós apresentado – com a exposição feita a partir da diferenciação de projeto e programa - se refere predominantemente à policy, ou o conteúdo concreto da ação do governo, onde indicamos sucintamente os programas e projetos realizados. Foi possível perceber o desenvolvimento de uma estrutura de política pública que busca contemplar a demanda por esporte e lazer dos cidadãos do Recife a partir de suas várias perspectivas: estruturadoras (espaço/equipamento, formação profissional e execução administrativo-orçamentária) e programáticas (sistemática, eventual e periódica). Além disso, visualizamos a preocupação com os vários segmentos etários e com os diversos conteúdos da cultura corporal (ginástica, dança, jogos) para além do esporte. Alguns se destacam com atividades específicas, como é o caso da juventude (com um evento próprio, o Esporte do Mangue) e do futebol (com o Campeonato Futebol Participativo). No que se refere à politics, relembramos a conjuntura na qual o CPEL é implementado na Prefeitura do Recife. Ela é fruto da vitória da Frente Popular, encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores, no jogo político (neste caso as eleições municipais), conjuntamente com a estruturação e desenvolvimento de um Setorial de Esporte e Lazer5 no PT em Recife, instância partidária que acumulou debate sobre o setor de esportes e buscou tomar a frente como espaço legítimo para indicar o(s) nome(s) que assumiriam a pasta de esporte, naquele momento vinculado à Secretaria de Turismo. Esse espaço político ocupado pelo CPEL se conecta diretamente com as necessidades da policy e o que se construiu historicamente na polity. Teremos um cenário inicial bastante restrito que exibe uma dissonância entre a estrutura disponível e a ação concreta. Além disso, uma pulverização do esporte e do lazer nas ações do governo e que estabelecem pouco diálogo, retratando a conjuntura da politics. No período em questão (o início do projeto, em 2002), além da Diretoria de Definição de setorial: “Art. 128. Os Setoriais são instâncias partidárias que organizam os filiados e as filiadas junto aos diferentes movimentos sociais” (PT, 2012). 5 4 Esportes, temos o Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães (Geraldão) como uma autarquia – e por isso com maior amplitude de atuação administrativo-financeira – também responsável pelas ações do setor esportivo e sob o gerenciamento de um outro grupo político. Além disso vários projetos eram realizados em departamentos diversos (Secretaria de Assistência Social, a Gerência de Animação Cultural, EMLURB (Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana), entre outros). A problemática estava muito mais na falta de diálogo entre os projetos e órgãos, do que propriamente na sua descentralização, demonstrando de um lado as disputas do campo político e de outro a inexistência de uma política de esporte e lazer municipal que seria a responsável por articular essa diversidade de atuação dentro do governo. Assim, até aqui temos os Círculos Populares na sua perspectiva formal-institucional de projeto/programa que coloca/representa “o governo em ação”, numa definição mais geral de política pública, empreendida num setor específico, a área de esporte e lazer. O terceiro Nós – o CPEL como figuração social O entendimento do CPEL dentro da Politics, da Polity e da Policy ajuda-nos a diferenciar a nossa opção de partida para esta investigação. Ainda que considere os atores políticos dentro das estruturas, estes conceitos não nos permitem enxergar a rede que se forma para além da instituição. De um ponto de vista sociológico, os Círculos Populares representam um grupo de indivíduos em permanente movimento no espaço social e ligados por concepções, teorias, regras de trabalho, laços de amizade, entre outros. Consiste ao mesmo tempo numa formação social planejada – porque foi idealizada por indivíduos e incorporada à realidade social a partir de um planejamento anterior considerando uma série de fatores – e uma formação social não planejada, na medida em que a cadeia de (rel)ações interdependentes dos indivíduos gera uma formação social dinâmica que foge ao controle de seus planejadores. Nesta perspectiva, este trabalho apresenta os Círculos Populares de Esporte e Lazer como uma figuração social. Este conceito, formulado por Norbert Elias, traz-nos a possibilidade de analisar o CPEL a partir de como ele se realiza em diferentes níveis. A ideia central do conceito está no seu aspecto relacional em que transparecem as múltiplas relações existentes entre os indivíduos, de forma interdependente. Mantendo o movimento próprio da dinâmica social – já que a ideia de figuração denota uma formação em contínua mudança –, Elias nos mostra como a ideia de indivíduos (indivíduo no plural) está interligada com a ideia de sociedade. Diz ele: “...embora a sociedade, as relações entre as pessoas, tenham uma estrutura e 5 regularidade de tipo especial, que não podem ser compreendidas em termos do indivíduo isolado, ela não possui um corpo, uma “substância” externa aos indivíduos” (ELIAS, 1994b, p.56-57). Assim, entender o CPEL como figuração social nos permite extrapolar sua definição de projeto ou programa, colocando o foco na perspectiva sociológica, das agências e estruturas envolvidas na sua realização, considerando em seu bojo o conjunto de atores que se relacionam para sua execução seja do ponto de vista da política pública municipal executada, seja do ponto de vista da concepção/ideia/proposta que agrega diversos outros agentes. Desta forma, fazemos o CPEL cruzar a fronteira de política pública (governo em ação), para apresentá-lo como uma rede de interdependências, de relações múltiplas e complexas, formada por indivíduos, num espaço e tempo específicos. A condição de existência dos Círculos Populares de Esporte e Lazer como figuração social está relacionada à interdependência dos indivíduos que construíram o projeto. Formada por indivíduos, a figuração social é flexível à noção de tempo. Para Elias existe uma autonomia relativa em relação aos indivíduos que as formam, mas nunca em relação aos indivíduos em geral (ELIAS, 2006). A existência desta autonomia é que determina a diferença entre o CPEL, por exemplo, e os indivíduos singulares que o constituem. A rede de interdependências entre os indivíduos não compreende assim uma amarra para os indivíduos singulares na sua ação, mas é certamente um fio invisível que os prende uns aos outros, a partir dos diferentes graus de envolvimento na existência do projeto. Durante entrevistas realizadas nesta pesquisa, emergiram algumas das diversas relações que foram estabelecidas entre os indivíduos no CPEL. Das inúmeras narrativas da construção do projeto, imbricada nas emoções, inquietações e expectativas, encontramos os “Nós” que se formam entre os indivíduos e outros indivíduos, mas também entre os indivíduos e as ideias e ações. Num âmbito mais individual, alguns entrevistados enfatizaram a importância do projeto em sua vida. A identificação da importância do projeto muitas vezes fica no âmbito coletivo, dos “Nós”, principalmente atribuída a relação das pessoas umas com as outras na condição de trabalhadores, de pessoas que se envolveram em prol de um determinado objetivo. A importância depende da figuração social em si, da posição que o indivíduo assumiu naquela figuração e das posições que ele vê como importantes e que trazem benefícios de várias ordens. Outras importâncias são trazidas a partir da relação do indivíduo com os outros, com os participantes, que ocupam uma posição diferente nessa figuração social. A relação “Eu e Eles”, ou “Nós e Eles” se diferencia da relação “Nós” que emerge em indivíduos de uma mesma posição, nas primeiras entrevistas citadas, na condição de trabalhadores. A citação seguinte demonstra essa outra relação com os outros, aqueles que participam, que formam a figuração de outra posição. 6 E o CPEL na minha vida vem a partir também do que a gente enxerga enquanto vínculo que a gente tem feito as pessoas estabelecerem. A gente tem provocado, a partir dessa intervenção. As vezes a gente não tem muita... as vezes não cai a ficha dessas coisas, mas o volume de coisas, o legado que a gente vem deixando muito mais do que a quantidade de praças, a quantidade de quadras, o próprio ginásio. Quando a gente vai olhar pras pessoas e que elas modificaram a sua vida a partir da intervenção... e que as vidas elas foram modificadas a partir da intervenção da gente... é aí que o CPEL entra na minha vida... (J.F, Entrevista em 22/11/2012). Ao mesmo tempo emergem aqui as relações afetivas com os “Eles”, no sentido dos participantes, mas também com a proposta em si, com sua materialização. Há também, nas entrelinhas, uma perspectiva de relação de apropriação do projeto a partir desses “Nós”, como se houvesse uma relação menos dinâmica da proposta com a figuração em si. Emerge também aqui, de forma imbricada a relação com o “Nós” construído como política pública, como espaço institucional ocupado. Adiante, isso é reforçado pelas concepções, pelo conjunto de ideias construídas e desenvolvidas pelo CPEL como elementos diferenciadores da ação. E aí eu acho que os Círculos, ele é isso, os Círculos Populares é essa formação desse círculo de convivência. E quando ele incorpora isso também a outras, vai surgindo outros projetos e outros programas e a política vem avançando e vem crescendo, isso só faz fortalecer cada vez mais o programa dos Círculos Populares, porque não dá pra dissociar ele da política do âmbito geral, ele, sem dúvida, é um dos principais, e porque que a gente diz que é um dos principais programas é porque a gente mexe diretamente com a vida das pessoas, a gente está lá sistematicamente no lugar em que as pessoas moram, fazendo um trabalho, seja com a mãe, com o pai, ou com o filho, ou com o vizinho ou com o sobrinho (R.L., Entrevista em 09/11/2012). Em todas as entrevistas foi possível perceber que a participação dos entrevistados não era aleatória. O grau de importância é diferenciado a partir de cada olhar referente às diferentes relações estabelecidas, o que nos coloca diante da heterogeneidade própria de uma figuração social. O quarto Nós – o CPEL como uma proposta de intervenção político-pedagógica A condição que permitia ao CPEL trazer um novo olhar sobre o esporte para a cidade não pode ser explicado apenas pela relação entre os indivíduos, precisamos também considerar a existência de um corpo de ideias e crenças construídas ao longo do tempo e paulatinamente sendo organizadas e reconstruídas. Este corpo será ao mesmo tempo o diferencial do CPEL para outros tantos projetos que emergem nas políticas de esporte e lazer, quanto o elemento que abranda e fortalece a relação entre os indivíduos nessa figuração social, interferindo no seu desenvolvimento (ELIAS, 2005). O CPEL é um projeto cunhado em meados da década de 1990. Para além de ser uma figuração social, sob a qual uma série de indivíduos se interrelacionam, é também um sistema de ideias desenvolvido – pelos indivíduos - a partir das mais diversas influências políticas e pedagógicas 7 (experiências do MCP – Movimento de Cultura Popular, desenvolvido em Recife, na década de 1960; referências da educação popular como Paulo Freire e Moacir Gadotti; o Coletivo de Autores, obra que apresenta reflexões e indicações pedagógicas para a educação física dentro da escola de um ponto de vista crítico, a Pedagogia Socialista de Pistrak; a Teoria do Valor, de Marx; a relação entre os intelectuais e a cultura, de Gramsci, entre outras). Este corpo de ideias foi sendo desenvolvido e sistematizado ao longo do tempo, sendo socializado por meio de publicações acadêmicas, apresentações de trabalhos em congressos e encontros, artigos, nos encontros de formação continuada promovidos pelos gestores do CPEL, entre outros. De forma mais organizada, encontramos essa formulação sintetizada num pequeno livro chamado: “Círculos Populares de Esporte e Lazer: fundamentos da educação para o tempo livre”, de (SILVA & SILVA, 2004). A fundamentação teórica que dá direcionamento à ação dos Círculos, seja na ação pedagógica propriamente dita (tomando como base os Círculos de Convivência), seja nos princípios e valores que regem as ações dos vários projetos, assim como as concepções de esporte e lazer, está relacionada com a teoria marxista e o debate realizado pelos partidos e intelectuais da esquerda. É a partir dela que o CPEL se conforma como uma proposição de intervenção político-pedagógica que tem como fim a chamada “educação para o tempo livre”. A partir dela, o CPEL se dispõe então a contribuir para a transformação da realidade social em vistas à emancipação humana sendo esta sua finalidade educativa. Assim, “se organiza um processo pedagógico através do lazer e esporte, enquanto exercícios críticos, enquanto educação no e para o tempo livre” (SILVA, 2005a, p.161). A base para a proposta de organização pedagógica são os Círculos de Convivência, e sua materialização se inicia a partir do projeto piloto de Brasília Teimosa. Ela tem como inspiração a obra de Moisey Pistrak (2000), para subsidiar as oficinas, o diálogo teoria e prática e o princípio da auto-organização. Metodologicamente, tem como orientação o método didático de Saviani (2008) que toma como ponto de partida e chegada a Prática Social, que se modifica a partir da intervenção realizada transformando-se em uma nova Prática Social que se tornará em seguida o novo ponto de partida. A partir disso, buscava-se que o lazer e o esporte como construções humanas (e práticas sociais) não tivessem apenas o cunho de reprodução e recuperação, sendo utilizados a partir de uma perspectiva pedagógica crítica para favorecer o desenvolvimento humano. Neste sentido, três valores são delineados para orientar a atuação da Diretoria Geral de Esportes, onde o CPEL está inserido: I Esporte como fator de desenvolvimento humano, II - Lazer como instrumento pedagógico de elevação cultural e da consciência política e III - Esporte e lazer como fator de inclusão social. Esses valores apontam a orientação político-institucional. O CPEL, então, estará imbuído desses valores para orientação da prática pedagógica, seu instrumento de intervenção específico a 8 partir dos círculos de convivência e que mais tarde se amplia para as intervenções dos vários projetos. A partir da reflexão teórica orientadora em conjunto com a prática cotidiana dos projetos e dos debates políticos e acadêmicos, são delimitados alguns princípios pedagógicos que regem a prática dos projetos. São eles: 1) o trabalho socialmente útil, 2) o desenvolvimento da cultura popular, 3) a auto-organização e trabalho coletivo; 5) a intergeracionalidade. Outros instrumentos são colocados como forma de organização do trabalho pedagógico: planejamento participativo, escolinhas esportivas, seminários e encontros participativos, festivais, arrastões do lazer e colônia de férias (SILVA & SILVA, 2004). A proposta vai sendo desenvolvida com o caminhar do projeto e sua síntese, o livro, se torna uma referência a partir da qual os gestores e educadores passam a construir seus horizontes, assim como, orienta avaliações e instrumentos de monitoramento. O quinto Nós – o CPEL no processo de esportivização A produção cultural à qual o CPEL está diretamente ligado é o esporte, manifestação cultural que teria surgido a partir das transformações dos divertimentos públicos na sociedade burguesa-industrial. De acordo com Elias & Dunning (1985), o surgimento dos esportes modernos se dá na Inglaterra a partir da “esportivização” dos divertimentos públicos. Espalhados pelo mundo num estágio do processo de esportivização, de globalização das práticas esportivas (MAGUIRE, 2002), e que no caso brasileiro está ligado à vinda dos imigrantes estrangeiros, os esportes deságuam no país com ares de modernidade, sendo apropriados pelas elites (LUCENA, 2001) e estruturados a partir de um tipo de figuração pré-existente – e também de origem inglesa: os clubes (MELO, 2001; 2007). Dentro desses clubes, as elites criarão os discursos para legitimar os esportes, ainda respaldados por uma percepção do trabalho como dever de camadas sociais “menos distintas” e que atribui ao esporte o amadorismo como valor primordial. De forma geral, podemos destacar quatro momentos marcantes na relação entre o esporte e o Estado: 1) que vai do final do século XVIII ao Estado Novo, quando modalidades como o turfe, o remo e o futebol chegam e se desenvolvem no Brasil a partir da organização clubística; 2) Do Estado Novo à Ditadura Militar, onde temos a consolidação de alguns esportes, chegada de outros; além disso, o esporte começa a fazer parte dos interesses do Estado e da Mídia brasileiras. 3) As décadas de 1980 e 1990 que trazem junto à democratização do país, um acúmulo maior sobre a reflexão acerca do esporte, seu papel na sociedade e sua necessária relação com os governos, surgindo propostas e projetos de democratização; 4) Final da década de 1990 em diante, quando teremos o aumento do número de trabalhos refletindo sobre os esportes na realidade social de um lado, e de 9 outro, inúmeros partidos políticos e governos pautando o esporte e realizando políticas locais com base no direito social afirmado na Constituição de 1988 (BUENO, 2008; MANHÂES, 2002). Esses quatro momentos enfatizam a consolidação de um campo esportivo no Brasil que veio se fortalecendo cada vez mais nos últimos anos e do qual fazem parte as diversas iniciativas de políticas públicas de esporte, nas suas diversas manifestações. Para Bourdieu (1990), pensar a existência de um campo esportivo significa questionar a existência de um espaço de produção dotado de lógica própria, para então identificar a existência deste espaço, com práticas particulares e históricas, as quais devem ser investigadas e analisadas, de forma a permitir o conhecimento do que seria a estrutura do campo dos esportes. Em Bourdieu (1990), o campo é um espaço de disputas, de concorrência, entre os agentes e instituições pelo capital próprio do campo e que dará origem a subcampos ou figurações específicas. No caso do campo esportivo, a Constituição Federal Brasileira de 1988 considera a existência de três dessas manifestações no que se refere ao esporte: a) o desportoperformance; b) desporto-participação; e c) desporto-educação (BRACHT, 2003). No caso específico do CPEL, encontramos nele uma opção pela manifestação desporto-participação ou esporte de lazer. Essa identificação está ligada a estruturação teórica e ideológica que os indivíduos da figuração social construíram para subsidiar sua ação e conectar-se com os eixos que norteiam a gestão naquele momento. Assim, na policy vemos claramente realizar-se uma opção política e social que ajuda a fortalecer um padrão de relação de interdependência, sua condição de figuração social. Concluindo: amarrando os Nós Realizamos aqui um desvelamento do CPEL em suas diferentes camadas – seus diferentes “Nós”: as mudanças de forma ao longo do tempo (projeto/programa), a condição políticoinstitucional como uma política pública, a teia de relações de indivíduos, a proposição políticopedagógica e o contexto social mais amplo do qual é parte (esporte e lazer). Com isso, foi possível evidenciar como ao longo do tempo as figurações vão criando “Nós” que se autonomizam na realidade social, mas sempre de forma interdependente, mantendo os fios que o conformam como tecido social. É a partir da sobreposição desses “Nós” que acreditamos ter agora uma fotografia mais nítida dos Círculos Populares de Esporte e Lazer - para compreendê-lo na sua complexidade - como uma figuração social que representa não apenas um projeto, um programa, uma proposta pedagógica, um conjunto de indivíduos, um espaço dentro de um campo social, mas sim esse todo conjuntamente, imbrincado, que conforma um arranjo singular, de indivíduos interdependentes, para a área de políticas públicas de esporte e lazer. 10 BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, B. C. (2010). Política de esporte e lazer do Recife: a elaboração de um instrumento de avaliação. 2010. 142f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, UFPE, Recife. BAUER, M. W.; GASKELL, G. (2002) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Editora Vozes. BOURDIEU, P. (1989). A Génese dos Conceitos de Habitus e de Campo. In: BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 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