A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO

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APONTAMENTOS SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO, SUA SUPERAÇÃO E
O PAPEL DO JUIZ DIANTE DOS PRINCÍPIOS NO MODELO PÓSPOSITIVISTA
APONTAMIENTOS SOBRE EL POSITIVISMO JURIDICO, SU SUPERACIÓN
Y EL PAPEL DEL JUEZ DELANTE DE LOS PRINCIPIOS EN EL MODELO
POS-POSITIVISTA
Maria Celia Nogueira Pinto e Borgo
RESUMO
Analisa o modelo positivista, principalmente a partir do pensamento kelseniano,
fazendo referência às suas características e contribuições ao Direito, além das críticas
sofridas em razão da neutralidade axiológica marcante daquele movimento, iniciado no
século XIX. Com a finalidade de atribuir cientificidade ao Direito, o positivismo
apregoava o primado da lei e, por conseqüência, reduzia os princípios jurídicos à
condição de subsidiariedade, limitando a atividade do juiz à aplicação rígida da lei.
Aborda o declínio do modelo positivista no século XIX, relacionando-o à necessidade
de sua superação, situação que fez florescer o movimento chamado pós-positivismo. A
característica principal do novo modelo está no retorno do Direito às suas raízes
humanistas e axiolóicas, o que faz com que os princípios jurídicos – cuja importância
foi mitigada no positivismo – ganhem relevância e são alçados ao status de norma, ao
lado das regras. Por fim, analisa o papel do juiz na interpretação, aplicação e
concretização dos princípios jurídicos expostos especialmente na Constituição do
Estado Democrático de Direito, e coteja a atuação jurisdicional no período positivista e
a nova postura que o modelo pós-positivista.
PALAVRAS-CHAVES: POSITIVISMO, SUPERAÇÃO, PRINCÍPIO, NORMA,
JUIZ, ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
RESUMEN
Analiza el modelo positivista, principalmente a partir del pensamiento kelseniano,
haciendo referencias a sus caracteristicas y contribuciones al Derecho, además de las
criticas sufridas debido a la neutralidad axiológica caracteristica de aquel momiento,
iniciado en el siglo XIX. Con la finalidad de donar cientificidad al Derecho, el
positivismo enseñaba la superioridad de la ley, por consecuencia, reducia los principios
juridicos a la condición de subsidiariedad, limitando la actividad del juez a la aplicaión
regida de la ley. Trata sobre el declinio del modelo positivista em el siglo XIX,
relacionando-lo a la necesidad de su superación, situación que hizo florecer el
movimiento llamado pos-positivismo. La caracteristica principal del nuevo modelo está
en la vuelta del Derecho a sus raices humanistas y axiológicas, lo que hace con que los
principios juridicos – cuya importancia fué reducida en el positivismo – ganen
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rellevancia y son alzados al statusde norma, al lado de las reglas. Por fin, analiza el
papel del juez en la interpretación, aplicación y concretización de los principios
juridicos expuestos, en especial en la Constitución del Estado Democratico de Derecho,
y hace la comparación entre la actuación jurisdicional en el período positivista y la
nueva postura del modelo pos-positivista.
PALAVRAS-CLAVE: POSITIVISMO, SUPERACIÓN, PRINCIPIO, NORMA,
JUEZ, ESTADO DEMOCRATICO DE DERECHO
INTRODUÇÃO
Como ciência dinâmica que é, o Direito caminha em sentido de evoluir para melhor
atender à sua finalidade primordial de distribuir Justiça, pacificar e organizar o convívio
da sociedade.
Neste caminhar, muitas escolas e modelos jurídicos surgiram, tiveram seu auge e
declinaram, num processo natural de evolução do Direito e do próprio homem e do
paradigma estatal por ele adotado. Assim, entender o fenômeno jurídico para pensá-lo,
entendê-lo, interpretá-lo e aplicá-lo corretamente passa pela compreensão dos modelos
jurídicos que se apresentam em determinado período da sociedade.
Esta é uma exigência que se coloca a qualquer profissional do Direito, mas de modo
sobremaneira importante ao juiz, a quem é dado decidir, pacificar. Importante dizer que
o exercício da função jurisdicional sofre inegável impacto decorrente do modelo estatal
e jurídico que se adota.
Preferiu-se, aqui, analisar o Direito e a atuação jurisdicional a partir do modelo
positivista - especialmente a concepção kelseniana de positivismo jurídico - e, em
seguida, à vista do pós-positivismo, como movimento de superação do positivismo.
Assim, é correto afirmar que o positivismo refletia não apenas características jurídicas,
mas também sociais e políticas da época. E do mesmo modo acontece com o póspositivismo. Embora não seja este o foco central do trabalho, não se pode deixar de
dizer que a compreensão do Direito em determinado espaço de tempo reflete os anseios
da sociedade em que se insere.
Num primeiro momento, propõe-se a análise das características marcantes do
positivismo jurídico, bem como suas contribuições ao Direito, muitas das quais
permanecem atualmente. Busca-se, na realidade, situar o juspositivismo - e
conseqüentemente a obra de Hans Kelsen - no cenário jurídico da época em que
vigorou, sem negar-lhe os méritos que teve e sem impregne-lo do preconceito com o
qual é comumente abordado, como se fosse o responsável pelas mazelas de uma época.
Desta forma, apresentam-se também as críticas sofridas pelo movimento e que mais
tarde levariam à necessidade de sua superação, nascendo, então, o modelo póspositivista como forma de reação à formalidade do juspositivismo. Também nesta fase
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do trabalho se busca contextualizar o pós-positivismo dando o seu significado e
contornos.
De relevantíssima importância para a compreensão do pós-positivismo, os princípios
ganham nova conotação, pois estruturam o sistema jurídico e encerram os valores que o
permeiam. Em razão disso, parte do último tópico é dedicada à exposição sobre o papel
dos princípios como elementos axiológicos e normativos do sistema.
E, por fim, diante deste novo contexto social e político (representado pelo Estado
Democrático de Direito) e jurídico (representado pelo modelo pós-positivista) a atuação
do juiz modifica-se sobremaneira, exigindo-se dele nova postura, adequada à carga
principiológica do paradigma atual.
Trabalhar com princípios e valores exige do magistrado não apenas conhecimento
jurídico, mas também mentalidade e afinidade com os objetivos traçados pelo Estado
Democrático de Direito e indispensáveis à sua realização e contínua formação.
1.
ASPECTOS
SOBRE
O
POSITIVISMO
CARACTERÍSTICAS E CONTRIBUIÇÕES
JURÍDICO,
SUAS
Para explorar o tema da superação do positivismo - que deu origem ao movimento
chamado pelos autores de pós-positivismo - é necessário estabelecer, ainda que em
rápidas palavras, algumas premissas sobre o positivismo, bem como destacar suas
principais características e contribuições ao Direito.
A começar pelo significado da expressão "positivismo". Para Norberto Bobbio o
vocábulo pode ser entendido da seguinte maneira:
A expressão "positivismo jurídico" não deriva daquela de "positivismo" em sentido
filosófico, embora no século passado tenha havido uma certa ligação entre os dois
termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido
filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a
ver com o positivismo filosófico - tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na
Alemanha, o segundo surge na França. A expressão "positivismo jurídico" deriva da
locução direito positivo contraposta àquela de direito natural. (BOBBIO, 1995, p. 15).
Mais adiante, refere-se o mesmo autor:
O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa
verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-
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matemáticas, naturais e sociais. Ora, a característica fundamental da ciência consiste em
sua avaloratividade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na
rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: a ciência consiste somente em
juízos de fato. O motivo dessa distinção e dessa exclusão reside na natureza diversa
desses dois tipos de juízo: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da
realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de
comunicar a um outra a minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário,
uma tomada de posição frente à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade
não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é, de fazer com que o outro realize
uma escolha igual à minha e, eventualmente, siga certas prescrições minhas. (BOBBIO,
1995, p. 135).
Foi exatamente no intuito de dar cientificidade ao Direito que o positivismo jurídico se
desenvolveu nos idos do século XIX, e permaneceu até o século XX, quando teve início
o seu declínio, ou melhor dizendo, ocasião em que se mostrou necessária a sua
superação.
De fundamental importância para o positivismo foi a obra de Hans Kelsen,
especialmente a sua "Teoria Pura do Direito", em que pregava o caráter científico (ou
seja, avalorativo e formalista) do Direito. Convém, neste ponto, reproduzir as palavras
do próprio Hans Kelsen, a fim de captar com maior fidelidade a intenção e objetivo da
sua teoria:
A Teoria Pura do Direito e uma teoria do Direito positivo - do Direito positivo em geral,
não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de
particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria
da interpretação.
Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura
responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão
de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não
política do Direito.
Quando a si própria se designa com "pura" teoria do Direito, isto significa que ela se
propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste
conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objetivo, tudo quanto não se possa,
rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a
ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio
metodológico fundamental.
(...). De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a
psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura
explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm
uma estreita conexão com o Direito. (...). (KELSEN, 2003, p. xviii).
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A esse respeito, também faz Tércio Sampaio Ferraz Junior, ao prefaciar a obra "Para
entender Kelsen", de Fábio Ulhoa Coelho, faz as seguintes observações:
O grande objetivo da obra foi discutir e propor os princípios e métodos da teoria
jurídica. Suas preocupações, neste sentido, se inseriam no contexto específico dos
debates metodológicos oriundos do final do século XIX e que repercutiam intensamente
no começo do século XX. A presença avassaladora do positivismo jurídico de várias
tendências, somada à reação dos teóricos da livre interpretação do direito, punha em
questão a própria autonomia da ciência jurídica. Para alguns, o caminho dessa
metodologia indicava para um acoplamento com outras ciências humanas, como a
sociologia, a psicologia e até com princípios das ciências naturais. Para outros, a
liberação da ciência jurídica deveria desembocar em critérios de livre valoração, não
faltando os que recomendavam uma volta aos parâmetros do direito natural. Nesta
discussão, o pensamento de Kelsen seria marcado pela tentativa de conferir à ciência
jurídica um método e um objeto próprios, capazes de superar as confusões
metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia científica.
Foi com este propósito que Kelsen propôs o que denominou princípio da pureza,
segundo o qual método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como premissa básica,
o enfoque normativo. Ou seja, o direito, para o jurista deveria ser encarado como norma
(e não como fato social ou como valor transcendente). Isso valia tanto para o objeto
quanto para o método. (COELHO, 2001, p. xv, Prefácio).
No mesmo sentido explica o próprio Fábio Ulhoa Coelho:
A grande motivação da teoria pura do direito é a de definir as condições para a
construção de um conhecimento consistentemente científico do direito. É, desse modo,
um trabalho de epistemologia jurídica, a parte da filosofia do direito voltada exatamente
para o estudo do conhecimento das normas jurídicas. (...).
O princípio fundamental do método proposto, isto é, a condição primeira para que a
doutrina se torne ciência, diz respeito ao objeto do conhecimento. (ULHOA, 2001, p. 12).
Para Hans Kelsen, portanto, o Direito deveria ocupar-se e preocupar-se tão somente
com a norma posta. Trata-se, portanto, de concepção normativista do Dirieto, que exigia
do jurista uma postura puramente científica, despida de impressões subjetivas, próprias
de outros ramos do conhecimento, tais como a sociologia, a filosofia ou a psicologia.
Neste ponto é conveniente abrir parênteses para explicar em rápidas palavras que a
concepção kelseniana não é a única manifestação do positivismo jurídico, apesar de,
acredita-se, ter sido a mais difundida dentre os estudiosos brasileiros. Todavia, não se
280
pode esquecer de outra manifestação também importante, materializada no pensamento
de Herbert Hart.
Sobre o positivismo concebido pelo filósofo britânico, explica Sérgio Alves Gomes:
Herbert Hart, após longa discussão sobre a obra de John Austin, que concebia o Direito
como um conjunto de comandos do soberano, concluiu que, ao invés de "comandos", o
que se tem como Direito é "uma união de regras primárias e secundárias"[1].
Portanto, embora com argumentação distinta, ambos os representantes do positivismo
jurídico mencionados[2] reduzem o Direito apenas a seu aspecto normativo e expulsam
do âmbito das preocupações jurídicas todo campo axiológico. (GOMES, 2008, p. 215).
Por outro lado, Norberto Bobbio, ao destacar os pontos por ele considerados
fundamentais da doutrina juspositivista observa o seguinte:
(...) o positivismo jurídico responde a este problema considerando o direito como um
fato e não como um valor. O direito é considerado como um conjunto de fatos, de
fenômenos ou de dados sociais em tudo análogos àqueles do mundo natural; o jurista,
portanto, deve estudar o direito do mesmo modo que o cientista estuda a realidade
natural, isto é, abstendo-se absolutamente de formular juízos de valor. (BOBBIO, 1995,
p. 131).
Feito este registro, importa dizer que por questões didáticas, de construção deste estudo,
optou-se pela concepção positivista kelseniana[3], o que não implica que características
próprias de outras manifestações do positivismo não possam ser mencionadas.
Assim, retornando a Hans Kelsen, distingue-se claramente os campos do "ser" e do
"dever ser", permanecendo a norma nesta última seara. O autor esclarece em sua obra:
Ora, o conhecimento jurídico dirige-se a estas normas que possuem o caráter de normas
jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos).
Na verdade, o Direito que constitui objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa
da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento
humano. Com o termo "norma" se quer significar que algo deve ser ou acontecer,
especialmente que um homem deve se conduzir de determinada maneira. (...). Neste
ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional
dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo
sentido ela constitui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela
constitui o sentido é um ser. (...).
281
Portanto, a conduta estatuída numa norma como devida (como devendo ser) tem de ser
distinguida da correspondente conduta de fato. (...). (KELSEN, 2003, p. 5-7).
Prosseguindo, tem-se que o conjunto normativo de que se compõe o Direito é
estruturado, segundo Hans Kelsen, de modo hierarquizado. E aí se acha o campo da
validade dessas mesmas normas, em que uma específica retira sua validade de outra que
lhe é hierarquicamente superior, de maneira que numa atividade regressiva, o jurista
chegasse à norma fundamental (Grundnorm).
Sobre isso, Sérgio Alves Gomes explica o seguinte:
O modelo de ciência do direito pensado por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito (...) é
formalista (...). Para a elaboração de normas válidas é suficiente a observância da forma
prevista em norma hierarquicamente superior. Em outras palavras: basta a observância
formal do procedimento legislativo para que as normas dele resultantes sejam válidas.
(...). De acordo com ele, é juridicamente possível converter qualquer conteúdo em
norma válida, sem preocupação com a justiça ou injustiça de tal conteúdo. Desde que, é
claro, sejam observadas as formalidades previstas legalmente para a elaboração daquela
norma. O procedimento normativo é suficiente para legitimar as normas dele oriundas.
(GOMES, 2008, 136-137).
De modo semelhante, Luis Fernando Barzotto faz referência à norma fundamental como
pressuposto de validade das normas integrantes do ordenamento jurídico. O autor
ressalta, inclusive, a sua característica ficcional, tal como Hans Kelsen a concebeu em
sua obra póstuma, "Teoria Geral das Normas". Diz o jurista brasileiro:
A verificação de validade de uma norma passa, portanto, por um recondução à norma
fundamental. (...).
Para estabelecer a validade da última norma positiva da cadeia de validação, Kelsen
recusa as alternativas da tradição jusnaturalista. Ele afasta uma fundamentação
metafísica que coloque o fundamento da validade do direito positivo na vontade de
Deus ou da natureza. (...).
Kelsen não pode recorrer a uma instância moral para alcançar uma fundamentação do
direito positivo, uma vez que, para ele, recorrer a uma norma moral acarretaria uma
"moralização" do fenômeno jurídico. (...).
A norma fundamental não é uma norma posta, positiva. É uma norma meramente
pensada, uma norma pressuposta. (...).
282
A norma fundamental é um dos mais importantes conceitos kelsenianos. Ela tem uma
dupla função em Kelsen. A primeira, de ordem epistemológica: ela é a condição lógicotranscendental de possibilidade do conhecimento jurídico. É uma hipótese necessária
ciência do direito de corte positivista. A Segunda, ontológica: a norma fundamental é
necessária para fundar a validade do ordenamento jurídico. (...). (BARZOTTO, 2007, p.
37-39).
Assim, se todo e qualquer conteúdo pode se tornar norma jurídica válida, é certo inferir
que não há, para Hans Kelsen, valores absolutos. Segundo Manuel Atienza, citado por
Sérgio Alves Gomes:
(...). os únicos valores que podem considerar-se internos ao Direito são de caráter
formal: a ordem (que protege os indivíduos do uso da força por parte dos outros), a
segurança coletiva e a paz (que, de todas as formas, é só relativa, pois o Direito não
assegura a ausência do uso da força). (GOMES, 2008, 136-137).
Como se percebe, permanece o caráter normativo-formalista, seja em qualquer dos
pontos de vista através dos quais se analise o juspositivismo kelseniano, o que lhe
garantiu severas críticas por se considerar como pretensão de Hans Kelsen reduzir o
Direito à norma[4].
Entretanto, não se pode negar as contribuições do positivsmo jurídico de Hans Kelsen,
muitas das quais ainda se fazem presentes.
Academicamente representou, indubitavelmente, grande salto à doutrina jurídica, bem
como ao seu enquadramento no mundo científico, o que certamente elevou o Direito
(seu ensino e sua prática), dando-lhe maior respeitabilidade como ramo do
conhecimento estruturado e social que é.
Além disso, como é próprio das grandes revoluções de pensamento, desenvolveram-se
conceitos importantes ao Direito (especialmente aqueles ligados à teoria da norma, do
ordenamento jurídico), bem como criou-se o ambiente favorável ao ensino jurídico
setorizado, fazendo surgir os várias ramos do Direito[5], que paulatinamente se
desenvolveram com seus conceitos e institutos próprios, ou seja, fazendo com que o
Direito alçasse autonomia científica.
2. A NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO E O
SURGIMENTO DO PÓS-POSITIVISMO
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O sistema de validade normativo baseado tão somente no procedimento legislativo e na
estrutura hierarquizada do ordenamento transformou-se em um dos motivos que levou o
pensamento juspositivista ao declínio, vez que não se aceitava - especialmente no
cenário da época, em que se deu a II Guerra Mundial e o terror do holocausto - que
qualquer conteúdo pudesse ser convertido em norma, independentemente de sua
conexão com o sentido do Justo, e da Moral[6].
A esse respeito, Tércio Sampaio Ferraz Junior, em prefácio da obra de Fábio Ulhoa
Coelho afirma o seguinte:
A redução do objeto jurídico à norma causou inúmeras polêmicas. Kelsen foi
continuamente acusado de reducionista, de esquecer as dimensões sociais e valorativas,
de fazer do fenômeno jurídico uma mera forma normativa, despida de seus caracteres
humanos. Sua intenção, no entanto, não foi jamais a de negar os aspectos multifaciais de
um fenômeno complexo como é o direito, mas de escolher, dentre eles, um que
coubesse autonomamente ao jurista. Sua idéia era a de que uma ciência que se ocupasse
de tudo corria o risco de se perder em debates estéreis e, pior, de não se impor conforme
os critérios de rigor inerentes a qualquer pensamento que se pretendesse científico.
(ULHOA, 2001, p. xvi, Prefácio).
Nunca foi intenção de Hans Kelsen, tampouco de qualquer outro doutrinador positivista,
reduzir o ordenamento jurídico a apenas um conjunto normativo, sem qualquer ligação
com a realidade dos jurisdicionados, ou então, apartado do sentido de justiça.
Igualmente não havia intenção, nem se podia prever efeitos nefastos que muitas vezes
são atribuídos ao positivismo, com alguma dose de injustiça ou desconhecimento.
Pelo contrário, o filósofo austríaco pretendia com sua teoria pura resguardar o Direito
daqueles que pudessem deturpá-lo a partir de elementos subjetivos e axiológicos que
aparentemente fossem legitimados pelo sistema, mas que, na realidade, servissem
apenas a arbitrariedades[7].
Logo no início de sua "Teoria Pura do Direito", Hans Kelsen esclarece essa situação:
Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas
disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque
intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica
e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto. (KELSEN, 2003, p.
2).
Tércio Sampaio Ferraz Junior também faz referência a este assunto:
284
A obra de Kelsen ainda o mantém vivo. Suas implicações para a ciência jurídica, para a
lógica da norma, para a aplicação do direito são tão fecundas que, por mais que o
critiquemos, não deixam de desvendar novos ângulos, novos encaminhamentos.
(ULHOA, 2001, p. xx, Prefácio).
Entretanto, ao estudar o tema, Sérgio Alves Gomes chama a atenção para conseqüências
negativas do positivismo jurídico (sem, contudo, renegar suas contribuições), no que
pertine ao ensino jurídico. Trata-se de enriquecedora análise, cujos termos ora se
transcreve:
A concepção kelseniana do Direito foi modelo para a estruturação do conhecimento
jurídico desde a primeira metade do século XX, estimulando uma educação jurídica
fundada tão-somente no estudo das normas e de suas mútuas inter-relações, compondo o
sistema normativo hierarquicamente organizado. Tal modelo ainda se faz presente,
apesar de relativamente superado, em muitos cursos de formação de profissionais do
Direito. (GOMES, 2008, 135).
Chegou-se a acreditar que com o declínio do modelo positivista kelseniano o Direito
retornaria ao modelo jusnaturalista, ou buscaria abeberar-se dele. É o que defende Edgar
Bodenheimer (1966, p. 149-65), pois para ele o ressurgimento do Direito Natural e a
fundamentação da Ciência do Direito em valores éticos surgiu em reação ao pensamento
positivista predominante nos séculos XIX e início do XX.
Assim como acontece em todas as áreas do conhecimento, a exacerbação de apenas um
único enfoque da ciência - no elemento normativo, no caso da visão positivista do
Direito - leva à constatação da sua insuficiência. O mencionado autor ressalta a
necessidade de uma compreensão integrada do Direito, unindo jurisprudência, realidade
social e as contribuições do Direito Natural. O que se percebe no decorrer do texto é um
caminhar contínuo, iniciado desde o declínio do pensamento positivista, em direção
contínua a essa propalada integração.
Sem renegar o que de contribuição agregou à Ciência do Direito, o modelo positivista
foi cético relativamente aos valores finais da ordem jurídica, o que certamente foi
determinante ao seu declínio. Parece adequado pensar-se impossível dissociar o Direito
de suas raízes sociológicas, econômicas, políticas, históricas, culturais, sob pena de
apartá-lo do alcance de uma sociedade menos injusta.
Com o declínio do pensamento positivista formou-se o cenário ideal ao surgimento de
um novo paradigma filosófico-jurídico, através do qual se buscou superar o modelo
antigo, aperfeiçoando-o e, assim, aproximando o Direito novamente dos seus valores
fundantes e de uma perspectiva cada vez mais ligada ao homem.
Margarida Maria Lacombe Camargo traduz bem a questão ora posta, reconhecendo a
existência de tensão constante entre segurança e justiça, durante o século XIX, no auge
285
do modelo positivista. Foi no século XX, porém, que dessa tensão, aliada ao natural
declínio do positivismo, fez-se o cenário propício à construção de outro modelo
jurídico. Para a autora:
Verifica-se uma variação entre extremos radicalmente opostos durante todo o século
XIX: de um lado a Escola da Exegese, com todo o seu rigor, como forma de transmitir
segurança ao direito, e de outro o Movimento para o Direito Livre, muito menos
rigoroso, cuja preocupação era principalmente com relação à justiça. O despertar do
século XX dá ensejo a um movimento crítico, que questiona as reais contribuições da
dogmática jurídica tradicional para a sociedade, ganhando força a sociologia. A filosofia
dos valores veio também compor este quadro, ocupando-se da questão da justiça.
(CAMARGO, 2001, p. 139).
A propósito também ensina Sérgio Alves Gomes:
Todavia, a perspectiva humanista do estudo do Direito revela cada vez mais que, sem a
inclusão dos valores no âmbito jurídico, o Direito se resumiria a um arcabouço de
normas passíveis de qualquer conteúdo, inclusive daqueles que ao invés de dignificar o
ser humano poderiam convertê-lo em mera "coisa", como foi típico dos tempos de
escravidão oficial sempre disciplinada e "legitimada" pelo ordenamento jurídico.
Também não basta dizer que o Direito envolve valores, para que este seja um direito
justo. Há que se verificar qual a pauta de valores com a qual o Direito se compromete.
No Estado Democrático de Direito, tais valores estão explicitados no texto
constitucional e todos eles - segundo a consciência ético-jurídica que os selecionou - são
fundamentais ao pleno desenvolvimento e expressão democrática de todo ser humano.
(GOMES, 2008, p. 216).
Eis o pós-positivismo.
O termo, de acordo com o jusfilósofo Willis Santiago Guerra Filho, tem significado
relevante, pois não se trata de negar o positivismo jurídico, tampouco implica desprezo
ao legado que referido modelo deixou à Ciência do Direito e que não podem ser
extirpados. Aquilo que se conquistou com o positivismo e a cientificidade do Direito é
definitivo. Ou seja, os benefícios do árduo caminho trilhado não podem ser esquecidos;
não há volta. Por outro lado, é preciso ir além. Buscar novos horizontes. E daí a
importância etimológica - quase sempre despercebida - do termo pós-positivismo. É
assim que o mencionado autor apresenta o novo modelo do pensamento jurídico. Para
ele:
286
Inicialmente, cabe frisar que não se pretende aqui expor idéias que sejam
"antimodernas" ou "antipositivistas". Fazer isso seria colocarmo-nos em uma posição
anterior àquelas defendidas na modernidade e pelo positivismo, quando na verdade se
pretende buscar o que está mais para além de ambos. (GUERRA FILHO, 1998, p. 61).
Além do jusfilósofo brasileiro, Albert Calsamiglia apresenta o pós-positivismo como
movimento de superação do modelo positivista em seu formalismo. Assevera o autor:
Me parece que más que la superación del positivismo estamos ante um desplazamiento
de la agenda de problemas que interesan y, em algunos casos, a un cierto
distanciamiento de algunas de las tesis que eram sostenidas de forma mayoritaria por las
teorías positivistas. Algunos autores han llegado a defender que el positivismo es
autodestructivo porque si se llevan sus tesis hasta sus últimas consecuencias se
desemboca en el antipositivismo (Tuori, 1997 y Goldsworthy, 1990, Shiner, 1992). (...).
El postpositivismo cambia la agenda de problemas porque presta especial atención a la
indeterminación del derecho. Se desplaza el centro de atención de los casos claros o
fáciles a los casos difíciles. Lo que interesa no es tanto averiguar las soluciones del
pasado sino resolver los conflictos que todavia no están resueltos.
(...).
Ahora bien, el post positivismo acepta que las fuentes del derecho no ofrecen respuesta
a muchos problemas y que se necesita conocimiento para resolver estos casos. (...).
(CALSAMIGLIA, ?, p. 210-212).
Portanto, o pós-positivismo não pretende senão aperfeiçoar a Ciência do Direito - em
quaisquer de seus campos de atuação - sem, contudo, desprender-se das contribuições
positivistas. Mesmo porque elas integram a estrutura do ordenamento jurídico atual.
Quer-se, repita-se, aprimorá-las a fim de que atendam o máximo possível às exigências
do paradigma estatal do Estado Democrático de Direito.
Assim, o pós-positivismo traz em si a crença no Direito como realizador do ser humano
em sua plenitude, e para isso pretende afastar-se da concepção formalista da Ciência do
Direito. Ou seja, busca superar os primados anteriores, da dogmática tradicional, a
saber: o primado da lei e a atuação autômata do juiz, como mero aplicador das
disposições normativas contidas no ordenamento. Segundo Margarida Maria Lacombe
Camargo:
(...) as correntes que vêem a aplicação do direito como atividade criadora insurgem-se
em opor severas críticas ao positivismo kelseniano, apontando para a falibilidade do
modelo lógico-dedutivo. Acredita-se que o direito existe concretamente e não de forma
287
virtual, ou melhor, que ele vale à medida que é capaz de compor interesses,
desconsiderando-se a sua força meramente potencial. Este movimento, que encerra o
predomínio da dogmática jurídica tradicional, é denominado pós-positivismo.
(CAMARGO, 2001, p. 140).
Embora não se trate do foco deste trabalho, é importante frisar que as mudanças de
paradigmas estatais, até que se chegasse no modelo atual tem toda relevância no
estabelecimento e desenvolvimento do pós-positivismo. Cada vez mais o Estado
Democrático de Direito se identifica com as características pós-positivistas.
Neste sentido se manifesta Sérgio Alves Gomes:
Se o Estado Democrático de Direito for considerado um novo paradigma estatal e se o
papel do Estado for o de orientar a convivência com base em valores considerados
fundamentais à convivência, surge a necessidade de um aprendizado a respeito de como
lidar com valores - tais como: vida, justiça, liberdade, igualdade, dignidade,
propriedade, segurança... - contemplados no texto constitucional como basilares à vida
democrática. Para tanto, há de se desenvolver um conhecimento jurídico capaz de
trabalhar adequadamente com tais componentes axiológicas.
(...).
A expressão "novo-antigo" é empregada para se chamar atenção sobre algo que a
consciência que vem se formando à luz de um novo modelo jurídico-epistemológico em
construção, denominado pós-positivismo, percebe como fundamental: o resgate de uma
racionalidade adequada a se lidar com as questões humanas, como são aquelas
adjetivadas de "jurídicas". (...). (GOMES, 2008, p. 212).
Assim, na condição de movimento de reação ao modelo positivista, o pós-positivismo
apresenta-se como alternativa viável de superação do formalismo daquela forma de
conceber o Direito sem, contudo, negá-lo. Ao contrário, o pós-positivismo reconhece e
otimiza as contribuições positivistas.
Entretanto, não despreza as suas raízes sociais, humanísticas e axiológicas, que foram a
tônica do positivismo jurídico. Retira, pois, a frieza e o formalismo da lei deixada - não
intencionalmente - pelos positivistas, como forma permitir a concretização do Direito
como instrumento viabilizador de Justiça.
3. SOBRE OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS E O PAPEL DO JUIZ NO CENÁRIO
PÓS-POSITIVISTA
288
O surgimento do pós-positivismo é marcado pelo retorno do Direito à sua matriz
axiológica, antes extirpada pela doutrina positivista, pois pensava-se que a supressão de
elementos subjetivos e valorativos pudesse resguardar o Direito do comentimento de
arbitrariedades, além de atribuir-lhe cientificidade tão almejada àquele tempo.
Após o declínio do modelo positivista, tornou-se insustentável - ou talvez seja mais
adequado dizer insuficiente - manter o formalismo exacerbado do sistema, bem assim
do apego excessivo à lei.
Neste contexto, os princípios jurídicos retomam sua força, e adquirem status próprio e
papel importante no pós-positivismo. Pode-se dizer, então, que uma das características
marcantes dessa fase metodológica do Direito é o recurso aos princípios de uma
maneira muito específica, conforme se verá nas linhas a seguir.
Para Paulo Bonavides "a juridicidade dos princípios passa por três distintas fases: a
jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista" (BONAVIDES, 2003, p. 259). Com isso
percebe-se que os princípios sempre acompanharam o Direito, inclusive no período de
predomínio do positivismo. Ocorre que, em cada uma dessas fases tiveram papéis e
importâncias distintos. Ao discorrer sobre as fases de juridicidade dos princípios, o
autor afirma:
A primeira - a mais antiga e tradicional - é a fase jusnaturalista; aqui os princípios
habitam ainda esfera por inteiro abstrata e sua normatividade, basicamente nula e
duvidosa, contrasta com o reconhecimento de sua dimensão ético-valorativa de idéia
que inspira os postulados de justiça.
(...).
Enfim, a corrente jusnaturalista concebe os princípios gerais de Direito, segundo
assinala Flórez-Valdés, em forma de "axiomas jurídicos" ou normas estabelecidas pela
reta razão. São, assim, normas universais de bem obrar. São os princípios de justiça,
constitutivos de um Direito ideal. São, em definitivo, "um conjunto de verdades
objetivas derivadas da lei divina e humana".
O ideal de justiça, no entendimento dos autores jusnaturalistas, impregna a essência dos
princípios gerais de Direito. (BONAVIDES, 2003, p. 259-261).
Mais adiante, prossegue o mesmo autor:
A Segunda fase da teorização dos princípios vem a ser a juspositivista, com os
princípios entrando já nos Códigos como fonte normativa subsidiária ou, segundo
Gordillo Cañas, como "válvula de segurança", que "garante o reinado absoluto da lei".
289
(...).
A concepção positivista ou histórica - escreve Flórez-Valdés - sustenta basicamente que
os princípios gerais de Direito equivalem aos princípios que informam o Direito
Positivo e lhe servem de fundamento.
(...).
Mas o juspositivismo, ao fazer dos princípios na ordem constitucional meras pautas
programáticas sepralegais, tem assinalado, via de regra, a sua carência de
normatividade, estabelecendo, portanto, a sua irrelevância jurídica. (BONAVIDES,
2003, p. 262-263).
Todavia, é na fase pós-positivista que os princípios alçam status de norma jurídica,
capaz de ser fonte de direito e de obrigações. Deixam de ter papel secundário e
subsidiário para assumir importância inegável na estrutura do ordenamento jurídico e na
adequada interpretação e aplicação do Direito.
Ensina, por fim, Paulo Bonavides a respeito da importância dos princípios no cenário
pós-positivista:
A terceira fase, enfim, é a do pós-positivismo, que corresponde aos grandes momentos
constituintes das últimas décadas do século XX. As novas Constituições promulgadas
acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo
sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais.
(BONAVIDES, 2003, p. 264).
Semelhante é o entendimento de Ruy Samuel Espíndola, em obra específica sobre o
tema. Para ele, no pós-positivismo, os princípios:
(...) que agora positivados nos novos textos constitucionais, assentam os principais
padrões pelos quais se investiga a compatibilidade da ordem jurídica aos princípios
fundamentais de escalão constitucional (...). Nesta fase, os princípios jurídicos
conquistam a dignidade de normas jurídicas vinculantes, vigentes e eficazes para muito
além da atividade integratória do Direito. (ESPÍNDOLA, 2002, p. 64).
Como se nota, os princípios passam a ser, juntamente com as regras, espécie do gênero
norma. Essa diferenciação é fruto especialmente da obra de Ronald Dworkin e Robert
Alexy, tomadas como fonte do estudo dos princípios. Citado por Sérgio Alves Gomes, o
jurista alemão entende que:
290
Tanto las reglas como los principios son normas porque ambos dicen lo que debe ser.
Ambos pueden ser formulados com la ayuda de las expresiones deónticas básicas del
mandato, la permisión y la prohibición. Los principios, al igual que las reglas, son
razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de un tipo muy
diferente. La distinción entre reglas y principios es pues una distinción entre dos tipos
de normas. (GOMES, 2008, p. 220, nota de rodapé n. 444).
Ainda com base na obra de Robert Alexy, Sérgio Alves Gomes destaca os elementos
diferenciadores entre regras e princípios:
(...) los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho
de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su
cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas.
(...). En cambio, las reglas son normas que sólo podem ser cumplidas o no. (...). Por lo
tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y no de grado.
Toda norma es o bien una regla o un principio. (GOMES, 2008, p. 221, nota de rodapé
n. 445).
De acordo com Ronald Dworkin:
As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra
estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser
aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.
(...).
Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm - a dimensão do peso ou
importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção
aos compradores de automóveis se opõe se opõe aos princípios de liberdade de
contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de
cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata (...).
As regras não têm essa dimensão. (DWORKIN, 2002, p. 39 e 42-43).
Desse modo, os princípios têm a dimensão de peso, ou seja, podem subsistir
concomitantemente, assim como podem ceder diante de outro princípio de maior
relevância no caso concreto, sem que com isso um deles seja invalidado. A sua
aplicação requer, portanto, um juízo de ponderação.
291
Ao contrário, as regras "...determinam as conseqüências normativas de forma direta..."
(ÁVILA, 2004, p. 29), razão pela qual Ronald Dworkin se refere ao juízo de tudo-ounada. Significa dizer que as antinomias entre regras implica descarte daquela que venha
a ser considerada inválida.
Feitas essas considerações a respeito da relevância dos princípios no contexto do póspositivismo jurídico, é possível concluir que o retorno do Direito à sua essência
axiológica exige postura diversa do juiz - seja no campo da interpretação, seja na
aplicação do Direito - em relação àquela própria do modelo positivista.
Ora, se os princípios encerram valores, e são normas capazes de gerar direitos e
obrigações, apesar de sua abstração, é certo que o trabalho do jurista - especialmente do
juiz - não pode se limitar à aplicação pura e simples da lei. O Direito (e por que não
dizer a própria sociedade?) não se contenta mais com o juiz "boca da lei", para lembrar
a expressão célebre de Montesquieu.
Antônio de Pádua Ferraz Nogueira, analisando o tema sob a ótica de magistrado, faz a
seguinte observação:
Cabe ao juiz e às partes, destarte, uma atuação sempre dentro da razoabilidade -sem
exageros ou posicionamentos radicais-, propugnando soluções que possam levar à
modernidade do processo e a decisões que mais se amoldem aos fins sociais e às
exigências do bem comum. Com isso terá o cidadão não só maior e melhor acesso á
Justiça, fortalecida pela segurança de critérios humanistas adotados no exame da lei,
processual ou civil".(NOGUEIRA, 2001, p. 34-35).
Logo, na aplicação dos princípios o juiz encontrará orientação, bem como limitações à
sua atuação. É de se perceber a preocupação com a atuação do juiz, razão pela qual deve
ele estar atento e conectado ao sentido e alcance dos princípios. Sobre o tema, Sérgio
Alves Gomes explica com clareza o seguinte:
O Estado Democrático de Direito, enquanto paradigma superador de outros tipos de
Estado que o antecederam, requer não apenas uma nova hermenêutica constitucional,
mas também, um "novo juiz" cujo modo de interpretar e aplicar o Direito supere a
figura do juiz que poderia servir no Estado absolutista ou no Estado Liberal, mas não,
no Estado Democrático de Direito. Este, em razão de sua Constituição principiológica,
necessita de uma hermenêutica constitucional capaz de trabalhar não apenas com
regras, mas também com princípios. (GOMES, 2008, p. 363).
Sendo assim, o juiz que o pós-positivismo requer é aquele não mais compromissado
apenas em ser "a boca da lei", escravo do formalismo excessivo, e apartado dos valores
sociais, éticos e morais da sociedade onde se insere. Requer-se, sim, um juiz capaz de
292
interpretar e aplicar o Direito da forma mais adequada ao alcance e realização, tanto
quanto possível, da Justiça ao caso concreto, como se espera no Estado Democrático de
Direito. É o que apregoa ainda Sérgio Alves Gomes:
Este "novo juiz" caracteriza-se não em razão da idade mas da mentalidade, isto é, do
pensamento que orienta suas ações. Trata-se do juiz intérprete preocupado com a
concretização dos valores constitucionais, por meio da efetividade dos direitos humanos
e fundamentais. (...).
Diante disso, o intérprete-juiz há de estar em sintonia com tais premissas. Está ele
jurídica, ética e politicamente comprometido com a sociedade democrática, com o
paradigma de Estado e o modelo jurídico por esta engendrados a fim de ordenar,
segundo princípios constitucionais que a todos vinculam, o convívio social.
(...).
O "novo juiz" tem a capacidade de renovar-se, de recusar a carcaça do formalismo
jurídico positivista. Este insiste em amarrar as mãos e a mente do magistrado. Atá-las
pelo cansaço produzido mediante o entulhar de autos de processos sobre a mesa do
julgador. (...).
A propósito do impacto do modelo positivista, cujo formalismo exacerbado tolhia
sobremaneira a atuação jurisdicional, ensina Margarida Maria Lacombe Camargo:
Como vimos, a idéia era a de que a atividade jurisdicional ficasse circunscrita a
operações lógico-dedutivas extraídas de um sistema dinâmico de normas feitas pelo
Estado, capaz de gerar uma norma individual como sentença para cada caso concreto.
(CAMARGO, 2001, p. 140).
Ao contrário disso, o modelo pós-positivista - como expressão do Estado Democrático
de Direito - combate a noção de um juiz cujo trabalho se resuma a solucionar conflitos a
partir do conhecimento e aplicação da lei. E assim o é porque se trata de paradigma
estatal altamente principiológico, que permite conferir ao sistema a maleabilidade
necessária à sua realização (do paradigma), e que por isso requer do juiz capacitação
intelectual e humanista para tal mister[8]. Observe-se o que afirma Sérgio Alves
Gomes:
O novo paradigma estatal engendra um Direito que é, antes de tudo principiológico. E,
no âmbito de tal Direito, o intérprete participa da construção do sentido do Direito.
Deve fazê-lo mediante uma argumentação desenvolvida a partir dos princípios
293
constitucionais fundamentais, de modo a atribuir aos textos normativos o significado
mais justo, razoável e adequado aos valores por estes salvaguardados. (GOMES, 2008,
p. 361-362).
Longe de ser um autômato, o juiz tem papel e importância fundamentais à contínua
construção do Estado Democrático de Direito, pois através dele o Direito - entendido
como instrumento de realização de Justiça e, ainda, de realização do próprio homem - é
capaz de ampliar horizontes daqueles que o buscam.
CONCLUSÃO
O positivismo jurídico se desenvolveu nos idos do século XIX, e permaneceu até o
século XX, época em que entrou em processo de declínio, até que fosse superado por
outro modelo jurídico.
Apesar de não ser a única manifestação do positivismo jurídico, a concepção de Hans
Kelsen foi de extrema importância para o desenvolvimento jurídico da época e ainda
permanece viva em sua obra.
O objetivo central do pensamento kelseniano é atribuir cientificidade ao Direito através
da preocupação apenas com seu objeto de conhecimento: a norma posta,, despida de
impressões subjetivas, próprias de outros ramos do conhecimento, tais como a
sociologia, a filosofia ou a psicologia.
Assim, as principais características do seu pensamento, no âmbito normativo, são: (a) a
distinção evidente entre o campo do "ser" e do "dever ser", permanecendo a norma nesta
última seara; (b) estrutura hierarquizada das normas, materializada pela conhecida
"pirâmide de Kelsen", em que a Constituição aparece no ápice, acima da qual há apenas
a norma fundamental (Grundnorm); (c) dentro de referida estrutura uma norma retira
sua validade de outra que lhe é hierarquicamente superior, e assim sucessivamente, até
que se chegue à norma fundamental; (d) todo e qualquer conteúdo pode se tornar norma
jurídica válida. Logo, a ordem jurídica não comporta valores absolutos, a não ser
aqueles de caráter formal (ordem, segurança coletiva e paz).
Apesar das severas críticas sofridas pelo positivismo kelseniano - especialmente por ser
considerado reducionista - não se pode negar suas contribuições ao Direito.
Academicamente alcançou o status de ciência, além de desenvolver os vários ramos do
Direito, estruturados com seus próprios institutos. Por outro lado, o formalismo
característico da cientificidade alcançada pelo Direito contribuiu em grande parte para a
sua setorização (perda da visão integral do Direito) inclusive no campo do ensino
jurídico, e ainda, levou o exercício da judicatura a apenas raciocínios lógicos-dedutivos.
294
Neste contexto, pareceu inevitável o declínio do pensamento positivista, que deu lugar a
um novo paradigma filosófico-jurídico que pretende senão aperfeiçoar a Ciência do
Direito sem, contudo, desprezar as contribuições do positivismo.
O surgimento do pós-positivismo é marcado pelo retorno do Direito à sua matriz
axiológica, antes extirpada pela doutrina positivista. Neste contexto, os princípios
jurídicos retomam sua força, e adquirem status próprio e papel importante, muito
embora tenham sempre acompanhado o Direito, desde o jusnaturalismo (quando tinham
caráter metafísico) e no positivismo (quando tinham função subsidiária à lei, como
forma de garantir sua fiel aplicação).
Mas é no pós-positivismo que os princípios passam a ser, juntamente com as regras,
espécie do gênero norma, conforme diferenciam Ronald Dworkin e Robert Alexy.
Enquanto as regras trazem conseqüências normativas específicas e são aplicadas em
termos de "tudo-ou-nada", os princípios são dotados de maior abstração e, portanto, têm
maior flexibilidade, adaptabilidade às situações mais diversas. Por isso, não têm a
dimensão específica das regras, mas dimensionam-se pelo peso, razão pela qual sua
aplicação no caso concreto não implica a invalidação de outro princípios que, naquele
caso, tenha menor importância. Diferentemente, as normas são válidas ou inválidas
(novamente o "tudo-ou-nada") e, em caso de antinomias, uma delas é desconsiderada
(inválida) em face da outra.
No Estado Democrático de Direito, eminentemente principiológico, expressão do póspositivismo, é na Constituição que se concentram os princípios que formam e
estruturam todo o ordenamento jurídico. Ademais, os valores característicos do
paradigma estatal se introduzem no ordenamento jurídico através dos princípios que o
compõem.
Diante disso, a atuação do juiz precisa estar conectada a esta nova mentalidade póspositivista e, principalmente, aos objetivos do Estado Democrático de Direito. Sua
atuação, portanto, deixa de ser tão apegada ao formalismo frio da lei para dar lugar ao
manejo e aplicação de princípios.
A atividade jurisdicional deixa de ser apenas um raciocínio lógico-dedutivo, autômato,
para ser ativa, comprometida com valores e com o homem como destinatário do Direito.
É imprescindível, portanto, que o juiz pós-positivista repense o seu papel na sociedade e
tome consciência da importância de cada uma das decisões que profere, e de um modo
muito consciente tenha o Estado Democrático de Direito, seus princípios e valores como
orientadores e cuja realização seja meta a concretizar.
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de direito material. Doutrina, jurisprudência e anteprojetos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001.
296
PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção. Aspectos da lógica da decisão
judicial. Campinas: Millennium, 2003.
[1] Sobre isso, ver a obra de Herbert Hart, O conceito de Direito, em que o autor expõe
suas críticas ao modelo positivista de John Austin e propõe sua própria concepção de
ordenamento jurídico.
[2] O autor faz comparação entre Herbert Hart e Hans Kelsen.
[3] Nada obstante, ressalte-se que o positivismo encontra também suas raízes na Escola
Analítica do Direito ou Escola Analítica de Jurisprudência, cujo representante de
destaque foi John Austin. De acordo com o jusfilósofo brasileiro João Baptista
Herkenhoff (2004, p. 38), tal movimento de interpretação do Direito concebia o
ordenamento jurídico sob a perspectiva normativa, eis que "... o Direito tinha por objeto
apenas as leis positivas, não lhe interessando os valores ou conteúdo ético das normas
legais".
[4] Conforme se verá no tópico a seguir, a identificação de Hans Kelsen como
reducionista lhe garantiu severas críticas, as quais contribuiriam, mais tarde, para o
declínio do modelo positivista.
[5] Mais adiante essa questão será objeto de crítica neste trabalho, apresentando-se
como um dos indicativos de superação do modelo positivista, no sentido de sua rigidez
formal.
[6] Essa situação será abordada com mais vagar, em tópico específico, quando se falar a
respeito do declínio do positivismo jurídico, que deu lugar ao pós-positivismo.
[7] A esse respeito, vide texto Judiciário como superego da sociedade - o papel da
atividade jurisprudencial na "sociedade órfã", de Ingeborg Maus, autora alemã que
analisando o papel do Judiciário naquele país, se reporta aos impactos do positivismo
ali.
[8] Diante do que se expôs, é perceptível a importância que ganha o processo de
preparação desse "novo juiz". Não apenas intelectualmente, mas também para lidar com
o destinatário de seu exercício, que é o próprio homem. Para aprofundamento do
assunto vide Lídia Reis de Almeida Prado, em sua obra O juiz e a emoção - aspectos
da lógica da decisão judicial, especialmente capítulos II e VIII.
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