Jornal A Tarde, sexta-feira, 16/06/1978 Assunto: NAS RAÍZES DA REPÚBLICA A confluência da história das idéias com a história política é, no Brasil de hoje, uma das evidências de que esses domínios do conhecimento não se podem entender separadamente: tanto as idéias determinam, junto com outros fatores, o Estado, os projetos nacionais, os sistemas de governo, os regimens econômicos, quanto os modos de pensar são condicionados, em certa medida, ao menos enquanto manifestações ostensivas, pelas filosofias políticas dominantes e até pelas estruturas de poder. Assim é que ao estudar o curso e a evolução das idéias, sejam as idéias filosóficas, estéticas, cientificas, religiosas, sejam as propriamente políticas, verificamos que aquelas explicam as últimas. É claro que influem sobre o pensamento político outros fatores, que não se podem excluir da apreciação dos movimentos e das conjunturas políticas, tais como as formas de produção, as variações da economia, os interesses de classes, as lutas pelo poder e pela dominação. Mas é certo que acompanhando desde o passado o decorrer das idéias descobrimos a explicação para a organização do Estado e para as formas, os planos e os programas de governo. Percorrendo o caminho inverso, isto é, do presente para o passado em busca das origens das instituições consagradas e do espírito político reinante, chegamos à mesma verificação, encontrando os princípios, as doutrinas que produziram o presente. E não é raro concluir que uma idéia, uma filosofia que parecia superada continua atuante, quando menos em modelos de ação talvez não mais conscientes de suas raízes doutrinais. Essa verificação se pode fazer a partir da filosofia política inspirada no Brasil pelo Positivismo no auge de sua influência sobre os fundadores da República. Assim, em Augusto Comte, primeiro, e em seus seguidores no Brasil, particularmente em Miguel Lemos, Teixeira Mendes e alguns mais e nas obras que o Apostolado Positivista traduzia e fazia circular nos primórdios do regímen republicano, como as do chileno Jorge Lagarrigue. Ivan Lins, o autorizado historiador do Positivismo no Brasil e eminente teórico dessa doutrina, contribui para a mesma conclusão com suas ponderadas análises das influências exercidas entre nós, na quadra referida e até em ulteriores períodos, pela Filosofia Positiva e pelas expressões desta sob a forma da Religião da Humanidade. Na obra de outros historiadores das idéias - para só mencionar alguns trabalhos mais recentes de João Alfredo Montenegro, de Antonio Carlos Vilaça, de Caio Navarro de Toledo e outros - encontram-se fortes indícios do influxo daquela doutrina sobre o primeiro modelo da República. Uma síntese relativamente breve do processo histórico de formação da mentalidade antiliberal e autoritária que por momentos aflorou em nossa fase republicana e que se acentuou ultimamente acaba de realizar Paulo Mercadente nas páginas de “Militares e Civis: a ética e o compromisso” (1978). Aí se demonstra como a rigidez da doutrina positivista e seus princípios dogmáticos, tanto em ética quanto em política, deram origem a um ideal sociocrático e antidemocrático, fechando à sociedade brasileira, de formação espiritualista e eclética, as portas para um compromisso com outras correntes. O positivismo, mostra o Autor, inspirava a crítica ao liberalismo e à democracia, acreditando que estes embaraçam os objetivos de uma modernização institucional e de uma política objetiva de conciliação das classes: a ordem e o progresso, como a segurança e a tranqüilidade dependiam de um “absolutismo ético” e de uma ordenação social a política que desconfiavam do povo, do sufrágio eleitoral, do parlamentarismo como “da fé religiosa, da metafísica universitária e do materialismo acadêmico”, os quais seriam substituídos pela Religião da Humanidade. Efetivamente Comte e seus seguidores Littré e Lafitte na França, Lagarrigue no Chile, difundido no Brasil em francês e português, e os nossos “Apóstolos da Humanidade” ensinavam que a república teria sua forma ideal na “ditadura republicana” que reduzia o número dos parlamentares e limitava os poderes do parlamento a uma função apenas financeira, preconizava a escolha do chefe de Estado pelo seu antecessor e considerava que esse alto cargo deveria caber a uma personalidade eminente que asseguraria às forças republicanas sua eficácia, energia e estabilidade. Dedicando o principal de seu livro - que é a seqüência de estudos outros nos mesmos domínios do pensamento político - à fase republicana de nosso existir, Paulo Mercadante fundamenta suas deduções na verificação de tendências que desde o período colonial e durante o império atuaram sobre a nossa mentalidade, o que empresta à sua tese um teor lógico e convincente e faz da sua obra uma leitura muito elucidativa.