ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática UM ESTUDO SOBRE A APLICAÇÃO PLATÔNICA DA PRÁTICA INVESTIGATIVA SOCRÁTICA Rineu Quinalia Filho (UFSCAR)1 RESUMO: O presente artigo pretende sugerir e analisar duas possíveis variações ligadas à aplicabilidade do que denominamos de primeira padronização da investigação filosófica, a saber, a prática da inspeção socrática através do élenchos. A partir dos diálogos Laques e Cármides, pretendemos apontar como Platão insinua destacar o que chamamos de duas variações do tradicional élenchos de prioridade de definição de Sócrates, a saber: a denunciativa e a pedagógica. Com isso, avaliaremos a possibilidade de conceber se a inspeção socrática teria sido usada organicamente por Platão e inserido não somente como um instrumento para definir o Ser, mas, sobretudo, como um instrumento político-pedagógico no núcleo dos Primeiros Escritos. PALAVRAS-CHAVE: História da Filosofia Antiga, Sócrates, Élenchos, Platão. ABSTRACT: This article aims to suggest and analyze two variations related to the applicability of the first standart of philosophical inquiry, the Socratic practice of asking. From the dialogue Laches and Charmides we intend to point out how Plato wants to highlight what we call two variations of traditional refutative Socratic elenchos, namely: denunciative and pedagogical. With this, we will endeavor to evaluate the possibility of conceiving if the Socratic inspction was organically used by Plato and inserted as a political-pedagogical tool in the nucleus of Early Writings. KEYWORDS: History of Ancient Philosophy, Socrates, Elenchos, Plato. 1 Rineu Quinalia Filho possui Graduação em Filosofia na Università Degli Studi di Roma. Atualmente é Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). 99 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática 1. PREMISSA Para que seja possível evidenciar os elementos de continuidade e de transformação que subsistem entre (i) o valor teórico político-pedagógico maiêutico2 de alguns diálogos socráticos platônicos em relação aos (ii) seus diálogos subsequentes, julga-se primordial, para o êxito compreensivo do estudo de Platão, analisar e estudar com atenção algumas nuances estruturais do diálogo socrático para que, posteriormente, possamos confrontá-lo com os diálogos dialéticos. Este artigo se propõe a analisar o que denominamos uma nuance estrutural em meio à dinâmica refutativa socrática presente em dois diálogos da juventude de Platão, isto é, trata-se de duas prováveis variações do tradicional élenchos de prioridade de definição de Sócrates. Destarte, nossa proposta se concentrará em dois diálogos, a saber, o Laques3 e o Cármides4. A partir desses dois textos pretendemos sugerir que, na postura interpretativa de ler Platão à luz de um âmbito exclusivamente políticoeducacional, poderíamos notar, em meio à dinâmica investigativa conduzida por De maneira mais comum, a “maiêutica” é conhecida por meio das páginas do Teeteto platônico (148e12151d10). Porém, cumpre precisar que Aristófanes, nas Nuvens, quase meio século antes, já parece fazer menção a Sócrates como uma espécie de partejador de ideias. Na ocasião, o efeito cômico é impactante. Fala-se de uma espécie de aborto mental: “Quem bateu à porta? O filho de Fidão, Estrepsíades! Por Zeus, só pode ser um ignorante, tu que deste um pontapé na porta, assim tão estupidamente e fizeste abortar um pensamento já encontrado. Desculpa-me, mas fala-me desse negócio que está abortado...” (v.130). 3 Ao longo deste estudo, a edição principal de onde extraímos todas as passagens citadas do diálogo Laques em língua portuguesa é a de: Laques, Edições 70, Clássicos gregos e latinos, Lisboa, 2007; também usamos como referência a tradução italiana: Lachete, Bompiani, Il pensiero occidentale, Milano, 2000; Presentazione, traduzione e note di Maria Tereza Liminta; e a edição em língua inglesa de: Laches, Harvard University Press, London, 1924; with an english translation by W.R.M. Lamb; A edição utilizada para as passagens em Grego é: ΛΑXHΣ, collection des universités de France, Platon, Oeuvres Complètes, Tome II, texte établi et traduit par Alfred CROISET, Paris, 1965. 4 Ao longo deste estudo, a edição principal de onde extraímos todas as passagens citadas do diálogo Cármides em língua portuguesa é a de: Cármides, Ed.UFPa, 1937, tradução de Carlos Alberto Nunes; também usamos como referência a tradução italiana: Carmide, Bompiani, Il pensiero occidentale, Milano, 2000; Presentazione, traduzione e note di Maria Tereza Liminta; e a edição em língua inglesa de: Charmides, Harvard University Press, London, 1924; with an english translation by W.R.M. Lamb; A edição utilizada para as passagens em Grego é: XΑPMIΔHΣ, collection des universités de France, Platon, Oeuvres Complètes, Tome II, texte établi et traduit par Alfred CROISET, Paris, 1965. 2 100 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática Sócrates, a possibilidade da existência do que chamamos de duas variações do tradicional élenchos refutativo socrático, são elas: a denunciativa (no Laques) e a pedagógica (no Cármides). O élenchos refutativo (ER), ou o élenchos de prioridade de definição (PD), poderia ser lido no caso do Laques como élenchos denunciativo5. Já no caso do Cármides, como élenchos pedagógico6. Nossa proposta é fracionar o élenchos de prioridade de definição (PD) para que ele possa ser entendido em alguns casos exclusivamente como (i) um instrumento pedagógico – se transformaria do ponto de vista da nomenclatura em; élenchos (P) e, em outros, como (ii) instrumento denunciativo em - élenchos (D). O élenchos (PD), em nossa visão, visaria contemplar e ter sucesso, essencialmente, em questões de caráter relativo ao âmbito ontoepistemológico. Por outro lado, seja o élenchos (P) como o élenchos (D) seriam estruturas ad hoc que agiriam a fim de prosperar essencialmente no âmbito moral. 2. OS DOIS DIÁLOGOS Platão nos mostra Sócrates, que, em sua performance argumentativa, para ter êxito e denunciar algum expoente da sociedade civil ateniense (no caso do Laques, os generais Laques e Nícias), tende a substituir gradativamente as definições que vão surgindo, criando o que chamamos de deslocamentos lexicais: no Laques, os principais conceitos tratados são andreía (coragem) e kartería (resistência); a coragem, no caso, é Por meio da nossa concepção, o élenchos denunciativo faz com que o exame socrático repercuta também de maneira educativa em todos os jovens que presenciam a discussão, pois esses seriam os reais e principais alvos da estratégia pedagógica platônica, não o interlocutor. 6 No Cármide,s há um importante número de jovens ouvintes que assistem à performance de Sócrates. Essa construção dramática (que se repete no Laques) evidencia ainda mais o valor efetivo do que chamamos de élenchos pedagógico. 5 101 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática (i) não ceder ao inimigo; (ii) uma força da alma; (iii) combater em velocidade; (iv) ciência; (v) conhecer os perigos e a serenidade, etc. No Cármides, a moderação (sōphrosýnē) é (i) agir de modo prudente, ordenado e calmo; (ii) uma espécie de pudor; (iii) ocupar-se das próprias coisas, (iv) conhecer a si mesmo; (v) é boa e útil; como também minúcias como as presentes em meio à terceira definição de Crítias (163b4) a respeito de três sinônimos do verbo “fazer” – poieĩn, práttein, ergáxesthai. Essa estrutura do dialogar socrático, porém, parece ser negativa, tradicionalmente aporética, além e não trazer de maneira intrínseca nenhuma profundidade filosófica. Na realidade, ao valorizarmos a inspeção socrática em suas variações (P) e (D) como um instrumento político, a prática passa a ser positiva, uma vez que poderá constituir a semeadura de uma eficaz denúncia política em vestes de uma pública crítica social. 2.1 O Laques Iniciaremos essa seção com algumas passagens do Laques7. Nesse diálogo, os dois principais personagens atenienses, os já anciãos Laques8 e Nícias, encontram-se em um ginásio e envolvem Sócrates (ainda relativamente jovem, com cerca quarenta e cinco anos) na discussão. Lisímaco e Melésias, pais de dois adolescentes, levam seus filhos ao recinto para que, com o general e com o político, possam se aconselhar a Em 424 a.C, os atenienses sofreram uma grave derrota na Batalha de Délion, no território de Tenagra, na região da Beócia, onde caíram mil soldados junto ao estratego Hipócrates (cf. Manuale di Storia Greca, Il Mulino, Milano, 2005, p.131.). 8 Laques foi um importante general que combateu na Guerra do Peloponeso, morto na Batalha de Mantineia, em 418a.C. (cf.Tucídides, La Guerra del Peloponneso, VIII, III). “[…] La prima spedizione in Sicilia, fu condotta nel 427 degli strateghi Lachete e Careade approfittando Del conflito tra Siracusa e Le città calcidesi di Reggio e Leontini, conflitto che Atene aveva interesse ad alimentare per evitare che i Siracusani potessero inviare a Sparta i soccorsi richiesti fin dal 431. (cf. Manuale di Storia Greca, Il Mulino, Milano, 2005, p.130.). 7 102 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática respeito da educação ideal para seus descendentes9. Laques e Melésias mostram-se sempre bem dispostos com relação à intervenção de Sócrates e “colaboram para o bom desenvolvimento dialógico”10. No ginásio, palco da discussão, Platão nos mostra o exame refutativo socrático evoluindo para uma “denúncia” contra os pretensos sábios em estratégias bélicas. É nessa altura que, segundo nossa proposta interpretativa, o élenchos de prioridade de definições (PD) age também como élenchos (D), a variação que denuncia o falso detentor de um saber perante o público de ouvintes composto pelos filhos de Melésias e Lisímaco e outros tantos jovens presentes no ginásio: Sócrates: Eu procurava saber de ti quais são os corajosos, não apenas entre os hoplitas, mas também na cavalaria e em todas as outras formas de guerra, e não apenas os corajosos na guerra, mas também os que são corajosos nos perigos do mar e aqueles que são corajosos nas doenças, ou na pobreza ou na política. E mais ainda: não apenas os que são corajosos nas aflições e temores, mas também os que são intrépidos no combate aos desejos e prazeres, ora enfrentando-os, ora evitando-os. Também nisto, ó Laques, há quem seja corajoso. [191c8-e1] Resulta-nos de extrema importância chamar atenção para um detalhe que amplia ainda mais a “força ressonante” do exame socrático para os ouvintes, isto é, o fato de que os exemplos apresentados por Platão fazem parte do mundo do interlocutor (General = Coragem)11. Sustentamos que se trata de um detalhe relevante, pois agrava a denúncia pública promovida pelo élenchos (D). A essa altura, para uma compreensão Os filhos de Lisímaco e de Melésias não são nominados por Platão no diálogo. No entanto, sabe-se que os personagens do diálogo são personagens históricos: Lisímaco e Melésias desempenham a função de genitores; no entanto, desempenham também uma função pontual de filhos, já que lamentam a todo o momento aos pretensos sábios (Laques e Nícias) que seus respectivos pais, ilustres políticos, Aristides e Tucídides, a seu tempo, não teriam se dedicado de modo adequado na sua educação. 10 Cf. Dorion, 1997, p.38. 11 Este é um expediente que não é exclusivo do Laques, pois os temas tratados nos diálogos envolvem quase sempre o que poderíamos chamar de especialistas no assunto. Os personagens são colocados frente à frente ad hoc; um exemplo preciso desta situação surge no Eutífron, no qual Sócrates inspeciona o sacerdote Eutífron sobre a piedade, ou, para citarmos mais um, no Hípias Menor, no qual Sócrates discute a respeito do valor de Aquiles e Odisseu com um especialista nos poemas homéricos, isto é, com o sofista Hípias de Élis. 9 103 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática adequada do que chamamos de élenchos denunciativo, cabe apresentar essa variação da inspeção socrática como pontual, porque não só põe em discussão as teses do interlocutor, mas também sua postura de vida. Sendo assim, o Sócrates desse diálogo faz com que não somente os erros dos interlocutores ativos (o general Laques) sejam extirpados, mas também aqueles passivos (o Público) sejam educados e advertidos. Assim, o impacto filosófico é individual e coletivo. Por meio desta concepção, o élenchos denunciativo, ao promover a denúncia, faz com que o exame socrático repercuta também de maneira educativa, sobretudo em todos os jovens presentes no recinto que presenciam a discussão, pois, segundo nossa proposta interpretativa, estes são os reais e principais alvos da estratégia pedagógica platônica, isto é, os jovens - não o interlocutor. Platão aplica a inspeção socrática visando realizar um trabalho de “propaganda” – quer, portanto, arquitetar e por em prática uma verdadeira “limpeza ética” contra os velhos medalhões que até aquele momento influenciaram os movimentos políticos em Atenas. Compreender o élenchos que denuncia é um modo mais abrangente entender o próprio élenchos de prioridade de definições, pois expõe o alvo intermediário (Laques) à vergonha, fazendo assim com que o principal alvo (o público de jovens) coloque em discussão se determinado profissional é realmente competente para desempenhar uma função social de destaque. O tradicional élenchos de prioridade de definições (PD), quando aplicado em público, deve ser entendido na sua variação denunciativa (D). Dessa forma, a inspeção socrática torna-se um instrumento eficaz e comprobatório de que não há coerência entre o que expoentes importantes da sociedade civil “dizem” e “fazem”. 104 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática Sustentamos que, no caso do Laques, estamos diante de um escrito cujas intenções são políticas. Platão, aí, faz Sócrates agir na intenção de fomentar uma mensagem pedagógica nos jovens que compunham o público ouvinte. O élenchos denunciativo, de maneira inevitável, projeta a vergonha no interlocutor, uma vez que era o general, aquele que, na trama, representava o “ponto de referência epistemológico”, que se encontrar-se, após a denúncia, derrotado. Aquele que há pouco pensava saber como definir a coragem descobre, diante da juventude, seu fracasso epistêmico e sua inconsistência profissional. Há de se ressaltar, além do mais, que o impacto pedagógico do élenchos denunciativo efetiva-se por completo no momento em que o próprio general reconhece seu fracasso e define Sócrates como o educador ideal quando diz a Nícias: Laques: Seja como for, aqui ao Lisímaco e ao Melésias eu vou dar um conselho: no que diz respeito à educação dos jovens, mandem-nos passear, a ti e a mim e, como dizia no começo, não deixem aqui o Sócrates ir-se embora. Se eu tivesse filhos nessa idade, era exatamente isso o que eu faria. [200c] No Laques, não se define ontoepistemologicamente a coragem. Chega-se apenas a definições parciais. No entanto, sustentamos nesta altura que a inspeção à luz de uma denuncia pública do interlocutor estimula certa positividade em um diálogo tradicionalmente considerado pura e simplesmente aporético: Sócrates: Ó Lisímaco, mas seria terrível uma coisa dessas – não aceder em colaborar para tornar alguém melhor. Se, de fato, nas conversas anteriores eu me tivesse mostrado sabedor e estes dois não sabedores, seria justo chamar-me a mim de preferência para este trabalho. Mas, neste momento, estamos todos caídos em aporia. [200e] Na realidade, do ponto de vista da construção da performance de Sócrates e da aplicação da sua inspeção por parte de Platão, definimos o diálogo como “aporético 105 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática construtivo”. Entendê-lo desse modo seria possível se pensarmos que Platão, através de todos seus escritos, ambiciona essencialmente construir uma dimensão paidêutica. 2.2 O Cármides Cremos que no incipit do Cármides seja possível encontrar as linhas mestras da relação entre filosofia e educação nos primeiros diálogos de Platão. Com isso, sugerimos a segunda variação do tradicional élenchos de prioridade de definição (PD) em élenchos pedagógico (P). O interesse do Sócrates de Platão pela educação dos jovens é expresso quando ele, ao retornar na Batalha de Potideia (432 a.C), pergunta a Crítias como vão os jovens e as coisas da filosofia: “Sócrates: [...] passei por minha vez a informar-me de como iam às coisas entre nós, a filosofia e os jovens, e se entre estes algum se distinguia pela sabedoria, ou pela beleza, ou por ambas as qualidades [153d]”. Como resposta a essa pergunta, é apresentado a ele Cármides, filho de Glauco e sobrinho de Platão, como exemplo de um jovem belo e bem quisto por todos. Cármides é um jovem bem disposto para a filosofia, bom e moderado, alvo ideal para: (i) absorver os ensinamentos de Sócrates e, o que mais nos interessa, (ii) ser instrumento vivo de amplificação da inspeção socrática para outros jovens presentes também no ginásio. Ou seja, a partir de Cármides o élenchos pedagógico assume um caráter assimétrico, isto é, o ensinamento de Sócrates, atinge Cármides e, a partir deste, repercute para os outros jovens ali presentes. No Cármides, há um importante número de jovens ouvintes que assistem à performance de Sócrates, como Platão nos mostra: Sócrates: [...] cumprimentei Crítias e os outros – Crítias, que tinha, então, o olhar fixo na porta, vendo entrar vários rapazes em altercação acalorada, seguido de uma grande turba de acompanhantes. [153c12154a1] 106 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática Essa construção dramática evidencia ainda mais o valor efetivo do que denominamos élenchos pedagógico (P). Sócrates, como um professor exemplar12, através da inspeção a Cármides, logo mostra ao público sua preocupação com a ideal formação ética daqueles jovens, pois não está interessado na beleza dos corpos ou na dos bens exteriores, pois é mais conveniente preferir a beleza da alma e as riquezas interiores13. O próprio tema do diálogo, a sōphrosýne (temperança), alude, etimologicamente, à educação e ao cuidado da alma, uma vez que esta palavra-conceito está ligada tradicional e filosoficamente à personalidade histórica de Sócrates. Além de constituir o tema principal no Cármides, defendemos que a sōphrosýne possa ser considerada um conceito central em Platão, uma espécie de concreto de todas as outras virtudes14. É, portanto, o ponto de chegada para o homem ideal platônico, a grande conquista ética do homem. De fato, notamos que, em um período de maior solidez filosófica (refiro-me ao Platão dos diálogos da maturidade e da velhice), Platão reconhecerá a sōphrosýne como a virtude fundamental do homem político15. Traduzimos sōphrosýne aqui como “saúde da alma”. Todavia, independente da escolha com relação a sua tradução, esse conceito é Interessante notar que o diálogo em questão é narrado em primeira pessoa, estruturalmente diferente da estrutura até então apresentada em outros diálogos daquele período. Julgo não secundário este fato, uma vez que habitualmente, de um modo geral, a própria prática pedagógica é efetivamente aplicada desta maneira. 13 Veja-se que também aqui Platão é coerente com a imagem que nos mostra de Sócrates na sua Apologia. Sócrates, ao enfatizar sua preocupação com o educar em vista da riqueza interior, alude à estrutura tricotômica que preenche os valores da filosofia socrático-platônica por todos os Primeiros diálogos, isto é “reflexão/verdade/alma”. Platão, também no Cármides, fará seu Sócrates implicitamente dizer que é preciso cuidar dos objetos certos: reflexão, verdade e alma, em detrimento dos valores referentes ao “dinheiro, à fama e a honra”. Não é novidade exclusiva do Cármides que o que Sócrates entende por “saber” é fundamentalmente um saber “moral” - ou seja, vinculado necessariamente a uma conduta. Talvez a novidade deste diálogo seja o fato de que provavelmente se estabelece a ideia muito famosa, que gerará muita literatura, de que a filosofia socrática é um “cuidar da alma”. Sobre esse tema, somente para citar um dos tantos textos que tratam essa temática, remeto a Foucault: Discorso e verità nella Grecia antica, Donzelli-Virgolette, 2005, p. 59-110. 14 Minha provocação surge sobretudo pelo fato de que nas Leis, o grande e último diálogo de Platão, o filósofo dá muita importância a este tema, pois é a virtude que ,juntamente com a coragem, o livro I consagra essencialmente sua atenção. 15 Neste caso refiro-me a República, IV, 431e10-432a9. 12 107 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática para Platão parte fundamental do seu projeto pedagógico, fato que amplia ainda mais a importância do diálogo que nos propomos a estudar. Não é certamente um acaso que Platão nos apresente um Sócrates que se preocupa com a educação dos jovens e trate, nesse diálogo, da “saúde da alma” com duas figuras muito relevantes da aristocracia ateniense, como também com dois futuros expoentes máximos do regime oligárquico dos Trinta Tiranos16. Nossa análise aponta também para os elementos estilísticos do diálogo que corroboram ainda mais para entendermos o élenchos pedagógico. Percebe-se um típico texto narrativo, uma espécie de “fábula educativa” estruturada a partir de uma situação inicial, exórdio dialógico, tensão e conclusão, uma adequação perfeita entre o narrador (Platão, o reformador que aplica a inspeção de seu mestre), o protagonista (Sócrates, o pedagogo), o deuteragonista (o jovem Cármides) e o público de jovens que assiste à performance. Nesse diálogo, a variação pedagógica do tradicional élenchos de prioridade de definição (ou, como diz Vlastos,– 2003, p.16 –do élenchos standard) mostra-se fundamental para nossas intenções, pois visa atingir a consciência do jovem Cármides, que se transforma ainda em um instrumento de propagação da abrangência da inspeção socrática que deve se estender para o público, seus coetâneos. Se considerarmos que o Sócrates platônico é uma figura que se equilibra entre contemplação e atividade social, em outras palavras, entre uma postura ascética e racional e outra viva e pulsante de paixões, teremos personificadas nele todas as características fundamentais de um bom educador. Não entendo, nesse breve artigo, lançar luz e contemplar alguns fundamentais aspectos históricos a respeito da relação de parentesco de Cármides e Crítias com Platão e seu papel no regime oligárquico dos Trinta. 16 108 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática Não obstante o diálogo socrático sob a forma do élenchos pedagógico ter como principal escopo buscar, como finalidade, estimular a moderação e agir para verificar se a alma individual do jovem Cármides pode ser ou não de um filósofo, ulteriormente também apresenta uma das principais vias do élenchos socrático, a saber, testar as almas coletivas e incitá-las ao crescimento interior. Sustentamos que a presença do público de jovens que assiste à discussão no ginásio represente um elemento que deve ser entendido como a dimensão máxima do alcance público das apresentações pedagógicas do Sócrates platônico dos primeiros diálogos. Provavelmente, o conteúdo das apresentações de Sócrates nem mesmo representasse algo novo, uma vez que os ouvintes poderiam ter, mesmo de maneira préconceitual, já algum conhecimento de algumas posições sobre a mensagem moral apresentada por Sócrates e muitas vezes procuravam deliberadamente ouvi-lo. Com o intuito de deixar ainda mais clara nossa hipótese de trabalho, cabe-nos outra digressão. Em uma célebre passagem do Teeteto, é possível localizar algumas pistas do que chamamos de élenchos pedagógico. Além de indicar a importância da aplicação do exame no público, essa passagem mostra como a ação do élenchos é assimétrica, pois age não somente no interlocutor principal, mas também deve ressoar naqueles que a escutam: Sócrates: [...] a divindade me incita a partejar os outros... Porém, os que tratam comigo, suposto que alguns, no começo pareçam de todo ignorantes, com a continuação de nossa convivência, os quantos a divindade favorece progridem admiravelmente, tanto no seu próprio julgamento como no de estranhos. Neste ponto, os que convivem comigo se parecem com as parturientes: sofrem dores lancinantes e andam dia e noite desorientados, num trabalho muito mais penoso do que o delas. Essas dores é que minha arte sabe despertar ou acalmar. É o que se dá com todos. [150c15-151b2] 109 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática A variação do tradicional élenchos de prioridade de definição ao que chamamos de élenchos pedagógico deixa claro que o alcance da dimensão dialógica do ensinamento socrático, descrita por Platão na modalidade maiêutica, permite que o conhecimento se manifeste de maneira circular em cada um dos indivíduos presentes. Concluímos que, em diálogos como o Cármides e o Laques, a circular dimensão pública relacional é um pressuposto necessário para o projeto educativo, e para tanto a inspeção de socrática é por excelência o instrumento de propagação do reto conhecimento. Sustentamos, além disso, que o público, em diálogos como o que nos dispomos a estudar, mesmo se amiúde tácito, represente também parte integrante da dinâmica filosófica dos diálogos. Acreditamos que Platão, em diálogos como o Cármides, quando mostra as performances públicas do dialogar (dialégesthai) de Sócrates, fixa as primeiras bases de sustentação da dialética (dialéktikḗ) que seria exposta posteriormente nos períodos de maior desenvolvimento da autonomia do seu pensamento, isto é, a gênese da dialética platônica reside única e exclusivamente naquele “jeito” de filosofar chamado de diálogo socrático. 3. OS DOIS DIÁLOGOS E A INSPEÇÃO DE SÓCRATES Desde o Eutífron, passando pelo Laques e pelo Cármides, e assim seguindo através de muitos dos primeiros escritos de Platão, a inspeção socrática é a máxima representação de um inovador exercício filosófico. Portanto, deve-se buscar entender a estrutura fundamental dos primeiros diálogos, acima de tudo à luz de um sentido político. Platão, nestes escritos, mostra ao leitor que o dialégesthai (diálogo) socrático em um primeiro momento é apresentado tradicionalmente como uma inspeção estruturada 110 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática como um “teste de definições” ou “prioridade de definição (PD)”, representado pelo élenchos refutativo, o procedimento dialógico puramente purgativo que opera por meio de perguntas e respostas curtas (brachylogía) acerca de uma questão filosófica (o que se entende por coragem – o que se entende por temperança, justiça, etc.), nos primeiros diálogos, as questões são única e exclusivamente morais ou políticas. Pensando em nossas variações, a denunciativa e a pedagógica, tal élenchos movido pela pergunta visa somente estimular a formulação de hipóteses por parte do interlocutor, hipóteses que serão progressivamente refutadas por Sócrates. O élenchos refutativo age de maneira geral como um exame do outro com a intenção de produzir nele uma mudança. Assim, é uma exortação voltada para algo pelo qual se milita – no caso do Laques fala-se de coragem a um general. Logo, a filosofia socrática se propõe a promover uma espécie de “reforma do indivíduo”. Mas o alvo platônico seria realmente o individuo, isto é, o principal interlocutor de Sócrates? O efeito da inspeção socrática seria único e exclusivamente “simétrico”? Na nossa pontual análise, na realidade o interlocutor é um meio para se obter um fim, ou seja, o principal alvo da inspeção socrática desenhada por Platão, seja no Laques, seja no Cármides, não é somente o interlocutor, mas o público que assiste nos ginásios as performances de seu mestre. Portanto, Platão, na cena dramática que desenha, quer persuadir não o individuo, mas o coletivo. Baseados nisso, teríamos no Laques o élenchos denunciativo, a inspeção que, ao ser aplicada no famoso e influente general, denuncia ao público suas inconsistências; esta seria a primeira variação efetiva dessa tradicional prática investigativa, o desempenho socrático evidencia para o público enfaticamente as concepções inconsistentes dos valores e pontos de vista políticos dos personagens que estão a 111 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática dialogar com Sócrates, neste caso os importantes generais Laques e Nícias. Em consequência disso, Platão instrumentaliza a inspeção de Sócrates para que performaticamente ele (i) refute, (ii) exponha, (iii) envergonhe e (iv) denuncie o interlocutor, criando assim um efeito pedagógico no público de jovens que assiste às discussões. A ressonância do élenchos (D) e do élenchos (P) na prática pública produz um efeito emocional não somente em seu principal interlocutor, mas também nos que a assistem. O interlocutor, envergonhado pela denúncia, cria um efeito pedagógico, fazendo com que o público reflita e volte-se sobre si mesmo. Esse impacto psicológico é um dos elementos vitais de todo o socratismo, com o qual concordavam não somente Platão, mas também Xenofonte, Antístenes e outros socráticos como, por exemplo, Euclides de Mégara e Aristipo de Cirene17. Platão parece querer mostrar, em alguns diálogos que possuem uma silente platéia (casos específicos, mas não exclusivos do Laques e do Cármides), que aquilo que chamamos de élenchos denunciativo, quando aplicado às posições de um determinado interlocutor, faz com que este se defenda e, nesse processo de contraargumentação, ao tentar se proteger da inspeção socrática, sua imagem social é exposta e é corrompida diante do público. Sustento, portanto, a “ação ressonante da denúncia” do élenchos (PD) que varia em élenchos (D). Deste modo, o diálogo socrático se torna na pedra fundamental do edifício político de Platão. De fato, nos diálogos escolhidos para justificar este artigo, o público, apesar de mudo na ação dialógica, representa o diferencial da nossa proposta de estudo: é diante do ouvinte, muito mais do que no embate direto com seu pretenso sábio interlocutor, 17 Sobre esse argumento, remeto a: MAIER,H. Socrate. La nuova Italia, Firenze, 1944. 112 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática que Platão pinta com tintas fortes o êxito do seu Sócrates e de suas intenções políticas e, consequentemente, da sua pretensão educacional. Platão quer mostrar aos jovens, através do élenchos denunciativo, que o interlocutor não reconhece a inadequação de sua posição e, com isso, propõe aos interessados que, na realidade, estão diante de um personagem indigno de tal posição social. Sendo assim, Platão, em seu projeto, quer mostrar que, para Sócrates, filosofar é cumprir uma obra moral não só em si mesmo, mas, sobretudo nos outros, preferencialmente nos jovens atenienses18. Portanto, a ação filosófica socrática, que emerge dos primeiros diálogos, é uma apresentação performática da sua retórica ética com o fim de persuadir o público. Esse mecanismo se instaura especialmente na dinâmica dramática dos nossos dois diálogos, pois neles os interlocutores possuem uma função social de relevo19. No caso do Laques, o já velho Laques é um famoso general e Nícias um importante político. Já no caso do Cármides, além de outro importante politico, o tio de Platão, Crítias20, temos novamente Nícias21. Tanto o Laques como o Cármides são emoldurados por importantes momentos históricos: graças a uma alusão feita no próprio diálogo [181a11-b1], presume-se que a cena dramática do primeiro transcorra no período da O ponto mais alto do projeto político platônico é representado pela República e pelas Leis. Sobre as Leis remeto a satisfatória edição: As Leis de Platão. Luc Brisson e Jean-François Pradeau. Loyola. São Paulo. 2012. 19 Consideramos que o aspecto moral radicado no contexto biográfico dos interlocutores, sobretudo no ambiente dos primeiros diálogos. 20 Líder dos Trinta Tiranos. 21 Este personagem, provavelmente também escolhido a dedo por Platão, contribuiu de modo determinante na composição do tratado que pôs fim à Guerra Arquidâmica, a primeira fase da Guerra do Peloponeso. É convencionalmente chamada Paz de Nícias. [cf. Tucídides, La guerra del Peloponneso,VI,VII] 18 113 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática Batalha de Délion22; no segundo, a cena ocorre em um momento posterior à Batalha de Potideia, na qual Sócrates teria participado e se destacado23. É importante recordarmos um detalhe que julgamos essencial para o êxito do desenvolvimento do nosso estudo: nesses diálogos temos algo relativamente novo no que tange às cenas dramáticas dos primeiros diálogos, isto é, um público de jovens ouvintes aparentemente não formado somente por amigos e discípulos de Sócrates. Tal público representa a base necessária do crescimento temático-narrativo desses dois diálogos. Platão mostra que a sua aplicação do “jeito”24 socrático serve, portanto, para que sejam evidenciados dois pontos que se complementam: a denúncia e o ensino. A performance socrática estabelece a seguinte dinâmica: abertura do problema, a refutação, a reabertura da interrogação, a aporia e, como conseqüência, a denúncia, que é o desmascaramento em público do falso saber da principal figura que dialoga com Sócrates. Com isso, cria-se a mensagem pedagógica. Esses passos constituiriam o que chamamos a partir de agora as vias do élenchos que Platão nos apresenta. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na qual Sócrates salvou Xenofonte, segundo a informação laerciana: “Sócrates dedicava-se a exercícios físicos e se mantinha em boa forma. Participou da expedição militar a Anfípolis e, quando Xenofonte caiu de seu cavalo na batalha de Délion, ele se deteve e salvou-lhe a vida.” [Vite e dottrine dei più celebri filosofi, V, 22] 23 Salvando a vida de Alcibíades, segundo a informação do próprio Platão: “Na batalha em que os comandantes me concederam a láurea da coragem, a este homem e a mais ninguém devi minha salvação. Ferido como me achava, não quis abandonar-me e me levou, com minhas armas, para lugar seguro. Do meu lado, Sócrates, insisti com os generais para que te conferissem o prêmio” [Banquete, 220d8-e3]. 24 Propomos um “jeito” de ser do personagem Socrátes de Platão que apresenta pelos primeiros diálogos um critério humano de verdade: escolho aqui uma passagem de outro diálogo socrático, o Críton, 46a: “Caro Críton, muito válido seu esforço (...) Porque eu mesmo, não apenas agora – mas sempre – tenho sido deste jeito: de não obedecer a nada mais em mim senão ao discurso (lógos) que, pelo meu raciocínio, se mostra para mim o melhor”. 22 114 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática O principal escopo desse trabalho foi introduzir a possibilidade de discussão a respeito de duas variações ligadas ao tradicional élenchos (PD) - prioridade de definição - naquilo que chamamos de élenchos (P) – denunciativo - e de élenchos (P) – pedagógico -, respectivamente no Laques e no Cármides. Com isso, desejamos evidenciar o efeito assimétrico e circular da inspeção socrática, que não se preocuparia mais somente em examinar o interlocutor como figura individual, mas lançar uma força de persuasão que, partindo do interlocutor, circule e atinja o coletivo, isto é, o público de jovens que assistem a discussão. Tanto o Laques quanto o Cármides são tradicionalmente definidos como diálogos refutativos, ou aporéticos, sendo aparentemente negativos no sentido de serem incapazes de resolver os problemas propostos (o que se entende por “coragem”, o que se entende por “moderação”). Porém, destacamos que provavelmente neles haja certa positividade, na medida em que interpretamos a estratégia dialógica da prática argumentativa socrática à luz de uma estratégia retórica pedagógica e denunciativa que, embora termine somente na refutação dos principais interlocutores, de maneira abrangente faz o élenchos ressoar e tem o jovem público ouvinte como o principal alvo. Em síntese e em conclusão, apresentaremos a seguir o seguinte esquema interpretativo que, acreditamos, poder-se-ia imputar, “em certa medida” 25, ao Laques e ao Cármides: Construtivos, ou “positivamente aporéticos”, uma vez que são pedagógicos, porque Sócrates denuncia publicamente em um lugar no qual deve haver um efetivo fomento à coragem (um ginásio), que o famoso general sobre ela nada Não pretendemos, de maneira alguma, desafiar a secular tradição que classifica esses dois diálogos como aporéticos por não dar conta de definir os conceitos ontologicamente. Proponho um ponto de vista, uma sugestão interpretativa que visa lançar luz a uma questão exclusivamente referente ao Platão político. 25 115 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática realmente sabe. Essa dinâmica conduz, sim, o interlocutor à aporia, em seu aspecto mais negativo de “não caminho” ou saída, mas, por outro lado, revela à plateia que esse mesmo interlocutor ignora o que é “a coragem”, conduzindo-a à consciência da ignorância e à busca do conhecimento do objeto em questão; Protrépticos, porque são obras de exortação e de convite à prática do exercício da verdade. Buscam promover a mensagem da importância da coerência entre o que se diz (lógos) e o que se pratica na vida (biós)26. Trazem como questão nuclear um debate primordialmente ético que zela pelo esclarecimento público de questões relacionadas à vida civil ateniense. O interesse pelo Platão político e o tema da educação não pode ser isolado da fundamental figura de Sócrates e da sua pedagógica. Portanto, a partir do estudo desses dois diálogos da juventude de Platão, obtemos o mote inicial para tentarmos estruturar os contornos de uma filosofia que se apoia na inspeção de Sócrates que assume o papel da gênese do projeto político-educacional e intelectual de Platão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS Fontes primárias: DIOGENE LAERZIO. Vite e dottrine dei più celebri filosofi. A cura di G. Reale. Bompiani, Milano, 2008 PLATÃO. A República. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. Martins Fontes, São Paulo, 2006. PLATONE. Tutti gli scritti. A cura di Giovanni Reale, Rusconi, Milano, 1991. Associamos nossa colocação ao conceito de parrhésia, pois constitui uma espécie de atividade verbal cujo agente estabelece uma especifica relação entre a verdade através da franqueza, certo tipo de relação consigo mesmo mediante a autocrítica ou crítica a outras pessoas, uma relação com a lei moral através da liberdade e do dever, o personagem que emerge daquelas linhas é capaz de usar o discurso racional de maneira ética, bela e prazerosa, mas, ao contrario dos sofistas, pode usar a parrhésia e falar com liberdade porque aquilo que diz se harmoniza com aquilo que pensa, e aquilo que pensa se adéqua exatamente àquilo que faz. 26 116 ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 6 nº11, 2012 ISSN 1982-5323 Quinalia, Rineu Um estudo sobre a aplicação platônica da prática investigativa socrática PLATÃO. Laques. Trad. Francisco Oliveira. Edições 70, Lisboa, 1989. PLATONIS OPERA. Ed. J. Burnet, Oxford 1900-1907, E.A. Duke, W.S.M. Nicoll, D.B. Robinson, J.C.G. 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