Ética no compartilhamento do espaço Cidadania e gentilezas urbanas Luciene Regina Paulino Tognetta Faculdade de Educação – Unicamp Algumas indagações iniciais... Existirá uma crise de valores? “No meu tempo...” Existirão valores em crise? Que valores estão presentes em nosso cotidiano? O que destacam as pesquisas... O que vemos no cotidiano... Primeira pesquisa: Cultura da Corrupção: Evidência em Multas de Estacionamento Fisman e Miguel (2006) Há uma relação entre a corrupção de um país e o comportamento de suas autoridades diante da impossibilidade de serem punidos? Ranking com 180 países ◦ Dinamarca, a Nova Zelândia, a Suécia e a Finlândia apresentam o melhor desempenho nesta categoria ◦ A China ocupa o 72º lugar, a Rússia, o 147º - a Somália e o Iraque estão nos últimos lugares ◦ Brasil: 80ª posição aparece atrás de países como Butão, Botsuana, Gana e Seicheles Investigaram o comportamento do corpo diplomático que trabalham na ONU - 146 países ◦ estes diplomatas possuem isenção das multas de trânsito - as multas de estacionamento proibido podem ser aplicadas, mas não são pagas De novembro de 1997 ao final de 2002 foram mais de 150 mil multas não pagas Conclusão: as violações de estacionamento apresentam uma forte correlação com o índice de corrupção dos países estudados Os diplomatas com maior média de violações de estacionamento no período analisado pertencem aos seguintes países: 1. Kuwait 2. Egito 3. Chade 4. Sudão 5. Bulgária 6. Moçambique 7. Albania 8. Angola 9. Senegal 10. Paquistão O Brasil ocupa o 29º lugar, com quase 30 violações por diplomata ◦ contra 246 multas por diplomata do Kuwait O que vemos no cotidiano... Por que agir bem? Pelo medo da punição ... • Pensamento de uma criança de 5 anos de idade: Ex. do dedo no bolo. • Pensamento de um jornalista de 30 anos... – Ex. do teto da igreja. • Pensamento de um professor de 35 anos de idade... Ex. fila para ir ao banheiro. • Pensamento do deputado de 40 anos... Ex. dinheiro na meia. Segunda pesquisa Pensando no coletivo. Agindo no individual. (Listening Post - Ogilvy Brasil, 2005) Amostra: 900 participantes (450 homens e 450 mulheres) ◦ 8 capitais ◦ todas as classes sociais ◦ adultos maiores que 18 anos (# faixas etárias) Alguns dados indicam a presença de um discurso ético com relação as ações do outro, mas há uma forte condescendência com as próprias ações O que pensam... ◦ 60% condenam pequenas infrações como quem compra Cd pirata, falar no celular no trânsito, bater o cartão de ponto para um colega Como agem... ◦ 66% admitem que não se incomodam em comprar produtos piratas e 72% das pessoas que dirigem e possuem celular afirmam que falam ao telefone enquanto dirigem O que pensam... ◦ 95% declaram-se mais interessados em participar da vida em comunidade Como agem... ◦ apenas 4 % de fato participam ou citam o trabalho social como sonho ou um dos projetos de vida Apesar de não acharem corretos, os participantes sentiam-se constrangidos em “apontar o erro” do outro diante desses fatos e não consideraram essas “pequenas” transgressões como algo que afeta a todos:conivência com o desrespeito dos outros” O que vemos no cotidiano... É seu? O que é de todo mundo não é de ninguém... (ex. garoto que quebra brinquedo) Aumentar o recesso para assistir a copa... É normal e natural ... (líder do congresso) Terceira pesquisa O padrão de conduta ética dos servidores públicos (Caldas, 2008) Amostra: 1.027 servidores públicos e 1.767 profissionais da chamada sociedade civil (a partir de 16 anos e de várias profissões) • Alguns resultados referentes a sociedade civil • 59,4% se consideram éticos Opinião da sociedade sobre os servidores públicos: ◦ 42,4% consideram que os servidores atuam para agradar os políticos que os indicaram, para beneficiar a si mesmo ou aos amigos e família enquanto que 33,3% acreditam que eles estão preocupados com servir a sociedade No entanto... ◦ 41% responderam que caso façam um pedido à administração pública e não sejam atendidos recorrem as opções de oferecer um agrado (presente), dinheiro ou favores para conseguir que o pedido seja atendido Genericamente, o quadro captado pela pesquisa foi o da tolerância em relação a condutas desviantes, principalmente quando desvio em questão rende benefício ao interessado. (...) Havendo vantagem objetiva, vale tudo. (...) É um indicativo de que existe cultura favorável à corrupção. Parece que está havendo flexibilização dos padrões de conduta.” O que vemos no cotidiano... • Lei do desacato ao funcionário público... Só a ele. Fila para pedir informação Fila para marcar atendimento. Fila para ser chamado depois de 40minutos vendo os funcionários rindo e tomando café. Resultado: não é aqui. Procurar por outro setor... • Ser multado ao acabar a gasolina... Ruim Ver alguém sendo multado por estar sem gasolina e atrapalhando o trânsito ... Isso é justo. Quinta pesquisa Pesquisa IBOPE - 09/03/08 Valores x Comportamento Amostra: 1.400 entrevistas telefônicas: população de 16 anos ou mais com acesso a telefone em casa ou no trabalho • Coleta dos dados: de 9 a 13 de fevereiro de 2008 Os brasileiros se consideram bastante progressistas e sem preconceitos, ao mesmo tempo em que projetam para a população brasileira em geral uma atitude muito preconceituosa e conservadora: Respeito e valorização dos idosos: ◦ 92% se auto-classificam positivamente (notas 6 a 10) enquanto 60% classificam “os brasileiros” negativamente (notas 1 a 5) Responsabilidade e cuidado no consumo de bebidas alcoólicas: ◦ 82% positivos sobre si mesmos x 64% negativos sobre “os brasileiros” Respeito e naturalidade com homossexuais: ◦ 69% auto-imagem positiva x 54% imagem projetada para a população negativa O que vemos no cotidiano.... O outro é sempre o culpado... - “Quem mandou passar por ali”. (ex. do jornalista que fala de um caso de estupro) - “Bem-feito, avisei que ia pegar seu dedo”. (ex. do pai que assiste o filho prender o dedo na porta) - “ Quem mandou soltar a mão...” (ex. da mãe que bate no filho quando ele é quase atropelado) Sexta pesquisa Pesquisa de vitimização (2006) Inst. Futuro do Brasil Nível de confiança do indivíduo em relação às pessoas com as quais se relaciona: Pode se confiar nas pessoas? 11,2 % Deve se ficar com um “pé atrás”: 88,8 % Ajuda a vizinhos % Emprestaria uma xícara de açúcar? 98,5 Emprestaria R$ 20? 79,1 Se você tiver filhos, pediria tomar conta para você? Emprestaria seu televisor se fosse viajar? 45,1 40,7 O que vemos no cotidiano... “Todo mundo diz que vai pagar...” – (ex. 0,10 pela cópia com comprovante de pagamento). E se todo mundo resolve abusar? (Ex. da empresa de saúde: passar pessoalmente para liberar uma consulta... se todas são liberadas...) Pensando em educação... PESQUISA “Tem alguma coisa que as pessoas fazem que deixa você com raiva ou indignado? (Tognetta & Vinha, 2009) A amostra: ◦ 150 sujeitos de ambos os sexos de 12 a 15 anos ◦ 75 estudantes de colégios particulares e 75 estudantes de escolas públicas ◦ Região metropolitana de Campinas Porque a escolha da indignação? Todo valor é um investimento afetivo (Piaget ): algo que se tornou valioso para alguém que aspirou por, esforçou-se por ter determinado objeto O que torna um valor moral é o fato de se conservar um princípio que integre o bem estar de si mesmo e do outro A indignação refere-se essencialmente a um conteúdo moral: a justiça Resultados Três categorias encontradas: A – características de certo individualismo: B- Características de um caráter moral restrito e estereotipado C- características de um caráter moral e ético As categorias encontradas Respostas dos sujeitos por categoria % 40,67 45 35,33 40 Características de um caráter moral restrito e estereotipado (B) 35 Individualismo (A) 24 30 25 20 15 10 5 0 Características de um caráter moral e ético (C) Valores individualistas: 35,33% pois se indignam quando consideram que seus direitos foram violados. Exemplo: Quando eu falo alguma coisa e elas ficam tirando sarro ou pensam besteira. Estereótipos sociais e relações próximas: 40,66% • transmitidos socialmente - heteronomia que elege os valores predominantes na sua comunidade para seus (relações próximas) • Predomínio de regras convencionais. Exemplos: – Brincadeiras de mau gosto e falta de educação. – Corrupção deste país. – Xingar minha mãe ou meu pai. Valores morais e éticos: 24 % Predomínio de regras morais que são especificamente relacionadas às questões interpessoais, à resolução de conflitos, à restrição de condutas e à busca da harmonia pessoa e do bem-estar alheio Exemplos: A falta de dignidade, de respeito com o próximo. – Matar e roubar são os piores, por exemplo, pessoas gananciosas também, pessoas que só pensam em si mesmas. – A rejeição de uma pessoa ou discriminação racial. A preocupação: 76% : senso de justiça auto-referenciado e moral “estereotipada” ou restrita às pessoas próximas quando há a menção de contra-virtudes que deixam esses jovens indignados estas se restringem mais à esfera privada e não à dimensão pública que envolve o outro, inclusive aquele não pertencente a minha comunidade Em busca de explicações... Do ponto de vista cognitivo: Não há esforços por parte da escola em formar pessoas que tenham raciocínios formais ou que desenvolvam o equacionamento moral: ◦ Ex: por que não se pode comprar um CD pirata? – estaciona-se no prejuízo autoreferenciado. ◦ Ex: como se proíbe o fato de muitas pessoas quererem ir ao banheiro? Colocando grades (raciocínio concreto). Do ponto de vista afetivo: Por que se indignar? ◦ Há uma luta pelo reconhecimento alheio de seu próprio valor que é anterior à luta pela justiça. A fonte profunda do sentimento de indignação é o sentimento de não ser valorizado. Como um sujeito pode se sentir valorizado se não se sente pertencente? Ex.: como a escola resolve o problema de quem jogou borrachinha nas colegas? Então: Adolescentes que não resolvem seus conflitos com seus iguais – não vêem valor nos outros ... Adolescentes que não podem participar ativamente da elaboração de regras não passam a indignar-se por princípios morais... As regras na escola: Regras Morais ou convencionais? Ex. boné e piranha/boné rabo do peixe. Ex. Regimento de uma escola: “Ausência de identificação escolar” Penalidade: de repreensão a suspensão limitada de até 3 dias “Portar material que represente perigo à saúde, segurança, integridade física ou moral sua ou de outrem”. Penalidade: de advertência a repreensão e recolhimento do material público x privado A escola trata o que é público como privado... (ex. “não ligue” quando toda a classe ri de um apelido que um autor de bullying coloca num alvo – vítima) ... E como público o que deveria ser privado. (ex. exposição de um trabalho de um aluno: é isso que foi pedido para fazer?) Se... “ O bem é algo que de acordo com seu conceito, é exigido mutuamente e esta exigência à necessidade prática é sustentada pela sanção interior da indignação e da vergonha” (Tungendhat, 1998, p. 131) Nossa primeira tarefa é indignarse com a realidade para ser, de fato, ético. Essa é sem dúvida... Mais do que tarefa de educadores... Tarefa de seres humanos... “As crianças são candidatas a humanidade”.– Hanna Arendt.