A genealogia da esquizofrenia Aula 5 Na aula passada, vimos algumas características fundamentais da categoria clínica de “demência precoce”, em Emil Kraepelin. Como afirmei anteriormente, a constituição da categoria de demência precoce é o primeiro passo para a consolidação de uma estrutura nosográfica que organiza nossa compreensão do campo das psicoses até hoje. Kraepelin desenvolveu a categoria, cujo nome se deve à Morel que o cunha em 1851, para descrever pacientes que sofriam de estados sucessivos de decadência cerebral até chegar a uma fase terminal de dissolução psíquica, através de uma articulação entre a catatonia, a ebefrenia e a demência paranóide. Lembremos, a este respeito da definição kraepeleniana de demência precoce: A característica comum da série de estados que caracterizam a demência precoce é uma destruição peculiar das conexões internas da personalidade psíquica. Os efeitos deste dano na vida mental predominam nas esferas emocional e volitiva1. Kraepelin compreende que a demência precoce descreve um processo de degenerescência, de regressão até a destruição do que ele chama de “conexões internas da personalidade psíquica”. Aparecia assim uma doença de início precoce com um curso crônico e deteriorante. Ela tinha as formas hebefrênicas (por se manifestar na fase pubertária, pois Hébe é a deusa da juventude na mitologia grega), catatônica e paranoide (que se diferencia da paranoia pelo seu curso em direção à deterioração psíquica). A seu lado, o campo das psicoses era ainda dividido pela paranoia e pela loucura maníaco-depressiva, a sucedânea da melancolia. Como lembrei anteriormente, vemos claramente na demência precoce a noção de doença mental como degenerescência, como processo que faz o caminho inverso do desenvolvimento psíquico em direção à maturação. Esta regressão é descrita de forma fenomenologicamente rica através da indiferença ao mundo exterior, da ausência de afetividade, da desagregação da fala, da decadência da inteligência pulando ao acaso de uma ideia a outra, entre tantas outras características. Tal maturação está vinculada à formação da “personalidade psíquica”. É ela que aparece como o núcleo de valores que fornecem a orientação para a intervenção clínica e suas distinções estruturais entre normalidade e patologia. A forma com que Kraepelin fala da personalidade psíquica em sua definição da demência precoce já é bastante sugestiva: ela é responsável por uma unidade capaz de criar conexões internas coerentes entre processos afetivos, perceptivos e judicativos. Não é por outra razão que Kraepelin se serve do termo de “demência” neste contexto. Lembremos como já no início da era moderna, era comum a distinção entre dementia (como redução da razão) e amentia (como perda total 1 KRAEPELIN, Emil; A demência precoce, p. 19 da razão). Esta distinção visava lembrar como a loucura poderia consistir não em um perda total do espírito, mas em uma perda de controle, perda de governo sobre as funções mentais. Daí uma afirmação de Foucault como: a demência é, de todas as doenças do espírito, esta que permanece a mais próxima da essência da loucura. Mas da loucura em geral – da loucura experimentada em tudo o que ela pode ter de negativo: decomposição do pensamento, erro, ilusão, não-razão e não-verdade2. Esta perda de controle com tudo o que ela pode ter de negativo será compreendida por Kraepelin como sintoma da destruição da força de conexão da personalidade psíquica. Jung, ao descrever o debate em torno da demência precoce no começo do século XX, não deixará de notar que: As observações e sugestões oriundas de vários campos da demência precoce ressaltam, sobretudo, a ideia de uma perturbação bem central, designada por vários nomes: embotamento aperceptivo (Weygandt), dissociação, abaissement du niveau mental (Janet, Masselon), cisão da consciência (Gross), desintegração da personalidade (Neisser e outros). Depois é enfatizada a tendência à fixação (Neisser, Masselon)3. Estas descrições mostram como o problema da unidade fornecida pelo desenvolvimento da personalidade é central na definição da demência precoce. Tal problema, como veremos, permanecerá como horizonte fundamental da definição da esquizofrenia. O que nos leva a se perguntar de onde vem este conceito de “personalidade”. Esquizofrenia e estrutura Devemos ter tais discussões em mente quando é questão de nos perguntarmos sobre a genealogia das psicoses em geral e da esquizofrenia em particular. Pois tais discussões podem nos auxiliar a compreender o sistema de valores pressupostos como horizonte de regulação da distinção entre normalidade e patologia em nosso caso. Sabemos que o termo esquizofrenia aparece graça a Eugen Bleuler em 1908, que ainda será responsável por cunhar o termo de “autismo”. É em 1911, com a publicação de Demência precoce ou grupos de esquizofrenia que Bleuler consolida sua redescrição nosográfica. Psiquiatra-chefe no Hospital Burghölzli, em Zurique, onde ainda trabalhavam Jung, Karl Abraham, Binswanger e Minkowsky. Bleuler trouxe à psiquiatria contribuições fundamentais da psicanálise, em especial a noção de que os sintomas devem ser compreendidos como mecanismos de defesa. Normalmente, descrevemos a passagem da demência precoce à esquizofrenia da seguinte forma: A troca do nome dementia praecox pelo neologismo esquizofrenia marca uma mudança substancial no enfoque da doença. Implica a constatação 2 3 FOUCAULT, Michel; Histoire de la folie, p. 320 JUNG, Carl; Psicogênese das doenças mentais, p. 47 clínica de que a demência, entendida classicamente como deterioração e perda de funções mentais, não é um desfecho inevitável da doença nem um aspecto essencial do quadro sintomático. E implica também, por consequência, uma ampla reinterpretação da nosografia de Kraepelin: pois toda a sua riquíssima sintomatologia da dementia, voltada para caracterizar a marcha inarrestável para a completa deterioração terminal das funções psíquicas, agora passa a indicar um processo auto-protetivo de isolamento autístico, diante de uma realidade que se afigura desintegrada e incompreensível, como efeito da perda dos nexos lógicos do pensamento4. Esta definição é útil por mostrar como Bleuler diminui a importância do curso da doença, que estava claramente colocada no centro com a noção de “demência”. Havia vários casos, lembra Bleuler, que não regrediam em direção à demência e que não ocorriam de forma “precoce”, o que mostrava que não estávamos necessariamente diante de um processo de degenerescência, mas de desenvolvimento de “predisposições” que determinam um organismo dotado de estruturas herdadas capazes de definir possibilidades e limites para a relação com o meio. Ou seja, e este é um ponto decisivo, saímos de uma perspectiva ligada à compreensão da doença como deterioração e degenerescência para outra na qual a noção de predisposição pressupõe um pensamento estrutural no qual as distinções entre normal e patológico ganham maior distinção nocional. Desta forma, o vínculo entre doença mental e degenerescência era colocado em questão para que aparecesse uma concepção não mais evolutiva, mas simplesmente funcional de doença mental. Concepção esta que privilegia os transtornos funcionais. Nesta modificação, percebamos que desaparece paulatinamente a ideia de uma certa continuidade entre razão e loucura que o evolucionismo próprio à noção de demência precoce ainda conservava. Se estamos falando de degenerescência, então há de se aceitar uma certa continuidade de estados no interior de um processo ideal de progresso. No entanto, com Bleuler a gradação entre normal e patológico desaparece para termos uma distinção cada vez mais estrutural entre os dois. O conceito de clivagem Bleuler partia da mesma definição funcional de Kraepelin a respeito da “falta de unidade e ordem de todos os processos psíquicos”5, embora não necessariamente colocasse tal falta de unidade e ordem no interior de um processo temporal de, digamos, “maturação invertida”. Daí segue-se o uso do termo “esquizofrenia”: 4 5 PESSOTI, Isaias; Dementia, dementia praecox, esquizofrenia BLEULER, Manfred; Lehrbuch der Psychiatrie, p. 408 Porque nestes casos os distúrbios elementares parecem ligar-se a uma unidade defeituosa, a uma fragmentação e clivagem dos pensamentos, sentimentos e desejos e do sentimento subjetivo de personalidade6. Ou ainda: Com o nome de dementia praecox ou esquizofrenia definimos um grupo de psicoses cujo curso é, as vezes, crônico, as vezes marcado por ataques intermitentes e que pode parar ou retroagir em qualquer estado, mas que não permite nenhuma forma de Restitutio ad integrum. Ela é caracterizada por uma forma específica de alteração do pensamento, do sentimento e da relação ao mundo exterior”7. Como vemos, a ideia de clivagem (Spaultung) ocorrendo no campo dos pensamentos, dos sentimentos e do desejo é aqui fundamental, assim como a ideia de que estamos em um estrutura, por isto a restituição integral, ou seja, a passagem a outra estrutura é impossível. Tais alteração, compreendidas como clivagens, produzem dissociações que constituem “complexos” ideo-afetivos que se isolam do resto da personalidade. Compreende-se por complexo um conjunto de ideais inconsciente afetivamente carregadas capaz de interferir em processos psíquicos. Tais complexos podiam, ao menos para Bleuler podem chegar mesmo a constituir algo como uma outra personalidade ou a assumir a figura da personalidade. No que fica claro a centralidade da noção de conflito na definição da patologia. Em uma perspectiva claramente freudiana, encontramos a doença como a resposta inadequada a um conflito psíquico. Isto talvez nos explique porque a noção de complexo fará fortuna no interior da literatura psicanalítica, como nós conhecemos, por exemplo, no Complexo de Édipo. Ela é a peça chave de uma noção de doença como conflito. Notemos ainda como os eixos das funções psicológicas descritas por Bleuler serão centrais e fornecerão aquilo que ficou conhecido como os “quatro A’s”, ou seja, o quatro eixos principais de sintomas que, insistiria, continuarão como definição da patologia entre nós: Afrouxamento dos nexos associativos do pensamento. Daí a insistência de Bleuler em associar a esquizofrenia à construção da “imagem do mundo” a partir da “essência contraditória” do paciente, com seus desejos e pensamentos contraditórios e transitivos. Autismo, com seu comportamento indiferente ao mundo, sua tendência a ignorar a realidade, sua ausência de investimento emocional em relação a ela e, consequentemente, sua dificuldade de relação e comunicação Afetividade embotada, com falta de empatia ou afetividade ambivalente Avolição, com apatia, desarticulação da vontade Comparem tal descrição com o que temos atualmente em nosso DSM-V: “anormalidades em um ou mais dos seguintes cinco domínios: delírios, alucinações, pensamento desorganizado (fala), comportamento psicomotor 6 7 Idem, p. 407 BLEULER, Eugen; Dementia praexox oder Gruppen des Squizophrenia, p. 6 grosseiramente desorganizado ou anormal (catatonia) e sintomas negativos”8. Avolição está presente nos sintomas negativos, o comportamento psicomotor grosseiramente desorganizado ou anormal está presente sob a forma do autismo, o pensamento desorganizado é o nome contemporâneo para o afrouxamento dos nexos associativos do pensamento. Ou seja, há uma certa estabilidade nocional da esquizofrenia desde sua criação, há pouco mais de um século. Fica claro como a incidência destes distúrbios no quadro contemporâneo da esquizofrenia implica dependência da reflexão psiquiátrica ao modelo tradicional da dissociação da personalidade. Mesmo que ela não seja tematizada diretamente, ela está presente de forma implícita. Note-se como, em Bleuler, a presença de delírios e alucinações não aparece como critério diferencial de diagnóstico, já que outros quadros clínicos também poderiam comportar tais produções. Este é o sentido de sua definição entre sintomas fundamentais e sintomas secundários. Os sintomas fundamentais indicam a estrutura dissociada do paciente nos níveis do julgamento, da percepção e da afetividade. Já os sintomas secundários são resultantes das tentativas de adaptação, mais ou menos exitosas, às perturbações primárias: “As ideias delirantes seriam exemplos de sintomas secundários. E, segundo Bleuler, o conteúdo dessas ideias estaria constituído por desejos e temores que, devido a transtornos afetivos, estariam deformados. Ou seja, não fosse a dissociação (Spaltung) que bloqueia os complexos mais carregados de afeto, seria possível compreender esses desejos e temores expressos no delírio. O delírio é incompreensível porque nele estão condensadas ou deslocadas uma cadeia de associações”9. De toda forma, gostaria de chamar a atenção para o caráter vasto e pouco preciso da diferenciação. Se ainda hoje definimos a esquizofrenia como: “uma doença heterogênea, com manifestação clínicas multiformes” 10 é certamente porque, desde seu início, a patologia depende de um conceito de unidade, síntese e coerência cujo fundamento se encontra em um horizonte normativo exterior a fatos clínicos. Foi a isto que tentei aludir na aula passada quando foi questão de propor uma rápida genealogia da própria noção de personalidade, em suas matrizes filosóficas e teológicas. Notem, por exemplo, como o problema da contradição aparece como um eixo privilegiado para a definição da clivagem própria à esquizofrenia. Sua ideias delirantes são marcadas pela contradição, sua incapacidade de se relacionar ao mundo exterior é muitas vezes expressa pelo uso sistemático de contradições. AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION; DSM – V, p. 87 D’ARGOT, Marta; Esquizofrenia: os limites de um conceito 10 GABBARD, Glen; Psiquiatria psicodinâmica, p. 141 8 9