BLEULER E A COMPREENSÃO DA ESQUIZOFRENIA Bernardino Rocha Sumário O autor aborda a influência que a psicanálise teve no pensamento de Bleuler sobre a esquizofrenia e como os sinais primários da doença por ele descriminados continuam actualizados do ponto de vista semiológico, quer na fase prodrómica, quer na fase activa da doença. Summary The author points the influence of psychoanalyse in the Bleuler`s thinking about the schizophrenia and the actuality of first-ranke signs (also known as Bleuler`s "four A?s") in the clinical diagnose of the disorder, either in the prodromal phase or in the active phase. Duas perspectivas No início do século passado, a perspectiva fenomenológica, descritiva e diacrónica da esquizofrenia, patente no empirismo clínico de Kraeppelin, viu-se complementada pela perspectiva fenomenológica, psicologista e explicativa de Eugen Bleuler. No geral, estas perspectivas confrontam a atitude clínica, empírica e evolutiva à atitude clínica, conceptual e explicativa dos fenómenos apreendidos na praxis clínica ... a primeira centrada nos factos clínicos existentes (os objectos existentes) que aparecem à vista desarmada do observador, antes de qualquer juízo explicativo e a segunda centrada na forma como esses mesmos factos se representam no próprio observador (a existência em si), com as inevitáveis relações causais por si estabelecidas. No fundo, o velho confronto dicotómico entre a importância do mundo externo/interno, da objectividade/subjectividade, da percepção / entendimento no conhecimento... Cuja delimitação precisa, em última instância, nos parece impossível. Em todo o caso, no que diz respeito às particularidades mais superficiais de cada uma das posturas em jogo, ambas as perspectivas estão, sem dúvida, de acordo quanto à sua precisão. Assim, nada pior para um empirista do que conceber os factos clínicos captados como elementos explicativos de outros factos, como, para um psicologista romântico (leia-se psicanalista), admitir que o inconsciente determina o princípio da realidade. No entanto, em relação à fronteira que delimita estes dois grandes campos de investigação (o campo da investigação dos objectos existentes e o campo da investigação da existência em si) o consenso dá lugar ao confronto dialético inerente a esta relação ... e é a este nível que tentarei abordar o contributo de Eugen Bleuler para a Psiquiatria, designadamente no âmbito da esquizofrenia.. O conceito. Demência precoce. Na sequência do "Compêndio de Psiquiatria" que, em 1998, aceitou redigir, Kraepelin, partindo de uma postura assente na observação cuidadosa, no empirismo clínico (o trabalho fundamentou-se no estudo de centenas de histórias clínicas) e no critério evolutivo dos sindromas então identificados, deu um dos contributos mais importantes para a concepção clínica das doenças mentais. O critério evolutivo, nas várias edições do seu compêndio (à imagem do que acontece com as actuais classificações internacionais das doenças mentais) foi adquirindo um peso cada vez maior e um dos marcos clássicos deixados pelo seu trabalho foi o da distinção clínica entre a Demência precoce e a Loucura maníaco-depressiva, a primeira de origem metabólica e evoluindo para a fraqueza psíquica, nas suas formas hebefrénica, catatónica e paranóide e a segunda assente em disposições patológicas mas sem evolução para a fraqueza psíquica. Pese embora a genialidade da categorização sindromática da Demência precoce kraepeliana, ainda hoje em vigor, a sua explicação puramente fenomenológica dos sinais da doença, evitando ao máximo qualquer tipo de interpretação e, sobretudo, o desfecho evolutivo nefasto que dava à doença, cedo começou a ser posto em causa, sendo Eugen Bleuler um dos investigadores que mais se opôs. Esquizofrenia. Bleuler considerava a demência precoce como uma doença que nunca se curava por completo mas a sua postura de confronto a Kraepelin, em relação à causa dos sintomas e sinais da doença bem como à evolução deficitária global da mesma, provinha da influência que a corrente psicanalista (então em voga, 1910) exercia no seu modo de conceber a doença mental. O legado freudiano. Com efeito, grosso modo, a conceptualização psicanalista do aparelho mental é dinâmica e toma os sinais e sintomas clínicos como soluções de compromisso entre determinados mecanismos de defesa e as solicitações do meio exterior. A própria estruturação do aparelho mental resulta do confronto dialético entre pulsões de sinal contrário, umas funcionando em conformidade com a relação tempo-espaço da realidade exterior (princípio da realidade) e outras funcionando em conformidade com o inconsciente (princípio do prazer), as quais, na interacção com a realidade exterior, se intrincam, à medida que o processo genéticoevolutivo decorre, em instâncias determinadas (Supereu, Ideal do Eu, Eu, Id). Os mecanismos de defesa (visando a entalpia do sistema), são, assim, constituintes intrínsecos de cada uma destas instâncias e o modo como as mesmas se relacionam entre si e com a realidade exterior, reflecte a reorganização pulsional inicial e o grau de estruturação do aparelho mental. Sempre que uma solicitação exterior gera uma representação mental desorganizadora, as diferentes instâncias, por meio dos mecanismos de defesa que lhes são específicos, negociam entre si a reorganização a dar à pulsão conflitual em causa. Neste processo, ocorre a regressão do aparelho mental ao estadio de funcionamento mais capaz de lidar com a tensão em causa. Caso a tensão existente seja difusa e excessiva cria-se um ponto de fixação patológico (Trauma vitalis) em torno do qual o funcionamento do Eu se irá reorganizar. Neste caso o funcionamento do indivíduo em tensão ou fora dele apresentará sempre sinais do ponto de fixação (no caso deste se situar na fase precoce do seu desenvolvimento corresponderá ao núcleo psicótico). Na esquizofrenia, o ponto de fixação patológico encontra-se no estádio mais precoce do desenvolvimento psicoafectivo do Eu, o que condiciona a estruturação do Eu em torno de mecanismos de defesa arcaicos. Assim sendo, não é possível conceber um sindroma psicopatológico sem identificar o mecanismo de defesa predominante, o grau de maturação libidinal (com os pontos de fixação patológicos respectivos) e o grau de estruturação do Eu. Ou seja, por outras palavras, sem identificar o tipo de relação de objecto presente. Entre um sindroma psicótico, por um lado, e um sindroma neurótico, por outro, a conceptualização psicanalista evolucionista estabelece um continuum ... desde a inestruturação do aparelho mental, com a substituição dos mecanismos de defesa pela desagregação (morcellement du Moi) do Eu (autismo de Kanner), passando pelas clivagens do Eu (dédoublement du Moi) e do objecto (dédoublement des imagos) até à estruturação do Eu marcada pelo conflito interno sectorial entre o desejo de afirmação narcísica, por um lado e o não menos importante desejo de afirmação anti-narcísica, por outro (angústia de castração). Este continuum obriga, assim, no espectro dos síndromas psicóticos, a uma precisão psicopatológica mais acurada, porquanto se em relação às inestruturações do aparelho mental e às clivagens do Eu com fixações patológicas em estadios genético-evolutivos muito precoces, é inequívoca a sua constituição ou evolução globalmente deficitária, o mesmo não acontece em muitos outros síndromas psicóticos da linha esquizofrénica nos quais as fixações patológicas se situam em estadios genético-evolutivos mais evoluídos. Estas considerações psicopatológicas já, no seu grosso, patentes na época de Bleuler, ajustavam-se à constatação clínica. O próprio Kraepellin, em 1913, admitia que em cerca de 8% das formas hebefrénicas e 13% das formas catatónicas, no agrupamento da demência precoce, parecia dar-se a cura e afirmava, fiel à sua perspectiva investigacional, que " novas investigações sobre séries de observações alargadas, mantidas cuidadosamente durante várias dezenas de anos, irão mostrar em que medida é exacto o ponto de vista, para mim altamente provável, de que é muito raro acontecerem curas duradoiras e verdadeiramente completas da Dementia praecox". Para Bleuler, contudo, a prática clínica punha em causa a denominação da doença e não seriam necessários mais anos de observação da doença para se alterar a sua compreensão e denominação. Com efeito, à luz da conceptualização psicanalítica que o assistia, a compreensão da demência precoce ganhava cada vez mais forma e tudo apontava para que a causa psicopatológico de tal mal, no seu estadio mais grave, se localizava na não fusão das múltiplas ilhotas de autoinvestimento narcísico do pré-Eu (Soi) (narcisismo primário) (Freud denominava a esquizofrenia de neurose narcísica). A não fusão destas ilhotas autoinvestidas (autoeróticas) com os seus equivalentes somáticos (ainda sem representação mental no sentido psicológico do termo) e a não integração dos estados de excitação difusa aí ocorridos impediam a catexização narcísica objectal de forma progressiva e abrangente bem como a consequente identificação à mesma. Ou seja, por outras palavras, o Eu em formação não teria acesso nem à sua identidade nem à identificação dos objectos externos. Partes do corpo poderiam assim ser mutilados sem dor porque pura e simplesmente se encontravam não investidos narcisicamente, permanecendo o sensório a este nível mudo. Sem uma identidade e sem um objecto identificado a dialéctica pulsional e relacional (Aparelho mental versus Realidade exterior) atrás referida não teria hipóteses de progredir. As considerações atrás transcritas referem-se ao estadio mais grave da doença mas, em função da maior ou menor integração da dialética estruturante do aparelho mental, assim, poderiam surgir todo um cortejo de sintomas, desde os relacionados com o funcionamento desagregado, inestruturado e deficitário até aos relacionados com um funcionamento mais estruturado mas insuficiente para permitir o processamento dos estímulos exteriores ao nível da cadeia constituinte da unidade perceptivo-motora (sensações-concepções-percepções-motricidadeconceitos), denominada de eixo central de significações. Desprovido da dimensão diferencial a que tal cadeia dá acesso, a excitação dos estímulos reduz-se às expressões comportamental, afectiva e sensorial isoladas. A dissociação do funcionamento sincrético do aparelho mental, concebido deste jeito, constituía assim o processo gerador da doença. Este princípio conceptual levou a que Eugen Bleuler, em 1911, considerasse que o funcionamento aparentemente demencial dos doentes acometidos pela denominada Demência precoce não correspondia a um défice global progressivo e irreversível de toda a actividade psíquica mas sim a uma desagregação da natureza associativa do funcionamento psíquico que condiciona um comportamento global negativista e, como tal, desligado da realidade exterior. Denominou assim a doença de Esquizofrenia (Schizein = dissociado, dividido; phren = cérebro, pensamento) e o "schizophrenische Defekt" daqui decorrente, segundo Bleuler, não correspondia a um vazio demencial nem mesmo a um estado residual irreversível mas a um colapso da capacidade de estabelecer relações intersubjectivas e a uma espécie de atrofia a este nível. A esta dissociação do funcionameno psíquico, correspondiam, no entanto, do ponto de vista clínico, sintomas tão variados como a ambivalência, o autismo, o negativismo, a abolia, a catatonia, o embotamento afectivo, os estados depressivos ou maníacos, a perda de associação de ideias (Ataxia do pensamento), as ideias delirantes e a actividade alucinatória. Importava, então, distinguir os sintomas relacionados especificamente com o processo dissociativo original. O legado Jacksoniano. Em bom rigor, o grande marco da conceptualização bleuleriana - a distinção entre os sinais primários e secundários da doença - independentemente da influência freudiana atrás referida referida (designadamente da conceptualização em torno mecanismos de defesa, envolvendo uma representação desorganizadora primária, seu recalcamento total ou parcial e a emergência secundária da representação conflitual inicial sob outra forma) parece ter sido influenciado não pela teoria psicanalista mas pela conceptualização jacksoniana das doença mentais, elaborada cerca de meio século anos antes das de Bleuler e Freud, pelo neurologista inglês John Hughlins Jackson. Com efeito, este autor, influenciado pelas teorias evolucionistas inglesas (Charles Darwin, Herbert Spencer, William James) que realçavam a natureza hierarquizada dos sistemas, respectivamente, ao nível biológico, sociológico e psicológico, elaborou um modelo fisiológico explicativo das doenças mentais fundado nos três principais níveis anatómicos do SNC: a medula espinal, o tronco cerebral e o córtex cerebral. Neste sistema, as estruturas hierarquicamente superiores, de funcionamento filogeneticamente mais recente, voluntário e frágil, controlam o funcionamento, filogeneticamente mais antigo e automático, das estruturas subjacentes. Sempre que um afecção, seja de que natureza fosse, afectasse o cérebro surgiriam a este nível os sinais relacionados com a ausência da função ... ou seja apareceriam os sinais negativos da doença. O não controlo, pela área afectada, das estruturas subjacentes, por sua vez, levaria à desfrenação funcional das mesmas e, consequentemente, ao aparecimento dos sinais positivos da doença. Este modelo, elaborado por volta de 1863, não só veio a influenciar várias correntes da psiquiatria (a escola reflexológica pavloviana, com a sua teoria de base sobre a relação córticosubcortical de indução e frenação recíprocas; a escola psicanalítica freudiana, com a conceptualização neuroanatómica da primeira tópica, colocando as pulsões do processo primário ao nível do inconsciente - estrutura filogenticamente mais remota - e as pulsões do processo secundário ao nível do pré-consciente-consciente - estrutura filogenética e ontogenicamente mais recente - exercendo uma acção frenadora sobre a primeira e a escola organodinâmcia francesa de Henri Ey) como viu confirmado os seus princípios nas constatações neurofisiológicas actuais sobre a interacção cortico-subcortical do SNC, com o córtex a frenar, por meio da estimulação da substância reticular inibidora do tronco cerebral (cujos neurónios não autoexcitáveis carecem da estimulação das fibras oriundas do córtex), a substância reticular facilitador subcortical (constituída por neurónios autoexcitáveis que descarregam ininterruptamente para as estruturas suprajacentres). Jackson, logo no início da sua carreira, considerava que, em geral, as doenças provocavam de imediato um estado negativo a partir do qual poderiam surgir, então, os sintomas positivos da mesma. E. Bleuler na sistematização dos sintomas relacionados com a dissociação da vida psíquica na esquizofrenia utilizou o mesmo raciocínio, identificando os sintomas primários da doença e os sintomas secundários da mesma. Semiologia Para Bleuler, o núcleo psicopatológico primário da esquizofrenia é o processo dissociativo. A desagregação que tal processo provoca nos sectores integrativos da vida mental e relacional (inteligência-afectividade-psicomotricidade) condiciona o aparecimento dos sinais primários da doença, a saber: 1. Ambivalência 2. Alterações formais do pensamento 3. Alterações do afecto.1 4. Autismo.1 5. Alterações na experiência subjectiva do Self. 6. Alterações na vontade e comportamento. Estes sinais negativos ou deficitários reflectem a clivagem do Eu destinada a afastar do campo da consciência as representações relacionadas com o trauma vitalis. A alteração que tal dissociação provoca na unidade do funcionamento psíquico, por sua vez, lança o paciente para o seu funcionamento interior cujo fluxo autista exprime, de forma simbólica, os complexos inconscientes inerentes ao trauma vitalis. O conjunto de sinais daqui resultantes correspondem, agora, aos sinais secundários da doença que Bleuler descrimina: 1. Ideias delirantes. 2. Alterações na percepção (alucinações). 3. Alterações na personalidade. 4. Alterações da memória. 5. Alterações na fala e escrita. 6. Sintomas somáticos. 7. Sintomas catatónicos. 8. Síndromes agudos (tal como melancolia, mania, catatonia e outros estados) A influência da conceptualização psicanalítica na explicação psicopatológica que Bleuler deu da Esquizofrenia trouxe, pelo menos, duas consequências aparentemente de sinal contrário. Consequência I. Ao aplicar a conceptualização psicanalítica à esquizofrenia, Bleuler estabeleceu o continuum, próprio desta conceptualização, entre as esquizofrenias e as restantes entidades psicopatológicas. Desta forma, do ponto de vista estrutural, exceptuandose as neuroses, a psicose maníaco-depressiva, a epilepsia e as síndromes cerebrais orgânicas, segundo Bleuler, os restantes quadros clínicos correspondiam estruturalmente a funcionamentos esquizofrénico-like. Para os clínicos positivista, a supracitada conclusão de Bleuler, absurda do ponto de vista fenomenológico, é fruto da influência negativa da psicanálise. Contudo, a tendência médica para tomar um modelo genético único de compreensão dos diversos síndromas existentes é antiga e a possível "generalização" que o modelo estrutural parece condicionar, no caso específico em discussão, é expressão dessa tendência e é útil se tomada como complemento dos outros modelos de reflexão diagnóstica e, sobretudo, se utilizada na sua área específica : a terapêutica. Com efeito, a psicanálise é um método de investigação clínica com vista ao tratamento e não um método observacional com vista à classificação taxonómica dos diferentes géneros e espécies de entidades mórbidas. São múltiplos os exemplos actuais onde as duas perspectivas - a estrutural e a sindromática se complementam e por aqui se poderá, então, perceber a "generalização" bleuleriana atrás referida. Com efeito, actualmente, do ponto de vista estrutural, os quadros nosológicos psiquiátricos não orgânicos enquadram-se, basicamente, em quatro grandes estruturas: Psicóticas (angústia de desintegração), Limites (angústia de perda do objecto), Depressivas (angústia de perda do amor do objecto) e Neuróticas (angústia de castração). Ao correlacionar-se estas estruturas com as classificações sindromáticas das doenças psiquiátricas, verificamos que, por exemplo, a grande maioria das perturbações da personalidade (Cluster`s) correspondem, do ponto de vista psicanalítico, aos Estados limites, designadamente de pólo psicótico (cluster A e parte do Cluster B), de pólo perverso (parte do Cluster B) e de pólo neurótico (parte do Cluster C). As perturbações somatoformes ou ansiosas, do tipo obsessivo-compulsivo ou agorafóbico, por sua vez, integram-se, do ponto de vista estrutural, respectivamente, em Estruturas neuróticas ou Estados limites de pólo neurótico (agorafobia sem síndroma borderline) ou pólo perverso (agorafobia com sindroma borderline). A doença bipolar, algumas perturbações da personalidade (esquizotipia) e perturbações delirantes persistentes podem-se encaixar, do ponto de vista estrutural, quer em Estados limites de pólo neurótico (bipolaridade II ou III sem síndrome borderline), de pólo psicótico (bipolaridade I sem síndrome borderline, perturbação esquizoafectiva) ou de pólo perverso (bipolaridade II com síndrome borderline), quer em Estruturas psicóticas francas (determinadas doenças bipolares I, certas perturbações delirantes persistentes e esquizofrenias). Uma e outra conceptualização complementam-se e não têm que coincidir na totalidade, sendo que a classificação estrutural é útil para a especificação da modalidade de intervenção psicoterapêutica psicanalítica. Ainda sobre a justaposição atrás feita sobre as classificações sindromáticas e estruturais, se atendermos a que na era de Bleuler, não se encontravam identificados os estados limite ou borderline (de pólo psicótico, preverso e neurótico (J. Berjeret), não é difícil perceber que, de facto, à luz da perspectiva psicanalítica a maioria dos quadros clínicos de então, com excepção das neuroses, das perturbações maníaco-depressivas e dos sindromas orgânicos, em termos de mecanismos de defesa predominantes, grau de maturação libidinal e de estruturação do Eu, correspondiam a funcionamentos psicóticos da linha esquizofrénica. Consequência II. Ao tomar a dissociação do Self como o processo psicopatológico de base da esquizofrenia e ao distinguir do ponto de vista semiológico, como sinais primários do mesmo, as alterações linguísticas, ao nível da construção do discurso, da palavra e na integração desta com o afecto e a actividade motora (percurso privilegiado psicanalítico), remetendo para segundo plano as manifestações mais exuberantes da fase de estado da doença, Bleuler não só antecedeu a conceptualização da psiquiatria biológica em relação aos dois principais sindromas esquizofrénicos (tipo I - negativo, Tipo II - positivo) que a mesma admite, como também antecedeu a conceptualização cognitivista mais recente em relação aos endofenotipos da esquizofrenia e ao comprometimento da capacidade de abstracção, da atenção e da memória de trabalho que caracterizam esta doença, designadamente nas suas formas pré-clínicas. Neste aspecto a consequência da influência da psicanálise em Bleuler parece o ter remetido para uma posição de destaque superior. Com efeito, a sua sagacidade fenomenológica, aliada à capacidade de reflexão introspectiva permitiu-lhe identificar um núcleo de alterações semiológicas que, ainda hoje, é tomado, na praxis clínica, como um forte indicador de Esquizofrenia. Assim, aquém da síndrome alucinatório-delirante, dos estados maniforme ou depressivos, dos estados ansiofóbicos, obsessivos, histriónicos ou comportamentais, manifestados por determinado paciente, o clínico, para descartar uma possível esquizofrenia, deve focalizar a sua atenção na identificação dos sinais da síndrome dissociativa: 1. Alteração do pensamento, designadamente na forma como os seus elementos estruturais são seleccionados do ponto de vista semântico e se articulam entre si. A dissociação do Self compromete a função abstracta e condiciona as seguintes alterações: a) Mau uso de símbolos, com o paciente a não ser capaz de utilizar o sentido do símbolo, utilizando-o, portanto, de uma forma concreta (concretiza o símbolo); b) Condensação, com o paciente a não ser capaz de distinguir as particularidades distintivas de dois conjuntos com elementos similares pelo que, no discurso, duas ideias com algo em comum mas distintas na sua essência são associadas num falso conceito; c) Deslocação, com o paciente a não ser capaz de utilizar as palavras ou ideias pelo seu sentido semântico ou ideia major e a recorrer, antes, à selecção das mesmas por associações de semelhança e contiguidade; d) Frouxamento na associação de ideias, com o paciente incapaz de identificar e distinguir a ideia major da tarefa em curso (ideia principal a transmitir) da das ideias subsidiárias e incapaz de conter o fluxo autista imaginário que interfere na tarefa. 2. Ambivalência, condicionando, logo no primeiro no contacto, um comportamento por parte do paciente marcado pela indecisão instantânea no gesto, na palavra e na atitude. Corresponde, em termos psicanalíticos, à presença instantânea de dois movimentos pulsionais opostos (destruição/conservação), dirigidos ao mesmo objecto (interno ou externo) e condiciona, do ponto de vista semiológico: a) o negativismo interno, podendo chegar ao mutismo; b) o negativismo intelectual, detectado no curso do pensamento(denominado por Kraeppelin de evasão/paralogia e, actualmente, de respostas ao lado; c) o comportamento súbito de obediência durante o negativismo; e) o comportamento súbita de agressão durante a cooperação. A ambivalência em causa é a primária, distinguindo-se, por isso, da ambivalência secundária que se manifesta em dois tempos diferentes (como sucede no paciente Borderline). 3. Embotamento afectivo, denominado por Bleuler de paramimia, correspondente à ambivalência expressa no domínio da afectividade. Cada movimento afectivo veicula pulsões de sinal oposto: ódio/amor, sedução/destruição, fusão/separação abrupta. Este estado de insustentabilidade torna o paciente, do ponto de vista afectivo, paramímico ou atimómico, inexpressivo, distante mas não indiferente. A necessidade da carapaça virtual afectiva que o envolve é uma defesa face às irrupções pulsionais e contraditórias despoletadas pelas solicitações exteriores. Sempre que tal carapaça é franqueada surgem as reacções instintivo-afectivas paradoxais correspondentes à contradição pulsional que o paciente encerra. 4. Autismo, decorrente do refúgio narcísico no fluxo imaginário autista com vista a reforçar o autoerotismo narcísico do paciente. A não consolidação ou fusão do Self condiciona: 1. o sentimento de desagregação do mesmo; 2. a não identificação dos objectos exteriores; 3. a confusão entre as duas dimensões anteriores e; 4. o risco do paciente se esvaziar narcisicamente na realidade exterior. O refúgio narcísico, onde o Self integra elementos da realidade exterior, reforçam a frágil identidade do mesmo e excluem a interferência "fragmentadora" da realidade exterior. 5. Alteração subjectiva do Self, também denominada de autoconsciência do Self (Fish) que impossibilitam o paciente de se reconhecer na representação mental que faz da sua individualidade, da própria actividade, limites e continuidade. O sentimento de expropriação do seu Self resulta desta alteração. Estes sinais primários da Esquizofrenia de Bleuler, contendo os clássicos 4 A`s (Ambivalência, Autismo, Alterações do pensamento e Embotamento afectivo), numa primeira abordagem, de facto, ao contrário da velha impressão generalizada de que a conceptualização bleuriana generaliza o diagnóstico de esquizofrenia, reduz significativamente a tendência para se catalogar as síndromes alucinatório-delirante observadas na praxis clínica de esquizofrenia. Com efeito, a detecção criteriosa destes 4 sinais, em geral e uma vez descartada a presença de síndrome cerebral orgânica, aponta, muito provavelmente, no sentido da esquizofrenia. Este contributo bleuleriano é de suma importância nos quadros clínicos que se manifestam por sintomatologia negativa e que, frequentemente, induzem o clínico mais incauto a diagnosticar uma depressão num paciente (geralmente adolescente) portador de uma esquizofrenia em fase prodrómica. Nos quadros clínicos com sintomatologia florida, como acontece nas síndromes alucinatóriodelirantes, ele igualmente permite uma maior exactidão diagnóstica, designadamente em relação às perturbações delirantes persistentes, onde as ausências de alterações formais do pensamento no discurso oral, da ambivalência, do autismo, do embotamento afectivo e do defeito (defeito decorrente do colapso das relações interpessoais) marcam a distinção. Nestes casos, o erro diagnóstico numa primeira abordagem não é grave do ponto de vista terapêuticos mas a longo prazo torna-se grave porque vai condicionar o projecto de reabilitação seleccionado. Esquizofasia. Ainda sobre as alterações formais do pensamento, atrás referidas, importa adicionar alguns dados e reflexões sobre as mesmas. Nas formas crónicas da esquizofrenia, as alterações múltiplas na sintaxe e semântica são de tal ordem que o discurso se torna completamente confuso. A esta característica Bleuler denominou de Esquizofasia (salada de palavras). Esquizofasia e falhas nos feixes associativos neurológicos. Mais importante, contudo, é a percepção nos autores clássicos (Fish) de que na esquizofasia, passo a citar " there is, of course, a superficial resemblance to aphasia" e que uma "brief discussion of aphasia has been included in order that the functional disorders of speech can be compared with the organic" . Com efeito, ainda de acordo com Fish, que refere os textos neurológicos de Lord Brain (1966) sobre a matéria, para que um determinado conjunto de sinais sonoros ou visuais sejam reconhecidos e nomeados é fundamental a existência de conexões entre os esquemas ?schema` das áreas sensoriais respectivas, nos córtex temporal e occipital (que automaticamente calculam a probabilidade de um determinados conjunto de propriedades corresponder a dado esquema de actividade neuronal) e um esquema ?schema` motor no córtex frontal que seria activado e permitiria a pronúncia da palavra. Estas considerações dos autores clássicos psiquiátricos, nos quais se integra Bleuler, alertam, portanto, para a possibilidade da origem neurofisiológica das alterações formais do pensamento na esquizofrenia poderem resultar de falhas (dissociações) nas conexões associativas temporo-parieto-frontais (ouvir,compreender e pronunciar ), occipito-parietofrontais (ver,compreender e pronunciar) e temporo-parieto-occipitais (ouvir,ver e comprender). Ou seja, por outras palavras, resultarem de falhas nas conexões integrativas temporo-occipito-parieto- frontais. Psiquiatria clássica e memória de trabalho. Ao revisitarmos os conceitos de Bleuler e da psiquiatria clássica sobre as alterações formais do pensamento na esquizofrenia, sobretudo estes últimos, o paralelismo com os conceitos actuais é imediato. Com efeito, a integração funcional atrás referida evoca o modelo integrativo nuclear mnésico de Baddeley . Nele as principais modalidades sensoriais atrás referidas encontram-se resumidas nas seguintes componentes: 1. O sistema visuo-espacial que permite a criação de representações imagética fugazes relacionadas com a impressão em curso; 2. O stock fonológico que permite a representação auditivo-verbal da impressão em curso, com o feixe articulatório subvocal associado a converter a informação visual em auditivo-verbal e a renovar o conteúdo fonológico armazenado; 3. O sistema de ajustamento episódico constante integrando as diferentes modalidades sensoriais em curso no eixo de significações centrais do sujeito (dar sentido aos conteúdos captados em função da história individual) e, finalmente; 4. A central executiva que direcciona a atenção, a selectividade, a continuidade e o controlo da informação captada. Resta saber se esta unidade neurológica central, envolvida na memória de trabalho, é, não só, a grande responsável pelas alterações formais do pensamento na esquizofrenia mas, também, nas psicoses delirantes persistentes, se bem que, nestes últimos pacientes, de forma só evidente quando a expressividade discursiva se tem de fazer de forma sensorialmente mais integrada (ex. discurso escrito improvisado, obrigando os controlos da visão e do stock fonológico). Há diferenças na forma de apresentação (discurso oral apenas, discurso escrito apenas) das alterações formais do pensamento, nestes dois tipos de pacientes, para as quais não conseguimos chegar a conslusões. Até lá, então, apenas é possível concluir que, descartados os síndromes cerebrais orgânicos, as alterações formais do pensamento são específicas do funcionamento psicótico delirante crónico e que, tal como Bleuler, no seu tempo, e os autores franceses (H. Ey), mais recentemente, justifica-se, por isso, a inclusão destas entidades (esquizofrenias - psicoses delirantes crónicas com defeito - e as psicoses delirantes persistentes - psicoses delirantes crónicas sem defeito) nos pólos opostos do mesmo espectro (espectro das psicoses delirantes crónicas), podendo ocorrer, em alguns casos (ex." Mentes brilhantes"), a transição do paciente ao longo do mesmo. Passamos a transcrever o excerto do Manual de Psiquiatria de Henri Ey, sobre este assunto: « Ainsi, si la classification internationale dés Délirés chroniques est simple (schizophrénies + un petit secteur de Délirés paranoiques), la classification française est plus compliqués. Nous pouvons, semble-t-il, la présenter ainsi : Psichoses délirantes chroniques A. Sans évolutions déficitaire (1. Psychoses délirants systematisées (Paranoia) qui agrupent les Délires passionnels et les Délires d`interprétations ; 2. Psychoses hallucinatoires ; 3. Psychose fantastiques (Paraphrénie) ; B. Avec évolution déficitaire (Formes « paranóides » de la Schizophrénie) (Rappelons ici que, pour nous, toutes les schizophrénies entrent dans ce groupe et que par conséquent les schizophrénies sont une espéce du genre des Délires chroniques. Mais - répétons-le encore - il ne s`agit pas d`une opinion classique) (....) nous décrirons donc et d`abord les Psychose délirants chroniques non déficitaire, puis les Psychoses schizophréniques, sans perde de vue qu`il s`agit d`espèces d`un même genre que peuvent avoir une évolution réversible et subir des transformations d`une espèce à l`autre, comme l`un de nous l`a particulièrement souligné dans son « Traité des Hallucinations » (...). Se em relação às alterações do pensamento se podem colocar as questões supracitadas, já o mesmo não se verifica em relação à ambivalência, ao autismo e à paramimia ou embotamento afectivo que marcam de forma vincada o processo esquizofrénico com defeito. A sagacidade semiológica de Bleuler, aliada aos seus conhecimentos psicanalíticos, permitiulhe, assim, identificar um grupo de alterações semiológicas de primeira linha da doença que, por um lado, reduzem substancialmente os diagnósticos de psicose delirante crónica com defeito (Esquizofrenia), aquando da observação de um quadro alucinatório-delirante e, por outro lado, permitem pôr o clínico de sobreaviso, aquando da observação de quadros clínicos aparentemente de outra índole (síndromes depressivos em adolescentes). 2. Fish : Fish`s Clinical Psychipathology Signs and symptonms in Psychiatry, Edited by Max Hamilton, Bristol: John Wright & Sons Lta, Great Britain, 1974; 3. Berjeret J. : Psychologique pathologique théorie et clinique, Abreges, 9 édition, Masson, Paris, 1972 ; 4. Kraeppelin E. : A Demência Precoce 1ª parte, 1ª edição, Climepsi Editores, Lisboa, 2004; 5. Ruiloba vallejo J. : Introducción a la psicopatologia y a la psiquiatria, 5ª edición, Masson, S.A. Espanha, 2003; 6. Ey H., Bernard P., Brisset Ch. : Manuel de psychiatrie, 6ªédition Masson, Paris, 1960,1989 ; 7. Nunes Belina : Memória Funcionamento Perturbações e Treino, Lidel, Edições Técnicas, Lda. Portugal, 2008. 1] Os 4 A`s de Bleuler [i] Assistente Hospitalar de Psiquiatria no Serviço de Psiquiatria Forense do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa