A8 CORREIO POPULAR Campinas, segunda-feira, 2 de abril de 2012 Educação ENSINO ||| DEBATE Educação diferenciada abre polêmica Organização que separa meninos de meninas nas escolas não é coisa do passado e divide opiniões Inaê Miranda DA AGÊNCIA ANHANGUERA [email protected] Engana-se quem pensa que escola só para meninas ou só para meninos é coisa do passado. Ou ainda que ela esteja restrita aos tradicionais colégios de ordem religiosa ou militar. O sistema de organização escolar conhecido como educação diferenciada ou “single-sex” vem se tornando cada vez mais comum. Está presente em pelo menos 70 países do mundo e o número de colégios que seguem esse tipo de organização chega a quase 242 mil, segundo a Associação Latinoamericana de Centros de Educação Diferenciada (Alced). A educadora Elisabeth Vierheller, presidente da Alced Argentina, defende que o aprendizado diferenciado possibilita que se alcance a igualdade de oportunidades para meninas e meninos em termos de resultados no desempenho escolar, conquistas profissionais e de trabalho. De acordo com a educadora, a educação diferenciada é capaz de potencializar todas as habilidades do hemisfério cerebral que não são tipicamente masculinas ou femininas e assim disponibilizar mais recursos aos alunos para enfrentar a vida. Mas a proposta de separação de meninos e meninas é controversa. Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ângela Soligo, as características orgânicas estão associadas ao que fazemos e sentimos, mas elas sozinhas não explicam tudo. Segundo Ângela, existem outros processos que se dão dentro do espaço escolar que não apenas o conhecimento científico. Ela acredita que a separação dos alunos por sexo seria um retrocesso e ajudaria a institucionalizar desigualdades e preconceitos entre os gêneros. As duas especialistas demonstram os diferentes pontos de vista em uma entrevista acalorada ao Correio Popular. Confira abaixo. ‘Igualdade de oportunidades ‘Na escola, aprende-se em termos de resultados’ mais que o conhecimento’ Divulgação Correio Popular - Meninos e meninas realmente precisam de um aprendizado diferenciado? Por quê? Elisabeth Vierheller - O aprendizado diferenciado possibilita que se alcance a igualdade de oportunidades para as meninas e meninos em termos de resultados no desempenho escolar, conquistas profissionais e de trabalho. O entorno gerado pela educação diferenciada potencializa todas as habilidades do hemisfério cerebral que não são tipicamente masculinas ou femininas e assim terão mais recursos disponíveis para enfrentar a vida. Quais são os benefícios dessa separação na sala de aula? Haveria alguma desvantagem? Há três grandes grupos de benefícios que podem ser citados. O primeiro é acadêmico. Todos os anos, o Financial Times publica o ranking das melhores escolas do mundo. Das 20 melhores colocadas, dez são de educação diferenciada por sexo. A educação diferenciada também possibilita uma melhoria na auto-estima e controle do entorno social. Os meninos desenvolvem sua masculinidade e as meninas a sua feminilidade, o que produz um bem-estar psicológico e reduz os níveis de depressão e ansiedade, que frequentemente começam na idade escolar. Por fim, ela reforça a identidade sexual, sem estereotipar. Tenho experiência docente em colégio misto e em colégio feminino e nota-se que, no caso do colégio de meninas, os estereótipos ou preconceitos estão mais atenuados. Com relação a alguma desvantagem da educação diferenciada, vejo a situação dos filhos únicos que não tenham primos de outro sexo na mesma idade ou das famílias com filhos que sejam todos do mesmo sexo e não façam atividades extra-escolares (curso de línguas, arte, esporte). Neste caso, prefiro que estas crianças sejam matriculadas em escola mista. Em todo caso, trata-se de uma decisão dos pais. Separar os alunos por sexo não seria voltar atrás em uma conquista por igualdade, um retrocesso? Há um sociólogo do Ministério da Educação da França chamado Michel Fize que escreveu um livro muito interessante chamado Las trampas de la educación mixta. Ele não se posiciona a favor da separação dos sexos, mas diz que, ao pesquisar as origens da escola mista, concluiu-se que essa mudança não foi projetada em termos pedagógicos. Foi uma necessidade do fim do século 19 e princípios do século 20 para alfabetizar a mulher, já que elas começavam a ter mais protagonismo na vida pública e a trabalhar nas fábricas. Além disso, ser “misto” parece ser sinônimo de democracia, isto Elisabeth Vierheller, defensora da educação diferenciada: benefícios é, uma conquista da igualdade dos sexos. Mas Michel Fize diz que isto não justifica que ponhamos a escola mista em um pedestal “intocável e inquestionável”. A escola mista também deve ser repensada em si mesma. A educação diferenciada é um sistema de organização escolar do século 21, como afirma o pesquisador doutor Jaume Camps, e não tem nada a ver com os modelos discriminatórios da mulher que “Os meninos desenvolvem sua masculinidade e as meninas a sua feminilidade, o que produz um bem-estar psicológico.” foram comuns em outros tempos. Nossa sociedade necessita que eduquemos os meninos e as meninas em sua profunda igualdade, na sua real diferença e também em sua complementariedade e corresponsabilidade. Tratase, portanto, de educar nas diferentes formas de ser homem e mulher sem perder a essência masculina ou feminina. A educação diferenciada poderia interferir de alguma maneira nas escolhas da carreira de meninos e meninas? Quando os professores são do mesmo sexo que os alunos, há maior desenvoltura e autenticidade na escolha da carreira profissional. Isso porque alunos nestas condições tiveram modelos de seu sexo para cada disciplina escolar e assim ampliam as possibilidades de carreira profissional passando por cima de preconceitos ou incompreensões. Alguns especialistas afirmam que há outros processos que se dão dentro do espaço escolar que não apenas o conhecimento científico. Desse modo, a educação diferenciada não interferiria no convívio social, ou na socialização, entre meninos e meninas? O processo de socialização no ser humano é algo muito mais rico e complexo que a relação com o outro sexo e, deve-se enfatizar, que é um processo que começa no seio familiar. A vida é mista. Estamos o tempo todo juntos. Na escola, que tem um ambiente artificial e não natural como a sociedade, é possível fortalecer qualidades humanas nos alunos que lhes ajudarão em seu relacionamento com os demais. Esta ajuda será muito maior se o entorno da sala de aula for do mesmo sexo. Segundo as pesquisas de Simon Baron Cohen, a mulher tem mais empatia e o homem tem perfil mais sistematizador. Pois bem, posso fazer exercícios com os meninos para aprender a pôr-se no lugar do outro e ter respostas mais acertadas às suas necessidades. Se há meninas presentes na sala, elas sempre são as que ajudam o outro e se preocupam para que todos estejam compreendendo, são mais “cuidadoras” e esta qualidade também temos o dever de desenvolver entre os meninos. Rodrigo Zanotto/Especial para AAN Correio Popular - Meninos e meninas realmente precisam de um aprendizado diferenciado, como defendem alguns educadores? Por que? Ângela Soligo - A ideia de que meninos e meninas necessitam de um aprendizado diferenciado decorre de uma concepção organicista de ser humano. Claro que as características orgânicas estão associadas ao que fazemos e sentimos, mas será que elas sozinhas explicam tudo? Há um grande conjunto de cientistas no mundo todo, nas áreas de sociologia, antropologia, psicologia e também na fisiologia, na biologia e na genética, que vão dizer que não. Vigotski, um grande cientista russo no campo da psicologia, mostrou que nosso organismo, o funcionamento do nosso cérebro, foram sendo modificados, ao longo da história da humanidade, por nossas experiências culturais, pelo modo como nos adaptamos e transformamos o ambiente. Então, hoje tende-se a defender que as diferenças são resultado da interação entre as características do organismo e as experiências dos sujeitos e dos grupos, as experiências sociais e culturais. Portanto, não parece sensato dizer que meninos e meninas precisam de escolas e experiências de aprendizagem diferentes, porque são “naturalmente” diferentes. Até porque, a história da evolução humana mostra que o homem é um ser social. Ele só se constitui humano em grupo, na presença do outro. Existem outros processos que se dão dentro do espaço escolar que não apenas o conhecimento científico? Dessa forma, a educação diferenciada interferiria no convívio social ou na socialização entre meninos e meninas? Na escola, aprende-se muito mais que os conhecimentos científicos: aprendese a conviver, a respeitar, a lidar com frustrações, a conhecer outras perspectivas e ideias diferentes da nossa e de nossos referenciais familiares. Aprende-se a dividir, a conhecer o outro, assim como se podem aprender preconceitos, intolerâncias e condutas inadequadas. E pode-se aprender a reconhecê-los e superá-los. Pensar em uma educação diferenciada retira de meninos e meninas a possibilidade dessas aprendizagens compartilhadamente. A senhora consegue perceber algum benefício nesse modelo de organização escolar? Sinceramente, não consigo imaginar uma vantagem real para esse tipo de proposta. Pode haver vantagem para a escola, para os gestores, que não precisa- A professora Ângela Soligo, que questiona o modelo: retrocesso rão lidar com confrontos entre meninos e meninas, que não precisarão se preocupar com as primeiras manifestações da sexualidade, pois esse não será um problema deles. Mas do ponto de vista do aluno, da criança, do adolescente, não há vantagem nenhuma. Já vivemos em um mundo cheio de preconceitos e desrespeitos, cheio de abismos sociais: precisamos aprofundá-los ou criar mais? Certamente não. “Não parece sensato dizer que meninos e meninas precisam de escolas e experiências de aprendizagem diferentes.” Na visão da senhora, a educação diferenciada poderia interferir nas escolhas da carreira dos meninos e meninas? Certamente que sim. Se acreditamos, por exemplo, que as mulheres são “naturalmente intuitivas” e os homens “naturalmente racionais e lógicos”, e se formos basear nossas pedagogias nessa crença, então vamos ensinar coisas diferentes e por maneiras diferentes para homens e mulheres. Já não fazemos isso? Sim. Ao forjar uma “natureza” distinta para homens e mulheres, já estamos criando diferentes “vocações”. Por exemplo: há mais homens que se interessam por profis- sões das áreas tecnológicas e exatas e mais mulheres nas áreas de psicologia, pedagogia, enfermagem. Isso não tem nada de natural, mas está ligado aos modelos de feminino e masculino oferecidos pela cultura e reproduzidos no processo de socialização, nos brinquedos, nos ensinamentos dos pais, nos modelos que a escola e as mídias oferecem. Separar os alunos por sexo seria então voltar atrás em uma conquista por igualdade, um retrocesso? É um claro retrocesso. Isso já aconteceu em outros tempos: no Brasil, no início do século 20, as jovens tiveram acesso ao ensino médio exclusivamente nos cursos de magistério — formação de professores de crianças. Ensinavase a elas aquilo que se acreditava que era adequado à sua “natureza” — em lugar de matemática, economia doméstica, por exemplo. Em que isso resultou? Em um maior desenvolvimento das mulheres? Não. Resultou na desqualificação do trabalho do professor, associado a uma visão desqualificadora do trabalho da mulher. Isso nos leva a dizer uma coisa importante: não existe educação neutra, porque é calcada na ciência. A educação não é neutra, a ciência também não. Interesses políticos e econômicos estão sempre na base das escolhas que se faz, seja o indivíduo, seja a instituição, sejam os governos e os cientistas. O convívio entre os diferentes é mais que saudável, é condição para a construção de relações mais respeitosas e intelectualmente férteis. Já vivemos em um mundo cheio de desigualdades, de preconceitos, de obstáculos ao desenvolvimento livre. Não precisamos institucionalizar isso ainda mais, fazer disso uma política de educação.