O JULGAMENTO DE NUREMBERÔ ~"^A (Carlos Santiago Nino) -

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O JULGAMENTO DE NUREMBERÔ
(Carlos Santiago Nino)
~"^ A
-
APRESENTAÇÃO
As nações vencedoras da Segunda Guerra Mundial, lideradas pela
Inglaterra, França, Estados Unidos e União Soviética (os Aliados), ao derrotarem o
Eixo (Alemanha, Itália e Japão), criaram um Tribunal Internacional na cidade de
Nuremberg,-na Alemanha,--com-a. finalidade de julgar os nazistas, acusadas de_
crimes contra a humanidade.
O texto abaixo, escrito pelo jurista Carlos Santiago Nino, foi inspirado nesse
Tribunal. As três sentenças que compõe o texto não retraíam a verdade histórica
dos argumentos utilizados pelos juizes em algum processo particular. No entanto,
tomam como ponto de partida esse trágico acontecimento do século XX para
reacender o debate entre positivismo jurídico, jusnaturaiismo e as possibilidades
de superação desses dois grandes paradigmas jurídicas
O JULGAMEfíTO
Na Cidade de Nuremberg, no dia 25 de novembro de 1945, o Supremo
Tribunal das Forças Aliadas reúne-se para ditar a sentença aos presos, aqui
presentes, pelos presumíveis crimes cometidos contra a humanidade e pelos
crimes de guerra. Escutados os argumentos da acusação e da defesa, analisadas
as provas, os senhores juizes deste Tribunal manifestarem-se nos seguintes
termos.
VOTO DO EXCELENTÍSSIMO SENHOR Juiz SEMPRÕNIO
Distintos colegas, estamos aqui reunidos para julgar um conjunto de
homens que participaram ativamente na realização daquilo que foiT sem dúvida, o
fenõmgDQ-JàOdal—e-pol?tíco mais terrível_da história da humanjdade/ Temos
testemunhos de outros fatos históricos terríveis, em que certos homens causaram
o sofrimento, a destruição e a morte em extensos grupos humanos. Porém,
dificilmente poderá citar-se um antecedente' comparável aos fatos que estes
homens, hoje sentados no banco dos réus, ajudaram a desencadear. Foram
milhões de seres humanos que se viram afetados direta ou indiretamente pelas
ações criminosas destes indivíduos. Imbuídos de um messianismo desvairado,
movidos peia fanática crença da superioridade de sua raça, esses indivíduos
infligiram a seus congéneres danos e sofrimentos que nem sequer foram
imaginados pelos escritores que exercitaram sua fantasia para dar uma vívida
pintura do "castigo eterno" (...)A_defgsa_ de alguns dos acusados não nega os_fatgs sobre os quais se
baseia a acusação, jnas apenas contestada qualificação juridicajaue osjgmgria
puníveis. Em síntese, a defesa propõe a tese de que estes indivíduos cometeram
^ãtos que, jndependeníe^ia..3vatíacão moral a SBU-Lagnelto^foram perfeitamente
legítimos de acordo com a ordemjurídica^que prevalecia no tempo e nolugãFe^
realizados. JPs processados, segundo esta tese, eram funcionários
públicos que agíamem plengucontoonidade com as nojTnas Jurídicas
ditadas pelos òrgãõsTégííímos GO Estado Nacional Socialista. Não"só estavam
autorizados a fazer o que fizeram como também, em alguns casos, estavam
legalmente obrigados afazê-ío.
A defesa nos lembra um princípio elementar de justiça, que a civilização
.que..nós.iepresentamos_,acejtojj. há ..muito' tempo, _e.._que._q. próprio ...regime .nazista
desconheceu: esse princípio, formulado usualmente com a expressão latina
"nuilum crímem, nulla poena sine iege praevia" (não há crime sem lei anterior que
o defina), proíbe impor uma pena por ato que não estava proibido pelo direito que
era válido no momento em que o ato foi. cometido.
A_ defesa insiste que, se castigarmos aos processados, estaríamos
infringindo este princípio liberai, visto que os atos que julgamos não eram puníveis
segundo o direito quejggja no terngo_eTugar de sua execução. Dístintos~cõ!egãs;
creio que um dos serviços mais impõrtintês~qae~esterTribunaipode prestar para a
humanidade consiste em contribuir para afastar, de uma vez por todas, a absurda
e atroz concepção de direito invocada pela tese de defesa. Esta concepção
sys^tajquej^stamos_djante ^e uro_ s[stemaJurídico cada vez que um grupo
hurnãno ffnseguejmpgr certo: .conjunto_dé nprrnas_em~determinadã sòcied"ade]e
conta com a força" suficiente para fazé-íàs cumprir, seja_gual forp^alpFmõrãi de
tais_j3anMsT Isto"tem gerado o^obscgng lema "á' lei é ajei" que serviu pára
justificar as opressões mais aberrantes.
~~
••
Há muito tempo, pepsadsEes sumamente lúcidí^, têm demonstrado a
falsidade desta ideia com argumentos contundentes. Acima das normas djtadaslf
pelos homens há um conjunto de princípios mocaisHiníversaimente válidos^ e
critérios de justLcaL_e_diC£itas.fundamenta|s inerentes á
verdadeira natureza humana. Induem-se aí o direito à vida, a integridade física, õ
direito dê"êxprèssar o~piniões políticas, praticar cuítos religiosos, não ser
discriminado peia raça, não ser julgado e condenado sem o devido processo legal.
EsteQgnjynto de pjjncjgiogjorrnarn^quesechqmajle^direitonaturar.
As normas positivas, ditadas pgtos homens, são direitcrapãpas-na medida
em qug__se_conformam com Q direJtgJTíatural erT^Jj—^ontradízem. Quando
ênfrérítãmcsf^Õm sistema de normas que está~èm=5j5õslçaò tão evidente com os
princípios do direito naturai, como o esteve o ordenamento jurídico nazista,
desnaturalizar grosseiramente
~~ ~^
diferença há entre as normas do ordenamento nazista e "uma
'organização criminosa como a máfia, a não ser que as primeiras desprezaram de
forma mais radicai que as últimas os princípios fundamentais de justiça e
moralidade? Á posição da defssa implicaria que os juizes que juígam os membros i
de uma organização ilegal, teriam de fazê-ío de acordo com as regras internas]'
dessa organização e não de acordo com os princípios juridicos válidos.
Se aceitássemos a tese da defesa, teríamos a situação ridícula de que
depois de íar vencido o monstruoso regime nazista, com "sangue, suor ejl
lágrimas", acabaríamos aplicando "as normas desse mesmo regime para absolver
algumas das suas principais autoridades. Os vencedores se submeteriam às
vencidos. Nãc sendo as regulações do regime na^sta_verdadeiras
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__
normas jurídicas, eías sãojnopersntes para legitimar os atos executaos" em
conformidade com as mesmas. Peio contrário, tais atos constituem violações
grotescas das normas mais elementares do (fireito_naturalT gueéjum direitgj^ue
existia^tanto^n^Jempo em que esses atos foranf executad^^emõ^gora^
"seropre, Assim, resulta absdfciã a pretensão da defesa de que condenar os réus
implicaria violar o princípio segundo o quaí "não há pena sem lei anterior que a
defina". Há umajejuitgmaj^
atos e esta é a lei que
aplicaremos. submetendo^
que se condene os reusT
~~~
~~^~~~
~~~~ ....... ....... '
'
*
VOTO PO ExcEismissíMo SENHOR Jtm; ç/^"
Eu partilho tías considerações morais que o distinto Juiz que me precedeu
fez dos atos submetidos à consideração deste Tribunal Supremo. Eu também
considero que tais atos constituem formas extremamente aberrantes de
comportamento humano, sem precedentes de igual magnitude no curso da
história. Ao formular este julgamento não estou opinando como juiz, mas sim
como ser humano e cidedão de uma nação civilizada que contribuiu para erradicar
o regime que tomou possível essas atrocidades.
Mas a questão é outra. Será que nos é permitido, na condição de juizes,
fazer valer esses julgamentos morais para sustentar uma decisão nesse
processo? Os juízos morais, inclusive os que acabo de. formular, são relativos e
subjetivos. Os historiadores, sociólogos e antropólogos têm mostrado como são
diversas as regjgs^mQraiserr^d[stíntas
sociedades e^erfQdos
^
que uff>-pevetimafíjrepoca t considera moralmente abominável, oujrgjjgyg.
o aceitá~comõ^èffêjme]razQavei elèqítínia
Podemos negar que o nazismo gerou" uma" verdadeira "concepção moral na^qúãi
acreditavam honestamente grande parte da população desse país? Não
nenhum proç^dinr^ntoj^Letivg^ para ^demonstraria validez de certos julgamentos
morais e a invalidez de_o^ros. A idéia^é"que"5dste um direito natufâTlmOfávêr e
universaír~acê5sívêr a razão~humana, é uma'vã, ainda que nobre, ilusão.
Demonstra isso a d-vergência entre os pensadores jusnaturalistas no'que diz
respeito ao conteúdo das nornnas do direito natural. Para alguns, o direrío natural
consagra a monarquia absoluta. Para outros, a ,d.emocracjaj^opular. Segundo
l ~"~ ãíguns autores, a propriedade privada é uma instituição do dírètõiniíural. Outros
acreditam que o direito natural toma legítima apenas a propriedade coletiva dos
recursos económicos.
/
/
urna oas congjistas mais nobres QaJiucaaDidade^foi. a-adoção da idéia_de
que os conflitos sociais cevem ser reso!yidos_jTãQ_sj23^
"concepções morais dos que e'sfac~encarregados_de julgá-íos, mas sim sobre__a_
as jundjcas ^iatelecicgs. E "o quê se denominou cie "estadõ~d~^
toma possí7ei a ordem, a segurança
~ e a certeza nas re!açõés~sòcíaisT^:3
O direito de urna comijntâaGe é unT sistema ~cOjo alcance pode ser verificado
empiricamente, de forma objetiva e concludente, independente das nossas
vaiorações subjetivas. Cada vez que nos encontramos frente a um conjunto de
normas que estabelecem instituições distintivas, como tribunais de justiça, e que
são ditadas, por sua vez, por um grupo humano que tem o monopólio do uso da
força num território definido, estamos diante de um sistema jurídico, podendo ser
idanííficado como tal independente de nossos julgamentos morais a respeito do
valor de suas disposições, Odireito_distin^
urna organização criminosa, como j2jdajTi_áfiat não jaela justiça doj^onteúdo de
suas normas, mas s[m_gejolatojte^staiirespaidado pQLum~aparato_a3erotivo que
sejxgfcesobre umajjopuiação definida e um território delimitado, sem entrar na
.competição, no mesmo âmbito, com um aparato que çonte_com um pqder_superjpr
ou equivalente. Se a. máfia conseguir assumir o controle efetivo e estável sobre
uma porção definida de território e de_pgpuiaçao1__as_D.Qrrnas_que..ditar constituirão"
um ordenãmentojuríd[cg.
™
~~
Por essa razões, considero que o sistema normativo vigente na Alemanha
nzzlsta e nos países ocupados pelas suas tropas era um sistema jurídico, por
mais que consideremos abominável o conteúdo de suas disposições. Quero
salientar que esse sistema foi reconhecido internacionalmente, inclusive pnr
alguns dos nossos países, antes de decidirem declarar guerra ao Fixo As
atrocidades que hoje julgamos são o resultado de normas cujo conteúdo moral
repudiamos. No entanto, essas normas eram vigentes e efetivas no tempo em que
o sistema era quase universalmente reconhecido. E claro que -há uma relação
entre direito e moral. Ninguém duvida que um sistema jurídico reflete, de fato, os
projetos e aspirações morais da comunidade ou de seus grupos dominantes (o
sistema nazista não foi uma exceçáo a isso, pois refietiu a concepção moral
prevalecente na sociedade aiemã). Não há dúvidas, tampouco, de que isso deve
ser assim para que o sistema Jurídico alcance certa estabilidade e durabilidade.
Contudo, o que questiono é que seja concertualmente necessário para
qualificar um sistema de normas como "jurídico" que ele esteja de acordo com os
princípios morais e de justiça que consideramos válidos. Nós somos juizes, e não
políticos. É nosso dever julgar de acordo com normas jurídicas. São as normas
jurídicas, e não nessas convicções morais, que estabelecem para nós a fronteira
entre o legítimo e o ilegítimo, entre o permitido e o proibido. A existência de
normas jurídicas implica a obrigatoriedade da conduta que elas prescrevem e a
legitimidade dos atos realizados em conformidade com elas. É verdade que não
somos nos juizes do sistema jurídico nazista - graças a Deus derrotado para
sempre - e não estamos, portanto, submetidos às suas normas. Mas qualquer que
seja a posição que aaotarmos a respeito da origem da nossa competência e das
normas que estamos obrigados a aplicar, terminaremos por reconhecer a validez
das nefastas normas do regime nazista no íempo e lugar em que tiveram vigência.
Quando se diz qua_çonstituímps yrnjribunalLJPtemacionaL submetido às
normas do direito ca comunidade de nações, deveríamos concluir que esse direito
inclui o chamado "princípio de efetividade". que outorga validez a todo _Sistema ;
normativo ditado por um poder soberano que exerce deforma estável o monopólio* l
do uso da forca num determinado^teintQrJQ. Por outro lado, quando afirmamos que" l ^- .^^
somos juizes das nações vencedoras, cem poder para aplicar as normas de
nossos próprios sistemas jurídicos, estendidos transitoriamente a este território, /
deveríamos concluir que nossos respectivos ordenamentos jurídicos incluem entre |
seus princípios fundamentais c "nullum crítnem, nuila poena sine lege praevia",!
que nos obriga a iuiçar os atos de~ãcòrdo com as nomnas'^/ig¥rítesl^Tfiífi'pn;e .'no.
lugar em que foram cometidos e não de acordo ..cpm_jngnmas...Hjtadas
posteriormente ou para um território diferente.
Chegamos, assim, ao reconhecimento da validez das normas do direito
nazista no momento e no território em que os atos ora
Isso não significa que estamos nos submetendo às normas dos vencidõsTmas é a
conclusão natural de apficar nossas próprias normas jurídicas. Devemos, pois,
aceitar a tese de defesa, segundo a quaS estes atos moralmente horrendos 'foram
juridicamente legítimos e não podem ser punidos. Estes indivíduos sentados no
banco dos réus já foram julgados pela opinião moral da humanidade civilizada.
Não vamos destruir nossos próprios princípios jurídicos para acrescentar a essa
condenação moral uma pena supérflua e perniciosa. Cuidemos de não abrir um
precedente suscetíyel de ser usado no futuro com finsTdiferentes d'aquetes que
nós perseguimos. A barbárie do nazèsmo e ao seu desrespeito pelo Estado dê"
Direito, vamos opor nosso profundo respeito peias instituições jurídicas. Voto,
pois, peia absolvição dos -réus.
VOTO DO EXCEUEmiSSIHG SEHHCRjlKZ TÍCIO
ÀS opiniões de meus ilustres colegas levaram-me a um estado de profunda
perplexidade. Tenho consciência de nossa responsabilidade histórica de
assentarmos princípios ciaras e conclusivos que expressem a resposta que o
mundo civilizado deve dar a fatos de barbárie como os que são julgados neste
processo. Confesso, porém, que não encontrei nos votos dos juizes que me
precederam os elementos de julgamento que permitam formular tais princípios.
É bem verdade que estou plenamente de acordo com muitos aspectos das
opiniões que acabamos de escutar. Mas é também verdade que há nessas
opiniões urna série de confusões conceituais e alguns pressupostos valorativos
dificilmente justificáveis.
Permitam-me começar por um ponto queTise não é díretamente relevante
para o problema que ternos de resolver, desempenhou um papel decisivo nas
opiniões de meus colegas. O Juiz Sernprônío sustentou que há certos princípios
jjiorais e de justice qua são universais e etemgs1_acessjyeis_à_razão.,,e.,que
derivam da 'Verdadeira natureza humana". Ao'contrário, o Juiz Cayo negou a
existência de um direito natural e afirmou que os julgamentos vaíorativos são
ríecessãnarnents subjetivos e raSatjyosTsefri que existam procedimentos racionais
e objetivcs para determinar a sua validez ou invalidez. Ambas as posições
pa'ecen>ni8 insatisfatórias. A primeira não nos diz como se., demonstra a
existência ca tais princípios cê direito natural, como se selecíonarn as
propriedades aos seres humanas que constituem sua verdadeira essência ou
natureza, como se procuz a inferência de tais princípios normativos a partir de
certos pressupostos dados acerca da condição humana (...). Por outro lado, a.
segunda posição, que sustenta que os julgamentos vatorativos são subjetivos e
relativos, gera também dúvidas qua não são fáceis de erradicar. Será verdade que
quando dizemos que a!ao é bom ou justo nos deixamos levar apenas pelas
emoções? Do fato de as sociedades divergirem em seus juízõ¥ vãiorátivds,
podemos concluir que todos etes sejam igualmente razoáveis e válidos? Tení
sentido sustentar que nem aos homens nem às sociedades devemos julgar de
acordo com os princípios morais que nós sustentamos, mas sim com os que "eles"
sustentam? Não implica isso a impossibilidade de todo julgamento moral a
respeito da conduta alheia (quando o agente crê que está agindo moralmente)? É
possível formular julgamentos morais e sustentar ao mesmo tempo que
julgamentos morais opostos são igualmente válidos?
Confesso que as minhas dúvidas a respeito das duas posições me colocam
numa situação incernoda. Embora não me pareçam convincentes os
procedimentos que os filósofos morais propuserem até agora para justificar
princípios valorativos últimos, não acho satisfatório o ceticisrno ético fundado
numa concepção subjetivista ou relativista dos valores. Porém, creio que podemos
deixar esta questão aos filósofos - de quem espero um progressivo
esclarecimento dos problemas conceituais e epistemológicos que ela atinge - já
que no fundo não é relevante para enfrentar a discussão aqui apresentada.
Mesmo quando adotamcs uma concepção cética em matéria ética,_ nãg_pgdemosevitar a fomiulação çle julgamentos morais. E se formulamos julgamentos"
valorativcs - como o faz o Juiz Cayo ~ adotamos uma posição moral e estamos
comprometidos a agir de forma consequente. O problema filosófico no qua! entrei
somente se apresentaria se alguém nos desafiasse a justificares princípios morais
últimos nos quais nossos julgamentos se baseiam. Contudo, por sorte, tal
problema não se coloca aqui, já que todos nós, membros do Tribunal, coincidimos
nas nossas convicçõas morais e fundamentais.
A questão que se apresenta neste procasso é saber se podemos, como
juizes, fazer vaiar tais convicções morais para decidir este caso, ou, ao contrário,
se devemos nos ater exclusivamente à aplicação de princípios e normas jurídicas.
Para o Juiz Serrprônio não existe a disjunção que acabo de colocar. Para ele a
identificação das regras jurídicas implica íé-las passado pela peneira de nossas
convicções morais. Um conjunto de regras que contradiz princípios morais e de
justiça considerados válidos não constitui um sistema jurídico. Eu não estou de
acordo com essa posição e coincido nisto com a opinião do Juiz Cayo. Se não nos
deixamos seduzir pela pretensão de encontrar â verdadeira essência do direito,
mas nos preocupamos em determinar como a expressão "direito" é usada na
linguagem corante de leigos e juristas, concluiremos, sem dúvida, que em muitos
contextos ela ã aplicada zz.ra denominar sistemas normativos que não satisfazem
mínimas exigências de justiça. Nem todo aquele que fala em "direito nazista"
adere è ideologia nazista. O próprio Juiz Semprônio teve que recorrer a
circunlóquios arfcrticieig psira fazer referências ao conjunto de normas implantadas
peio Terreiro Relch sem usar a expressão direito. É difícil definir o. termo "direito"
ou "sistema jurídico" na linguagem corrente. Trata-se, por certo, de uma expressão
bastante vaga. C -juiz Cayo não está errado ao pressupor que a palavra se aplica
a um conjunto de normas que são reconhecidas e que se tomam efetivas por
aqueles que controlam o monopólio da coação em um certo território. Tais são,.
aproximadamente, as condições que lavamos em conta para identificar um
fenómeno como o "direito"babilônicc" "ou "o"""direito chinês". São condições
puramente fálicas e não incluem propriedades valoratívas. Se nos perguntarmos,
entretanto, não como efeílvamsnta se usa o termo "direito", mas sim como séria
conveniente que fosse definido e empregado em certo contexto, penso, em
primeiro iugar, que não hajs outro tipo de razões para preferir uma definição a
outra a não ser pela clareza conceituai e pela conveniência para uma
comunicação fluída que se obtém quando se emprega a expressão de acordo com
a definição escolhida. Em segundo iugar, não creio que existam razões dessa
índole que justifiquem afastar-se do uso comum dominante. Isso me leva a
concluir que não podemos negar a qualificação de "jurídico" ao sistema nazista. O
Juiz Semprônio, contudo, poderia dizer que não se trata meramente de Uma
questão de palavras, como transparece claramente rio voto do Juiz Cayo, para
quem identificar um sistema como "direito" teria consequências práticas
sumamente importantes, urna vez que implicaria concluir que as suas normas têm
ou tiveram validez e força obrigatória, que os atos realizados em conformidade
com elas foram legítimos e que nós, juizes, estaríamos obrigados a reconhecer
tais normas em nossas decisões. £ neste ponto que estou em completo
desacordo com o Juiz Cayo. Ele nos disse que "as normas de um sistema jurídico
são válidas e têm força obrigatória no tempo e lugar em que elas vigoram", mas o
que quer dizer isso? Se isso significa que as normas jurídicas estipulam a
obrigação de realizar determinados atos. istolTobvíamentecerto. mas não implira
que devemos realizar tais atos. Também a ordem de um assaitante^èstipulã" á
obrigação de realizar um ato, mas isso não quer dizer que devam_Qs_reaijzarjesse
r ato, ainda que não nos reste outra saída a não ser executá-ío.
Ao sustentarmos que há urna obrigação de obedecer as normas jurídicas e não as ordens da um assaitante - devemos perguntar de onde surge essa
obrigação. Não se pode responder qua surge da norma jurídica, uma vez que se
assim fosse teríamos que nos perguntar se estamos obrigados a obedecer essa
outra norma jurídica. Em aigum momento se esgotarão as normas jurídicas que
estipulam a obrigação de obedecer a outras normas jurídicas. A única resposta
possível é Que a obrigação de obedeceras normas jurídicas surge de outro tipo de"
norma, de normas_que_são consideradas "intrinsecamente ottógatónas^ As únicas
normas das quais se pode dizer que são intrinsecamente obrigatórias são as
nnrrrtas de uma rnoraJ critica.
Definitivamente, quando G Juiz. Cayo defende que as normas jurídicas são
obrigatórias, está pressupondo uma norma ou princípio mora! que prescreve
obedecer as disposições de iodo sistema jurídico. Ele não é consequente corn a
sua tese de qua se deve julgar levando em conta somente normas jurídicas e não
nossas convicções
morais. O Juiz Cayo
de forma encoberta,
•>
j — introduz,•———
~— —suas
^convicções morais ac postular que toda noima jurídica é obrigatória e deve ser
reconhecida pelos juizes. Â obrioalonedade a oue se refere é uma obrigatoriedade
mora!. Que sie introduza suas convicções morais não é em si mesmo criíicável,
ainda que o tenha feito de forma encoberta, já que toda decisão a respeito de uma
matéria meramente relevante inr;Di;ca adotar urna posição morai. O que se deve
averiguar porém, é 58 as convicções morais do Juiz Cayo são aceitáveis. O
princípio mcrai segundo 3 qual deva-se obedecer e spiicar as normas jurídicas
vigentes é um principio plausível, dssde que vinculado a valores tais como
segurança, orderr:, coordenação de atividádes sociais etc!" Mas é absurdo
pretender que seia o únícc princípio morai válido. Também há outros princípios
como aqueies que consagram o direito á vida, á infegridãcfelísica, ã~líbeí^ãáè étc.
Em certas circunstâncias excepcionais, a violação destes últimos princípios, ^em
que se incorreria se fossem observadas as regras jurídicas, seria tão radicai e tão
grosseira quanto o é; normalmente, o Afastamento do princípio morai que
prescreve ater-se 30 direito vigente. Taís circunstâncias se deram durante o
regime nazista e não se pada duvidar que os funcionários desse regime não
podiam justificar moralmente es atrocidades que executaram peio simples fato de
estarem elas autorizadas ou prescritas pelo direito vigente. E mais, se um juiz
alemão da ápocs tivesse sido suficientemente temerário para condenar um
funcionáílo por alguns desses aios, desobedecendo as normas jurídicas vigentes,
seu comportamento teria sido plenamente justificado e teria enorme mérito moral.
Pode-se dizer o contrário de uma decisão análoga que adotasse este Tribunal?
Certamente não.
Tanto o princípio da efetr/idade do direito internacional como o princípio
"nuila poena síne lege praevia" r Q'Q directo interno de nossos países são princípios
muito respeitáveis que refletem valores morais primários^ tais como a soberania
dos Estados e a segurança individual Esses princípios devem ser observados
escrupulosamente em iodos os aios que não envolvam uma verdadeira catástrofe
para a sociedade. Contudo, nenhum valor morai, por mais importante que seja, é
absoluto e prevalece acima de todos os demais. Este tribunal tem a imperiosa
necessidade de ratificar contundentemente o valor da vida, da integridade física,
da intrínseca igualdade de todos os seres humanos. Para tanto7"nãõTsè pode
deixar impunes os personagens de um regime que violentou brutalmente todos
esses valores, como nunca hav!a acontecido antes, isto implica deixar de lado
princípios jurídicos normalmente valiosos, como aqueles que a defesa alega.
_Qaj/emos_^assumir Plenamente asta desgraçada consequência como um mal
menor. A soiução do Juiz Sernpmnio não toma explícita tal^cõnsequência,
^
encobiindo-s. Q^mdpkiJfraf/a poena sine /eqe
alguém, que exista urna lei íuridica_pgsitjya que proíba o ato. Tal princípio se dirige
precisamente contra a pretensão ds se fundamentar uma pena na violação de
normas morais (e é isso o que tanto o Juiz Semprônio como eu estamos
sustentando). O rumo escolhido por meu distinto colega é sumamente perigoso:
uma vez que não se reconhece abertamente a violação de um princípio valioso,
não fica claramente assentado em que circunstâncias extremas tal violação é
permissiva!, abrindo-se a porta para outras violações encobertas menos
justificáveis. Vox, conseqúentemente, pela condenação dos réus.
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